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A Idade Média contada nas salas de aula

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Castelo de Almourol, à beira do rio Tejo, séc. XII, Portugal.
May 13, 2015
A Idade Média contada nas salas de aula
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Nos últimos trinta anos, as pesquisas sobre a Idade Média lançaram novas luzes sobre
esse período mostrando especificidades nacionais e regionais da Europa da época, grupos
sociais, valores e representações do imaginário medieval. Contudo, a Idade Média dos
pesquisadores não é a mesma daquela ensinada na escola que continua impregnada da
visão elaborada por renascentistas e iluministas. Veja, a seguir, os 8 estereotipos mais
comuns no ensino da Idade Média na escola.
1 – Generalizar conceitos para toda Europa medieval
A expressão Idade Média era
desconhecida na época medieval. Ela
surgiu no século XVI, com os
humanistas italianos e só se tornou de
uso corrente no XVII. Significava a
“idade do meio”, isto é, intermediária
entre a Antiguidade clássica e o
Renascimento que inaugurava a Idade
Moderna.
Isso quer dizer que os homens e
mulheres que viveram no tempo dos
castelos fortificados, dos feudos e das
cruzadas sequer sabiam que estavam
na Idade Média. Também não se identificavam como europeus e muito menos como
franceses, italianos, alemães etc. Eles se reconheciam como cristãos e esse era o único
laço de identidade que os distinguia do resto da humanidade.
Por outro lado, a Idade Média que se ensina nas escolas está longe de abranger toda a
Europa naquele período de mil anos. Além disso, a Idade Média não pode ser confundida
com feudalismo pois este, na forma como foi conceituado, só existiu de fato entre os
séculos IX e X.
A propósito, os conceitos de feudalismo, sociedade feudal ou sistema feudal inexistiam na
Idade Média. No mundo medieval conhecia-se a palavra “feudo”, usada para nomear a
posse e usufruto de uma parcela do patrimônio fundiário do rei. Já feudalismo e outros
conceitos similares foram criados recentemente para servirem de ferramenta teórica para o
estudo da Europa medieval. E eles foram construídos tendo a França como modelo, ou
seja, eles não abrangem outras realidades políticas, econômicas e sociais existentes na
Europa da época.
Lembra ainda Marc Bloch:
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Queda de Constantinopla, afresco, igreja Moldovita, Romênia,
séc. XVI.
“Talvez seja mais importante ainda constatar que a Europa feudal não foi totalmente
feudalizada no mesmo grau nem segundo o mesmo ritmo e, especialmente, que em parte
alguma o foi completamente. Em nenhum país, a população rural caiu totalmente nas malhas
duma dependência pessoal e hereditária. Quase por toda parte – ainda que em número
extremamente variável, conforme as regiões – subsistiram terras alodiais, grandes ou
pequenas. A noção de Estado nunca desapareceu absolutamente (…). Na Normandia [norte da
França], na Inglaterra dinamarquesa, em Espanha, mantiveram-se grupos de guerreiros
camponeses.” (Bloch, p. 484-5)
2 – Delimitar a Idade Média a uma data de início e fim
É comum na sala de aula, o professor
traçar na lousa uma longa linha do
tempo escrevendo os anos 476 e
1453 como marcadores temporais da
Idade Média. Tais datas foram
definidas no século XIX por
necessidade do ensino escolar e
universitário em expansão, mas estão
longe de serem consenso entre os
historiadores.
A periodização é importante referência
nos estudos históricos, mas nenhum
pesquisador sério acredita que uma
mudança significativa possa acontecer numa única data, um único fato ou um único lugar.
A tomada de Constantinopla em 1453, marcando o fim do Império Romano, não foi
traumática para a toda população europeia como se poderia supor. Mas a queda de
Bizâncio espalhou, pela Europa, muitos sábios impregnados de cultura grega – elemento
importante para o humanismo renascentista.
Há quem prefira marcar o término da Idade Média no ano de 1492, com a descoberta da
América e expulsão dos muçulmanos de Granada. Já o medievalista Jacques Le Goff,
afirma que a Idade Média durou até o final do século XVIII. Vê-se, portanto, que não há,
nem poderia haver, uma data especifica que delimite a Idade Média.
Nem mesmo as divisões em Baixa e Alta Idade Média são atualmente empregadas. Se há
um período a ser destacado nesses mil anos, foram os anos 908-1040 que, segundo
Georges Duby, foi um momento de efervescência decisiva na vida econômica e social
(desenvolvimento acelerado dos arroteamentos, construção de castelos fortificados,
 vassalagem, da aldeia) e no domínio espiritual (movimento da paz de Deus, construção de
igrejas, mito de Jerusalém preparando a cruzada). O século XII acelerou todo esse
processo marcando um forte desenvolvimento econômico.
3 – Apresentar um único modelo de Idade Média
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Papa Leão III coroa Carlos Magno imperador no ano 800.
Iluminura, séc. XIII. (Wikimedia Commons)
Servos trabalham no campo próximo ao castelo.
Miniatura, séc. XV (Wikimedia Commons)
O ensino da Idade Média nas escolas limita-se, muitas vezes, às formas de governo e à
história de reinos e impérios, com ênfase para o Reino Franco e o Sacro Império Romano
Germânico. Esse foi o modelo herdado
dos manuais franceses e adotado pelo
ensino de História no Brasil e ainda
presente em muitos livros didáticos.
Ver um aluno atormentado em estudar
o Tratado de Verdun, o renascimento
carolíngio, dinastias medievais, a
Guerra dos Trinta Anos, a Guerra dos Cem Anos nos perguntamos: qual a pertinência do
ensino desta Idade Média em um país como Brasil que não viveu essa experiência
histórica?
Observe-se que esse recorte acaba por eliminar ou reduzir drasticamente o estudo da
História Ibérica e, mais especialmente, da formação de Portugal – tema que, para a
História do Brasil, é de maior importância. Conhecer a história da monarquia portuguesa
faz muito mais sentido para nós e daria outra dimensão ao ensino da Idade Média
revelando aos alunos aspectos de nossa herança cultural que continuam a interagir com o
presente.
Ainda nesta abordagem reducionista, está a caracterização da economia medieval como
fechada, em torno do feudo e exclusivamente agrária. Marc Bloch critica essa visão
fazendo referência ao mercado e às cidades que eram procuradas pelos camponeses para
vender seus produtos. As trocas eram irregulares mas não inexistentes, lembra o
historiador.
4 – Padronizar as estruturas sociais medievais
Outra abordagem homogeneizada do
período medieval aparece nas relações
sociais e políticas que opõe um “rei fraco” a
“senhores feudais fortes” – situação que só
se altera a partir do momento que o “rei” se
alia à burguesia. Na mesma linha, são
definidas as relações entre senhores
opressores que exploram camponeses
(confundidos com servos) passivos e
submissos.
Esta abordagem simplista que apresenta
uma sociedade tripartida em
senhores/nobreza, clero e servos,
rigidamente hierarquizada, fica ainda mais
reforçada pelo famigerado desenho de uma
pirâmide social dividida em três partes –
modelo que reproduz, sem refletir, a célebre
descrição da “casa de Deus” feita por Adalberón de Laon no século X.
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Juramento de fidelidade de Henrique III, rei da Inglaterra,
a São Luis, rei da França. Miniatura, séc. XIV.
Como lembra Marc Bloch, a sociedade medieval foi mais uma sociedade desigual do que
hierarquizada, mais de chefes do que de nobres.
Se a servidão foi o tipo de relação social predominante no feudalismo, ela não foi a única e
está longe de abranger a diversidade de estruturas sociais existente no período.
Comerciantes e artesãos nunca deixaram de existir. Nem a escravidão foi totalmente
extinta da Europa medieval. Escravos vindos da África e das terras banhadas pelo mar
Negro e Báltico eram vendidos nas cidades italianas para senhores de diversos pontos da
Europa.
Foi a disponibilidade de escravos muçulmanos que impediu que a servidão se
consolidasse na Península Ibérica, diferente do que ocorreu na França. Em Portugal,como afirma Perry Anderson, a servidão mal consolidada começou a desaparecer no
século XIII. A coexistência étnico-religiosa entre muçulmanos, judeus e cristãos em
Portugal e Espanha dá à sociedade medieval ibérica uma particularidade desconhecida no
resto da Europa.
5 – Destacar a opressão senhorial em detrimento da
noção de fidelidade feudal
A Idade Média ensinada nas escolas é
caracterizada, entre outras coisas, pela
opressão senhorial sobre o campesinato
oprimido pelas obrigações, pela fome,
pela guerra e pelas doenças. Trata-se de
uma caracterização que não dá conta da
dinâmica da vida social no período
medieval e que não se sustenta frente a
uma simples pergunta: como as pessoas
puderam viver assim durante mil anos?
Ninguém reclamou?
A sociedade medieval assentava-se nos
vínculos de fidelidade. Esta noção
implicava um contrato no qual existia a
devoção e a proteção. Ao camponês
cabia a prestação de serviço e a
obediência ao senhor, e este devia
proteger o servo. Esse vínculo se reproduzia entre suseranos e vassalos, entre marido e
esposa, entre a Igreja e os fiéis. Laços de dependência e fidelidade eram a base das
representações políticas, econômicas, sociais, culturais e do cotidiano.
É importante ressaltar para os alunos a inexistência de salário na Idade Média, isto é, do
pagamento periódico de uma quantia de dinheiro por um serviço contratado. Este era
remunerado por um benefício que acabava estabelecendo fortes vínculos de fidelidade e
consolidando relações humanas ou mesmo familiares permanentes. A quebra desses
laços provocava guerras que, muitas vezes, estendiam-se por gerações.
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Universidades surgidas na Idade Média são, ainda hoje,
importantes centros de pesquisa . Interior da Biblioteca
Bodleian, Universidade de Oxford, Inglaterra.
Além disso, as relações pessoais fundamentadas na dependência e subordinação,
impediam a afirmação de uma personalidade individual. O homem e a mulher medievais
que viviam no campo desconheciam o que nós entendemos por individualidade e
privacidade.
6 – Considerar a Idade Média como uma época de atraso
científico e intelectual
Longe do que se imagina, a Idade
Média criou e difundiu conhecimentos
científicos e um de seus maiores
legados intelectuais foram as
universidades. As primeiras
universidades apareceram em
Bolonha (1119), em Paris (1150), em
Oxford (1168) e em Cambridge (1209)
como associações de mestres e
alunos. Foram valorizadas por reis e
papas e reagiram às tentativas de
controle dos poderes locais. Aliás,
uma herança das universidades
medievais é o costume do trote aos
alunos recém-ingressos, muitas vezes aplicado de forma perversa.
A burguesia urbana, além de favorecer a expansão das atividades econômicas, estimulou
a expansão da escrita, a disseminação de novas ideias contribuindo para importantes
transformações culturais.
“Mas a Idade Média foi também, acho até principalmente, um grande período criativo.
Podemos ver isso nos domínios da arte, das instituições, sobretudo nas cidades (por exemplo,
nas universidades), ou ainda no campo do pensamento – a filosofia que chamamos de
“escolástica” atingiu altos patamares do saber. Também vimos até que ponto a Idade Média
criou “lugares de encontro” comerciais e festivos (as feiras, as festas), que continuam a nos
inspirar. (Le Goff, 2007, p. 112)
7 – Contrapor a ruralização da economia ao renascimento
urbano e comercial
Uma das teses clássicas sobre a Idade Média afirma que após um processo de ruralização
da economia em que as cidades e o comércio desapareceram, a Europa conheceu um
vigoroso renascimento comercial e urbano. Criticando essa visão, Marc Bloch lembra que
o comércio nunca deixou de existir durante toda Idade Média. Jacques Le Goff completa
afirmando que as cidades criadas na Antiguidade sobreviveram na Idade Média e que a
partir do século XI ocorreu um alargamento das atividades econômicas dos núcleos
urbanos de origem antiga.
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O comércio existiu durante todo período medieval e teve um
forte crescimento a partir do século XI. Cidade medieval e seu
comércio, miniatura, séc. XVI.
O lendário unicórnio povoou a imaginação do homem
medieval. Dizia-se que era um animal selvagem que só
poderia ser capturado por uma virgem. A dama e o unicórnio,
tapeçaria, séc. XV. (Museu de Cluny, Paris)
Assim, no lugar de um “renascimento comercial e urbano”, houve, na verdade, um
crescimento das atividades comerciais
como também a expansão da
produção agrária, que favoreceu o
desenvolvimento do comércio. Tais
transformações contribuíram para um
forte crescimento demográfico entre
os séculos XII e XIII.
O mundo urbano estava intimamente
vinculado ao mundo rural medieval
exercendo influências sobre a nobreza
e os camponeses acelerando
mudanças no campo. As atividades
comerciais e artesanais das cidades
estavam ligadas às atividades
desenvolvidas no campo. A cidade
medieval era consumidora de víveres e matérias primas produzidos nos feudos. Os
senhores davam proteção às feiras e garantiam a segurança nas estradas.
8 – Desprezar a mentalidade medieval
Já não se usa mais o termo “idade das
trevas”, porém, ainda subsiste a ideia
de uma Europa medieval atrasada
mergulhada em crenças ditas
absurdas e fantasias repletas de
magos, feiticeiras, fadas, dragões,
ogros, cavaleiros errantes e duendes.
É pertinente lembrar a atração que
essas representações exercem sobre
os alunos e o sucesso que fazem no
cinema, em jogos eletrônicos e livros
de ficção. Talvez, por isso mesmo,
deve-se considerar a pertinência de
levar esse conteúdo à sala de aula.
As figuras do imaginário pagão sobreviveram à consolidação da fé cristã e continuaram
vivas nas camadas populares mesmo sofrendo a perseguição e intolerância da Igreja
medieval. A Igreja denominava-os de “seres maravilhosos” pertencentes a uma realidade
sobrenatural (mas não sagrada nem religiosa) que poderia se manifestar como os anjos e
os demônios. Criou-se assim uma simbiose onde se misturavam elementos cristãos e
pagãos, como foi o caso de São Jorge, o santo cavaleiro que matou o dragão.
O imaginário pagão e o maravilhoso cristão produziram uma rica tradição oral em lendas,
contos e fábulas que hoje fazem parte de nossa herança cultural. Como lembra Macedo,
“herdamos da Idade Média nosso gosto por ouvir boas histórias, boas narrativas, boas
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canções”. Trazer esse patrimônio cultural para a sala de aula é uma boa maneira de
aproximar os alunos da Idade Média e do imaginário medieval. Além disso, a rica literatura
medieval aborda situações, sentimentos e padrões de conduta que são importantes aos
adolescentes como amor, amizade, honra e fidelidade.
São numerosas as opções de textos da literatura medieval, entre elas, o ciclo do rei Arthur
e dos cavaleiros da Távola Redonda, a busca do Santo Graal, El Cid campeador, Carlos
Magno e os doze pares de França, contos de aventura e amor escritos por Maria de
França no século XII, e uma infinidade de fábulas. (Veja sugestões ao final desse artigo.)
Cabe lembrar ainda que os europeus que participaram da expansão marítima e comercial,
da conquista e da colonização da América, apesar de serem contemporâneos ao
humanismo renascentista, estavam impregnados de uma mentalidade de base medieval.
As façanhas dos heróis lendários e as ameaças de seres fantásticos ainda povoavam suas
cabeças e foram trazidas para o Novo Mundo aqui se espalhando e criando novas formas
de pensamento. Uma Idade Média mágica e sobrenatural subsiste no nosso imaginário.
Fonte
ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. Porto: Afrontamento,
1989.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Ed. 70, 1982.
FERRO, Marc. A manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação de
massa. São Paulo: Ibrasa, 1983.
HEERS, Jacques. A Idade Média, uma impostura. Asa, 1994.
LE GOFF, Jacques. A Idade Média explicada aos meus filhos. Riode Janeiro: Agir,
2007.
______. A velha Europa e a nossa. Lisboa: Ed. Gradiva, 1995.
______. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
MACEDO, José Rivair. Repensando a Idade Média no ensino de História. In:
KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula. Conceitos, práticas e propostas.
São Paulo: Contexto, 20013.
PERNOUD, Regine. Idade Média: o que não nos ensinaram. Rio de Janeiro: Agir,
1994.
Literatura medieval
ARRABAL, José. El Cid Campeador. São Paulo: Paulinas, 1988.
FURTADO, Antonio Luis. Lais de Maria de França. São Paulo: Martins Fontes, 2014
HUISMAN, Marcele e HUISMAN, Georges. Contos e lendas da Idade Média. Lisboa:
Verbo, 1986.
MASSARDIER, Gilles. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
Pequenas fábulas medievais. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
TROYES, Chrétien de. Romances da Távola Redonda. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
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	A Idade Média contada nas salas de aula
	1 – Generalizar conceitos para toda Europa medieval
	2 – Delimitar a Idade Média a uma data de início e fim
	3 – Apresentar um único modelo de Idade Média
	4 – Padronizar as estruturas sociais medievais
	5 – Destacar a opressão senhorial em detrimento da noção de fidelidade feudal
	6 – Considerar a Idade Média como uma época de atraso científico e intelectual
	7 – Contrapor a ruralização da economia ao renascimento urbano e comercial
	8 – Desprezar a mentalidade medieval
	Fonte
	Literatura medieval

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