Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
[T] Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo: observações sobre a crítica de Schopenhauer a Kant [I] Categorical imperative and selshness: comments on Schopenhauer’s criticism to Kant [A] Aguinaldo Pavão Doutor em Filosoa pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor do Departamento de Filosoa da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR - Brasil, e-mail: aguinaldo.pavao@uol.com.br [R] Resumo O artigo consiste num exame da alegação de Schopenhauer segundo a qual o imperativo categórico se apoia no egoísmo. Para o autor de Sobre o Fundamento da Moral, o impera- tivo categórico é apenas uma perífrase, um ornamento, uma expressão &oreada da regra “não faças ao outro o que não queres que o outro te faça”, a conhecida regra de ouro. Tento mostrar que as observações de Kant quanto à aplicação do imperativo categórico aos exemplos da falsa promessa e da indiferença com o sofrimento alheio são questio- náveis. O modo como Kant apresenta tais exemplos dá ensejo a críticas razoá veis sobre o egoísmo ser a base do imperativo categórico. Apesar disso, argumento que é possível defender a tese de que o imperativo categórico, ao contrário do que pensa Schopenhauer, não se apoia em nenhuma forma de egoísmo. Quando Schopenhauer entende o impe- rativo categórico como princípio do egoísmo, ele pensa que os exemplos de aplicação do imperativo categórico contêm elucidações da motivação moral, o que não é o caso.[#] ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.82 [P] Palavras-chave: Imperativo categórico. Egoísmo. Motivação moral. Agir racional. [B] Abstract This article is an examination of Schopenhauer’s claim that the categorical imperative is based on selshness. According to author of On the Basis of Morality, the categorical imperative is merely a periphraris, a rhetorical expression of the rule ‘do not do to others what you would not wish to be done to you’, the well-known golden rule. I attempt to show that Kant’s remarks on applying the categorical imperative to the examples of false promise and of indi!erence to the su!ering of others are questionable. The way Kant presents such examples gives rise to reason- able criticism on selshness being the basis of the categorical imperative. Nevertheless, I argue that it is possible to defend the thesis that the categorical imperative, unlike Schopenhauer’s thought, is not based in any form of selshness. When Schopenhauer considers on the cate- gorical imperative as the principle of selshness, he thinks the examples of application of the categorical imperative include some elucidation of moral motivation, which is not the case.[#] [K] Keywords: Categorical imperative. Selshness. Moral motivation. Rational action. Introdução !"#!$ %&#'()*$ +&!#!,-)$ !.%/',%&$ %$ %0!(%12)$ -!$ 345)+!,5%6!&$ segundo a qual o imperativo categórico se apoia no egoísmo. Tento mostrar que as observações de Kant quanto à aplicação do imperativo categórico aos exemplos da falsa promessa e da indiferença para com )$")7&'/!,#)$%05!')$"2)$86!"#'),9:!'";$<%,#$+%&!4!$',#&)-6='&$',%-:!&- #'-%/!,#!$+),-!&%1>!"$+&6-!,4'%'"$ %$?/$-!$ @6"#'?4%&$ %$ #!"!$-!$ 86!$ a não universabilidade de uma máxima tem de redundar na sua não aprovação moral. Daí ser compreensível que o modo como Kant apre- "!,#!$#%'"$!.!/+0)"$-A$!,"!@)$%$4&B#'4%"$&%=)9:!'"$")C&!$)$!()B"/)$"!&$%$ C%"!$-)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4);$E!4),5!1)*$+)'"*$%$+!&#',A,4'%$-%$-'?- 460-%-!$%+),#%-%$+)&$345)+!,5%6!&;$F)-%:'%*$%4&!-'#)$86!$G$+)""B:!0$ defender a tese de que o imperativo categórico, ao contrário do que +!,"%$345)+!,5%6!&*$,2)$"!$%+)'%$!/$,!,56/%$7)&/%$-!$!()B"/);$ H/C)&%$345)+!,5%6!&$IJKKL*$+;$JJMN$7&!86!,#!/!,#!$#!,#!$-!"- pachar sumariamente as teses das quais discorda com etiquetas nada Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 83 favoráveis, chamando-as, por exemplo, de “palavrório oco”, “quimeras” e “bolhas de sabão”, não devemos nos deixar impressionar. A lingua- (!/$4),#6,-!,#!$!$)$!"#'0)$+)&$:!=!"$%(6!&&'-)$+&!4'"%/$"!&$%C"#&%B- dos. O que importa é perguntarmos se, por trás dessa forma veemente -!$#&%#%&$"!6"$)+)"'#)&!"*$!/$!"+!4'%0$%$?0)")?%$/)&%0$-!$<%,#*$59$%&(6- /!,#)"$-'(,)"$-!$%#!,12)$86!$#&%=!/$O$#),%$:!&-%-!'&%"$-'?460-%-!";$ P$/!6$:!&*$%$&!"+)"#%$%$!""%$+!&(6,#%$G$%?&/%#':%;$345)+!,5%6!&$&!%0- /!,#!$-!"!,:)0:!$6/%$0!'#6&%$86!$7%=$!/!&('&$%6#A,#'4%"$-'?460-%-!"$ 86!$ "!$ 7%=!/$+&!"!,#!"$,%$ !"#$%&"'$()*+ #$+,&'$-./01$+ #*/+2*/'!%&/. Em 3*45&+*+ !"#$%&"'*+#$+,*5$6$!,4),#&%/)"$/6'#%"$4&B#'4%"$O$?0)")?%$ /)&%0$-!$<%,#;$Q!,#&!$!""%"$4&B#'4%"*$345)+!,5%6!&$%#%4%$)$'/+!&%#':)$ 4%#!(D&'4)$R%,#'%,)$5%@%$:'"#%$!"#!$ #!&$4)/)$C%"!*$"!(6,-)$"6%$ 0!'#6- &%*$)$!()B"/);$Q!$%4)&-)$4)/$345)+!,5%6!&*$6,'4%/!,#!$%$4)/+%'.2)$ pode ser considerada a motivação legítima das ações morais. Minha intenção aqui é bem restrita. Pretendo apenas examinar, com base em 3*45&+*+ !"#$%&"'*+#$+,*5$6*$%$%46"%12)$-!$345)+!,5%6!&$IJKKL*$+;$SMN$ de que o imperativo categórico tem como base o egoísmo. Acredito que essa crítica captura um momento embaraçoso dos esclarecimentos dados por Kant ao sentido do imperativo categórico. O argumento de Schopenhauer Antes de entrarmos na discussão da tese de que a base do im- +!&%#':)$4%#!(D&'4)$G$)$!()B"/)*$ #%0:!=$"!@%$)+),)$-'"#',(6'&/)"*$ 4),7)&/!$%-:!&#!$345)+!,5%6!&$IJKKL*$+;$MTN*$+&',4B+')$-!$76,-%/!,- to. Por “princípio” (750"809N*$-!:!U"!$!,#!,-!&$%$“95*9*/0()* -!"#$%&"'$6 (*4&5/'& :5!"#/$;N$/%'"$!0!:%-%” da ética, que exprime concisamente uma prescrição para a ação, ou, numa ética não prescritiva, o modo de agir que tem valor moral. Enquanto o princípio expressa o <=+'0>+o ?!& da virtude, o -!"#$%&"'* (FundamentN*$+)&$"6%$:!=*$&!"+),-!$+!0)$ #0='0, o 9*5?!@, a 5$8)* (A&/<$64N$-%$:'-!;$V$76,-%/!,#)*$+)'"*$C6"4%$%$ &%=2)$+!0%$86%0$6/%$%12)$G$/!&!4!-)&%$-!$0)6:)&$)6$4!,"6&%*$+)-!,- do ser encontrado “,%$,%#6&!=%$56/%,%” ou “nas relações do mundo exterior ou ainda em qualquer outro lugar”. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.84 Postas assim as coisas, cabe perguntar: qual é, para 345)+!,5%6!&*$ )$ -!"#$%&"'* da moral em Kant? Parece ser, a se considerar o parágrafo seis de 3*45&+*+ !"#$%&"'*+#$+,*5$6+(“3)C&!$ )$ 76,-%/!,#)$-%$G#'4%$R%,#'%,%”N*$%$5$8)*+9!5$+95B'01$, ou o -$'*+#$+ 5$8)*. E qual seria o seu 950"1.90*? O 0%9&5$'0C*+ 1$'&D=501*. Porém 345)+!,5%6!&$%&(6/!,#%*$,)$+%&9(&%7)$"!#!*$86!$)$"!6$+&',4B+')$G$ o &D*./%*. Como pode o egoís mo ser o princípio de um fundamento 4)/)$%$&%=2)$+6&%$+&9#'4%W$3!$)$76,-%/!,#)$G$-GC'0*$#%/CG/$#!&9$-!$ ser débil o seu princípio. O egoísmo não teria de ser o fundamento do imperativo categórico? Ao que parece, considerando o que vem %$"!(6'&*$345)+!,5%6!&$!,#!,-!$86!$)$!()B"/)$G$)$+&',4B+')$)460#)$ -%$/)&%0$R%,#'%,%;$X$C)/$?.%&/)"$'"")*$+)&86!$+)-!&B%/)"$+!,"%&$ "'/+0!"/!,#!$86!$345)+!,5%6!&$!"#%&'%$%?&/%,-)$86!$)$!()B"/)$G$ o que se encontra na !"#$%&"'$()*+#$+,&'$-./01$+#*/+2*/'!%&/, e que, embora não nomeado, tampouco seria intencionalmente ocultado %$ ?/$ -!$ ,2)$ &!:!0%&$ ',4),"'"#A,4'%";$P4),#!4!$ 86!$ 345)+!,5%6!&$ IJKKL*$ +;$ SLN$ :%'$ -!7!,-!&$ 86!$<%,#$ #!&'%$ "'-)$ %&-'0)")$ ,)$ )460#%- mento do egoísmo como princípio da moral. Ora, esse é um tipo de acusação de outra ordem. Já não se trata tão-somente de mostrar in- 4),"'"#A,4'%"$!/$<%,#*$/%"$-!$"),-%&$"6%"$',#!,1>!"*$"6%$"6C@!#':'- -%-!$%)$!"4&!:!&$)$#!.#);$Y&!')$86!$)$/!05)&$86!$#!/)"$%$7%=!&$4)/$ !""%$+!&"+!4#':%$-!$ 0!'#6&%$ 4),"'"#!$ "'/+0!"/!,#!$ !/$-!"+&!=9U0%;$ H.+0'4)U/!Z$,%-%$(%,5%&B%/)"$#!,#%,-)$%4)/+%,5%&$345)+!,5%6!&$em sua crítica aos supostos ardis de Kant1. O que merece atenção é o %&(6/!,#)$-!$<%,#*$)6$"!@%*$)$86!$4%C!$+),-!&%&$G$"!*$6/%$:!=$"!,- do necessário reconhecer o egoísmo por trás do imperativo categó- rico, devemos reconhecer uma faceta nova, ou oposta às palavras de Kant, bem como assinalar a sua inconsistência com o fundamento ")C&!$)$86%0$!0!$%4&!-'#%$&!+)6"%&$%$"6%$?0)")?%$/)&%0; 1 Tentarei seguir aqui a regra, assumida por Schopenhauer, segundo a qual “é justo interpretar um autor sempre pelo mais favorável” (SFM § 6: 39),isto é, procurando compreender o que o autor quis dizer. Tanto Kant como Schopenhauer serão lidos, analisados e confrontados levando-se em conta suas intenções. É evidente que estou me referindo aqui às intenções sondáveis a partir dos textos. Não se trata de forma alguma de procurar razões psicológicas que porventura teriam determinado a defesa de um ponto. Na verdade, é inofensiva a ideia de que um autor nem sempre se exprime de forma clara e de que o leitor possa, e mesmo deva, buscar nas entrelinhas a clareza possível das teses formuladas. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 85 Y%C!*$-!$'/!-'%#)*$+!&(6,#%&Z$)$86!$345)+!,5%6!&$!,#!,-!$+)&$!()B"U mo? Egoísmo [Egoismus[$+%&%$345)+!,5%6!&$IJKKL*$+;$JJMN$"'(,'?4%$“o ím- peto para a existência e o bem-estar” [#&5+E5$"D+8!%+E$/&0"+!"#+A*<6/&0"], sendo “a motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal”2;$H$+)&$86!$!0!$@60(%$86!$)$!()B"/)$!"#%&'%$"6"#!,#%,-)$)$'/+!&%- #':)$4%#!(D&'4)W$P$&!"+)"#%$-!$345)+!,5%6!&$IJK\T*$+;$J]TN$G$-%-%$,6/%$ instigante análise do modo como Kant aplica o imperativo categórico a cer- tas máximas que resultariam moralmente reprovadas pelo teste que o seu +&',4B+')$'/+>!*$%$"%C!&*$)$+&',4B+')$86!$&!=%Z$“age como se a máxima de tua %12)$"!$-!:!""!$#)&,%&*$+!0%$#6%$:),#%-!*$!/$0!'$6,':!&"%0$-%$,%#6&!=%”. Dois dos quatro exemplos3$"2)$%#%4%-)"*$@6"#%/!,#!$)"$!.!/+0)"$86!$"!$&!7!&!/$ aos deveres para com os outros, porquanto o autor de 3*45&+*+ !"#$%&"'*+ #$+,*5$6$,2)$4),7!&!$4'-%-%,'%$,6/%$&!^!.2)$/)&%0$%)"$45%/%-)"$-!:!&!"$ +%&%$4)/$,D"$/!"/)"$I3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$b\UbKc$JKKL*$+;$JbS4N; A máxima da falsa promessa )$!.!/+0)$-%$7%0"%$+&)/!""%$I47;$<P F*$JK\T*$+;$J]TN*$#!/)"$-!$ ponderar se uma máxima que determina uma promessa mentirosa, se 6,':!&"%0'=%-%*$ 4),"!(6'&'%$ %',-%$ +&)-6='&$ )"$ !7!'#)"$ -!"!@%-)";$ V&%*$ 2 Adoto, aqui, uma compreensão lata da noção de egoísmo em Schopenhauer. Faço isso justamente a m de não prejudicar a comparação que pretendo fazer entre a sua losoa moral e a de Kant. Com efeito, se entendermos que a diferença entre eu e não eu é uma nota característica do conceito de egoísmo, então certamente tudo que não envolvesse a indiferenciação metafísica que a losoa de Schopenhauer defende como correspondente ao mundo como coisa-em-si, teria de ser relegado ao egoísmo. Penso que a crítica de Schopenhauer a Kant precisa ser avaliada mediante o emprego de uma noção que seja losocamente menos parcial de egoísmo, quer dizer, de um conceito neutro de egoísmo. Acredito que isso é possível. Em que pese Schopenhauer entender que a diferenciação entre eu e não eu é crucial no conceito de egoísmo, ele também entende, por vezes, o egoísmo num sentido mais lato como uma motivação cujo m é o próprio bem do indivíduo (SCHOPENHAUER, A. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Cacciola. São Paulo: M. Fontes, 1995. p. 131). Tomando nesse sentido geral, e sem assumir as premissas da metafísica schopenhaueriana, pode-se dizer que tal concepção não diverge da compreensão de Kant sobre o princípio do amor de si mesmo (KANT, 2002, p. 38). 3 Os exemplos oferecidos por Kant são: (i) suicídio, (ii) falsa promessa, (iii) desleixo dos dons naturais e (iv) indiferença com a desgraça e a miséria alheia, correspondem respectivamente aos deveres: (i) conservar a vida, (ii) prometer verazmente, (iii) desenvolver os talentos e (iv) ser benevolente. Os deveres (i) e (ii) seriam deveres perfeitos; (iii) e (iv) deveres imperfeitos. Os deveres (i) e (iii) são deveres para conosco mesmos; (ii) e (iv) deveres para com os outros. 4 Essa posição de Schopenhauer mereceria um tratamento especíco, mas aqui será apenas mencionada. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.86 "!$ #!,5)$ 4)/)$ 0!'$ 6,':!&"%0$ -%$ ,%#6&!=%$ 86!$ #)-)"$ +)-!/$ +&)/!#!&$ 7%0"%/!,#!$ 86%,-)$ "!$ !,4),#&%/$ !/$-'?460-%-!*$ ,!"#!$ 4%")*$ 86%,-)$ qualquer promessa for feita, podemos considerá-la falsa. Logo, não será -'(,%$-!$4&G-'#);$a/%$:!=$-!"#&6B-%$%$4),?%,1%$&!4B+&)4%$!,#&!$%"$+!"- soas, eu não poderei mais prometer qualquer coisa, pois as promessas ?4%&'%/$4%&!,#!"$-!$"'(,'?4%-)$!/$#%0$)&-!/$,%#6&%0;$H$ '"")$(&%1%"$%$ "'/+0!"$&%=2)$-!$,2)$#!&$"!,#'-)$+&)/!#!&$)$86!$,2)$46/+&'&!'$%$86!/$ também sabe que não cumprirei. Neste exemplo, portanto, Kant quer /)"#&%&$%$'/+)""'C'0'-%-!$-!$6/%$0!'$6,':!&"%0$-%$,%#6&!=%$-%$7%0"%$+&)- messa. Assim sendo, o ponto está na contradição intrínseca da máxima; !$@6"#%/!,#!$+)&$!"#%$&%=2)*$-!:!$"!&$&!+&):%-%$/)&%0/!,#!; P()&%*$ 86%,-)$ <%,#*$ ,)$ ?/$ -!"#!$ !.!/+0)*$ %?&/%$ 86!*$ "!$ %$ /9.'/%$-%$7%0"%$+&)/!""%$7)""!$6,':!&"%0'=%-%*$“ninguém acreditaria em qualquer coisa que lhe prometessem e rir-se-ia apenas de tais de- clarações como de vãos enganos”$ I<P F*$JK\T*$+;$J]JN*$!0!$-!"0)4%$%$ argumentação de reprovação moral da máxima da contradição inter- na 9$5$$%$4),#&%-'12)$86!$+)-!&B%/)"$45%/%&$!.#&B,"!4%;$V6$"!@%*$,2)$ se trata mais, a rigor, de um argumento %*5$6$ I,)$"!,#'-)$R%,#'%,)N*$ mas 95!#&"10$6;$3!$#)/9""!/)"$!"#%$%?&/%12)$-!$<%,#$4)/)$C%"!$+%&%$ censurarmos moralmente a máxima em questão, nós teríamos uma @6"#'?4%12)$86!$ 4)&&!"+),-!&'%$ %)"$ ',#!&!""!"$+%&#'460%&!"$-%$+!"")%$ 4)/$ ',#!,12)$ -!$ 7%=!&$ 6/%$ 7%0"%$ +&)/!""%;$ H""%$ +!"")%$ &!,6,4'%&'%$ ao ato não em virtude da contradição interna de sua máxima (só neste 4%")$%$&!,d,4'%$#!&'%$:%0)&$/)&%0N*$/%"$"'/$!/$76,12)$-%"$4),"!86A,- 4'%"$,)4':%"$86!$&!4%'&'%/$")C&!$"'$"!$%$/9.'/%$7)""!$6,':!&"%0'=%-%;$ F&%#%U"!*$!/$"6/%*$-)$-!"0)4%/!,#)$-)"$/DC'0!"*$+&',4B+')"$"6C@!#':)"$ -)$-!"!@%&$I47;$<P F*$JK\T*$+;$J]MN;$ )$+&'/!'&)$%&(6/!,#)$)$/DC'0$G$ moral; no segundo não, pois aí eu agiria conforme ao dever por inten- ção egoís ta, mas não conforme ao dever por dever ($!/+7F01<'N;$`%&!4!*$ portanto, que Kant se engana na última frase do exemplo da falsa pro- /!""%$I")C&!$!""!$+),#)$:)0#%&!'$86%,-)$#&%#%&$-)$86%&#)$!.!/+0)N; V&%*$G$!""%$@6"#%/!,#!$%$+!&4!+12)$-!$345)+!,5%6!&;$H0!$%+),- #%*$+)'"*$%$"6+)"#%$C%"!$!()B"#%$-)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4)$ @9$,)$!.!/- plo da falsa promessa, ao passo que geralmente esse problema parece "6&('&$%+!,%"$4)/$)$86%&#)$!.!/+0)*$)$-%$?0%,#&)+'%;$Q!$%4)&-)$4)/$ Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 87 345)+!,5%6!&*$)$!.!/+0)$-%$7%0"%$+&)/!""%$@9$&!:!0%$86!$)$'/+!&%#':)$ categórico, ao exigir a universalidade da máxima, tem em vista os re- 40%/!"$-)$!()B"/)$86!$+!,"%$,%"$4),"!86A,4'%"$-!""%$6,':!&"%0'=%12)$ considerando o eu não apenas como a parte ativa, mas também, e prin- cipalmente, como a 9$5'&+9$//0C$. Assim, a adoção de uma máxima de +&)/!""%"$:!&%=!"*$)6*$!/$(!&%0*$%$-!4'"2)$+!0%$@6"#'1%*$,2)$)4)&&!$!/$ :'"#%$-)$+&%=!&$86!$"!$#!/$!/$"!&$@6"#)*$/%"$+!0)$+&%=!&$86!$"!$#!/$!/$ "!&$#&%#%-)$-!$/)-)$@6"#)$I47;$3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$SLN; A máxima da ausência de caridade Passemos agora ao quarto exemplo. Nele, em que se apresen- #%*$,%"$+%0%:&%"$-!$345)+!,5%6!&*$%$“máxima da ausência de carida- de”$I3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$SSN*$<%,#$+%&!4!$',4)&&!&$,%$/!"/%$ -'?460-%-!$86!$"!$!,4),#&%$,)$?/$-)$"!(6,-)$!.!/+0)*$86%0$"!@%*$%$ -'?460-%-!$")C&!$)$%=406 da ação. Kantargumenta que se poderia des- 4)C&'&$/6'#)"$4%")"$!/$86!$%$+!"")%$86!$-!"!@%$%$6,':!&"%0'=%12)$-%$ máxima da indiferença “precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela graças a tal lei natural nascida da sua própria vontade, &)6C%&'%$%$ "'$/!"/%$ #)-%$%$!"+!&%,1%$-!$%6.B0')$86!$+%&%$ "'$-!"!@%” I<P F*$JK\T*$+;$J]JN;$V&%*$6/%$%12)$46@)$/DC'0$"!@%$)$/!-)$-%"$4),"!- quências não pode ser moralmente aprovada. De fato, isto não estaria de acordo com a ideia de uma vontade racional como Kant propõe, 6/%$:!=$86!$!"#%$:),#%-!$-!:!$%('&$+)&$&!"+!'#)$O$0!'$!$,2)$+)&$4%6"%$ -!$6/$',#!&!""!$+%&#'460%&$I+%#)0D('4)N; P$+%&#'&$-%"$4),"'-!&%1>!"$?,%'"$-!$<%,#*$,)$"!(6,-)$!$86%&#)$ !.!/+0)*$+)-!U"!$%?&/%&$%$+!&#',A,4'%$-%$4&B#'4%$-!$345)+!,5%6!&;$ Mesmo que se alcancem conclusões menos desfavoráveis a Kant, é +&!4'")$ &!4),5!4!&$ 86!$ 345)+!,5%6!&$ %+),#)6$ +%&%$ 6/%$ %6#A,#'4%$ -'?460-%-!$ ,%$ %&(6/!,#%12)$ R%,#'%,%;$ Y%C!*$ +)'"*$ !.%/',%&$ "!$ %$ leitura de que o imperativo categórico seria “apenas uma perífrase, 6/$)&,%/!,#)*$6/%$!.+&!""2)$^)&!%-%$-%$&!(&%$+)&$#)-)$4),5!4'-%Z$ ?!*#+'04&+G&50+"*"+C0/>+$6'&50+"&+-&1&50/”$I3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$S\N$ é procedente. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.88 A suposta base egoísta do imperativo categórico Ora, com relação à interpretação de que o imperativo categórico +)-!&'%$"!&$&!-6='-)$O$&!(&%$-!$)6&)*$G$+&!4'")$-!"#%4%&$)$86!$<%,#$,%$ “Fundamentação”$-'=$")C&!$)$+&',4B+')$")*+-$8&5+$*+*!'5*+*+?!&+")*+?!&5*+ ?!&+*+*!'5*+%&+-$($;$<%,#$40%&%/!,#!$&!@!'#%$!""!$+&',4B+');$P$)+)"'12)$ ao princípio H!*#+'040+G&50+"*"+C0/>+$6'&50+"&+-&1&50/ se dá num contexto em que Kant está a explicar a aplicação da segunda formulação do im- perativo categórico com referência ao exemplo de “não mentir”. Como "!$"%C!*$%$"!(6,-%$7D&/60%$-)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4)$&!=%Z$“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de 86%086!&$)6#&)*$"!/+&!$!$"'/60#%,!%/!,#!$4)/)$?/*$!$,6,4%$"'/+0!"- mente como meio”$IJK\T*$+;$J]LN;$ !""!$"!,#'-)*$<%,#$!064'-%$86!$6/$ ',-':B-6)$ 86!$ ',#!,4'),%$ 7%=!&$ 6/%$ +&)/!""%$/!,#'&)"%$ 7%4'0/!,#!$ reconhece servir-se de outro homem simplesmente como meio. Assim, ele pode perceber a imoralidade de sua máxima, pois ele deixa de tratar )"$"!&!"$&%4'),%'"$4)/)$?,"$!/$"'$I<P F*$JK\T*$+;$J]SUJ]eN;$`)'"$C!/*$ o que mais interessa aqui é a nota a essa explicação. Nessa nota lemos: Não vá pensar-se que aqui o trivial: ?!*#+ '040+ "*"+ C0/+ G&50>+ &'1I> possa "!&:'&$-!$-'&!#&'=$)6$+&',4B+');$`)'"$!"#!$+&!4!'#)*$+)"#)$86!$4)/$:9&'%"$ restrições, só pode derivar daquele; não pode ser uma lei universal, vis- to não conter o princípio dos deveres para consigo mesmo, nem os dos deveres de caridade para com os outros (porque muitos renunciariam -!$C)/$(&%-)$%$86!$)"$)6#&)"$05!$?=!""!/$C!/$"!$'"")$)"$-'"+!,"%""!$ -!$!0!"$ 7%=!&!/$C!/$%)"$)6#&)"N*$,!/$/!"/)$?,%0/!,#!$)$+&',4B+')$ -)"$-!:!&!"$/d#6)"*$+)&86!$)$4&'/',)")$+)-!&'%$+)&$!"#%$&%=2)$%&(6- /!,#%&$4),#&%$)"$@6B=!"$86!$)$+6,!/*$!#4$I<P F*$JK\T*$+;$J]SN; Realmente, o ")*+-$8&5+$*+*!'5*+*+?!&+")*+?!&5*+?!&+*+*!'5*+%&+-$($ somente seria aplicado em relação aos outros e, portanto, não permi- tiria pensar num princípio moral que se referiria também aos deveres que tenho com relação a mim mesmo (por exemplo, para Kant, o dever -!$4),"!&:%&$%$:'-%$!$460#':%&$)"$#%0!,#)"N;$F%/+)64)$%6#)&'=%&'%$+!,- sar a exigência moral da caridade, pois a caridade é um “7%=!&$%)$)6- tro”, isto é, envolve positividade da relação que tenho com o outro, ao Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 89 passo que, se me oriento apenas pelo princípio de ")*$7%=!&$%)$)6#&)$)$ que ")*$86!&)$86!$)$)6#&)$/!$7%1%*$%@)$%+!,%"$-!$/)-)$%$!:'#%&$4%6"%&$ danos ao outro, mas não a promover o seu bem. Mesmo que se pensas- se o princípio em termos positivosL*$+)-!U"!$-%&$)$4%")*$4)/)$-'=$<%,#*$ 86!$!6$-'"+!,"!$%$%@6-%$-)"$)6#&)"$!*$%""'/*$,2)$!"+!&%,-)$86!$)"$)6- #&)"$/!$%@6-!/*$,2)$&!4),5!1%$)$-!:!&$-!$%@6-9U0)";$H$+%&%$4),"6/%&$%$ incongruência do imperativo da moralidade com a regra de ouro, Kant fala da escusa do criminoso. Essa escusa possivelmente consistiria na %0!(%12)$-!$86!$?4)$ '"!,#)$-)$46/+&'/!,#)$-)$/!6$-!:!&$"!$ '"!,#)$ também o outro do cumprimento do seu dever. Como se vê, Kant está atento à possibilidade de compreensão do imperativo categórico como um princípio apoiado na ideia de reciprocidade moral entre os agentes. X$+&!4'")$%-/'#'&*$+)&G/*$86!$)$7%#)$-!$<%,#$!"#%&$%#!,#)$%$!""!$+),#)$ ,2)$G$"6?4'!,#!$4)/)$&!"+)"#%$O$4&B#'4%$-!$345)+!,5%6!&;$Y)/$!7!'#)*$ 345)+!,5%6!&$4)&&!#%/!,#!$-'&'(!$"!6$)05%&$4&B#'4)$O$,)12)$-!$9*#&5+ ?!&5&5 (J*66&"+KL""&"N$!/+&!(%-%$+)&$<%,#$!$86!$#!/$+%+!0$4!,#&%0$,%$ compreensão do imperativo categórico. P$/!6$:!&*$#!/)"$-!$4),4!-!&$%$345)+!,5%6!&$%$7%0#%$-!$40%&!=%$ de Kant com respeito ao sentido do 9*#&5+?!&5&5+(J*66&"+KL""&"N;$Q!$7%#)*$ <%,#$,2)$-!'.%$ "6?4'!,#!/!,#!$ 40%&)$ “o que posso e o que não posso propriamente ?!&5&5”$I3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$SMN;$F)-%:'%*$4)/)$ @9$ )C"!&:%-)*$ G$ &!4)/!,-%12)$ -)$ +&D+&')$ 345)+!,5%6!&$ “interpretar um autor sempre pelo mais favorável”$I3Y_V`H _PaHE*$JKKL*$+;$]KN;$ Ora, acolhendo essa recomendação, é necessário conter o açodamento na conclusão sobre se a ética de Kant é, no fundo, egoísta ou não. 3)C$!""%$+!&"+!4#':%*$+%&!4!U/!$)+),%$6/%$)C"!&:%12)$")C&!$ o sentido de uma ação racional em Kant. O sentido mais básico de uma %12)$&%4'),%0$!86':%0!$%$%('&$4)/$C%"!$!/$&%=>!";$`)&G/*$+)-!U"!$%0!- (%&$86!$%('&$4)/$C%"!$!/$&%=>!"$G$%+!,%"$)$"'(,'?4%-)$/%'"$'/!-'%#)$ de uma ação racional. Podemos pensar num sentido mais forte para a ideia de um indivíduo que age racionalmente. Podemos pensar que 5 Justamente o ponto de Schopenhauer. Ele arma que o imperativo categórico seria “apenas uma perífrase, um ornamento, uma expressão <oreada da regra por todos conhecida: quod tibe !eri non vis, alteri ne feceris, a saber, quando a repetimos sem o non e o ne, para que esta livre-se da mácula de conter só os deveres de direito e não os de caridade” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 68). Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.90 !""!$',-':B-6)$%(!$4)/$C%"!$,%$&%=2)$/)&%0$!$86!$%86'0)$86!$!0!$+)-!$ querer nesse sentido também tem de poder ser querido por qualquer "!&$&%4'),%0;$f6%,-)$<%,#$%?&/%$“temos que 9*#&5+?!&5&5 que uma má- xima da nossa ação se transforme em lei universal: é este o cânone pelo 86%0$ @60(%/)"$/)&%0/!,#!$ !/$(!&%0”$ I<P F*$ JK\T*$ +;$ J]JN*$ %4&!-'#)$ ser possível defender que o 9*#&5+?!&5&5 tem sentido contrário às incli- ,%1>!"$!$',#!&!""!"$76,-%-)"$!/$,)""%$,%#6&!=%$"!,"B:!0$-!"!@%,#!*$,%$ qual se funda o princípio do bem-estar e do amor de si mesmo. Por certo, a alegação anterior não é a única e provavelmente não "!@%$%$/!05)&*$5%@%$:'"#%$&!86!&!&$%$-'"46""2)$%-'4'),%0$g$86!$,2)$G$)$ )C@!#':)$-!"#!$%&#'()$g$")C&!$"!$%$G#'4%$R%,#'%,%$!.+0'4%$/!05)&$86!$%$ -!$345)+!,5%6!&$,)"")"$4),4!'#)"$/)&%'"$C9"'4)";$P4&!-'#)$86!$%$/!- 05)&$&!"+)"#%$86!$"!$+)-!$)7!&!4!&$4),#&%$%$4&B#'4%$-!$345)+!,5%6!&$@9$ se encontra em Kant. Ela consiste basicamente na alegação de que a 6,':!&"%C'0'-%-!$-!$6/%$/9.'/%$,2)$G$6/%$4),-'12)$"6?4'!,#!$+%&%$ %$86%0'?4%12)$/)&%0$-%"$ %1>!";$P$%+&):%12)$-%$/9.'/%$,)$ #!"#!$-%$ 6,':!&"%0'=%12)*$"!@%$/!-'%,#!$“poder pensar”$"!@%$/!-'%,#!$)$“poder querer”*$"%#'"7%=$%+!,%"$6/%$4),-'12)$,!4!""9&'%;$`&!4'"%/)"$+!,"%&$ ,%$/)#':%12)$/)&%0$!*$,!""!$4%")*$G$',"6?4'!,#!$)$#!"#!$-%$6,':!&"%C'- lidade da máxima6. Voltemos ao 3*45&+ *+ !"#$%&"'*+ #$+,*5$6$ I3Y_V`H _PaHE*$ JKKL*$+;$Jb]N;$PB$345)+!,5%6!&$+&)46&%$&!7)&1%&$"6%$4&B#'4%$4'#%,-)$6/%$ passagem da 25.'01$+#$+M$8)*+75B'01$$I<P F*$bTTb*$+;$JJJN;$H'"$%$+%""%- gem: “se [cada um]olhasse com inteira indiferença para a necessidade 6 Assim, pode-se dizer que Schopenhauer deu atenção excessiva aos exemplos da Fundamentação, não levando em conta a própria advertência de Kant nessa obra. “É preciso não perder de vista que não se pode demonstrar por nenhum exemplo [durch kein Beispiel], isto é, empiricamente, se há por toda a parte um tal imperativo [categórico]; mas há a recear que todos os que parecem categóricos possam, anal, ser disfarçadamente hipotéticos. Quando, por exemplo, dizemos: ‘não deves fazer promessas enganadoras’, admitimos que a necessidade desta abstenção não é somente um conselho para evitar qualquer outro mal, como se disséssemos: ‘não deves fazer promessas mentirosas para não perderes o crédito quando se descobrir o teu procedimento’; admitimos, pelo contrário, que uma ação desse gênero tem de ser considerada como má por si mesma, que o imperativo da proibição é, portanto, categórico; mas não podemos encontrar nenhum exemplo seguro em que a vontade seja determinada somente pela lei, sem qualquer outro móbil, embora assim pareça; pois é sempre possível que o receio da vergonha, talvez também a surda apreensão de outros perigos, tenham in<uído secretamente sobre a vontade” (KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 128). Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 91 de outros, e, se tu também pertencesses a uma tal ordem de coisas, como irias estar de bom grado nela com o assentimento de tua vonta- de?”$I<P F$bTTb*$+;$JJJN;$$P,#!"$-!$)7!&!4!&$6/%$!.+0'4%12)$%$!""%$+%"- sagem que mostre que ela não serve de abono à interpretação de que o imperativo categórico teria como base o egoísmo, é importante con- siderar o que Kant tem em mira no contexto do trecho citado. A passagem é extraída da seção intitulada “N.901$$-%$7%460-%-!$-!$@60(%&$ prática pura”e. Kant procura, nessa parte da 25.'01$+#$+M$8)*+75B'01$ pen- "%&$,%$'-!'%$-!$6/%$)&-!/$,%#6&%0$86!$"'&:%$4)/)$6/$/)-!0)$%$?/$ de que leis práticas possam ser pensadas 0"+1*"15&'* (cf. BECK, 1966, +;$JL\N;$3!$%$/9.'/%$86!$+&!#!,-)$%""6/'&$4)/)$(6'%$-!$/',5%$%12)$ ,2)$+6-!&$4)/+)&$#%0$)&-!/$,%#6&%0$0!(%0*$!0%$#!/$-!$"!&$&!@!'#%-%;$`)&$ 86!$ !0%$ #!/$-!$ "!&$ &!@!'#%-%W$ `)-!/)"$ )7!&!4!&$ %$ "!(6',#!$ &!"+)"#%Z$ 'N$ !0%$ 4)0'-'&'%$ 4)/$/',5%$+&D+&'%$:),#%-!$!$ I''N$ !0%$,2)$+)-!&'%$ "!&$ consistentemente querida por seres racionais autolegisladores de uma ordem moral (que, como tal, assumem a posição de legislarem para #)-)"$)"$"!&!"$&%4'),%'"N;$P$"!(6,-%$&!"+)"#%$+&!4'"%$"!&$4)/+&!!,-'-%$ a partir da ideia de que o ser racional se serve do modelo da legalida- de natural apenas porque isso serve como termo intermediário no seu %@6'=%/!,#)$+&9#'4);$V$+),#)$-!$<%,#$G*$+)'"*$&!0%#':%/!,#!$"'/+0!";$ 3!$/',5%"$/9.'/%"$ "2)$ ',%+#%"$%$ 4)/+)&!/$6/%$)&-!/$ 0!(%0*$:%0!$ -'=!&$g$!/C)&%$&!-6,-%,#!$g*$6,':!&"%0*$!0%"$&!:!0%/U"!$'/)&%'"$+)&- que não poderão assentar-se em outra base que não o particularismo -!"!@%,#!$-)$ "6@!'#)*$ '"#)$ G*$ @6"#%/!,#!$,)$ "!6$ !()B"/)$ I"!/+&!$ !/- +B&'4)N;$`)-!U"!$-'=!&$86!$%$&!+&):%12)$/)&%0$-%$/9.'/%$,)$#!"#!$-%$ 6,':!&"%0'=%12)$ '/+0'4%$ ,!4!""%&'%/!,#!$ %$ ,%#6&!=%$ !()B"#%$-!0%$ I-%$ /9.'/%N;$X$:!&-%-!$86!$-'"")*$+)&$"'$"D*$,2)$"!$"!(6!$86!*$6/%$:!=$ aprovada, a máxima não será egoísta. Apenas se alcança o resultado de 86!$!0%$,!4!""%&'%/!,#!$"!&'%$!()B"#%$"!$&!+&):%-%$,)$#!"#!;$a/%$:!=$ aprovada no teste, é preciso que se assuma, adicionalmente, como fun- damento determinante da vontade a própria lei moral, não a vantagem de participar de uma ordem legal em que tratamentos recíprocos estão 7 KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução com introdução e notas de Valério Rohden. São Paulo: M. Fontes, 2002, livro primeiro, segundo capítulo, segunda seção. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.92 (%&%,#'-)";$3)C&!$'"")*$<%,#$G$40%&)$,%$"!(6',#!$-!40%&%12)$I,2)$4'#%-%$ +)&$345)+!,5%6!&NZ Ora, cada um sabe bem que, se ele [...] sem ser notado é desumano, nem por isso todos também o seriam imediatamente contra ele; por isso esta comparação da máxima de suas ações com uma lei natural universal não é tampouco o fundamento determinante de sua vontade. Mas esta 0!'$G*$4),#6-)*$6/$#'+)$-)$%@6'=%/!,#)$-%86!0%$/9.'/%$"!(6,-)$+&',- 4B+')"$/)&%'";$3!$%$/9.'/%$-%$%12)$,2)$G$4),"#'#6B-%$-!$/)-)$#%0$86!$ resista à prova na forma de uma lei natural em geral, ela é moralmente impossível [/0O601<!"%LD601<[$IbTTb*$+;$JJJN; <%,#$%?&/%*$+)'"*$ !.+&!""%/!,#!$86!$%$%+&):%12)$-%$/9.'/%$ +!0)$#!"#!$-%$6,':!&"%C'0'-%-!$,2)$+)-!$I,2)$-!:!N$"!&$)$“fundamento determinante” (P&/'0%%!"D/D5!"#N$-%$:),#%-!;$V$86!$"!$4),"!(6!$4)/$ )$#!"#!$G$@6"#%/!,#!$%$&!:!0%12)$-!$86!$%$/9.'/%$G$/)&%0/!,#!$'/+)"- sível, o que interpreto como sendo inconcebível em termos morais pen- sar a universabilidade ou querer a universabilidade de uma máxima que não pode compor uma ordem natural universal. Portanto, o que <%,#$-'=$,%$"!86A,4'%$-%$+%""%(!/$4'#%-%$!/$3*45&+*+ !"#$%&"'*+#$+ ,*5$6 mostra que Kant estava atento à possibilidade de alguém pensar 86!$)$4&'#G&')$-%$6,':!&"%C'0'-%-!$-!$6/%$/9.'/%$7)""!$@9$6/%$4),-'- 12)$"6?4'!,#!$-%$"6%$/)&%0'-%-!8. Considerações $nais Antes de concluir, gostaria de mencionar uma possível defesa de 345)+!,5%6!&;$Y%&#h&'(5#$IbTTLN*$!/$%+%&!,#!$-!7!"%$-!$345)+!,5%6!&$ sobre a leitura do imperativo categórico como egoísmo, reconhece que %0(6G/$+)-!&'%$4&'#'4%&$345)+!,5%6!&$%?&/%,-)$86!$<%,#$,2)$#',5%$)$ 8 Beck, em comentário à “Típica da faculdade de julgar prática pura” da Crítica da Razão Prática, corretamente diz: “A universabilidade de uma máxima é um teste negativo de sua validade como lei. Muitas máximas podem de fato ser universalizadas embora não tenham o status de lei. Desta forma o tipo da lei moral como uma lei natural uniforme e universal é apenas um critério negativo para o julgamento moral” (BECK, L. W. A commentary on Kant’s critique of pratical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1966. p. 160). Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 Imperativo categórico e egoísmo 93 )C@!#':)$-!$?.%&*$4)/$"!6"$!.!/+0)"*$%$/)#':%12)$+%&%$"!(6'&/)"$%$0!'$ /)&%0;$3!(6,-)$)$4)/!,#%&'"#%*$ 345)+!,5%6!&$ G$ 4),"4'!,#!$-%$ !.+0'4%12)$-!$<%,#$ ")C&!$ %$/)#':%12)$ /)&%0*$/%"$%45%$86!$!0%$G$',"6"#!,#9:!0$+)&$-':!&"%"$&%=>!";$H0!$'06"- tra alguns desses problemas que acompanham a ética não empíri- ca de Kant, notando que o “próprio Kant confessa [...] que não temos nenhum exemplo absolutamente certo de uma disposição de agir por dever”IYPEFiEjk_F*$bTTL*$+;$bLKN;$ P)$86!$+%&!4!*$Y%&#h&'(5#$+!,"%*$%4)/+%,5%-)$-!$345)+!,5%U uer, que somente uma perspectiva empírica para a ética poderia conferir "'(,'?4%-)$%)"$,)"")"$4),4!'#)"$/)&%'"$C9"'4)";$V&%*$%$4)0)4%12)$,!""!"$ #!&/)"$-%$0!'#6&%$-!$345)+!,5%6!&$-)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4)$G$@6"#%/!,- #!$%$86!$!:'#!'$%86';$V6$"!@%*$+&)46&!'$-!":'%&U/!$-!$6/%$-'"46""2)$")- bre qual teoria moral oferece maiores vantagens explicativas. Meu pro- +D"'#)$7)'$#2)$")/!,#!$:!&'?4%&$"!$%$',#!&+&!#%12)$-!$345)+!,5%6!&$-!$ 86!$)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4)$"!$%+)'%$,)$!()B"/)$7%=$@6"#'1%$%)$86!$<%,#$ -'=$")C&!$)$%""6,#);$P4&!-'#)$86!$,2)$7%=;$H/$&!"+)"#%$%$Y%&#h&'(5#*$ +)-!&'%$-'=!&$)$"!(6',#!;$H/$<%,#$59$I!$#!,#!'$/)"#&%&$86!$-!$7%#)$59N$ 6/%$-'"#',12)$!,#&!$6/$4&'#G&')$+%&%$)$%@6'=%/!,#)$-!$/9.'/%"$86!$ seriam ou não aptas para uma legislação moral e a motivação moral, isto é, princípio de determinação da vontade, o móbil que incorpora- /)"$!/$,)""%"$/9.'/%";$3!,-)$%""'/*$%$%0!(%12)$-!$Y%&#h&'(5#$-!$86!$ 345)+!,5%6!&$!"#%:%$4'!,#!$-%$!.+0'4%12)$-!$<%,#$")C&!$%$/)#':%12)$ moral e discordava dela não é boa. Com efeito,a leitura do imperati- :)$4%#!(D&'4)$7!'#%$+)&$345)+!,5%6!&$4),#',6%&'%$!86':)4%-%;$f6%,-)$ 345)+!,5%6!&$!,#!,-!$)$'/+!&%#':)$4%#!(D&'4)$4)/)$+&',4B+')$-)$!()B"U mo, ele pensa que os exemplos de aplicação do imperativo categórico contêm elucidações da motivação moral, o que não é o caso. Referências BECK, L. W. A commentary on Kant’s critique of pratical reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1966. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 24, n. 34, p. 81-94, jan./jun. 2012 PAVÃO, A.94 YPEFiEjk_F*$Q;$345)+!,5%6!&’s narrower sense of morality. In: JANAWAY, C. The Cambridge companion to Schopenhauer;$ !h$ l)&RZ$ Y%/C&'-(!$ a,':!"'#m$`&!""*$bTTL*$+;$bLbUbKb; KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo f6',#!0%;$32)$`%60)Z$PC&'0$Y60#6&%0*$JK\T;$$ KANT, I. Werke in Zwölf Bande;$ H-'#%-)$ +)&$ i;$ i!'"45!-!0;$ n&%,R76&#Z$ 36&R%/+*$JKKJ; KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução com introdução e notas de Valério E)5-!,;$32)$`%60)Z$o;$n),#!"*$bTTb; 3Y_V`H _PaHE*$P;$pC!&$ -'!$k&6,-0%(!$ -!&$o)&%0;$ j,Z$ 3Y_EjnFH *$<. Sämtliche Werke. n&%,R76&#$%/$o%',Z$365&R%/+*$JKK\;$:;$]*$+;$SbKU\JL; 3Y_V`H _PaHE*$P;$Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria qd4'%$Y%44')0%;$32)$`%60)Z$o;$n),#!"*$JKKL; E!4!C'-)Z$b\rT\rbTJJ +M&1&0C&#Z$T\rb\rbTJJ$ P+&):%-)Z$JTrTbrbTJb Q995*C&#Z$TbrJTrbTJb$
Compartilhar