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Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 1 CAPÍTULO 7: O CANAL ECONÔMICO DO AUDÍVEL 1. INTRODUÇÃO A audição noz traz informações muito compactas sobre o ambiente. Ao telefone, reconhecemos pessoas pela voz, quase imediatamente. Nomes curtos, de memorização fácil, designam quase tudo quanto conhecemos bem e usamos com frequência. Mas a influência da audição não é apenas objetiva. Se ouvirmos atentos a entonação de quem fala, sabemos seu estado de espírito: é como se tivéssemos visto sua expressão facial. É mais fácil descrever, enfatizando impressões, que desenhar. E ouvimos dormindo – se fosse diferente, não teria utilidade o despertador. Os sons revelam ideias sem que tenhamos de nos mexer para conhecê-las. O ruído do motor anuncia alguém chegando; o gotejar de água, que alguém ainda esta no banho; o silêncio numa casa onde moram crianças, que as mesmas dormem, ou estão entretidas com alguma novidade, dando aos pais o que pensar. A acústica é provavelmente o aspecto físico de maior complexidade do ambiente construído. O Som num ambiente fechado é um efeito que se distribui pelo volume todo. Se os olhos enxergam cada superfície e de longe avaliam suas condições de iluminação, os ouvidos não têm a mesma acuidade com relação à direção; é mais fácil percebermos com os olhos a cor dos objetos que condicionam a luz, do que com os ouvidos a maneira como os objetos absorvem ou refletem sons graves, médios e agudos. Os ouvidos percebem um som mesmo depois de ele ter sido refletido de parede em parede, como num labirinto. No silêncio da noite, da porta da frente da casa, escuto alguém estalar os dedos no quarto mais retirado; porém, se esta pessoa acender uma lanterna, eu provavelmente nada irei ver. Os olhos não conseguem identificar esta luz residual. Primeiro, porque sua sensibilidade aos sinais ínfimos não é tão grande quanto na audição. Depois, porque a luz difusa – aquela que não revela imagens – não possui a mesma individualidade do som. Se me aproximo do cômodo onde alguém assiste a um filme de portas fechadas, enxergo o rastro de luz debaixo da porta, mas não saberei identificar o filme. Entretanto, posso prestar atenção no som e poderei até mesmo dispensar as imagens. No século XX, a acústica teve importante desenvolvimento. Em um teatro ou auditório tornou-se um fator de projeto de primeira ordem. Richard Neutra comenta a respeito que em muitos casos, as intenções de que se pode chamar um arquiteto platônico ou euclidiano são anuladas pelo especialista em acústica, para quem as Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 2 paredes paralelas ou circulares, domos e outros elementos formais habituais são ofensivos. O domo, citado expressamente, pode vir a provocar a focalização do som de retorno, devolvendo-o ampiflicado sobre a sua fonte. Não serve para um auditório. Entretanto, construído sobre uma banheira para reforçar o canto diletante, será de notável efeito. Já o auditório em forma de leque resolve questões visuais; todavia, permite que a potência do som se disperse espacialmente, não favorecendo os ouvintes à acústica. E o auditório em forma de caixa de sapato, este sim tem sido consagrado com o passar das décadas. Neutra descreve a visita a uma igreja – um tipo de edificação valorizado visualmente – como uma experiência sonora única: quando caminhamos através da nave de uma catedral medieval, o impacto de nossos passos no pavimento de pedra, ou a reverberação de uma pequena tosse torna possível, ou mesmo se torna em si própria, uma impressão essencial, vital do espaço arquitetônico. Tais sons, acusticamente, elucidam o material do invólucro. Paredes de pedra podem ter eco, mas peças de veludo quase não reverberam e não sinalizam nada ao ouvido. E procura destacar a importância da acústica na caracterização dos ambientes: como a luz, o som traz à mostra os corpos arquitetônicos e os espaços, e deixa porções dos mesmos em sombra. Como em uma apresentação em auditório, o ritual durante a missa, na verdade, nos revela o interior da igreja. É errado pensar que a catedral somente contenha velas, cantores, um órgão eloquente. As modulações do coral, a força dos baixos, os pianíssimos e diminuendos iluminam o grande interior acusticamente assim como as velas o fazem visualmente. O espaço arquitetônico, devido principalmente à presença da vida, também é um espaço sonoro. Condiciona o som tanto pelo seu volume confinado, como pelo caráter de sua superfície. Conhecer o espaço dá à música novo sentido, nova profundidade. Neutra reclama a atenção que teria faltado aos fenômenos acústicos na época do Classicismo, nos séculos XVI e XVII. Período tido como apolíneo, nele era mais importante a harmonia visual: a excitação dos estímulos audíveis produzidos pela vida na nossa concha construída é um fator que o arquiteto clássico ignorou para a glorificação de um ambiente construído concebido fisiologicamente não pode mais ignorar isto. A arquitetura, para ele, é um palco para a dinâmica que afeta o ouvido como reverberação do som, o olho como luz refletida, e outros sentidos sem muitas formas. Felizmente, os efeitos acústicos dos espaços não eram desconhecidos de Mozart, Haydn e Beethoven, os principais compositores do período clássico da Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 3 música – de meados do século XVIII ao início do século XIX. Tal período deixou algumas marcas na música posterior, que perduraram até a música contemporânea. O concerto passou a ter, cada vez mais caráter popular. No final do período, a escrita musical foi deixando o rigor formal da época das salas em que tudo - até a respiração – se ouvia com clareza. Depois de Beethoven, ganhou terreno e pratica de grandes blocos sonoros – grandes na estrutura da harmonia, na sua duração e também na intensidade sonora. Auditórios cada vez maiores, para o público cada vez mais numeroso, forneceram as condições acústicas para esta evolução da música Romantismo adentro. Afirmava-se o espaço como extensão da orquestra. A reverberação modificava o colorido sonoro, produzindo novos e característicos timbres e com eles novas possibilidades expressivas. A influência da acústica é tal que, numa mesma obra, deveria variar para realçar os efeitos. Neutra lembra o último movimento da nona Sinfonia de Beethoven como um dos exemplos mais evidentes de que a acústica de um ambiente, se mantida constante, impede o desfrute musical. Beethoven colocou nesta última grande obra sinfônica todo um desenvolvimento que conduz a um coral de efeito avassalador. Quando inicia o grande coral, ressoando sobra a orquestra, ainda restrita ao padrão do século XIX, sentimos que o teto deveria ser elevado e as paredes deveriam recuar. O regente do futuro deve ser capaz de comandar tal operação. Hoje, tal operação é possível nas salas de concerto com volume variável, a exemplo da Sala São Paulo, na capital paulista. 2. MECANISMOS FÍSICOS E FISIOLÓGICOS O som é definido como a vibração mecânica do meio em frequência e intensidadetais que possam sensibilizar o aparelho auditivo humano. Esta definição reúne alguns conceitos que devem ser compreendidos. Inicialmente, o meio é aquilo que nos envolve. Normalmente ouvimos as vibrações no ar, mas também podemos ouvir alguma coisa quando estamos mergulhados numa piscina, ou com a orelha apertada contra uma parede como se fosse uma ventosa. Para vibrar, o meio deve ser elástico. Uma mola é capaz de esticar e encolher numa direção. Uma placa de metal deforma-se nas duas direções, e um edifício nas três. É necessária uma força externa para deformar o meio – seja ele o volume de ar de um tubo, a pele de um tambor ou uma corda esticada. Cessada a força, a deformação tende a se reverter. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 4 Ocorre que tanto a corda, como a pele do tambor ou o volume do ar, depois que se deformam, voltam à forma inicial embalados. Assim, não param imediatamente na forma inicial, mas se deformam em direção ao outro extremo. Se tinham sido esticados e depois soltos, se contraem, e se estavam contraídos, se expandem. Permanecem em vai-e-vem. Neste movimento, convertem repetidas vezes energia de deformação em energia de movimento e vice-versa. Ao jogar um pesado saco de farinha sobre uma laje de cimentos, esta irá vibrar sonoramente. Já um pontapé no mesmo saco, não, pois não se trata de um meio elástico. A frequência da vibração é o número de ciclos de vai-e-vem por unidade de tempo. Uma medida de frequência é ciclos por segundo (também chamada de Herz ou Hz). A intensidade da vibração indica quanta energia está envolvida na transformação repetida entre movimento e deformação. É relacionada à amplitude da deformação: quanto mais esticarmos uma corda de violão, maior a amplitude, e maior a intensidade. Quando o som atravessa o ar, é possível medir quanta energia viaja por unidade de área, e por unidade de tempo. A medida mais usada é Watt por metro quadrado (W/m²). O ouvido humano compreende internamente diversos elementos: a membrana do tímpano; os ossos chamados de estribo, martelo e bigorna (os menores membros do corpo); uma peça em forma de caracol chamada cóclea, em que a vibração aérea se converte na vibração de um liquido, e o nervo auditivo que transmite ao cérebro um impulso elétrico. Ouviremos as vibrações no ar se sua frequência for entre aproximadamente 20 e 20.000 ciclos por segundo (20 a 20.000 Hertz). Ainda, a vibração do ar deverá ter uma intensidade de, no mínimo, 0,000000000001 W/m² (ou 10-12 W/m²) para ser ouvida. É o chamado limiar da percepção auditiva. Há leis da física e características do corpo humano na definição: não vale necessariamente para outros animais. Aqui, mais dois conceitos de caráter físico e um de caráter fisiológico serão apresentados com o intuito de um melhor entendimento do som. Inicialmente, o conceito de modo de vibração. Deformados de certo modo e soltos, os corpos elásticos vibram com frequência pré-determinada. A cada um destes pares peculiares de organização do movimento e frequência se chama um modo natural de vibração. É como o som de uma taça de cristal que recebe um estalo. Sob um estímulo adequado, os corpos permanecem vibrando à frequência natural correspondente a cada modo. É o que ocorre quando, em velocidade constante, passamos a ponta do dedo em círculo sobre a borda da taça (é necessário Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 5 molhar a ponta do dedo). Assim também é o atrito do arco do violino (um feixe de cabelos equinos esticados) com a corda do instrumento (metálica ou de tripa animal ou sintético). A corda de um instrumento musical pode vibrar ao longo do seu comprimento todo, formando um só ventre. É o chamado modo de vibração. Pode ainda vibrar formando vários ventres menores, a ½ do comprimento, ¼, etc. São outros modos. As placas possuem mais modos, pois podem vibrar em diferentes direções. Um murro sobre uma porta de madeira fechada provoca sons diferentes que sobre a mesma porta aberta. Já um objeto tridimensional apresenta ainda mais modos de vibração. Isto depende de sua forma e de suas dimensões, e também de propriedades como sua massa, elasticidade e amortecimento. Vibrações em dois, três, ou muitos mais modos diferentes podem ocorrer ao mesmo tempo. Também é necessário apresentar o conceito de transmissão, reflexão e absorção do som. Quando a frente de onda originária de um determinado material encontra outro, pode fazê-lo também vibrar. Trata-se da transmissão da vibração. Também pode dele receber uma reação e retornar pelo material original, com outra direção de propagação. Trata-se da reflexão. O novo meio pode, ainda, absorver a vibração, transformando sua energia em calor. Trata-se da absorção. Normalmente, nas transições entre diferentes meios, existe uma combinação dos três componentes, em proporções que variam de acordo com a compatibilidade entre a vibração e as características do novo meio. Para a acústica arquitetônica, isto significa que cada espaço fechado mantém certa categoria de som aprisionado, promovendo, de maneira peculiar, sua amplificação natural. É por isso que cada recinto desempenha como uma caixa acústica. Dois ambientes distintos fazem a mesma música soar de forma diferente. É como acontece ao ouvir o mesmo disco ampiflicado por caixas acústicas de diferentes tamanhos. Compreendidos estes conceitos, é possível comentar uma particularidade do ouvido humano. Temos maior tolerância a sons graves: podemos dizer que nosso ouvido não lhes dá uma resposta plena. Já os sons agudos nos incomodam mais. Para a mesma intensidade que os sons graves, sons agudos são menos tolerados. Isto sugere a predominância de narradores do sexo masculino no rádio e como na televisão. Se forem mulheres, há a preferência pelas vozes aveludadas às mais estridentes. Havendo superposição de sons agudos e graves, os primeiros tendem a absorver mais nossa atenção. É como se os agudos tivessem contornos mais nítidos, incisivos, enquanto que os graves fossem percebidos de modo mais nebulosos. É por este motivo que, ao pedirmos que alguém repita o que falou, esta pessoa contrai a musculatura do rosto procurando enfatizar as consoantes, e dá às vogais um tom mais agudo. A explicação envolve os dois conceitos físicos apresentados anteriormente. O ouvido funciona como qualquer microfone: tem uma faixa de sensibilidade, Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 6 associada a suas propriedades de transmissão do som. Para transmitir o som até a cóclea, de onde surge o sinal elétrico, o ouvido deve ser capaz de vibrar de acordo com o som recebido. Isto significa que deve ter modos de vibração suficientes para cobrir toda a faixa de frequência presentes no som. Ocorre que o ouvido vibra com mais facilidade nos sons agudos que graves. Isto faz com que percebamos os sons agudos como se fossem mais intensos, daí toleramos melhor os graves. 3. COMODIDADE E ADEQUAÇÃO O que vem a ser comodidade e adequação para o conforto acústico? Para dormir, comodidadesignifica silencio. Ou ainda, constância: por exemplo, o som do relógio não perturba o sono; chega, pois, a facilitá-lo; tranquiliza bebês e filhotes de cães, provavelmente pela semelhança aos batimentos cardíacos da mãe. O ruído da geladeira ou do trânsito em condições de normalidade também não deveria incomodar. Já as frenagens bruscas de um automóvel na rua interrompe esta sensação de normalidade com seu tom agudo e aspecto alarmante. A comodidade acústica esta associada à conveniência de se ouvir; às vezes, ouvir ainda é uma necessidade, ou um desejo. Prefiro adormecer ainda ouvindo funcionar meu relógio. A mãe quer ouvir a respiração do filho no berço ao seu lado, e o camponês quer ouvir sua roda d`água girando. A vontade de ouvir é seletiva. Buscamos ouvir aquilo que não causa dor nem estresse, nem distrai a atenção necessária à tarefa que porventura nos ocupe. Mas meu desempenho pode depender da audição de alguns sons, e estes queremos ouvir adequadamente. Se formos ouvir música, há implícito um ideal objetivo que nem sempre é reconhecido: ouvir na qualidade estética pretendida pelo compositor e interpretada pelo músico. Os sons se organizam em uma dimensão principal: a do tempo. É diferente de uma pintura, onde as pinceladas se organizam em largura e altura, ou de uma escultura, que tem ainda a profundidade. Os ouvidos discriminam as informações no tempo com muito maior precisão que a informação espacial (de onde vem o som). Por exemplo: pouco importa que um toca-discos, em um ambiente, esteja mal posicionado; mas o disco não girar na velocidade correta, haverá um sério prejuízo da recepção. Desta velocidade dependem as frequências dos sons e também o ritmo. As frequências são, para a audição, como as cores para a visão – aliás, as cores também são frequências. A música sem tons, reduzida ao ritmo, poderia ser comparada à visão em preto e branco. Percebemos a variação entre duas notas Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 7 encadeadas e também entre duas notas superpostas. No caso de frequências muito próximas, se encadeadas, percebemos uma inflexão e, se superpostas, o batimento, que é uma oscilação temporal da intensidade. No caso de frequências afastadas, é mais fácil identificarmos tanto notas encadeadas como superpostas. Os intervalos musicais correspondem a notas em proporções exatas de frequência e a harmonia estabelece regras de combinação para três ou mais frequências sobrepostas. Um treinamento musical médio nos permite diferenciar quaisquer três notas tocadas, ao mesmo tempo, em um piano. Um maior treinamento permite a identificação de quatro, cinco ou mais notas. Há, porém, um limite. E o fenômeno do mascaramento, pelo qual as frequências menores (sons mais graves) são abafadas pelas maiores (sons mais agudos), faz com que seja mais difícil perceber as notas mais graves. Na música, da combinação das frequências sucessivas depende a melodia; da combinação de frequências simultâneas, a harmonia. Como os objetos vibram simultaneamente em mais de um modo de vibração, eles possuem timbres, que são suas sonoridades específicas. São como fórmulas para a constituição de acordes naturais, em que há uma nota mais evidente, correspondendo ao modo de vibração principal, e outras notas associadas. Suas frequências são múltiplas ou divisores entre si, dentro da chamada série harmônica. O timbre do som individualiza sua fonte: permite a distinção entre duas pessoas que cantam ao mesmo tom, ou dois instrumentos que tocam a mesma nota. Todavia, a capacidade de diferenciar partes simultâneas do todo é muito menor na audição que na visão. Numa foto de grupo, seja da classe na escola, do grupo de trabalho ou da família, reconhecemos de imediato todos os rostos. Mas a gravação de todos cantando “parabéns” não me permite identificar as vozes uma a uma. Mas isto não implica a completa incapacidade de identificar características das misturas sonoras. O organista os combina até obter os timbres desejados para cada trecho da música. Assim também trabalha o orquestrador, aquele que traduz uma música escrita sem indicação de instrumentos (normalmente, na dupla clave do piano) para a linguagem de toda a orquestra. Sem descaracterizar a música, procura distribuir as notas da música entre os diferentes instrumentos – cordas, metais, madeiras e percussão – até obter a expressividade que considera adequada. Um regente, sem ver, pode não saber qual de seus violinos cometeu um erro. Os timbres são parecidos, e a localização também. Mas prontamente reconhece se o instrumento que errou foi um clarinete ou um oboé. Aqui um, lá outro timbre funcionam como marcos, entre si inconfundíveis. Sem ver, distinguimos o som de umas duas dezenas de instrumentos. Vários acontecimentos nos são familiares apenas auditivamente: o vento soprando pelas frestas, uma gaveta fechando, uma porta batendo, água pingando, um interruptor de iluminação sendo acionado, passos sobre a tábua, uma janela sendo aberta, uma mesa sendo arrastada, a televisão, o Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 8 rádio, os passos no piso superior, a campainha, a vassoura, o liquidificador, a enceradeira, o aspirador de pó, a máquina de lavar, a batedeira elétrica, panelas. Não se trata de um reconhecimento apenas pelo timbre, mas também por características de duração, intensidade e progressão típicas de cada objeto. Se considerarmos timbre e a entonação peculiar, é imensa a quantidade de pessoas que somos capazes de identificar somente pela voz – mesmo se a pessoa estiver falando um idioma diferente do habitual. A audição se revela, sim, um dispositivo de razoável sensibilidade. É um importante complemento da visão, pois muitos dos sons que nos interessa ouvir são provocados fora de nosso campo visual. Geralmente, não vemos a tempestade começar: ouvimos. Não vemos um acidente na calçada: ouvimos. Muitos sons se mostram, ao mesmo tempo, incômodos e úteis. Aqui surge a diferença entre a comodidade e a adequação. Diferenças de entonação nos permitem interpretar que a intenção existe num sussurro ou num berro, num comentário ou em uma advertência. Além disto, cada ideia que conseguimos decodificar é fonte de tensão, remete-nos a outras ideias, mantém o cérebro em ação. Uma reunião de um grupo pequeno, reservado de pessoas pode transcorrer em calma mesmo defronte a uma rua movimentada e ruidosa. O som de frenagem súbita é estridente e alarma as pessoas que, por um instante, perdem sua concentração. Todavia, mesmo o som de passos se aproximando no corredor as convida a calar e a ouvir. A tensão não está necessariamente associada à intensidade, ou ao contraste. Já a repetição (da história que as crianças querem ouvir antes de dormir, ou das orações recitadas dezenas de vezes) predispõe à sonolência, pois no som já não há novidades. A ausência de estímulos é necessária em um local destinado ao sono. Mas não significa a ausência dos sons. Em geral, se a música não é aceita como arte, se enquadra como entretenimento. Mas para o conforto ambiental, a música não tem seu efeito restrito à expressividade. Existe, pois, a audição cômoda, ou ainda utilitária da música, e dela o ambiente também participa. Quem repousa quer ausência de tensão, ausência de dor. Isto é comodidade. Mas se ouvemúsica, provavelmente estará exposto à tensão, que é um elemento básico da composição musical. Normalmente, faz parte de uma ordem maior, pois depois dela vem a resolução. A ópera e os concertos barrocos utilizam com frequência os trinados1 dissonantes com resoluções harmônicas logo depois. Nas 1 Alternância muito rápida e repetida entre duas notas vizinhas, imitando o canto de um pássaro. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 9 serenatas de Mozart, notamos tensão entre os diferentes temas. Nas sonatas de Beethoven, tensão provocada pelos ataques súbitos. Na música impressionista, Debussy2 insiste em alguns timbres frios, agudos e límpidos, criando a expectativa do contraste. Sinfonias do romantismo tardio usam na forma de intensidade sonora, com as explosões do naipe de percussão. E o rock’n roll, em que em geral contrastam a homogeneidade no ritmo e na harmonia com uma amplificação agressiva – de poucas surpresas – parece estar associado ao silêncio que vem depois da música; soa como reação à ordem social que impõe a obediência, simbolizada pelo silêncio. No cinema, o som é comumente fonte de tensão, auxiliar às margens, ou mesmo principal. E independendo de se tratar de uma forma de arte (a “sétima arte”), o cinema pressupõe que as pessoas estejam acordadas. Enfim, não é feito para se cômodo, mas expressivo. Mas também se faz música com recurso muito menos frequente à tensão. É o caso do canto gregoriano, a música vocal dos mosteiros da Idade Média, tida por Otto Maria Carpeaux3 como a mais antiga forma de música ainda hoje cultivada. No canto gregoriano, os recursos expressivos são menos numerosos; a monotonia é um traço característico; é através dela, e de uma rica melodia, que se transmite a mensagem artística. Já a música ambiente contém uma limitação proposital, pois convida mais á indiferença que à reação. O pintor Ferdinand Léger se mostrou entusiasmado com uma ideia de Eric Satie a respeito: era atormentado pelo desejo de realizar uma música de acompanhamento, música sem intenção, que desliza sem peso, que a gente ouve, mas não escuta. Segundo Léger, Satie dizia que as relações sociais seriam consideravelmente melhoradas, se soubéssemos realizar esse problema de acústica médio, por exemplo, em uma sala de restaurante, em um lugar público, em um lar. Duas pessoas estão sentadas à mesa; conversam, mas não o tempo todo. Não vieram a esse café para ouvir música. Então, devemos tratar de preencher o silêncio delas, impedir que ele se torne incômodo, evitar que elas rompam o silêncio quando não estão com vontade. Música de acompanhamento inteligente e fugitiva, que roda em torno de você sem se impor, que deixa você conversar ou se calar numa atmosfera não intencional. Música de acompanhamento que a gente não escuta, mas que apesar disso, está presente e é encarregada de preencher os silêncios incômodos. Satie tinha razão. Também em acústica, nem sempre se requer máxima comodidade, mas a melhor combinação entre esta e a adequação. E não se confundam, ainda, estas duas com expressividade. O som da TV pode ser ajustado para que tenha volume e altura adequados para ouvir, por exemplo, a transmissão de um concerto de beleza 2 Claude Debussy (1862-1918), compositor francês. 3 Otto Maria Carpeaux, Uma nova história da música, Ediouro, Rio de Janeiro-RJ. 2009. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 10 inquestionável. Entretanto, para algumas pessoas, poderá ser inadequado para dormir. A adequação requer que o ambiente sonoro seja coerente com a atividade desenvolvida. Quando esta envolve a comunicação sonora, o ambiente não deve impedir a transmissão da mensagem. No caso da fala, é importante a ausência de mascaramento. Tal fenômeno consiste na presença de ruídos mais agudos que o som sendo transmitido, dificultando sua audição. Já no caso da música, as exigências que se impõem ao ambiente são mais específicas. É desejável não somente o silêncio, mas ainda que o ambiente se some à atuação dos músicos e seus instrumentos, a serviço da expressão artística. E o próprio ambiente construído, com sua função básica de abrigo e pelo fato de se apresentar hermético, delimitado por materiais rígidos, constitui muitas vezes a causa primária das dificuldades de acústica. Um recinto de pequeno volume, de superfícies lisas e duras e despojado de objetos, amplifica demais o som, tornando-o ensurdecedor. À medida que aumenta de volume sem acréscimo de superfícies absorvedoras, o som vai tornando-se confuso, perdendo em clareza. Isto é devido ao fenômeno da reverberação: é o som que, nos ambientes, ainda se ouve instantes depois que sua produção já cessou. Mas mediante a inclusão de objetos e superfícies absorvedoras, recupera-se a clareza e perde-se em amplificação. Auditórios para convenções, com abundantes estofados, carpetes e cortinas permitem audição muito clara do palestrante, desde que prevaleça rigoroso silêncio entre os ouvintes. Daí a importância, em tais locais, da amplificação eletrônica: mesmo entre conversas paralelas, a mensagem oficial é compreendida. As observações acima não consideram, ainda, que diferentes direções requerem uma diferente propagação do som. Em grandes auditórios, a distinção entre palco e plateia permite definir direções e sentido predominantes de propagação do som: são principalmente do palco para a plateia, e entre diferentes locais do palco (permitindo aos artistas ouvir-se reciprocamente e assim melhorar sua sincronia). Assim, é possível, sem amplificação eletrônica, conciliar intensidade, reverberação e clareza. Já nos refeitórios, interessa limitar ao máximo a propagação do som ao espaço. Os convivas de uma mesa querem ouvir-se entre si, sem serem perturbados pelas conversas, ou pelas batitas de talheres e louças das outras mesas. Ruídos originados na própria edificação como vozes, passos, movimentação de objetos e o funcionamento de máquinas ou sistemas podem se apresentar incômodos ou inadequados. Estes ruídos se transmitem pelo ar em um mesmo recinto. Através de frestas de portas e janelas ou ainda imperfeições das divisórias entre recintos diferentes, ou através dos sólidos. No último caso se incluem os Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 11 passos ouvidos através das lajes. Um especial desafio é imposto aos projetistas e construtores pelas instalações sanitárias, em que movimentos percussivos e vibratórios da água geram ruídos que se propagam pelas paredes e dutos. Seu isolamento depende de um cuidadoso detalhamento da instalação. Alguns ambientes podem ser propositadamente ruídos: é o caso de auditórios, cinemas, danceterias, igrejas e academias de ginástica. O transporte provoca um ruído de fundo mais ou menos constante, a que se somam acontecimentos pontuais como a passagem de trens e aeronaves, mais conscientemente perceptíveis. Em geral, a poluição sonora advinda do transporte impõe dificuldade à ventilação das moradias: traz como consequênciaa necessidade de soluções baseadas em grandes volumes renovados de modo intermitente, ou ainda à ventilação mecânica associada à filtragem do ar, com eliminação do barulho e ainda suas impurezas macroscópicas. Ambas as formas de poluição do ar (sonora e química) são comuns em cidades em situação de saturação4. Tal contexto torna cada vez mais difícil a tarefa de planejar uma edificação ambientalmente confortável. 4. EXPRESSIVIDADE O som pode ser condicionado de modo a não incomodar (comodidade) e ainda permitir a realização de uma atividade (adequação). Além disto, participa da maneira como identificamos, lembramos e julgamos os ambientes. Estes têm aqui sua expressividade audível, chamada expressividade sonora ou acústica. A arquitetura pode ser ouvida? Para Rasmussem, recebemos uma impressão total da coisa para a qual estamos olhando e não prestamos atenção aos vários sentidos que contribuíram para essa impressão. Ao afirmar que uma sala é fria e formal, raramente nos referimos à temperatura em si, mas a outros aspectos percebidos como antipáticos, como as cores, ou uma acústica áspera, de modo que o som – especialmente os tons altos – reverbera nele: portanto, tal impressão é provavelmente de algo que ouvimos. A seguir, será comentada a influencia da transmissividade acústica sobre a percepção do espaço, especialmente da habitação. Ainda, algumas propriedades acústicas dos espaços enclausurados serão apresentadas. 4 E.Odum, Ecologia, é uma obra que aborda cidades como ecossistemas. O autor propõe como tamanho máximo de uma cidade de 500 mil habitantes, medida a partir da qual as economias de escala desaparecem e se tornam deseconomias de escala: a partir daquele tamanho, é melhor para cada habitante da cidade que a população não aumente. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 12 Há uma categoria de sons que é característica do mundo fora de casa, o espaço da ação, dos acontecimentos. São sons que, pela sua intensidade, tendem a ser transmitidos para dentro das edificações. Dentro delas podemos preferir o silêncio, mas quando estamos fora, sem a proteção do lar, privar-se da audição causa mais inquietude que serenidade, pois é alheamento forçado do mundo real. Nossos olhos enxergam somente um hemisfério, ou menos ainda, e somente em linha reta – não veem o que se esconde atrás de algum anteparo. Mas os ouvidos nos permitem monitorar todo o espaço ao nosso redor, e o som, a nosso favor, contorna objetos para nos alertar de acontecimentos que não perceberíamos nem pela imagem, nem pelo odor. O som também incita à reação, a uma nova atitude, seja ela de nos imobilizar, fugir, ou ainda fechar os olhos. E se for música de ritmo convidativo, nos causará a reação de sair dançando. O ruído, dependendo de suas características físicas e de seu teor de informação, nos sujeita a certo estado de tensão que não conseguimos evitar. A fogueira de um acampamento não seria tão cativante se fosse silenciosa. Tem suspense o momento em que estoura a pipoca, e também quando a orquestra se afina no palco, minutos antes do inicio de um concerto. O relâmpago carrega tensão acústica, pois à sua vista já esperamos pelo trovão, que mesmo assim nos surpreende quando chega. São situações diversas em que o som quebra a monotonia. Quando conseguimos deixar fora de um recinto sons que nos atormentam muitas horas do dia, como o ruído nervoso do transito, sobrevém uma sensação de paz. A construção de ambientes herméticos em ralação aos sons externos seria, então, uma forma de disfarçar a realidade. Dentro de um quarto protegido por vidraça dupla e espessa cortina, desfrutamos desta paz. No fundo, porém, sabemos que é frágil como o vidro da janela. Uma situação aparentemente semelhante mas conceitualmente oposta é a de uma casa retirada da cidade, distante dos agrupamentos de pessoas e vias de trafego intenso. Esta casa podemos manter aberta, ventilada, exposta aos sons do entorno. Alguns são sons agradáveis. De manha cedo, cantos de galos ajudam as pessoas a despertar. Vão seguindo cantos de pássaros. O som da água corrente por perto, assim como o barulho do mar quebrando na rocha, é sentido permanentemente, sem nunca se tornar monótono. O vento balançando a vegetação, tanto a folhagem rasteira como copas de árvores, traz variedade. Cigarras alertam o morador distraído, que não percebeu a hora, que o final do dia se aproxima, e principalmente à noite, a passagem de uma pessoa caminhando próximo a casa é facilmente percebida. Se ninguém é esperado e o fato em si amedronta, tal clareza no fundo conforta o morador, pois sabe que quase nada passa despercebido. Nem o silêncio no mato, revelado pelo crepitar do fogo, como a aproximação de um intruso, pelo ranger do arame na cerca. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 13 Na morada rural, tanto pela ausência de outras fontes de ruído como pela relativa simplicidade da construção, as chuvas são sentidas de maneira única: dos pingos no telhado até o aguaceiro acompanhado de trovoadas, a sensação de acolhimento dentro de casa se intensifica. A chuva parece até aumentar sua proteção, pois ninguém virá; a vida terá uma lacuna mais contemplativa. Em Bachelard, citado anteriormente, o abrigo fornecido pela casa aparece em imagens poéticas do trovão assustando o morador de uma casa no campo e o morador de um prédio na cidade: mas treme conosco e por nós. Em nossas casas, apertadas umas contra as outras, temos menos medo. A tempestade em Paris não tem a mesma ira ofensiva contra o adormecido que contra uma casa solitária. (...) Quando o passar dos caminhões me induz a maldizer meu destino citadino, encontro paz vivendo as metáforas do oceano (...) é saudável naturalizar os ruídos para fazê-los menos hostis. Assim também o vento nos dias secos: a depender da forma de movimentação das copas de árvores, se percebe a manutenção ou alteração das condições climáticas. As frentes frias no sul do Brasil são sentidas acústica e termicamente no campo, mais que na cidade. As copas das árvores altas se movimentam de modo tranquilo, mas constante, como um guizo. Alguns estalos de madeira seca também se ouvem, enquanto sob o céu azul se renova a massa se ar seco, que mantém a paisagem ensolarada. Sol e lenha sugerem que será fácil manter aquecida a casa. No meio urbano, o ruído de fundo oculta estes sinais. Diferente da direcionalidade estrita da luz, o som também ocupa o vazio, tornando o espaço mais presente ao corpo – não reduzido aos olhos. Bachelard observa que os ruídos colorem a extensão e lhes dão uma espécie de corpo sonoro. E o silêncio no lar, especialmente na residência isolada, além de cômodo, será especialmente expressivo. Há outra categoria de sons que são característicos da intimidade, do meio imediatamente próximo, e sua presença nos conforta. É como ouvir a voz de alguém conhecido. Acima foi observado que o pulsar do relógio lembraria os bebês do coração da mãe. Diane Ackerman vai mais longe: ao começar a falar, a criança repete o som familiar do espaço onde viveu por meses: ma-ma, pa-pa. Na poesia, este é o som dos versos jâmbicos5. Mas não somente a natureza conhecida dos sons nos conforta: eles devem ser oportunos, ao menos, nos aspectos temporal e social.O relógio cuco é um som que trazemos para dentro de casa: tem um ruído uniforme, e o canto do cuco, embora previsível, surpreende. E assim também é, na manhã, o despertador que programamos na noite anterior. Soa todos os dias no 5 Na poesia grega e latina, chamava-se jambo o verso composto de duas sílabas, a primeira breve e a segunda, longa. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 14 mesmo horário, e assusta. Sons comuns podem assumir um tom amendrotador, especialmente quando imprevistos. Ao ouvir sons temos certeza de que houve uma ação e tentamos identificá-la. Existem formas de alucinação em que as pessoas ouvem vozes, ou mesmo canções, e precisam ser tratadas. O mesmo não ocorre com as sensações visuais. A estas podemos associar mais facilmente uma causa, podemos processá-las. Dentro de casa existe uma hierarquia social dos sons: alguns são públicos e outros são mantidos audíveis somente dentro de recintos específicos. O arquiteto Richard Neutra faz observações bastante originais a respeito da acústica do ambiente construído ao descrever a arquitetura residencial japonesa. Nela, a privacidade depende de vozes sussurradas em ambientes que podem ser fechados temporariamente por painéis deslizantes – quartos não isolados acusticamente. Trata-se do shoji, uma esquadria em quadriculado de madeira de madeira recoberto por uma única folha de papel de seda. Conversas secretas são mantidas, de preferência, visualmente, como numa peça de Nakaruma: alguns ideogramas rapidamente traçados são, de maneira misteriosa, mostrados a um conspirador e então rapidamente atirados ao hibashi, o brasileiro de carvão. O lar japonês, com suas propriedades específicas, acústicas e outras, é o núcleo de uma larga cultura, com modos de vida intrinsecamente dependentes da arquitetura e de suas diversas realidades sensoriais. O som é associado a processos naturais, como respirar, e culturais, como falar. A voz é um canal de transmissão de ideias e também de sentimentos. Mas minha expressão sonora não depende unicamente da fala. A maneira como coloco o telefone no gancho, ou fecho uma porta e deixo um recinto é muitas vezes o verdadeiro desfecho da conversa que acabei de mater. Logo, o som expressa mais que seu conteúdo objetivo e imediato, seja ele a linguagem codificada ou a sinalização de um fato, como uma campainha que soa. A própria maneira de tocar a campainha pode refletir o estado de espírito do visitante: discreto, apressado, insistente, etc. O som no ambiente incorpora traços deste; torna-se também parte de sua realidade. O condicionamento que o ambiente dá ao som nele produzido possui mais de uma dezena de atributos, de maneira que, quase tanto como a fonte emissora – voz ou instrumentos – o ambiente também é responsável pela qualidade estética do que se ouve. A expressividade acústica não-musical do espaço é descrita por Rasmussen no trecho em que trata a estética sonora dos palácios rococós, com interiores muito mais confortáveis do que os das mansões do período barroco. Os aposentos nas novas casas variavam não só em dimensões e formatos, mas também no efeito Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 15 acústico. Da entrada coberta para as carruagens, o visitante ingressava num hall de mármore que ressoava com o estrépito de sua espada à ilharga e dos sapatos de salto alto, enquanto seguia o mordomo pelo piso de pedra até a porta que era aberta para ele. Estava agora no limiar de uma série de salas com sons mais íntimos e musicais – uma espaçosa sala de jantar acusticamente adaptada para música de câmara, um salão com paredes revestidas de painéis de seda ou damasco que absorviam o som e as reverberações encurtadas, e lambris de madeira que propiciavam a ressonância certa para esse gênero de música. Seguia-se uma sala menos em que se podia desfrutar os sons frágeis de uma espineta e, finalmente, o boudoir de madame, como uma caixa de joias revestidas interiormente de cetim, onde os amigos íntimos podiam reunir-se para conversar, cochichando entre si os mais recentes escândalos da sociedade. Assim, não são poucas as implicações das características acústicas sobre o uso social do espaço. Num recinto cheio de pessoas, se muito ruidoso, sentimo-nos em certo anonimato. Já se for cheio, mas muito silencioso, sentimo-nos expostos: até a própria respiração pode ser ouvida, quanto mais à voz. Para falar de um palco diante de uma plateia calada, precisamos nos preparar para não perder a autoconfiança: sentimo-nos claramente como quem está sendo ouvido. Christopher Alexander recomenda que os espaços dentro de um edifício tenham o teto em alturas variáveis para que a sociabilidade que neles ocorre possa se adaptar. Para falar com pessoas próximas procuramos um espaço onde o teto seja mais baixo com maior intimidade acústica. Para falar com pessoas estranhas, procuramos um ambiente de teto mais alto. As condições dentro de uma loja de carpetes, entre rolos do produto postos em pé, são de muita intimidade acústica, que chega a incomodar. Dois clientes opinando sobre um produto têm a sensação de serem ouvidos com clareza pelo vendedor. A proximidade entre duas pessoas que se comunicam oralmente é percebida pelos olhos, pelo tato e também pela audição. Se o ambiente não contiver ruído em excesso, uma pessoa irá ouvir a outra com clareza. Entretanto, se estiverem afastadas, o ambiente terá de contribuir com a amplificação natural para que ambas ouçam. Em tais circunstâncias, se estiverem muito distantes, será provável que o ambiente distorça a comunicação. Isto não ocorreria se o espaço entre elas tivesse a forma de um corredor ou de um túnel. É isto que se chama, na acústica musical, de intimidade. As pessoas que se comunicam estão próximas entre si, ou o ambiente é tal que elas se sintam próximas. Já se as pessoas estivessem distantes entre si, numa ampla sala, ou em amplas salas contíguas, não seria o caso. E a chance de outras fontes sonoras atrapalharem a comunicação seria maior. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 16 Quem tem um piano em casa pode tocá-lo todos os dias; quem visita um auditório de concertos e, no palco, digita seu grande piano de concerto, experimenta uma sensação singular, não apenas pelo instrumento precioso que toca como pela acústica pomposa, que dá a certeza de se tratar de um ambiente especial. Mas uma musicalidade intrínseca não é privilégio de grandes recintos, como teatros e salas de palácios. Muitas obras musicais classificadas como música de câmara têm sua origem na sala de visitas de uma residência. Logo, é necessário que a apresentação de tais obras ao público recrie tais condições. A proximidade física é uma condição natural da intimidade acústica. Outra condição é a predominância do som direto (que viaja diretamente do músico para o ouvinte) sobre o som refletido (que sofre no caminho uma ou mais reflexões). A intimidade pode ser prejudicada pela reverberação em excesso: ouvindo desde poucos metros de distânciaum recital de instrumento no centro de uma igreja gótica, a intimidade pode desaparecer. Para ouvir uma flauta doce em sua individualidade – instrumento frágil, de timbre delicado é expressão muito associada à respiração do músico – é desejável a intimidade. Não é raro que sonatas para piano sejam apresentadas em auditórios médios e grandes. No entanto, é comum tratar-se de música escrita para sala de estar. Beethoven e Schubert dedicaram sonatas para pianos às alunas suas, para o seu consumo individual, como quem lê uma carta de amor. A observação vale de certo modo para toda a música de câmara (que tradicionalmente se define como aquela escrita para conjuntos de até nove instrumentos). A intimidade em acústica, muitas vezes, é condição necessária para que a música fale do mundo restrito do compositor, como se tivesse sido composta para um pequeno grupo de pessoas. Particularmente intimistas são os quartetos de cordas. Comparando uma sinfonia a um quarteto, o líder do grupo inglês Lindsay String Quartett usou como metáfora uma festa de aniversário: pode ser festa para uma centena de pessoas, como também pode ser dedicada somente aos quatro melhores amigos. São duas formas válidas de comemorar. Mas não faz sentido que se use, tanto em uma quanto em outra festa, o mesmo ambiente. A importância da intimidade se aplica de modo especial à música de câmara de Mozart. Sua obra requer interpretação delicada; assim é, em geral, a música do Classicismo, do qual ou outros dois nomes importantes são, na sequência cronológica, Haydn e Beethoven, todos atuantes em Viena. Com este último, a música sinfônica aumentou sua escala; os concertos foram ganhando popularidade, tendência característica no Romantismo, movimento posterior ao Classicismo – Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 17 Beethoven é mesmo chamado “o romântico dos clássicos” 6. A escala tem efeitos diversos sobre a compreensão da música. De longe, ou dentro de uma catedral, não se nota a diferença entre o sintetizador e o instrumento que imita – seja ele violino, trompete ou oboé. Mas de perto, a riqueza de nuances permitida pela intimidade que, ao pé da letra, significa poder ouvir até a respiração do músico, dificilmente seria alcançada com sintetizadores. Quanto mais pessoas se reúnem para ouvir uma apresentação musical, maior deve ser o ambiente, e mais distantes elas estarão, na média, dos músicos que produzem o som com sua voz ou instrumentos. Serão necessárias paredes refletoras para reforça o som que viaja do palco para as pessoas, caso contrário estas absorverão, e ele mal será ouvido. À medida que o volume dos espaços aumento, mais propensos estão ao efeito da reverberação: cessada a emissão de som, ele ainda é ouvido. Chama-se tempo de reverberação o tempo necessário, depois de cessada a emissão de som, para que o som restante em um ambiente também desapareça. Na verdade, se num espaço confinado as paredes refletem uma parcela do som que incide, a reverberação permanece indefinidamente. Para fins práticos, convenciona-se que a reverberação termina quando a intensidade sonora máxima (medida em potência sonora que atravessa uma área unitária), do momento em que cessa a emissão do som, cai a apenas um milionésimo. Em acústica, diz-se que esta redução corresponde a 60 decibéis7. Enquanto a compreensão da linguagem falada, num teatro ou em uma sala de aula, requer tempo de reverberação o mais curto possível, menor que meio segundo, a audição de música requer tempos maiores que um por vezes até de vários segundos. Isto se deve ao simples fato de a música ter sido, em geral, concebida para ambientes fechados e de certa forma reverberantes. A pesquisa histórica em que medida a música requer reverberação. Em qualquer recinto existe um tom que chama a atenção da pessoa que cantarola, pois sustentando nele o canto parece que todo o espaço canta junto. Nesta nota ocorre a ressonância; corresponde a uma especial ampiflicação natural, e uma longa reverberação. O arquiteto Steen Eiler Rasmussen menciona que o canto gregoriano composto para a (antiga) basílica de São Pedro8 adotava uma nota entre simpática – a nota longa, sustentada pelo sacerdote – que correspondia a uma frequência natural do espaço. Era uma nota entre o lá bemol e o lá. Para continuar as orações e demais proclamações do rito, o sacerdote baixava sua voz, dando origem a uma melodia simples. Assim, podia ser entendido pela comunidade enquanto que, se insistisse em falar na altura da nota simpática, seria ouvido 6 O austríaco Franz Schubert (1797-1828), comparado a Mozart em sua inventividade melódica, é chamado o “clássico dos românticos”. 7 Resultado obtido quando 10log(I1/I2) = 60, sendo a intensidade inicial I1 e a Final, I2, ambas em W/m². 8 Uma igreja romântica, bastante diferente da Basílica de São Pedro hoje existente. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 18 somente em um tom, mas em nenhuma palavra: nas velhas igrejas, as paredes eram, de fato, poderosos instrumentos que os antigos aprenderam a tocar. Comumente em uma casa esta nota ocorre em banheiros ou cozinhas azulejados, ou ainda nos corredores. É a origem dos cantores de banheiro. Na música sacra da Renascença, o valor ideal do tempo de reverberação é menor que no canto gregoriano, uma vez que polifonia (uso simultâneo de várias vozes) requer mais clareza. Entretanto, como se trata de uma música desacompanhada –canto à capela – a reverberação é útil, pois permite preencher o entorno com música o tempo todo. Já na obra instrumental de Vivaldi9, também da fase final do período barroco, há indícios de que o tempo de reverberação era maior. As condições acústicas no salão do Ospedalle Della Pietá, orfanato de moças em Veneza em que atuava o chamado prete rosso, podem ser estimadas a partir de uma conhecida pintura de Francesco Guardi, que permite determinar dimensões e materiais. Estes elementos permitem o cálculo de tempo de reverberação surpreendentemente alto, de 3,0s para os sons agudos. Logo, uma interpretação fidedigna dos concertos de Vivaldi não depende tanto de clareza. Antes, depende do brilho. Trata-se da reverberação nos sons agudos. A música fica melhor pronunciada: o que é alegre se torna festivo, o que já é triste se torna pungente. Há tendência a uma sonoridade cristalina, ou por vezes metálica. Ganham realce instrumentos como oboé e flautim, e a voz de soprano (voz aguda feminina). Na música do Classicismo, compreendendo a obra de Haydn e Mozart e a da primeira fase de Beethoven, detalhes e nuances se tornam delicados, requerendo tempo de reverberação não superior a 1,5s. Já na segunda fase de Beethoven e caminhando em direção ao Romantismo, a música se torna uma prática popular e os auditórios aumentam; com eles, alonga-se o tempo de reverberação, superando 2,0s. o concerto para violino e orquestra de Beethoven explora o brilho: o violino-solo quase sempre cantando muito mais agudo que toda a orquestra, lembra um pássaro voando em altura inatingível. Outros exemplos de música realçada pelos ambientes de muito brilho são as Quatro Últimas Canções (Vier letze Lieder), para soprano e orquestra, de Richard Strauss10 (1864 – 1949), do final do Romantismo, e as Bachianas Brasileiras nº5, para sopranoe orquestra de violoncelos, de Villa- Lobos11. 9 Antonio Vivaldi (1678 – 1741), compositor italiano, conhecido como padre vermelho pela cor de seus cabelos. 10 Compositor alemão. 11 Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), compositor brasileiro. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 19 Uma propriedade de certa forma oposta ao brilho é o calor. É a reverberação dos sons graves. O calor é mais dificilmente percebido, a não ser por comparação: ao ouvirmos uma orquestra sem os contrabaixos e, em seguida, com sua participação, notamos a diferença. O calor não prejudica a clareza, mas dá consistência à música; reforça a harmonia (a lógica dos sons simultâneos, relacionada ao caráter de cada trecho da música), pois, na base dos acordes, está o baixo (nota mais grave), e este não progride ágil como a melodia, mas com inércia muito maior. Certas formações musicais transmitem, mais que outras, a sensação de calor: os sextetos para cordas de Brahms12, compositor do auge do Romantismo, têm em sua formação clássica do quarteto de cordas (dois violinos, viola e violoncelo), há nítido reforço dos instrumentos médios e graves. O resultado percebido é calor – um calor instrumental. Mas o calor que aqui interessa é aquele originário dos próprios ambientes, como no caso da música de câmara. Não serve, pois, uma caixa de vidro, e a música feita para ambientes externos se ressente da falta de calor. Um exemplo notável ocorre na Música dos reais fogos de artifício, de Haendel13, do final do período barroco, executada em um parque para celebrar a Paz de Aechen, no início do século XVIII. Ouve-se um frequente rufar, nem o ataque, mas para preencher vazios, como ruído de fundo: uma fonte de calor artificial, quase extra-musical. A música de câmara, feita para ambientes restritos, em todas as épocas requer tempos de reverberação baixos. Mas um alto tempo de reverberação é característica fundamental para a execução de quase a totalidade da música para órgão, sem depender de sua época. Tal característica está presente nas igrejas góticas e românticas. Nelas, todavia, esta reverberação prejudica a clareza. Dificilmente se compreende a fala que não seja especialmente enfática. E até aqui falou-se tão somente na música ocidental. O arquiteto Richard Neutra fala de uma sonoridade específica nos instrumentos musicais tradicionais japoneses, o koto (espécie de cítara primitiva) e o shamisen (espécie de guitarra tocada com palheta) que diferem daqueles usados no canto no canto lírico ocidental, e têm direta relação com o espaço. Os primeiros, assim como a vocalização das canções e letras japonesas, seriam desenhados para não vencer grandes distâncias. Seu vibrato, onde ocorre, tem uma intenção inteiramente diferente daquele do primo tenoro italiano. Este, deslocando suas cordas vocais, tenta atingir os espectadores na Quarta galleria do velho Teatro dal Verme, ou da La Scala. Ele na verdade move pedras, como fez Orfeu através de sua música, pois seu canto serve para uma estrutura de alvenaria ressonante, à qual a tradição do belcanto está associada. No outro extremo, em ralação ao teatro italiano, está a casa japonesa, 12 Johannes Brahms (1833-1897), compositor alemão. 13 Georg Friedrich Haendel (1685 – 1759), compositor alemão. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 20 que não tem tais qualidades acusticamente reflexivas; sua casca consiste de membranas de papel em tensão frouxa. Os pisos são cobertos com espessas esteiras de palha sobre as quais os pés do dançarino, em meias sobre almofadas de algodão, nãoproduzem impacto audível. E não há a intenção de tal impacto, ou de algum estímulo acústico. A dança é quase estacionária, quase silenciosa. Os movimentos são flutuantes, sem staccato. Eles não requerem ruído rítmico. Em uma casa japonesa, um fandango guarnecido com castanholas espanholas seria uma fúria destrutiva e ao mesmo tempo uma apresentação frustrada, acusticamente manca. Existem várias outras propriedades acústicas dos ambientes. Foram relacionadas e esclarecidas por Baranek14, que as verificou em extenso estudo de campo. São, em parte, especializações do conceito de reverberação. Enfim, quanto à expressividade musical do espaço, cumpre dizer que pode vir a ser, momentaneamente, a expressividade da música que nele se ouve. Pois as leis do ritmo, da melodia e da harmonia, aplicadas à voz humana e aos sons de instrumentos, estabelecem a linguagem musical, sedimentada ao longo dos séculos. A música é uma experiência em geral abstrata. Assim é a música instrumental de Mozart. Um especialista pode procurar analisá-la; entretanto, nada explicará o efeito que produz. No filme Amadeus, de Milos Formam, baseado na obra de Peter Schaffer, o compositor Antonio Salieri é retratado como rival de Mozart. Invadindo sigilosamente os aposentos de um cliente deste, lê mentalmente a partitura de uma serenata de Mozart para instrumentos de sopro. Conta como começou de modo suficientemente simples: somente um pulso nos registros mais baixos – tropas e fagotes – como um espremedor enferrujado... e então de repente, alta sobre eles, soou uma única nota no oboé. Permaneceu lá pendurada, impossível, penetrando- me, até a respiração não poder mais ser segurada, e um clarinete a tirou em mim, e a adoçou em uma frase de tamanho encanto que me fez tremer. Trata-se de fato de um trecho de música de beleza ímpar. Abstrata, ainda, é a música de Bach15. O barroco é o período em que surge a ópera, e nela a clareza é importante; ganha importância, ainda, a constância da pulsação rítmica. Assim, há uma tendência do tempo de reverberação cair. A obra sacra de Bach, que é do final do período barroco na música, retomou o uso da polifonia e, portanto requeria clareza que é raramente proporcionada pelas igrejas góticas. Ocorre que a igreja de S. Thomas em Leipzig, para onde a obra foi composta, era peculiar à época de Bach16: após a reforma, vastas áreas de maneira ressoante foram adicionadas à pedra nua... devido ao sistema luterano de administração eclesiástica que colocava a igreja sob 14 Leo Berakek, Music Hall Acoustics, J. Wiley, Nova Iorque (1966). 15 Johann Sebastian Bach (1985 – 1750), compositor alemão. 16 Hope Bagenal, organist norte-americano atuante no início do séc. XX, apud Steen Eiler Rasmussen, op. cit. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 21 a direção do conselho municipal. Cada vereador tinha seu próprio camarote familiar, tal como poderia ter na ópera. Os novos aditamentos eram de estilo barroco, com molduras e painéis ricamente esculpidos, e havia cortinas nas aberturas. Hope Bagenal calculou a atual reverberação em 2 ½ segundos, em comparação com 6 a 8 segundos da igreja medieval. A ausência de uma “nota”ou região de resposta na igreja possibiliyou Bach escrever suas obras em uma variedade de tons. O mesmo fato é confirmado por Beranek. A Paixão segundo São Mateus foi escritapara a igreja. A respeito da extensa obra que, reunidas todas as partes, se estende por mais de três horas de duração, conta-se que Bach - único compositor a quem os musicólogos se referem como o maior de todos os tempos - trabalhou nesta composição fechado em uma sala da qual, quando saía, era comumente em prantos. As condições acústicas da igreja São Thomas em Leipzig, que tornaram possível a audição original da Paixão segundo São Mateus, ajudaram certamente a criar uma conjuntura que emocionava até o compositor. É fascinante a diversidade de características acústicas dos ambientes considerados para a produção e apreciação da música. Entretanto, ao voltarmos a atenção para o ambiente doméstico, o que resta da importância de intimidade, clareza, brilho e calor? Que propriedades são mais coerentes com a função do repouso? Dificilmente o tempo de reverberação, em algum cômodo, será alto, a não ser nos banheiros, ou em uma espaçosa sala. O brilho pode ser um reforço à sensação de amplidão e limpeza dos ambientes, pois as superfícies lisas, especialmente as paredes, e tanto mais quanto mais impermeáveis, é que o proporcionam. Como os sons graves são mais bem tolerados pelo ouvido, o calor é mais desejado no ambiente doméstico. O termo “calor” se justifica pelo fato de esta propriedade resultar da presença de superfícies estofadas ou acarpetadas que absorvem mais os sons agudos que os graves. Entretanto, tais propriedades de acústica são típicas de espaços grandes, de uma escala em que já não cabe mais a casa. Desta forma, reverberação e amplificação natural devem ser mantidos baixos, pois ouvir os passos amplificados, ressoando em superfícies distantes, certamente, não parece alguma impressão caseira. Mas, tipicamente, os ambientes da casa são bem isolados acusticamente. São também dotados de superfícies de absorção. A riqueza em mobiliário, objetos e tecidos, faz com que a comunicação seja feita com clareza; há supressão do brilho e certa promoção de calor. E a condição mais naturalmente afeita à casa é a da intimidade. Ela serve tanto para a comunicação musical como para a comunicação não-musical, como diversos exemplos acima o ilustraram. Texto extraído do Livro “A Idéia de Conforto – Reflexões sobre o ambiente construído”. Autor: Aloísio Leoni Schmid. Editora: Pacto Ambiental. Curitiba, PR. 2005. Universidade Paulista – UNIP (Campus Rangel). Santos-SP Disciplina de Conforto Acústico do curso de Arquitetura e Urbanismo. 22
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