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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA ARTURO USLAR PIETRI E O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO: METÁFORAS DE UM NOVO HOMEM Por: GISELE REINALDO DA SILVA Curso de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos literários: Literaturas Hispânicas) RIO DE JANEIRO 2017 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA ARTURO USLAR PIETRI E O ROMANCE HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO: METÁFORAS DE UM NOVO HOMEM Por: GISELE REINALDO DA SILVA Curso de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos literários: Literaturas Hispânicas) UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 2017/1 Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Orientadora: Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman 3 Silva, Gisele Reinaldo da. U86csi Arturo Uslar Pietri e o romance histórico contemporâneo: metáforas de um novo homem. / Gisele Reinaldo da Silva. - Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. 259f.; 30 cm. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman. Banca: Eduardo de Faria Coutinho. Banca: Cláudia Heloísa I. Luna Banca: Edna Maria dos Santos. Banca: Debora Ribeiro Lopes Zoletti. Tese (Doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, 2017. Bibliografia: 254 - 259. 1. Uslar Pietri, Arturo, 1906 – 2001. El camino de El Dorado – Crítica e interpretação. 2. Uslar Pietri, Arturo, 1906 – 2001. El camino de El Dorado. – Personagens. 3. Romance histórico venezuelano – Séc. XX – História e crítica. 4. Vanguarda (Estética) – América Latina. 5. Venezuela – História – Séc. XX. 6. Identidade cultural. 7. Imagem. 8. Poder (Filosofia). 9. Memória na literatura. 10. Olhar (psicologia). I. Guberman, Mariluci da Cunha,1942- . II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título. CDD V863.6 4 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Título da Tese: Arturo Uslar Pietri e o Romance Histórico Contemporâneo: Metáforas de um Novo Homem. Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Aprovada em: __/__/___ __________________________________________ Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (UFRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (UFRJ) __________________________________________ Profª. Drª. Cláudia Heloísa I. Luna Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (UFRJ) __________________________________________ Profª. Drª. Edna Maria dos Santos Programa de Pós-Graduação em História (UERJ) __________________________________________ Profª. Drª. Debora Ribeiro Lopes Zoletti (UFRRJ) __________________________________________ Prof. Dr. Antonio Ferreira da Silva Júnior Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais (CEFET) – Suplente __________________________________________ Profª. Drª. Sônia Cristina Reis Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (UFRJ) – Suplente 5 Ao Aba, por conceder o Espírito Santo como meu grande mestre... Ninguém explica Deus Nada é igual ao Seu redor Tudo se faz no Seu olhar Todo o universo se formou no Seu falar Teologia pra explicar ou big bang pra disfarçar Pode alguém até duvidar sei que há um Deus a me guardar E eu tão pequeno e frágil querendo Sua atenção No silêncio encontro resposta certa então Dono de toda ciência, sabedoria e poder Oh dá-me de beber da água da fonte da vida Antes que o haja houvesse Ele já era Deus Se revelou ao seus do crente ao ateu Ninguém explica Deus Nada é igual ao Seu redor tudo se faz no Seu olhar Todo o universo se formou no Seu falar Teologia pra explicar ou big bang pra disfarçar Pode alguém até duvidar sei que há um Deus a me guardar E eu tão pequeno e frágil querendo Sua atenção No silêncio encontro resposta certa então Dono de toda ciência, sabedoria e poder Oh dá-me de beber da água da fonte da vida Antes que o haja houvesse Ele já era Deus Se revelou ao seus do Gentio ao Judeu Ninguém explica Deus Ninguém explica Ninguém explica Deus Ninguém explica Ninguém explica Deus E se duvida ou se acredita Ninguém explica Ninguém explica Deus Ninguém explica Ninguém explica Deus Ninguém explica Ninguém explica Deus E se duvida ou se acredita Ninguém explica Ninguém explica Deus Dono de toda ciência, sabedoria e poder Oh dá-me de beber da água da fonte da vida Antes que o haja houvesse Ele já era Deus Se revelou ao seus do crente ao ateu Ninguém explica Deus Ninguém explica Deus Preto no Branco (2015) 6 AGRADECIMENTOS Ao CNPq, pelo financiamento desta pesquisa, e ao Programa de Pós- graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro por, desde o Mestrado, nomear DRE o espaço institucional aberto para que meus projetos de pesquisa pudessem tornar-se Dissertação e Tese: vini, vidi, vinci. À orientadora Profa. Doutora Mariluci Guberman, pelo respeito acadêmico às minhas pretensões enciclopédicas, pela competência criativa com a qual me brindou durante seis anos de orientação e, sobretudo, por ser autora de um dos currículos mais admiráveis que já vi, em sua robustez de realizações e esmero profissional. Além de uma carreira digna de reconhecimento, me sinto honrada por ser uma de suas últimas orientandas de doutorado e, em especial, por cada cafezinho, lanchinho e beijinho recebidos em sua casa, ao longo do tempo. Por ser maternal, ainda que orientadora, meu muito obrigada. À Profa. Doutora Edna dos Santos, em especial, por sua competente contribuição na ocasião da Qualificação de Doutorado, com indicações bibliográficas bastanterelevantes para a conclusão desta pesquisa. À Profa. Doutora Cláudia Luna por presentear seus alunos com um notável equilíbrio entre generosidade humana e diligência acadêmica. Por deixar-nos à vontade tanto quanto admirados a cada ocasião em que atua ofertando pertinentes contribuições teórico-críticas no âmbito da Pós-graduação. Ao Prof. Titular Doutor Eduardo Coutinho, à Profa. Doutora Cláudia Luna, à Profa. Doutora Edna dos Santos e à Profa. Doutora Debora Zoletti, pela honra do aceite em compor a banca de defesa desta Tese de Doutorado. À Profa. Emérita Doutora Bella Jozef, pelo legado de ter sido sua última orientanda, dos anos de Iniciação Científica às portas do Mestrado. Esta, irrefutavelmente, foi uma de minhas mais profícuas heranças acadêmicas. À minha mãe, de quem recebi a afeição mais próxima do amor ágape, divino na entrega e incondicionalidade. De mim, você arranca, diariamente, como resposta, 7 meu melhor amor: a mais pura e doadora estima que já pude experimentar. Agradeço, em específico, por me amar com altruísmo suficiente para desejar que eu sempre voe na vida – extraordinariamente – ainda que alguns voos representem, inevitavelmente, a sensação de ninho vazio. Ao meu pai, porque seu amor solidificou em mim uma base de segurança e proteção categóricas para o futuro. Acreditar na certeza de seu afeto modelou com solidez minhas respostas diante da vida, fazendo-me crer, com uma mentalidade sã, que nasci para vencer. Por ter sido sua princesa outrora, quando menina, aprendi a não aceitar nada menos do que este ser e estar no mundo, na vida adulta. Por tê-lo tido, posso amar com mais equilíbrio agora. Ao meu irmão, pelo privilégio de ser amigo, além de família. Que bom que a vida não nos tem afastado, mas aproximado, em seus desafios, risos e lágrimas. Amo você! À minha melhor amiga, Mylena, pelo aniversário de duas décadas de amizade. Meu tesouro peculiar, sempre e pra sempre. Ao meu Rodrigo, minha nova família, minha escolha de vida. A decisão mais séria e definitiva de minha história e, sincronicamente, a mais especial. Você se tornou meu maior investimento diário, minha prioridade e entrega, meu até que este o queira. No mais, a gente diz ao pé do ouvido, não é mesmo? A Deus, por me presentear com uma fé coerente, apesar de livre da escravidão da razão. Pelo privilégio de um relacionamento vívido, confortável em si mesmo, imprescindível em todo tempo, conquanto alheio à responsabilidade de ser lógico. Muito obrigada, em especial, pelo zelo de me presentear com o estudo da ciência, porém, preservar-me das perdas da autossuficiência humana. 8 SINOPSE Levantamento imagético do romance El camino de El Dorado de Arturo Uslar Pietri, publicado em 1947. Estudo analítico-crítico do processo de formação das identidades culturais da Venezuela no contexto da América Latina do século XX. Aprofundamento na contribuição dos aportes teóricos da pesquisa presente na análise crítico-interpretativa do romance. 9 RESUMO SILVA, Gisele Reinaldo. Arturo Uslar Pietri e o Romance Histórico Contemporâneo: Metáforas de um Novo Homem. Rio de Janeiro, 2017. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta pesquisa de Doutorado discute a formação das identidades hispano- americanas – mestiças, heterogêneas, porém, com características políticas e histórico-culturais afins – tendo como base o romance histórico contemporâneo El camino de El Dorado, do escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, publicado em 1947. O estudo pauta-se na hipótese de que, ao construir poeticamente romances históricos, o autor visita o passado, em busca das origens de seu povo, como modo de questionamento do presente, no século XX, e projeção imagética do futuro, contribuindo, assim, para a construção da identidade cultural da Venezuela, remetendo, também, a outros países da América Latina. Em outras palavras, ao empreender um relato de viagem histórico e geográfico pelo rio Amazonas, projetando-se ao período da Conquista espanhola da América, Uslar Pietri funda, na verdade, uma viagem simbólica sobre a história da civilização do mundo ocidental. A representação narrativa dos acontecimentos de mais alta tensão do passado são imprescindíveis para o processo de formação dos nacionalismos americanos do século XX. Nesta pesquisa, buscamos, ainda, apresentar um estudo crítico sobre temas predominantes na obra de Uslar Pietri – poder, memória, olhar, Barroco estético – entendendo-os como mecanismos teóricos e estéticos decisivos para a análise posterior de sua criação literária. Palavras-chave: Arturo Uslar Pietri, El camino de El Dorado, Romance Histórico, Identidades Culturais, Mestiçagem Cultural, Modernidade. 10 ABSTRACT SILVA, Gisele Reinaldo. Arturo Uslar Pietri e o Romance Histórico Contemporâneo: Metáforas de um Novo Homem. Rio de Janeiro, 2017. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. This PhD research discusses the formation of Hispano-American identities - mestizo, heterogeneous, however with similar political and historical-cultural characteristics - based on the contemporary historical novel El camino de El Dorado written by the Venezuelan Arturo Uslar Pietri, published in 1947. The current study is based on the hypothesis that, when constructing poetically historical novels, the author visits the past, searching for the origins of his people, as a way of questioning the present, in the twentieth century, and imaginary projection of the future, contributing thus to the construction of the cultural identity of Venezuela, referring also to other countries in Latin America. In other words, by undertaking a historical and geographical travel report along the Amazon River, projecting himself to the period of the Spanish Conquest of America, Uslar Pietri creates, in fact, a symbolic journey on the history of the civilization of the Western world. The narrative representation of the tensest events in the past are essential for the process of formation of the American nationalisms of the 20th century. In this research, we also seek to present a critical study on prevailing themes in the Uslar Pietri’s work - power, memory, look, aesthetic baroque - Understanding them as decisive theoretical and aesthetic mechanisms for the later analysis of his literary creation. Key words: Arturo Uslar Pietri, El camino de El Dorado, Historical Romance, Cultural Identities, Culture Mongrelisation, Modernity. 11 RESUMEN SILVA, Gisele Reinaldo. Arturo Uslar Pietri e o Romance Histórico Contemporâneo: Metáforas de um Novo Homem. Rio de Janeiro, 2017. Tese de Doutorado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta investigación de Doctorado discute la formación de identidades hispanoamericanas – mestizas, heterogéneas, pero, con características políticas e histórico-culturales afines – teniendo como base la novela histórica contemporánea El camino de El Dorado, del escritor venezolano Arturo Uslar Pietri, publicada en 1947. El estudio se basa en la hipótesis de que, al construir poéticamente novelas históricas, el autor visita el pasado, en búsqueda de los orígenes de su pueblo, como modo de cuestionamiento del presente, en el siglo XX, y proyección imagética delfuturo, contribuyendo, así, para la construcción de la identidad cultural de Venezuela, remitiendo, también, a otros países de América Latina. En otras palabras, al emprender un relato de viaje histórico y geográfico por el río Amazonas, proyectándose al período de la Conquista española de América, Uslar Pietri funda, en verdad, un viaje simbólico sobre la historia de la civilización del mundo occidental. La representación narrativa de los hechos de más alta tensión del pasado son imprescindibles para el proceso de formación de los nacionalismos americanos del siglo XX. En esta investigación, buscamos, aún, presentar un estudio crítico sobre temas predominantes en la obra de Uslar Pietri – poder, memoria, mirada, Barroco estético – comprendiéndolos como mecanismos teóricos y estéticos decisivos para el análisis posterior de su creación literaria. Palabras-clave: Arturo Uslar Pietri, El camino de El Dorado, Novela Histórica, Identidades Culturales, Mestizaje Cultural, Modernidad. 12 “Casar assim o pensamento com o sentimento – o coração com o entendimento – a ideia com a paixão – cobrir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir. O esforço – ainda vão – para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor; talvez seja este o só merecimento deste volume. O Público o julgará; tanto melhor se ele o despreza, porque o Autor interessa em acabar com essa vida desgraçada, que se diz de Poeta”. Gonçalves Dias (1847) Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! Todo o sentido da vida principia a vossa porta: o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois a audácia, calúnia, fúria, derrota... A liberdade das almas, ai! com letras se elabora... E dos venenos humanos sois a mais fina retorta: frágil, frágil, como o vidro e mais que o aço poderosa! Reis, impérios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam [...]. Cecília Meireles (1985) 13 Latinoamérica Soy, soy lo que dejaron Soy toda la sobra de lo que se robaron Un pueblo escondido en la cima Mi piel es de cuero, por eso aguanta cualquier clima Soy una fábrica de humo Mano de obra campesina para tu consumo Frente de frío en el medio del verano El amor en los tiempos del cólera, ¡mi hermano! Soy el sol que nace y el día que muere Con los mejores atardeceres Soy el desarrollo en carne viva Un discurso político sin saliva Las caras más bonitas que he conocido Soy la fotografía de un desaparecido La sangre dentro de tus venas Soy un pedazo de tierra que vale la pena Una canasta con frijoles, soy Maradona contra Inglaterra Anotándote dos goles Soy lo que sostiene mi bandera La espina dorsal del planeta, es mi cordillera Soy lo que me enseñó mi padre El que no quiere a su patría, no quiere a su madre Soy américa Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina ¡Oye! Totó La Momposina: Tú no puedes comprar el viento Tú no puedes comprar el sol Tú no puedes comprar la lluvia Tú no puedes comprar el calor María Rita: Tú no puedes comprar las nubes Tú no puedes comprar los colores Tú no puedes comprar mi alegría Tú no puedes comprar mis dolores Totó La Momposina: Tú no puedes comprar el viento Tú no puedes comprar el sol Tú no puedes comprar la lluvia Tú no puedes comprar el calor Susana Bacca: Tú no puedes comprar las nubes Tú no puedes comprar los colores Tú no puedes comprar mi alegría Tú no puedes comprar mis dolores Calle 13 Tengo los lagos, tengo los ríos Tengo mis dientes pa' cuando me sonrio La nieve que maquilla mis montañas Tengo el sol que me seca y la lluvia que me baña Un desierto embriagado con peyote Un trago de pulque para cantar con los coyotes Todo lo que necesito, tengo a mis pulmones respirando azul clarito La altura que sofoca Soy las muelas de mi boca, mascando coca El otoño con sus hojas desmayadas Los versos escritos bajo la noches estrellada Una viña repleta de uvas Un cañaveral bajo el sol en Cuba Soy el mar Caribe que vigila las casitas Haciendo rituales de agua bendita El viento que peina mi cabellos Soy, todos los santos que cuelgan de mi cuello El jugo de mi lucha no es artificial Porque el abono de mi tierra es natural Totó La Momposina: Tú no puedes comprar el viento Tú no puedes comprar el sol Tú no puedes comprar la lluvia Tú no puedes comprar el calor Susana Bacca: Tú no puedes comprar las nubes Tú no puedes comprar los colores Tú no puedes comprar mi alegría Tú no puedes comprar mis dolores Maria Rita: Não se pode comprar o vento Não se pode comprar o sol Não se pode comprar a chuva Não se pode comprar o calor Não se pode comprar as nuvens Não se pode comprar as cores Não se pode comprar minha'legria Não se pode comprar minhas dores No puedes comprar el sol No puedes comprar la lluvia (Vamos caminando) No riso e no amor (Vamos caminando) No pranto e na dor (Vamos dibujando el camino) No puedes comprar mi vida (Vamos caminando) La tierra no se vende Trabajo bruto, pero con orgullo Aquí se comparte, lo mío es tuyo Este pueblo no se ahoga con marullo Y se derrumba yo lo reconstruyo Tampoco pestañeo cuando te miro Para que te recuerde de mi apellido La operación Condor invadiendo mi nido Perdono pero nunca olvido ¡Oye! Vamos caminando Aquí se respira lucha Vamos caminando Yo canto porque se escucha Vamos dibujando el camino (Vozes de um só coração) Vamos caminando Aquí estamos de pie ¡Que viva la América! No puedes comprar mi vida Calle 13 (2010) 14 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................16 PRIMEIRA ETAPA I. ARTURO USLAR PIETRI E A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DA AMÉRICA LATINA....................................................................................................30 1.1 Modernismo hispano-americano: a resposta da América ao espírito moderno inaugural do século XIX....................................................................31 1.2 Os projetos de modernidade artístico-literários de José Carlos Mariátegui, José Lezama Lima, Arturo Uslar Pietri e Ángel Rama..................42 II. A VENEZUELA DO SÉCULO XX E A REVOLUÇÃO DE ARTURO USLAR PIETRI........................................................................................................................57 2.1 O contexto literário venezuelano e o legado da primeira metade do século XX na leitura de Uslar Pietri............................................................58 2.2 O Eldorado: élan poético e revolucionário de Uslar Pietri transmudado às Letras....................................................................................63 III. APORTES TEÓRICO-CRÍTICOS PARA O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA.................................................................................................................72 3.1 Michel Foucault: linguagem e poder..........................................................74 3.2 História, memória e olhar: descoberta, invenção e mutação da realidade..........................................................................................................903.2.1 Da Conquista aos nacionalismos americanos: imbricações entre história e literatura.......................................................................90 3.2.2 Memória e olhar como mecanismos de (re)leitura da história.................................................................................................107 3.3 O romance moderno e a “Epopeia da era burguesa”: o caso do romance histórico contemporâneo................................................................117 3.4 Barroco estético e o redescobrimento da mestiçagem hispano- americana......................................................................................................136 3.5 O mundo da imagem: transformação de ideias icônicas e construção de uma poética..............................................................................................151 15 SEGUNDA ETAPA 1ª PARTE IV. DA CIDADE PARA A SELVA AMAZÔNICA: A NATUREZA EM SEU PROTAGONISMO...........................................................................................162 4.1 O Reino do Peru: terra de índios.............................................................164 4.2 Terra de Santa Cruz: chuva e sangre......................................................168 4.3 Da terra firme ao rio Amazonas...............................................................175 2ª PARTE V. ENTRE O RIO E A SELVA: A CENTRALIDADE DE LOPE DE AGUIRRE.......195 5.1 O golpe traidor.........................................................................................196 5.2 Novo rei, novo propósito..........................................................................209 5.3 A grande matança...................................................................................220 3ª PARTE VI. DA NOVA TERRA PARA O DESERTO............................................................225 6.1 A Ilha Margarida......................................................................................226 6.2 O discurso de Aguirre..............................................................................230 6.3 O navio do prior.......................................................................................234 6.4 A experiência de Valencia.......................................................................240 6.5 O desfecho dos acontecimentos.............................................................245 CONCLUSÃO....................................................................................................................251 REFERÊNCIAS.................................................................................................................254 16 INTRODUÇÃO Cumpre salientar que, sendo a literatura um fenômeno muito complexo e a pesquisa literária uma ciência muito jovem, não se pode valorizar uma metodologia qualquer que seja um remédio milagroso. A diversidade dos procedimentos é justificada, até mesmo indispensável, contanto que tais procedimentos deem provas de seriedade e descubram novos aspectos no fenômeno literário, contanto que contribuam para aprofundar sua compreensão. Mikhail Bakhtin (1997) sta Tese de Doutorado discute a formação das identidades hispano-americanas – mestiças, heterogêneas, porém, com características políticas e histórico-culturais afins – tendo como base o romance histórico contemporâneo El camino de El Dorado1, do escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, publicado em 1947. O estudo pauta-se na hipótese de que, ao construir poeticamente romances históricos, o autor visita o passado, em busca das origens de seu povo, como modo de questionamento do presente, no século XX, e projeção imagética do futuro, contribuindo, assim, para a construção da identidade cultural da Venezuela, remetendo, também, a outros países da América Latina. Em outras palavras, ao empreender um relato de viagem histórico e geográfico pelo rio Amazonas, projetando-se ao período da Conquista espanhola da América, Uslar Pietri funda, na verdade, uma viagem simbólica sobre a história da civilização do mundo ocidental. A representação narrativa dos acontecimentos de mais alta tensão do passado são imprescindíveis para o processo de formação dos nacionalismos latino-americanos do século XX. Nesse sentido, o acontecimento histórico retomado no romance El camino de El Dorado (1947) refere-se à Conquista da América pelo rio Amazonas, no século XVI, através da expedição de espanhóis, índios e negros sob o comando do conquistador espanhol Pedro de Ursúa sucedido por Lope de Aguirre, após sua morte. Uslar Pietri defende, exaustivamente, em sua obra, a problemática de que a autenticidade do processo de formação histórico-cultural americana, delineadora de 1 Todas as citações da obra de Arturo Uslar Pietri nesta pesquisa foram mantidas em língua espanhola, no original correspondente à edição. Não obstante, todas as demais citações teórico- críticas vêm acompanhadas de tradução nossa (Tradução Nossa), com a indicação do número de página correspondente junto ao original em rodapé. E 17 suas identidades culturais, não constitui uma discussão resolvida, ainda no final do século XX. O autor denuncia a ineficiência de uma visão binária – restritiva e arquetípica – definidora das lendas branca e negra representadas por conquistadores e conquistados, no que diz respeito à simbiose histórico-cultural, econômica, política e étnica entre brancos, índios e negros na América. Entre conflitos e contradições, as identidades culturais do ser americano moderno se formam a partir de uma evolução histórica em que nem tudo foi crime, tanto quanto nem tudo foi paradisíaco, pleno de perfeição e bondade, como disseminado por relatos históricos e míticos. Ao eximir-se do catastrofismo dos mais dogmáticos, bem como do relativismo dos mais niilistas, Uslar Pietri recorre à palavra escrita a fim de recriar e agregar, através do redescobrimento da mestiçagem cultural, seletas colaborações da cultura em língua espanhola ao debate das culturas universais, como veremos na análise crítico-interpretativa do romance El camino de El Dorado (1947). Como objetivos da pesquisa, visamos a levantar o sistema imagético do romance histórico El camino de El Dorado (1947), o que implicará, assim, na apresentação de um estudo teórico-crítico sobre a conceituação de imagem, além de um estudo sobre o papel do romance moderno na literatura hispano-americana e, em especial, as características do romance histórico contemporâneo, já discerníveis na narrativa de Uslar Pietri. Neste propósito, apresentaremos, ainda, um estudo sobre temas predominantes na obra do escritor – poder, memória, olhar, Barroco estético – entendendo-os como mecanismos teóricos e estéticos decisivos para o aprofundamento examinador de sua criação literária. A metodologia comparatista proposta para o desenvolvimento da pesquisa qualitativa segue as seguintes estratégias: seleção, leitura, interpretação e debate de textos literários e ensaísticos da produção intelectual latino-americana; isto é, a pesquisa emprega métodos de análise textual e hermenêutica literária com métodos procedentes da crítica cultural, dos estudos comparados e da historiografia literária. Para contemplar essa metodologia, a pesquisa dividiu-se em duas etapas. A Primeira Etapa da pesquisa engloba três capítulos, da página 30 à 161. O primeiro capítulo da Tese denomina-se “Arturo Uslar Pietri e a historiografia literária da América Latina” e subdivide-se em dois subcapítulos: “Modernismo hispano-americano: a resposta da América ao espírito moderno inaugural do século XIX” e 18 “Os projetos de modernidade artístico-literários de José Carlos Mariátegui, José Lezama Lima, Arturo Uslar Pietri e Ángel Rama”. Inicialmente, partimos de uma reflexão sobre a modernidade inaugural na Europa e o Modernismo Hispano-americano, com base no pensamento teórico- crítico, principalmente, de Charles Baudelaire (1996), Jorge Ruffinelli (1995) e Richard Sennett (1997), considerando o Modernismo latino-americano como a resposta da América ao processo de ruptura, reorganização cultural no mundo ocidental, iniciado a partir do século XIX na Europa, com a modernidade. Em seguida, avançamos para o projeto das Vanguardas hispano-americanas pós-modernistas, centrando na criação literária de Uslar Pietri, em sua trajetória no mundo das letras, ao enfatizarmos o engajamento intelectual e político do escritor, comprometido com a realidade histórica de seu tempo. Embasamo-nos, ainda, nas ideias de Jose Martí (1983), precursor de Uslar Pietri, no tocante ao labor intelectual de reflexão sobre a formação das identidades culturais da América Latina, prosseguindo, em seguida, para as contribuições suscitadas por outros escritores considerados referência do pensamento intelectual latino-americano no século XX: José Carlos Mariátegui (2010), José Lezama Lima (1988), Roberto Fernández Retamar (2006) e Ángel Rama (2008). Com isso, demonstramos as influências culturais, intelectuais e literárias absorvidas por Uslar Pietri, as quais serão determinantes para a construção de sua identidade como porta-voz de seu tempo. Tais escritores latino-americanos mencionados coincidem na medida em que, em seu tempo, promovem uma reforma intelectual e moral precursora da criação de novos modelos artísticos. As reformas intelectuais do continente percebem-se dotadas de um saber científico, cuja ambição heroica desperta na geração correspondente a função de realizar uma obra histórico-crítica. O discurso americanista busca resolver seu problema crucial de complexo de inferioridade assumindo a heterogeneidade de sua formação histórico-social, sem renunciar ao ambicionado universalismo. Focalizar a América como unidade cultural e continuidade histórica constitui, possivelmente, o reto fundamental dos grandes escritores do século XX, conforme abordado nesta etapa da pesquisa. O segundo capítulo intitula-se “A Venezuela do século XX e a revolução de Arturo Uslar Pietri” e subdivide-se em dois subcapítulos: “O contexto literário 19 venezuelano e o legado da primeira metade do século XX na leitura de Uslar Pietri” e “O Eldorado: élan poético e revolucionário de Uslar Pietri transmudado às Letras”. No primeiro subcapítulo, apresentamos o contexto literário da Venezuela do século XX, com base no livro Letras y Hombres de Venezuela, do próprio Uslar Pietri (1956). Entendemos que Uslar Pietri, ao início do século XX, com o regresso de sua temporada em Paris, na França, acaba por instaurar um processo de Vanguarda no território venezuelano, a despeito de toda a estagnação em que se encontrava o país. Neste subcapítulo, veremos, em especial, a visão de Uslar Pietri (1956) sobre o romance venezuelano, enquanto propósito mais sistemático e profundo, o qual empreendeu a análise e a revelação da alma do povo, de acordo com o escritor. Com perguntas cultas e propósitos ulteriores, o romance nacional interpreta as sibilinas respostas oferecidas pela existência do venezuelano e sua condição. Os mitos e lendas presentes nos textos transmitem não apenas a concepção venezuelana de mundo, seu espírito, sua vida, sua moral, mas também seus ideais de sociedade, de justiça, de bem e mal, de belo, de sobrenatural. O segundo subcapítulo, ainda nesta etapa, realiza, de certa maneira, a trajetória do escritor no mundo das Letras, desde suas primeiras irrupções literárias à maturidade de suas últimas colaborações escritas. Para cumprir este objetivo, privilegiamos, sobretudo, seus livros de ensaios, como apoio teórico-crítico: Letras y Hombres de Venezuela (1956), De una a otra Venezuela (1956), En busca del nuevo mundo (1969), La creación del nuevo mundo (1991), Ensayos sobre el nuevo mundo: antología de textos políticos (2002). A relevância deste subcapítulo justifica-se pela oportunidade dada ao leitor desta Tese de um mergulho rumo ao entendimento da visão intelectual de Uslar Pietri, cuja trajetória manteve uma coerência de pensamento reflexivo, perceptível desde suas primeiras publicações ensaísticas às últimas, com difusão recente, na década de 90, do século XX. O terceiro capítulo, de fundamentação teórica, nomeado “Aportes teórico- críticos para o desenvolvimento da pesquisa” apresenta o aprofundamento, como apontado no título, desses aportes que sedimentam a pesquisa, os quais estruturarão a leitura crítico-analítica posterior do romance El camino de El Dorado (1947). 20 O primeiro subcapítulo “Michel Foucault: linguagem e poder”, baseado em As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault (1995), propõe uma profunda análise sobre o papel da linguagem, a partir da modernidade, a qual abandona sua interdependência com o mundo, torna-se um caso de significação, passando a representar a si mesma. Na Era Clássica, a semelhança conduzia a arte e tornava o invisível, visível. O mundo organizava-se em torno de si e a semelhança impunha vizinhanças que, por sua vez, asseguravam semelhanças. O lugar e a similitude se imbricavam e a linguagem era uma espécie de teatro da vida ou espelho do mundo. O direito de falar da linguagem consistia em decifrar um mundo que se constituía pela conveniência universal das coisas. Se, por um lado, o saber da Era Clássica esteve limitado a conhecer sempre a mesma coisa, ainda que por caminhos ilimitados, por outro, na modernidade do século XIX, o homem é uma invenção recente, uma figura antropológica, uma simples obra de nosso saber. Trata-se de uma nova experiência da linguagem e das coisas, em que as palavras encontram ininterruptamente seu poder de estranheza e o recurso de sua contestação. O fim do pensamento clássico provoca um recuo da representação à liberação da linguagem e, por conseguinte, à possibilidade de ser duplicada, limitada, guarnecida, mitificada e, possivelmente, regida pelo enorme impulso exterior da liberdade, ou de um desejo, ou de uma vontade, no esclarecimento de Foucault (1995). Com base, ainda, na perspectiva de Michel Foucault (1985, 2002), em seus livros Microfísica do poder e A arqueologia do saber, refletimos sobre os discursos de verdade que a noção de poder implica, especialmente na modernidade ocidental. São estes mesmos discursos, gerados pelo poder, que acabam por gerir e organizar a rigidez das hierarquias sociais, a qual a literatura cumpre o papel de colocar em suspenso. A pertinência deste entendimento centra-se na necessidade de leitura futura do romance com nitidez de visão quanto às implicações ocasionadas pelos jogos de poder nas relações humanas. O segundo subcapítulo, por sua vez, denominado “História, memória e olhar: descoberta, invenção e mutação da realidade” subdivide-se em “Da Conquista aos nacionalismos americanos: imbricações entre história e literatura” e “Memória e olhar como mecanismos de (re)leitura da história”. Neste, conjugaremos a memória e o 21 olhar como instrumentos estéticos decisivos para a criação poética de Uslar Pietri, em seu romance, o qual retorna às memórias históricas passadas, através de um olhar imagético que pretende despir ao máximo as influências de julgamento pré- concebidas,a fim de promover um mergulho nas origens de seu povo. Nesse sentido, mostramos que a memória e o esquecimento são fundamentais para as hierarquias de poder entre as classes, grupos e indivíduos que dominaram ou dominam as sociedades históricas. Por instituírem mecanismos de manipulação da memória coletiva, tornam-se imprescindíveis no conhecimento da memória social, tendo em vista que, nos problemas do tempo e da história, a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento. Para norteamento das discussões propostas nesta etapa, utilizamos o livro História: novos problemas, organizado por Jacques Le Goff e Pierre Nora (1995) e História e memória, Le Goff (1990). Além destes, tomamos, também, as considerações de Harald Weinrich (2001), no livro Lete: arte e crítica do esquecimento. Já no livro O Olhar, organizado por Adauto Novaes (1988), o pesquisador José Moura Gonçalves Filho, em seu texto “Olhar e memória”, aborda a relação entre as duas experiências – olhar e memória – a despeito da tendência moderna de considerá-las desacordes. Na visão do autor, o olhar contemporâneo está focado no imediato sem interioridade, assim como a memória está subjugada a uma função supérflua esterilizante. Seu propósito é reunir os dois temas a partir de uma postulação da psicologia social brasileira, cujo incentivo aposta em que os trabalhos de memória despertem um olhar mais zeloso, tanto em direção ao futuro, quanto a respeito das simbologias e esperanças históricas passadas. No estudo sobre o olhar, observamos que o olhar, ao despertar em direção ao passado, instaura um desequilíbrio a respeito do presente, na medida em que denuncia o fetichismo moderno, absorvido como progresso, da mesma forma que anuncia o desequilíbrio a respeito do futuro, pressuposto como curado, onde a história estaria solucionada e controlada por um poder irrepreensível, cujo papel seria de uma profilaxia social. Após essa discussão, o terceiro subcapítulo “O romance moderno e a “epopeia da era burguesa”: o caso do romance histórico contemporâneo” aprofunda- se, a princípio, na abertura do mundo americano ao romance, o qual começa a brotar como planta espontânea para expressar as novas condições da vida no 22 continente. Seu nascimento não se origina de um propósito retórico de imitação de um modelo famoso, senão como consequência viva de uma necessidade individual e histórica, passado o primeiro século de inexpressão do gênero na América. Aberto ao futuro, o romance contemporâneo exige, para sê-lo plenamente, uma idêntica abertura ao passado. Não há, em sua lógica, futuro vivo com um passado morto, inclusive, porque este não configura a tradição rígida, sagrada, intocável, ao contrário, a tradição e o passado só são reais quando são tocados e, às vezes, avassalados pela imaginação poética do presente. O filósofo húngaro Georg Lukács (2000), cujas considerações foram utilizadas em nossa reflexão, em sua obra A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico, concebe a era moderna como a era da epopeia, em que o homem e suas ações estão voltadas às exigências intrínsecas da alma: à grandeza, ao desdobramento, à plenitude. Isso porque, no Novo Mundo, ser homem significa ser solitário. Já não há luz interna que ilumine o mundo dos acontecimentos, ao contrário, o sujeito tornou- se aparência, objeto para si mesmo, na medida em que sua essência mais intrínseca lhe serve apenas como contraponto ao dever-ser. Além de Lukács (2000), aprofundamo-nos nas contribuições do próprio Uslar Pietri (1955), em seu livro Breve Historia de la Novela Hispanoamericana e Donald Shaw (1985), em seu livro Nueva Narrativa Hispanoamericana, pelos quais apresentamos as etapas de evolução do romance na América, a partir do esclarecimento de que a situação americana desnaturaliza o espírito de imitação e solicita, implacavelmente, a atenção do romancista para a peculiaridade de sua humanidade e paisagem. O romance contemporâneo americano se caracteriza, precisamente, por seu tom de revelação e de descobrimento, tratando-se de uma emoção épica, embora fragmentária, do mundo americano e sua gente. Finalmente, para a conceituação do novo romance histórico, cujas características foram pré-anunciadas no romance El camino de El Dorado, publicado nos anos 40, apoiamo-nos em Mikhail Bakhtin (1998), no livro Questões de literatura e de estética: a teoria do romance; Georg Lukács (1966), em sua obra La novela histórica, e Seymour Menton (1993), em seu livro La nueva novela histórica de la América Latina. O subcapítulo “Barroco estético e o redescobrimento da mestiçagem hispano- americana” objetiva apresentar o Barroco como um estado de ânimo, um modo de 23 ser, um atributo do espírito que pode ocorrer em qualquer época, em qualquer lugar e, sendo assim, no interior de qualquer cultura. Trata-se de uma constante do espírito que floresce em circunstâncias quaisquer, independente de que, em determinadas épocas, em virtude de certos fatores bem dissimiles, alcance um maior auge e um tipo de manifestação mais esplendorosa. Há, no Barroco, uma sorte de pulsão criadora que retorna ciclicamente através de toda a história nas manifestações da arte, tanto literárias como plásticas, arquitetônicas ou musicais. O instrumento fundamental do Barroco literário é, naturalmente, a linguagem. A singularidade deste estudo para o propósito desta pesquisa centra-se no fato de o romance El camino de El Dorado (1947) absorver este espírito barroco não enrijecido por um período de “escola” literária, possuindo características que remetem ao Barroco estético, conforme veremos na etapa de aprofundamento na obra. Alexis Márquez Rodríguez (1984), no texto “Concepto y definición del Barroco”, do livro Lo barroco y lo real-maravilloso en la obra de Alejo Carpentier, não apenas enumera algumas destas características, como também elucida sobre o porquê de a América Latina nomear-se como a terra de eleição do Barroco. No esclarecimento de Márquez Rodríguez (1984), toda simbiose, toda mestiçagem cultural engendra um barroquismo. Nesta perspectiva, o barroquismo americano cresce com o sentido do crioulo, a partir da consciência que emerge no homem americano, seja filho de negro africano, seja filho de branco vindo da Europa, seja filho de índio nascido no continente. Trata-se, como diria Simón Rodríguez, da consciência de ser outra coisa, de ser uma coisa nova, de ser uma simbiose, de ser um crioulo. O espírito crioulo, em si mesmo, configura um espírito barroco. O continente americano é essencialmente barroco, tanto por sua geografia como por sua realidade histórico-cultural, o que torna natural que seja esta e não outra a mais autêntica forma da expressão americana. A América é barroca por sua arquitetura, pela complexidade de sua natureza e vegetação, por sua arte, desde a esplêndida escultura pré-colombiana ao melhor romance moderno americano, passando, ainda, pelas catedrais e monastérios coloniais do continente. José Lezama Lima (1988:78), no texto “A curiosidade barroca”, presente na obra A expressão americana, igualmente, traz uma importante contribuição à reflexão proposta neste subcapítulo, além de Omar Calabrese (1992), com seu texto 24 “Neobarroco” publicado em seu livro 2 Barroco y Neobarroco e Severo Sarduy (1999), em sua obra completa sobre o Neobarroco. O subcapítulo encerra-se, por fim, com as conclusões do próprio Uslar Pietri (2002) no tocante ao tema do Barroco em sua relação com a mestiçagem cultural, através de seus ensaios publicados no supracitado livro Ensayos sobre el nuevo mundo: antología de textos políticos. O quintosubcapítulo “O mundo da imagem: transformação de ideias icônicas e construção de uma poética” aborda o tema da imagem como faculdade icônica do homem e elemento estético de fundamental relevância para a construção de uma poética, pautado nas contribuições teórico-críticas de Lezama Lima (1968), Carlos Rincón (2002) e Justo Villafañe (2002), bem como nas considerações da pesquisadora Diana de Araújo Pereira (2006), além da ensaística do escritor argentino Julio Cortázar (1999). A importância do estudo da imagem se justifica pela necessidade de se fazer o levantamento imagético da obra de Arturo Uslar Pietri, considerando que é de inegável significância o papel da literatura na construção de imaginários individuais e coletivos. A modernidade atribui nova visão concernente ao papel da imagem, a qual passa a ser um fato temático e uma realização estilística. Constitui, ainda, a faculdade icônica do homem, haja vista que tudo que este testemunha o faz enquanto imagem. Tanto o imaginário visual quanto o coletivo são compostos por metáforas. É papel deste tensionar as metáforas que conduzem o pensamento comum, criadas a partir da insistência em uma determinada imagem simbólica repetitiva, fruto da rigidez das máscaras sociais fixas, hierarquizadas e engendradas pelo senso comum. Percebe-se, portanto, que o imaginário tanto estabiliza quanto desestabiliza as forças sociais, a depender de as imagens que logrem constituí-lo. Trata-se da imagem como construção discursiva e é justamente nesta proposta de levantamento imagético que se enquadram os escritores que, de alguma forma, sentem pulsar a necessidade de relativizar todas as verdades tomadas como “oficiais”, em princípio, solidificadoras das raízes históricas e sociais das quais surge o indivíduo latino-americano contemporâneo. Nesta conjuntura, apresenta-se a Segunda Etapa da pesquisa, da página 162 à 250 a qual cumpre o principal propósito deste estudo de realizar o levantamento imagético do romance El camino de El Dorado (1947). Tal etapa se compartimentará em três partes, semelhantes à estrutura formal do próprio romance de Arturo Uslar 25 Pietri, porém, redistribuídas, conforme à fluidez da análise crítico-interpretativa a que nos propomos. A Primeira Parte da Segunda Etapa, intitulada “Da cidade para a selva amazônica: a natureza em seu protagonismo”, desmembra-se em “O Reino do Peru: terra de índios”, “Terra de Santa Cruz: chuva e sangre” e “Da terra firme ao rio Amazonas”, cujo foco centra-se em comprovar a importância fulcral da natureza como a grande personagem desta primeira fase do romance. Há uma variedade de elementos míticos representantes do poderio da natureza, diante da qual o homem encontra-se impotente e vulnerável, tanto quanto atraído por sua majestosa imensidão. Tempestade inesperada, vento voador, mar rugidor, infinita selva, pesados rios, imensidão do dia e noite são elementos construtores da riqueza simbólica da natureza, criando e transmitindo efeitos de poder, semelhante ao que veremos no estudo com as contribuições de Michel Foucault (1985). Nesta primeira fase, utilizamos também o subcapítulo “O mundo da imagem: transformação de ideias icônicas e construção de uma poética”, em que estudaremos que a mente anseia por uma nova forma de aproximação com o mundo e o conhecimento, e a imagem se constrói a partir do acesso a uma espécie de interregno, no qual a imaginação criadora atua. Uslar Pietri (1947), em El camino de El Dorado, comprova esta premissa ao representar imageticamente os detalhamentos do imaginário coletivo daquela tropa de humanos a respeito do Eldorado. Trata-se do lugar da plenitude de todas as coisas, real no imaginário humano, ainda que ilógico ou inverossímil para o pensamento racional. Como veremos na reflexão proposta neste subcapítulo, para a efetivação do pensamento e linguagem metafórica, faz-se mister uma inevitável abstração e relativização conceitual, de modo que tanto o imaginário visual quanto o coletivo sejam compostos por metáforas. O Eldorado tensiona as metáforas que conduzem o pensamento comum europeu, na medida em que constitui nova(s) metáfora(s) concernente(s) à realidade do imaginário no Novo Mundo. Ainda que os espanhóis da expedição busquem em sua memória referências imagéticas da cidade de Sevilha, na Espanha, como âncora de expectativa do porvir, o Eldorado não está a serviço do senso comum, não constitui uma imagem simbólica preexistente, e sim 26 configura a abertura às novas simbologias, desestabilizadoras da previsibilidade, rumo ao desconhecido. Há, na escrita de Uslar Pietri, representada pela voz do narrador, a exageração no uso de uma linguagem imagética repleta de metáforas e alegorias, com o propósito de criar uma impressão ilusória de beleza e abundância de elementos sensoriais (cor, som etc.). A exuberância da selva é apresentada de maneira idealizada e cruel, sincronicamente. Veremos tais características em nosso estudo supracitado sobre o Barroco estético, também, intitulado “Barroco estético e o redescobrimento da mestiçagem hispano-americana”, as quais são cultivadas por Uslar Pietri em seu intuito de expressão da realidade americana, alcançado na obra. O som das águas dos rios, da chuva e da tempestade, por exemplo, garantem esta riqueza sensorial ao leitor, assim como a abundância de metáforas na descrição da natureza demonstram este espírito barroco nas artes desenvolvidas na América do século XX. Tal como veremos no capítulo de fundamentação teórica, o léxico, cuja intensidade semântica e a capacidade sugestiva acabam por impor-se como linguagem barroca, como o caso dos adjetivos, por exemplo, tão fundamentais para essa estética, constitui um dos principais recursos utilizados por Uslar Pietri na criação do romance. O aspecto animalesco do humano, em sua manifestação selvática, igualmente, ocupa lugar de destaque na narrativa, tanto pelo uso de adjetivações constantes, enriquecendo as reações, os sentimentos, as ações espontâneas dos personagens, quanto pela capacidade do autor de expressar seus sentimentos mais profundos da alma, ora em suas angústias e agonias, ora em suas expectativas. A Segunda Parte da análise crítico-interpretativa nomeia-se “Entre o rio e a selva: a centralidade de Lope de Aguirre”, segmentada em “O golpe traidor”, “Novo rei, novo propósito” e “A grande matança”. Trataremos, nesta fase, de demonstrar o deslocamento da centralidade da narrativa do poderio da natureza para a jurisdição do personagem Lope de Aguirre. Para nortear nossa reflexão, pautamo-nos, principalmente, nos subcapítulos “História, memória e olhar: descoberta, invenção e mutação da realidade”, em “Da Conquista aos nacionalismos americanos: imbricações entre história e literatura” e “Memória e olhar como mecanismos de (re)leitura da história” e, por fim, “O mundo da imagem: transformação de ideias icônicas e construção de uma poética”. 27 Se o olhar que se desperta em direção ao passado instaura um desequilíbrio a respeito do presente, o desequilíbrio presente denota-se, claramente, nas extremas ações dos personagens – ora de fuga, ora de violência, ora de embriaguez – sendo todas elas fruto do temor quanto ao que os olhos enxergam no que tange à tirania de Lope de Aguirre. O olhar atual enxerga uma realidade intransigente, arriscada, com atmosfera impiedosa e perversa. Faz-se fundamental salientar o esclarecimento de Gonçalves Filho (NOVAES, 1988), quanto à memória, em sua capacidade de invocar nossas experiências em sua ambivalência, seja no que possuem de belo ou feio, de íntegro ou incoerente, de comum ou incomum,de êxito ou fracasso, de amor ou medo, de luta ou preguiça, de vida ou morte. Certamente, a efervescência de ações dos personagens, postas em relevo na voz do narrador, conduzem o leitor do romance ao entendimento desta habilidade da memória em evocar experiências ambíguas, vacilantes, mas que se conjugam nas emoções humanas, em paralelo, ainda que esta confluência pareça ilógica do ponto de vista racional. Cabe destacar, na obra de Uslar Pietri (1947), tanto o prisma espanhol quanto a reação indígena do processo da Conquista. As fortes personalidades europeias querem ver neste “Novo Mundo” a segurança que não encontraram na Europa, apesar dos perigos de uma natureza tão desconhecida e indómita. Neste contexto, antecipamos o ponto de vista de Picón Salas (1978), ao esclarecer-nos que o debate teológico e jurídico daquele tempo não dá conta de definir o grau de justiça ou injustiça das guerras de Conquista, sobretudo, porque esta teria que harmonizar – sob a fórmula cristã – o que parece inconciliável: desejo de riqueza, império e propagação da fé. O índio, por sua vez, não está de acordo com a visão europeia de domínio geográfico e cultural. Há aldeias em que os índios atuam imediatamente contrários à presença de estranhos, rechaçando-os e buscando defender-se com suas armas e, em outras, por não mensurarem a magnitude das consequências daquela inesperada visita, reagem pacificamente, embora com pouca compreensão da nova realidade, tal como atestaremos no romance. A Terceira Parte da análise crítico-interpretativa chamada “Da nova terra para o deserto”, fragmenta-se em “A Ilha Margarida”, “O discurso de Aguirre”, “O navio do prior”, “A experiência de Valença” e “O desfecho dos acontecimentos”. Acreditamos 28 que esta fase do romance apresentará a plenitude dos acontecimentos, culminantes no desfecho estético da obra. Abordaremos, em nossa reflexão, principalmente, o subcapítulo “O romance moderno e a “Epopeia da era burguesa”: o caso do romance histórico contemporâneo”. Proporemos, nesta fase, um cotejamento entre a maneira como os eventos são narrados na obra e as características do romance histórico contemporâneo, definidas por Seymour Menton (1993) e pré-anunciadas por Uslar Pietri, em 1947. Demonstraremos, principalmente, a presença das seguintes características: a subordinação, em distintos graus, da reprodução mimética de certo período histórico à apresentação de algumas ideias filosóficas; a distorção consciente da história mediante omissões, exageros e anacronismos; a ficcionalização de personagens históricos; a intertextualidade; os conceitos bakhtinianos como o dialógico e a heteroglossia presentes na obra. Dessa maneira, buscamos evidenciar como a obra El camino de El Dorado (1947) enquadra-se no propósito do romance moderno de atestar a premissa de que quando um escritor muda de ponto de vista, há que se modificar, também, de procedimento. Em outras palavras, todo intento válido de renovação formal deriva de uma alteração na cosmovisão do escritor. Em um estilo que não se confunde com o europeu, poderia até ser discriminado como barbárie, torpeza ou ignorância, em uma leitura enrijecida, mas não é nada além de um americanismo, cheio de vocação mestiça, concebido como epopeia primitiva da luta do bem e do mal. A natureza interage como um de seus grandes personagens, o que o difere dos romances europeus e está dominado por uma tendência reformista e educadora, cujos valores de estilo, forma e conteúdo lhes são primordiais. O romance contemporâneo americano se caracteriza, precisamente, por seu tom de revelação e de descobrimento, pela passagem do Realismo documental ao impressionismo poético e intenção indagadora. Trata-se de uma emoção épica, embora fragmentária, do mundo americano e sua gente. O romance El camino de El Dorado (1947) regressa ao fato histórico da Conquista da América a fim de revelar, por meio dos recursos literários, o caráter inacabado do drama de identidades na América, apontando, em seguida, para a necessidade de absorção intelectiva da mestiçagem cultural como a matriz diluidora 29 de preconceitos no que tange à pluralidade e idiossincrasia das identidades culturais da América Latina. 30 PRIMEIRA ETAPA I. ARTURO USLAR PIETRI E A HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DA AMÉRICA LATINA ste primeiro capítulo tem por objetivo apresentar o contexto histórico e cultural em que se insere Arturo Uslar Pietri e a produção de seu romance El camino de El Dorado (1947), no século XX. Para tanto, partiremos do entendimento da modernidade, na segunda metade do século XIX, na Europa, focando em suas influências histórico-culturais para a constituição das tendências literárias do século XX, na América. Para tanto, abordaremos o lugar do Modernismo como a resposta da América ao espírito moderno do século XIX, seguido das Vanguardas em seu ideal de ruptura e reconstrução simbólica por uma renovação da arte em que a literatura latino- americana ecloda buscando a autenticidade do ser americano em seu fazer artístico- literário. Veremos que a escrita, neste contexto, está inserida em um processo de autoafirmação, de anseio por expressão das identidades histórico-culturais locais, sempre inseridas num contexto global. Em seguida, nos debruçaremos nas contribuições de escritores precursores ou contemporâneos de Arturo Uslar Pietri, como José Martí, José Carlos Mariátegui, José Lezama Lima, Ángel Rama, além do próprio autor, a fim de parear as influências intelectuais e estéticas do século XX, no entendimento da especificidade da realidade latino-americana, em sua formação histórica e, por conseguinte, literária. O pensamento social moderno americano entende a América não como extensão da Europa, mas, a partir de uma interpretação crítica de sua realidade histórica, como um continente em que o construto ideológico nasce de suas próprias entranhas, de seus países, de seus problemas, de seu afã revolucionário. Trata-se de um esforço de descolonização espiritual de um continente cuja marca inventiva é fértil e a luta por integrar-se como uma das ricas fontes culturais do universo é pertinente. Durante o século XX, a América Latina experimenta uma profunda revolução no âmbito dos debates ideológicos, da cultura e da arte porque enxerga a realidade de forma nova, sendo este o foco de discussão que cumprir-se- á nesta etapa. E 31 1.1 Modernismo hispano-americano: a resposta da América ao espírito moderno inaugural do século XIX La literatura cuenta la historia que la historia que escriben los historiadores no sabe ni puede contar.2 Mario Vargas Llosa (2003) A história-processo é como as águas de Heráclito, sempre cambiantes, mas a história-texto é uma formação geológica de pedras sedimentares. Eis aí o grande paradoxo: como reduzir a falsificação necessária ao converter a corrente de água em pedra? Antonio Cornejo Polar (2000) modernidade, na segunda metade do século XIX, está selada por um comprometimento com a evolução da técnica, da comunicação, da ciência e das artes. Firma-se em uma nova forma de relacionamento do homem com a natureza, em novos moldes de fazer e pensar as artes plásticas e, indubitavelmente, estabelece forma e finalidade inaugurais à literatura. Inaugura-se, ainda, como uma crítica à religião, filosofia, moral e história. Já não era permitido à arte deter-se no passado porque a velocidade de mudança, o incentivo à crítica e o anseio pelo progresso afastavam o foco do homem em si mesmo e na natureza, projetando-o às questões da cidade, da industrialização. MarshallBerman (1985:67), no artigo “Brindis por la modernidad”, compreende a modernidade como “uma forma de experiência vital – experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e dos perigos da vida3”, que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo. Já o pioneiro Charles Baudelaire (1996:21-22), anteriormente, em seu livro Sobre a Modernidade: o pintor da vida moderna, entende a modernidade como o transitório, o efêmero, “a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”. Com o surgimento da fotografia e do cinema, no século XIX, a linguagem passa a representar-se a si mesma, divergindo de seu papel reduplicador da natureza e/ou dos modelos da antiguidade, como no período clássico. 2 “A literatura conta a história que a história que escrevem os historiadores não sabe nem pode contar.” VARGAS LLOSA (2003) p. 26. 3 “una forma de experiencia vital – experiencia de tiempo y espacio, de sí mismo y de los otros, de las posibilidades y los perigos de la vida”. [Tradução nossa] A 32 O controle capitalista sobre a natureza humana e social predomina tanto na vida cotidiana quanto na esfera pública e, ainda, nos discursos da psicanálise e nos estudos do capital. Trata-se de um discurso cultural que garante suas pretensões utópicas de evolução no rumo individual e coletivo. Surge, ainda, uma nova classe no seio da sociedade ocidental: a burguesia industrial. No desenho urbano moderno, a preocupação pelo consumo sobrepõe-se diante de qualquer outro propósito mais complexo, político ou comunitário e o individualismo promove o isolamento citadino e a perda da noção de destino compartilhado. O cidadão urbano vive apressado, quase histérico. A tecnologia da comodidade e eficiência, a geografia da velocidade e a procura por conforto fomentam este individualismo. O sociólogo e historiador estadunidense Richard Sennett (1997), em seu livro Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental, explica que a experiência da velocidade, em que o espaço se fundamenta como um lugar de passagem, acaba por exigir pouco esforço físico do indivíduo para navegar pela geografia da sociedade moderna e, com isso, quase nenhuma vinculação com o que se encontra ao redor. O medo do contato predomina, conforme as palavras de Sennett (1997:289): O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a conversações. A dificuldade de os estrangeiros manterem diálogo entre si acentua a transitoriedade dos impulsos individuais de simpatia pela paisagem ao redor – centelhas de vida não merecem mais que um lampejo de atenção. No século XIX, menos excitação e mais comodidade são fontes de consumo justificadas pela necessidade de “lidar com as sensações perturbadoras e potencialmente ameaçadoras de uma comunidade multicultural”, nas palavras de Sennett (1997:295). Confrontado com a diferença do outro, o ser humano ocidental assume uma atitude passiva, embasada pelos poderes classificatórios das estereotipias sociais, criadoras de um repertório de imagens quanto às diferenças históricas, culturais, étnicas, raciais, etc., cujo contato leva o indivíduo a ensimesmar-se completamente. De acordo com a explicação de Sennet (1997:296): Assim, é possível reduzir-se a complexidade da experiência urbana – afastando-se dos outros, mediante um conjunto de clichês, o cidadão sente- se mais à vontade; ele pressente a realidade e desloca o que lhe parece confuso ou ambíguo. 33 Instaura-se, na modernidade, uma tríade de velocidade, fuga e passividade. O fado da vida humana está vinculado ao futuro da cidade: No mundo moderno, a crença em um destino comum dividiu-se de forma curiosa. Segundo as ideologias nacionalistas e revolucionárias, o povo tinha um só destino; a cidade, porém, tornou falsas essas afirmações. Ao longo do século XIX, o desenvolvimento urbano valeu-se das tecnologias de locomoção, de saúde pública e de conforto privado, do mercado, do planejamento de ruas, parques e praças, para resistir à demanda das massas e privilegiar os clamores individuais. Como observa Tocqueville, “as pessoas compartilham de um sentimento de estranheza geral”; o progresso do individualismo está profundamente atado a um “materialismo virtuoso que não corromperia, mas enfraqueceria a alma, relaxando seus impulsos, silenciosamente”. Aqueles que abdicam da vida em comum perdem a vida. (SENNETT, 1997:299) O senso comum contemporâneo julga negativa a instabilidade social ou insuficiência pessoal. O individualismo moderno cultua a autossuficiência, quer dizer, o desenvolvimento de seres mais tendenciosos à completude, não à falta, ausência. A psicologia, por exemplo, constrói a linguagem de seres humanos bem centrados, os quais lograram integração e inteireza em si próprios. Os movimentos sociais, por sua vez, buscam a integridade individual de comunidades inteiras, como uma espécie de linguagem individual-comunitária. O interesse no outro esmaece e as contradições recrudescem, de acordo com tal perspectiva. A contradição civil a que se faz referência é a da civilização, ora proporcionando-nos experiências de afastamento, ora fazendo-nos sentirmo-nos cada vez mais truncados enquanto seres humanos. Nesta conjuntura, Sennett (1997:302) esclarece o seguinte: “A história da cidade ocidental registra uma infinidade de batalhas entre essa possibilidade civilizada e o esforço de criar poder e prazer através de imagens idealizadas da plenitude”. De acordo, ainda, com a defesa do autor (SENNETT, 1997:303-304): Em nossa história, as complexas relações entre carne e pedra têm conduzido para além do princípio do prazer, corpos perturbados, despertados por distúrbios e exaustos. Quanta dissonância e desconforto podem as pessoas suportar? Por dois mil anos, em lugares a que estiveram passionalmente ligadas, elas aturaram muito. O registro de suas vidas ativas, em ambientes sobre os quais não tinham nenhum controle, pode servir de parâmetro para nossa situação atual. Afinal, diante dessa tensão histórica entre dominação e civilização, resta uma pergunta que devemos fazer a nós mesmos. Como escapar da passividade corporal – quais as brechas de nosso próprio sistema –, a liberdade, de onde virá? Tenho insistido na premência desse quesito, especialmente no que diz respeito à cidade multicultural. [...] o que estimulará a maioria de nós a voltar-se para fora em direção ao próximo, para vivenciar o Outro? 34 Charles Baudelaire (1996:21-22), mencionando-o uma vez mais, exprimira com maestria as intenções desta busca corpórea do sujeito contemporâneo pelo moderno, circunscrito na cidade multicultural: Assim ele vai, corre, procura. O quê? Certamente esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do grande deserto de homens, tem um objetivo mais elevado do que o de um simples flâneur, um objetivo mais geral, diverso do prazer efêmero da circunstância. Ele busca esse algo, ao qual se permitirá chamar de Modernidade; pois não me ocorre melhor palavra para exprimir a idéia em questão. O entendimento é que cada época tem seu gesto, seu olhar, seu porte. Com base neste contexto, o espírito artístico do século XIX se revela como um mergulho na condição humana, em uma tentativa de destituir a máscara de sua condição trágica, pela tomada de consciência de seu tempo. No entanto, faltava aos hispano- americanos, até este momento, o cultivo dos elementos nacionais que atribuíssem a essespovos uma expressão própria. Por volta de 1880, surge o Modernismo, na América Hispânica, correspondente ao Simbolismo e ao Parnasianismo francês. De acordo com a crítica literária brasileira Bella Jozef (2005), em seu livro História da Literatura Hispano- Americana, o Modernismo configurou uma orientação geral dos espíritos, uma tendência cultural e intelectual de um mundo em transformação, como síntese das inquietações e ideais de uma classe que atinge seu apogeu no século XIX e entra em declínio no século XX. O movimento configurou uma forma estética de reação, no mundo hispânico, à crise da cultura ocidental e ao Positivismo. O subjetivismo, o afã da liberdade individual e a vontade de inovação eram suas pirâmides ideológicas. O Modernismo Hispano-americano constituiu uma resposta ao processo de modernização do mundo ocidental, pela celebração de sua cultura, como forma de contrabalancear o materialismo e a exaltação aristocrática da vida. Há, na visão de Bella Jozef (2005:91), o surgimento de “um novo tipo social de artista que se sente alienado ante uma cultura burguesa que o converte em instrumento”. Ao unir elementos de estilos de época anteriores – Romantismo, Realismo, Parnasianismo, Simbolismo –, o Modernismo cria novos elementos estéticos. Como características do movimento, podemos citar a emoção, a concepção de arte oposta à objetividade didática e social, o refinamento de 35 sensações, o efeito novo de som, luz e cor, a existência de ritmos diferentes e exóticos, de um mundo original de imagens e, por fim, de um virtuosismo formal. Vale destacar a assertiva de Octavio Paz, sobre o movimento modernista4: [...] os modernistas não queriam ser franceses: queriam ser modernos. O progresso técnico havia suprimido parcialmente a distância geográfica entre América e Europa. Esta aproximação tornou mais vivo e sensível nosso distanciamento histórico. Ir a Paris ou a Londres não era visitar outro continente, mas saltar a outro século. Considerou-se que o modernismo foi uma evasão da realidade americana. Mais certo seria dizer que foi uma fuga da realidade local […]. Nos lábios de Ruben Darío e seus amigos, modernidade e cosmopolitismo eram termos sinônimos. Não foram antiamericanos, queriam uma América contemporânea de Paris e Londres. O Modernismo contribuiu bastante para o processo de formação da literatura hispano-americana. O próprio poeta nicaraguense Rubén Darío, precursor na interpretação das inquietações continentais, aconselhava cada escritor a encontrar sua expressão particular, dentro dos padrões da estética geral, logrando tornar o idioma capaz de expressar a nova complexidade do presente histórico ocidental. Conforme Bella Jozef (2005), há, nos países hispano-americanos, neste período de transição do século XIX para o século XX, um processo literário de justaposição de correntes estéticas, em simetria com a sucessão europeia. A partir do Modernismo, há a efetivação de um processo de independência da literatura hispano-americana, de modo a revitalizar a poesia e a prosa em língua espanhola. A América encontra sua expressão, já não limitada à visão local ou a um encanto exótico, mas enquanto voz produtora de uma literatura ocupada pela indagação vivencial, cuja maturidade criadora é inquestionável. É assim que se dá a expansão da literatura hispano-americana e a contribuição do Novo Mundo para a cultura universal. Não obstante, em 1905, o Modernismo começa a entrar em crise, devido à crítica desembocada pelos intelectuais quanto a seus excessos. A partir dos anos 20, conforme salienta a pesquisadora Mariluci Guberman (2009:27), em seu livro Poesia e revolução na América Hispânica, a respeito da Vanguarda hispano- americana pós-modernista: 4 “[…] los modernistas no querían ser franceses: querían ser modernos. El progreso técnico había suprimido parcialmente la distancia geográfica entre América y Europa. Esa cercanía hizo más viva y sensible nuestra lejanía histórica. Ir a Paris y Londres no era visitar otro continente sino saltar a otro siglo. Se ha dicho que el Modernismo fue una evasión de la realidad americana. Más cierto sería decir que fue una fuga de la actualidad local […] En los labios de Rubén Darío y sus amigos, modernidad y cosmopolitismo eran términos sinónimos. No fueron antiamericanos; querían una América contemporánea de París y Londres.” In: JOZEF (2005) p. 92. [Tradução nossa] 36 [...] verifica-se a divergência entre duas tendências literárias: uma no grupo dos pós-modernistas, que buscava a simplicidade lírica e condenava o prosaísmo sentimental; outra, em que se encontravam os mais audazes que lutavam radicalmente pela liberdade artística, culminando com a estética de Vanguarda, partidária da ruptura e da renovação da arte até suas últimas possibilidades. Na América Hispânica, as poéticas de Vanguarda surgem de forma praticamente simultânea em seus diferentes países e, embora com nomenclaturas e fases diversas – do Cubismo ao Surrealismo – abrem-se ao subterrâneo do desconhecido e iniciam seu processo de diluição como crítica a toda experiência estética anterior. Com o Modernismo, seguido pela Vanguarda e a pós-Vanguarda, há uma tendência pelos discursos radicais e iconoclastas, bem como uma apologia ao pluralismo estético. A condição evasiva e múltipla do moderno projeta uma dimensão de abandono das cronologias, uma tentativa de recriação dos elementos da tradição. Bella Jozef (2005) explica que a modernidade implica nova escritura e nova visão de mundo, redimensionando o repertório global do homem, pautando-se, fundamentalmente, no princípio da invenção. A esta expansão da invenção, solidificada no privilégio do sujeito, corresponde o recuo da arte mimética. Com base, ainda, na perspectiva de Jozef (2005), a modernidade não configurou apenas um projeto europeu, mas um processo de homogeneização e hibridização, de tradicionalismo e inovação, pela afirmação da diferença local diante do desafio da assimilação, em um processo no qual o global e o local se determinam, concomitantemente. No século XX, a partir das Vanguardas artístico-literárias, a América Latina inicia uma escrita inserida em um processo de autoafirmação, manifestando uma transformação evidente na expressão dos imaginários sociais, tendo a Revolução Mexicana, destaque bastante emblemático, no sentido de, por um lado, suscitar o que se devia fazer, e por outro, o que não se deveria continuar permitindo de forma alguma. Há uma alteração, na América Latina, da sensibilidade, bem como de formações e práticas discursivas. Surgem, então, obras de transcendência universal que logram modelar o que há de mais recorrente na problemática do homem e sua circunstância, revelando uma busca contínua por afirmar o caráter de ser humano. Na visão de Carlos 37 Fuentes, “o escritor latino-americano deixa de ser um ente pitoresco e regional para situar-se ante a condição humana”5. Há, a partir de então, uma massificação das cidades, a qual gera uma vida cultural intensa: centros de difusão, jornais e revistas de ampla circulação, salas de exposições e indústria editorial operam na formação de um mercado de bens culturais no âmbito nacional e no exterior, sobretudo com Paris. Longe de provocar homogeneização no âmbito cultural, as Vanguardas artístico-literárias propõem a ruptura com seu discurso e, nela, estimulam o urbanismo desenfreado, cosmopolita, sonho de modernidade, que aparece como linguagem poética privilegiada. Com estas, ocorre, ainda, a eclosão de uma literatura que busca as raízes autênticas e a verdadeira identidade,