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3ª Edição Cândida Margarida Oliveira Matos Enedina Maria Soares SoutoLídia Marcelle Arnaud Aires Patrícia Santos Silva 3ª Edição F952 Fundamentos antropológicos e sociológicos / Cândida Margarida Oliveira Matos [et al.] – Aracaju : UNIT, 2014. 254 il.: 23 cm Série Bibliográfica (Grupo Tiradentes) Inclui bibliografia. 1. Antropologia. 2. Sociologia. 3. Conhecimentos antropológicos e sociológicos. 4. Compreensão social e cultural. I. Matos, Cândida Margarida Oliveira. II. Souto, Enedina Maria Soares .III. Aires, Lídia Marcelle Arnaud . IV. Silva, Patrícia Santos V. Universidade Tiradentes- Educação a Distância. VI. Título. CDU: 572.028 Ficha catalográfica: Marcos Orestes de S. Sampaio CRB/5 1296 Impressão:Impressão: Gráica Santa Marta Rua Hortêncio Ribeiro de Luna, 3333 Distrito Industrial - João Pessoa - PB Telefone: (83) 2106-2200 Site: www.graicasantamarta.com.br Banco de Imagens:Banco de Imagens: Shutterstock Redação:Redação: Núcleo de Educação a Distância - NeadAv. Murilo Dantas, 300 - Farolândia Prédio da Reitoria - Sala 40 CEP: 49.032-490 - Aracaju/SE Tel.: (79) 3218-2186 E-mail: infonead@unit.br online@set.edu.br Jouberto Uchôa de Mendonça Presidente do Conselho de Administração doPresidente do Conselho de Administração do Grupo TiradentesGrupo Tiradentes Jouberto Uchôa de Mendonça Junior Superintendente GeralSuperintendente Geral André Tavares Superintendente Administrativo FinanceiroSuperintendente Administrativo Financeiro Eduardo Peixoto Rocha Superintendente AcadêmicoSuperintendente Acadêmico Ihanmarck Damasceno dos SantosSuperintendente de Relações InstitucionaisSuperintendente de Relações Institucionais e de Mercadoe de Mercado Jouberto Uchôa de Mendonça Reitor – Unit Reitor – Unit Dario Arcanjo de Santana Diretor Geral- FitsDiretor Geral- Fits Temisson José dos Santos Diretor Geral – FacipeDiretor Geral – Facipe Jucimara Roesler Diretora de Educação a DistânciaDiretora de Educação a Distância Jane Luci Ornelas Freire Gerente de Educação a DistânciaGerente de Educação a Distância Flávia dos Santos Menezes Gerente de OperaçõesGerente de Operações Lucas Cerqueira do Vale Gerente de Tecnologias EducacionaisGerente de Tecnologias Educacionais Maynara Maia Muller Coordenadora Pedagógica de ProjetosCoordenadora Pedagógica de Projetos Corporativos OnlineCorporativos Online Equipe de Produção deEquipe de Produção de Conteúdos Midiáticos:Conteúdos Midiáticos: Assessor Assessor Rodrigo Sangiovanni Lima Revisor ortográficoRevisor ortográfico Ligier de Goes Costa DiagramadoresDiagramadores Andira Maltas dos Santos Claudivan da Silva Santana Edilberto Marcelino da Gama Neto Edivan Santos Guimarães IlustradoresIlustradores Geová da Silva Borges Junior Matheus Oliveira dos Santos Shirley Jacy Santos Gomes WebdesignersWebdesigners Fábio de Rezende Cardoso José Airton de Oliveira Rocha Júnior Marina Santana Menezes Pedro Antonio Dantas P. Nou Equipe de Elaboração deEquipe de Elaboração de Conteúdos Midiáticos:Conteúdos Midiáticos: SupervisorSupervisor Alexandre Meneses Chagas Assessoras Pedagógicas Assessoras Pedagógicas Ana Lúcia Golob Machado Lígia de Goes Costa Projeto GráficoProjeto Gráfico Andira Maltas dos Santos Edivan Santos Guimarães Palavras dos AutoresPalavras dos Autores Começamos estas linhas dando-lhe as boas vindas e parabenizando-o pelo ingresso em uma nova jornada, a jornada do conhecimento. Se alguns obs- táculos tiveram que ser superados para chegar aqui, outros certamente surgirão até que se conclua esta fase de aprendizado. Mas como diria Guimarães Rosa (2006, p.318) “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Assim sendo, assegure a sua persistência e vamos desbravar os horizontes da Antropologia e da Sociologia, que estão a ofertar novas lentes para enxergar o mundo! Nas páginas que seguem, você encontrará subsídios para pensar criticamente as transformações passadas e presentes experimentadas pela sociedade e as diferenças com as quais temos que lidar cotidianamente. Ao lado da Ciência Política, a Antropologia e a Sociologia compõem as chamadas Ciências Sociais. Neste livro, dedicamos a primeira parte à antropologia, mostrando como ela surge, como se constrói como ciência, criando as ferramen- tas necessárias para abordar a diversidade cultural. Deste modo, veremos como o encontro com a diferença foi o momento crucial para a Antropologia se colocar no mundo e configurar noções necessárias para a compreensão de tal diversidade. À Sociologia dedicamos à segunda parte do livro, mostrando igualmente como ela surge, os problemas que dão vida a esta ciência e como ela se projeta com suas teorias e métodos a fim de oferecer explicações para as mudanças que impactaram a vida em sociedade e procurando dar conta das relações que elas instauram. Deste modo, a aventura sociológica começa com os autores clássicos como Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, passando por cenários que nos obrigam a pensar a relação indivíduo/sociedade tornando-se imprescindível para compreender a realidade que nos toma e da qual somos partícipes. Assim como a Antropologia, a Sociologia o auxiliará na compreensão de questões que se apresentam tanto na sua vida profissional quanto na vida pes- soal. Se E.E. Evans-Pritchard (2005, p. 243) estava certo ao afirmar que “Na ci- ência, como na vida, só se acha o que se procura.”, boas buscas! E conte conosco neste empreendimento! Parte 1 Antropologia 1 Antropologia e o estudo da cultura __________________ 7 1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranhamento do “outro” . . . . . . . 8 1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 1.3 A pesquisa antropológica (etnograia): colocar-se no lugar do “outro” . . . . .39 1.4 Contribuições da Antropologia no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 2 Culturas contempôraneas ________________________63 2.1 Nós e os outros: raça, etnia e multiculturalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e religião . . . . . . . . . . . . . . . 76 2.3. Diversidade familiar e parentesco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 2.4 Cultura do consumo e meio ambiente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 SumárioSumário Parte 2 Sociologia 3 Indivíduo, trabalho e sociedade ________________ 115 3.1 Sociologia: surgimento e atualidade .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .116 3.2 Indivíduo e Sociedade . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. .132 3.3 Classe e desigualdade .. . . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . .147 3.4 Desaios do mundo globalizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161 4 Estado, sociedade e poder _______________________ 177 4.1 As micro e macrorelações de poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .178 4.2 Estado e sociedade . . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . .192 4.3 Cidadania e institucionalização dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . .208 4.4 Participação política e m ovimentos sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224 REFERÊNCIAS ________________________________________ 243 ANTROPOLOGIA Parte 01 Neste tema, vamos estudar o que é a disciplina de Metodologia Científica e por que ela é importante para a sua formação acadêmica e profissional. Como estamos no início dos conte- údos da disciplina, estudaremos também técnicase procedimentos para organização dos estudos e um melhor aproveitamento no estudo de textos. É importante destacar que o seu suces- so nos estudos e, consequentemente, profissional, depende apenas de você, da sua capacidade de ir em frente e de buscar “aprender a aprender”. Vocêperceberá que a Metodologia Científica vai se tor- nar uma auxiliar fundamental em seus estudos. ObjetivObjetivos da os da AprendizagemAprendizagem Ao terminar a leitura e as atividades do Tema 1, você deverá ser capaz de: D entender a importância da disci- plina para a formação acadêmica e profissional; D adotar procedimentos e técnicas na organização dos estudos; D desenvolver o hábito pela leitura, realizando análises de texto; D praticar as técnicas de sublinhar, esquematizar, resumir e fichar no estudo de texto. METODOLOGIA CIENTÍFICA E TÉCNICAS DE ESTUDO ANTROPOLOGIA E O ESTUDO DA CULTURA Tema01 A partir de agora, estaremos abrindo as portas da antropologia para que você seja apre- sentado ao mundo que ela permite (re) desco- brir através de algumas noções e conceitos que se configuraram ao longo de sua formação en- quanto disciplina e que se tornaram chaves para o entendimento da realidade humana sob a ótica antropológica. A gênese da Antropologia ocorre justamente no momento em que as diferenças entre as sociedades se tornam evidentes ou, na verdade, no momento em que se percebe que as diferenças existem. Assim sendo, nas páginas a seguir, você perceberá como a antropologia se apropria da “diferença”, tornando-a objeto de estudo e como este encontro faz emergir inter- rogações que acabam nutrindo a disciplina e exigindo que ela se coloque no mundo portando ferramentas próprias para dar conta dessas in- terrogações. Aqui, você terá acesso às primeiras no- ções que permitem o seu ingresso, de fato, no mundo antropológico. Um convite, ao mesmo tempo, a deixar de lado – ainda que momenta- neamente – seus preconceitos e juízos de valor, permitindo-se a olhar para seu entorno com as lentes que a disciplina está lhe ofertando. Fazen- do isso, você já estará experimentando uma das noções elementares para a antropologia e que explicaremos logo abaixo: relativização. A partir daí, estará pronto para entender outras noções e Fundamentos Antropológicos e Sociológicos8 conceitos tão importantes quanto. Seguindo por esta visita exploratória, apre- sentaremos o conceito antropológico de cultura, diferenciando-o do que signi- fica para o senso comum e como se tornou central para a análise da realidade humana. Estabelecidos conceitos e noções, a antropologia precisava de um mé- todo que lhe permitisse estudar a cultura do “outro”. Nesta seção o surgimento e os desdobramentos do trabalho de campo antropológico através de seus princi- pais colaboradores. E para finalizar essa viagem antropológica, apresentaremos a antropologia tal como se desenvolveu no Brasil, destacando seus principais expoentes e contribuições. Contribuições essas que se tornaram matéria-prima para as gerações seguintes, seja para levá-las adiante ou adequa-las a novas re- alidades e incorporar novas ideias. Vamos, pois, para a plataforma de embarque! O ingresso é a vontade de aprender e a bagagem você receberá ao final do livro! 1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranha-1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranha- mento do “outro”mento do “outro” Você já ouviu falar de – ou ouviu a própria canção – “Sampa”, com- posta por Caetano Veloso e que homenageia São Paulo, a partir da experiência do cantor e compositor baiano ao “conhecer” a grande metrópole? Permita-me reproduzir aqui uns versos que podem nos servir de pontapé inicial para um pensamento antropológico: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto/Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/ É que Narciso acha feio o que não é espelho [...]”. Trata-se da reação de um sujeito a um novo e diferente universo com o qual tem contato pela primeira vez ao sair de sua terra natal. O encontro com a diferença pode gerar diferentes reações e exploraremos tais respostas mais adiante ao tratar de etnocentrismo e relativismoetnocentrismo e relativismo. Por enquanto, gostaríamos de despertá-lo para a questão das diferenças. No caso da canção do Caetano, trata-se de um encontro com a dife- rença, marcado por um deslocamento geográfico que lhe permite “descobrir” outras arquiteturas, outros modos de vestir, outras paisagens, outros sotaques, enfim, um mundo totalmente diferente do seu. De tal encontro, resulta o estra- nhamento e, em seguida, sua impressão, marcada pelas referências de srcem, caracterizando como “mau gosto” tudo o que vê naquela cidade, reconhecendo, A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 9 ao mesmo tempo, que é uma visão configurada pelas experiências do lugar de onde veio “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Porém, o estranhamen- to e o juízo de valor que empregamos para classificar “o outro”, “o diferente”, “o exótico” – muitas vezes sem nos darmos conta – não aflora apenas através de um deslocamento geográfico, seja para São Paulo (conhecida como o lugar da diversidade) ou para qualquer parte do planeta. A diferença está o tempo inteiro a nossa volta! Sair da sua cidade, estado ou país torna mais perceptível as diferenças culturais –culturais – abordaremos o conceito de cultura mais adiante––, entretanto, já convido o(a) leitor(a) a refletir sobre o que é cultura, não qurendo dizer com isto que não lidamos com diferenças significativas no nosso cotidiano. Ao pen- sar nos grupos sociais dos quais você faz parte, certamente perceberá quantas diferenças permeiam seu universo, sem precisar sair do lugar! As famílias não têm a mesma configuração, os gostos gastronômicos das pessoas se diferenciam conforme os grupos a que pertencem, a música ouvida pelos seus colegas de faculdade pode ser diferente daquela apreciada pelos amigos do circuito extra acadêmico, para citar alguns exemplos. Não é preciso possuir qualquer habilidade de previsão ou adivinhação para saber que a percepção da diferença nem sempre se dá tranquilamente e interjeições pouco elegantes devem ter escapado ao ver dois homens como pais de uma mesma criança; ao saber que na casa do João eles apreciam uma boa buchada buchada de de bodebode12 ou que seu colega de faculdade curte um bom arrocha e deprecia o rock’n’roll! Considerando que já tenha despertado os seus sentidos para o que é diferente e que aguçamos sua curiosidade para pensar sobre toda a diversidade a sua volta, gostaríamos de lhe apresentar clássicos encontros com a diferença, a partir dos quais foi concebida e gestada a antropologia. Essa disciplina passa a tematizar a capacidade infinita que o homem possui para elaborar modos de vida e formas de organização social extremamente diversificadas. Certamente as aulas de história e geografia da vida escolar ainda eco- am na sua memória, a ponto de lembrar a divisão do Velho Mundo e Novo Mun- do, Imperialismo, Colonialismo, Período das grandes navegações e descobertas delas advindas. Não é necessário muita precisão, mas um pouco de noção de 12 Iguaria nordestina elaborada com as vísceras do caprino, envolvidas em bolsas forma- das pelo estômago do mesmo. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos10 tais eventos para guiar-nos nesta viagem a tempos e territórios longínquos e, possivelmente, alguns retornos bruscos ao aqui, agora. Ao delimitar o período de pré-história da antropologia, a partir do século XIV, o antropólogo francês François Laplantine (2005), afirma que a gênese da reflexão antropológica coincide com a descoberta do Novo Mundo, sendo os primeiros viajantes os responsáveispor ela. Desta experiência, surge a questão: aqueles que acabaram de ser descobertos pertencem à humanidade? As primeiras respostas foram elaboradas a partir do contexto religioso, cujos representantes (os missionários) especulavam se os selvagens tinham alma e se o pecado srcinal se estendia a eles também. Passa-se, então, a construir a figura dos chamados “selvagens” ora como bons, por estarem livres das máculas trazidas pelo progresso, ora como maus e infelizes por não fazerem parte da civilidade do mundo ocidental, do reino da culturacultura. Acrescentemos que, para alguns, estes nativos não teriam nenhum futuro enquanto para outros viajantes e missionários, os selvagens poderiam se desenvolver e ascender à civilização, desde que houvesse interferência da ação missionária (a partir do século XVI) ou pela intervenção da ação administrativa (leia-se colonização). Para esta classificação entre os ocidentais (civilizados) e os selvagens, que pertencem ao reino da natureza, além do critério religioso, foram levados em consideração os hábitos alimentares, a aparência física e a inteligência, me- dida através da linguagem. Ou seja, se não compreendiam a língua falada pelos nativos, como afirmar se são inteligentes ou não? Como exemplo de encontro entre ocidente e Novo Mundo podemos pensar como exemplo mais próximo a chegada dos europeus ao Brasil. E aqui, refresco a memória do(a) nobre leitor(a) com um dos textos que ilustram o impacto do encontro com a diferença, a famo- sa carta de Pero Vaz de Caminha: E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acu- diram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Ni-colau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali, não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. [...] Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bi- cos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles tinham A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 11 os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pa- reciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bi- cos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. [...] Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém. (Carta de Pero Vaz de Caminha) Este trecho da famosa carta de Caminha permite que tenhamos uma dimensão do que foram os primeiros olhares sobre aqueles que estavam dis-tantes do modelo ocidental em vários sentidos: o instrumental bélico, ou seja, armas e todo o aparato necessário para guerras; as vestes ou ausência delas; a configuração corporal (cabelo, estatura, cor da pele etc.); os adereços que reve- lam estéticas diferentes; a fala incompreensível etc. Lembre-se que até então não se tinha outro modo de vida que não fosse o do Velho Mundo. Logo, o que era familiar dizia respeito a seus próprios modos de vida, daí o grande choquechoque culturalcultural que este encontro causa. A descoberta do outro, da diferença, permite que exploremos a partir daqui algumas noções elementares em torno das quais se constrói o pensamen- to antropológico: alteridade, etnocentrismo, relativismo. Para tanto, continue- mos tomando como referência a “descoberta” de um novo mundo. Estar diante de seres com costumes tão diversos, como foi colocado an- teriormente, inspira diversas elaborações sobre quem são eles – seres humanos ou animais? – mas também sobre aqueles que estão olhando para os nativos. Tan- to em um caso como no outro, a semente foi plantada naquele momento, mas até hoje dá frutos (nem sempre tão bons). O que deve ficar claro, como sugere Laplantine (2005), é que o selvagem é sempre colocado em oposição ao civilizado. Além disso, gostaria de destacar que estamos tratando de um encontro de sub-encontro de sub- jetivi jetividades.dades. Logo, todo discurso construído sobre os seres observados é marca- do pelo contexto da época em que foi escrito ou dito, vem conformado pelo lugar que o autor ocupa na sociedade, pela sua biografia, pela formação que teve etc. Prossigamos, então... Sendo bons ou depreciativos os discursos cons- truídos sobre a diferença, o importante é que ela passa a ser tematizada tendo como pano de fundo interesses nem sempre louváveis (lembram do que aconte- ceu com a população indígena no Brasil quando aqui aportaram os europeus?). O encontro com um mundo além-mar e o interesse que ele desperta faz emergir o que podemos chamar alteridadealteridade: olhando para o outro podemos enxergar a Fundamentos Antropológicos e Sociológicos12 nós mesmos. Como afirma DaMatta (2010, p.26): “Apesar das diferenças, e por causa delas, nós sempre nos reconhecemos nos outros”. É como se o outro fosse um espelho para que enxerguemos quem so- mos nós, é pelo contraste que nos reconhecemos. Ou seja, foi preciso conhecer outros modos de vida para que reconhecêssemos os nossos próprios costumes. Devemos saber, então, que nesse momento de pré-antropologia, conforme su- gere Laplantine, o interesse não é pelo outro em si, “mal se olha para ele, olha-se a si mesmo nele” (2005, p.51). O que importa é que neste momento é questio- nada a existência de um único tipo de sociedade. A diversidade é de um modo ou de outro tocada e explorada. A partir daí, começam as buscas por respostas que possam explicar as diferenças. Antes de passar a estas buscas, gostaríamos de familiarizá-lo com outras noções que marcam o pensamento propriamente antropológico. Sugiro que retomemos os exemplos utilizados até aqui para que pos- samos pôr em palavras uma experiência que de algum modo cada um de nós já teve em maior ou menor grau. Tomando como referência a musica SAMPA; ao chegar em São Paulo e encontrar um lugar diferente do seu em todos os aspec- tos, inspirando maneiras de viver igualmente diversas e chamar tudo aquilo de “mau gosto” podemos falar de etnocentrismoetnocentrismo. Assim como estamos tratando de etnocentrismo quando achamos que a família de alguém não deve ser con- siderada família por não ter um homem e uma mulher desempenhando res- pectivamente os papéis de pai e mãe de um(a) ou mais filhos(as). Também há etnocentrismo ao julgar os hábitos alimentares dos outros considerando infe- riores ou nojentos porque não estão de acordo com o que estamos acostumados a considerar comestível e, sobretudo, apreciável. Sempre que hierarquizamoshierarquizamos as diferençasas diferenças, colocando nossos va- lores e visão de mundo como melhores que os dos outros, estamos sendo et- nocêntricos. Utilizemos as palavras do Everardo Rocha (1988) para reiterar e ampliar a nossa colocação: Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio gru- po é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensa- dos e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nos- sas deinições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a diiculdade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc. Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 13 fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racio- nais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo, estes doisplanos do espírito humano – sentimento e pensamen- to – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente arraigado na história das sociedades como também facilmente encontrável no dia-a-dia das nossas vidas. (ROCHA, 1988, p. 05) A assertiva acima aponta para as sensações experimentadas diante do que nos é diferente e, sobretudo, deixa claro que quando falamos em atitudesetnocêntricas não estamos tratando de questões individuais pura e simples- mente, mas de valores e pensamentos que foram construídos socialmente. São resultado da nossa vivência, enquanto indivíduos pertencentes a determinados grupos. Uma perspectiva etnocêntrica dá srcem a expressões e interjeições que ilustram a nossa dificuldade em lidar com a diferença e a facilidade em atribuir a tudo que vem da nossa sociedade, do nosso grupo, como o melhor, o mais belo, o mais desenvolvido em oposição ao que vem do grupo ou sociedade do outro, que por oposição é ruim, estranho, inferior, primitivo. Reflita e perceba se não é mais fácil e mais confortável comer uma carne de sol com macaxeira do que um salmão cru, sendo você nordestino. Você pode até passar a gostar da segunda opção, mas o primeiro contato quase sempre não é tão gostoso ou fácil. Podemos, pois, denominar de etnocêntrico o olhar ocidental sobre as Américas, por exemplo. Quando os primeiros viajantes e missionários questio- naram se eram seres humanos aqueles nativos de modos tão selvagens, quan- do impuseram sua religião ou quando os subjugaram e espoliaram o fizeram acreditando que eram superiores a aqueles desprovidos de qualquer traço de “civilidade”. Em todas estas atitudes, temos também uma visão etnocêntrica, que motivou ações cujas consequências foram extremamente graves. Colocar o nosso sistema cultural em relação com o sistema cultural do outro, permite-nos experienciar a alteridade, mas nos faz correr o risco de ser etnocêntrico. Qual seria, então, o “antídoto” para o etnocentrismo? Embo- ra não seja nenhum pecado ou delito imperdoável, olhar para a diferença sem hierarquizá-la, sem julgar o outro, é sempre um exercício mais interessante. Quando praticamos tal exercício e reconhecemos que o outro não é melhor nem pior, que seus costumes e valores são apenas escolhas dentro de um universo de possibilidades, que aquilo que nos parece estranho ou inconcebível faz todo o sentido no contexto ao qual pertence, estamos relativizando.relativizando. Como aduz Everardo Rocha (1988, p.10): Fundamentos Antropológicos e Sociológicos14 Quando vemos que as verdades da vida são menos uma ques- tão de essência das coisas e mais uma questão de posição es- tamos relativizando. Quando o signiicado de um ato é visto não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acon- tece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “ou- tro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos re- lativizando. Enim, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um im ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a dife- rença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença. No entanto, nem sempre conseguimos nos desvencilhar dos preconcei- tos, dos nossos valores e do ímpeto de julgar ou classificar o comportamento dos outros grupos. Lembre-se da canção de Caetano Veloso citada no início do tex- to! Quando ele se depara com outra realidade, a primeira reação é de criticá-la. Logo após, podemos entrever uma tentativa de relativização no verso seguinte: “É que Narciso acha feio o que não é espelho...”. Ou seja, o que foge dos nossos padrões, das nossas referências, é difícil de ser aceito. Relativizar é um apren- dizado, não é apertar um botão e automaticamente muda-se de opinião e de ponto de vista. Mas o primeiro passo é saber que a diversidade humana deve ser vista com bons olhos e se desvencilhar das pré-noções que nos embaça a visão. Ou como sugere Marshall Sahlins (2007, p. 22): “O relativismo é a suspensão provisória dos nossos próprios juízos, a fim de situar as práticas em questão na ordem histórica e cultural que as tornou possíveis”. Mesmo a antropologia, que se debruça sobre a diversidade de costu- mes, que se esforça para afastar o etnocentrismo, sugerindo a relativização, já experimentou épocas difíceis e etnocêntricas em alguma medida. Isto pode ser percebido quando observamos a emergência e o desenvolvimento da discipli- na tomando como referência as chamadas “Escolas AntropológicasEscolas Antropológicas”13, cujas ideias principais serão expostas nas linhas subsequentes, associadas aos autores cujos textos se tornaram clássicos da antropologia. Não que suas ideias estejam em voga até hoje, mas elas pavimentaram o caminho para aqueles que se inte- 13 Utilizamos tal expressão para nos referir a um período de congruência de ideias que es- tiveram vigentes, respondendo satisfatoriamente às questões postas por aqueles autores que se dedicavam à antropologia. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 15 ressaram em construir uma ciência antropológica tal como ela se apresenta hoje, principalmente, se considerarmos que, essencialmente, “ideias de vanguarda reeditam oportunamente ideias nem sempre tão novas” (SAEZ, 2013, p.8). Como assinalamos anteriormente, a antropologia começa a se desen- volver quando se interessa por questões que brotam do encontro entre mun- dos diferentes. Como assinala Jesús Azcona (1992): “À perplexidade diante da diversidade e do assombro de encontrar-se face a culturas e mentalidades diferentes corresponde a necessidade de buscar a razão dessas diferenças e o questionamento da própria sociedade ocidental” (p. 40). Nesse sentido, apesar do olhar etnocêntrico e tendencioso dos viajantes, missionários e comerciantes que se dedicaram a conhecer – ainda que por motivos pouco nobres – os povos não europeus, os relatos produzidos por eles foram de grande importância para a constituição da antropologia. Tais relatos serviram de fonte de dados e inspi- ração para pensar a diferença e para tematizá-la sob um ponto de vista que se pretendia antropológico. Foram dados colhidos por terceiros, que alimentaram umas das primei- ras elaborações antropológicas sobre o outro, o chamado evolucionismo social ou cultural, que teve como principais expoentes Lewis Henry Morgan (1818-1881), nos Estados Unidos; Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer (1854-1941), na Inglaterra, considerados os “pais fundadores” da disciplina. Di- ferente de outras elaborações acerca dos povos além-mar que questionavam se aqueles seres eram também humanos, os evolucionistas defendiam a ideia de que a humanidade era uma só. Logo, aqueles seres, ainda que tão diferentes, eram também seres humanos. No entanto, havia algo que separava tais povos da sociedade ocidental: o estágio de desenvolvimento ao qual pertenciam. Sen- do assim, podemos nos perguntar: onde está contido o etnocentrismo nesta propositura? Observemos os detalhes das ideias evolucionistas... Para os adeptos da teoria acima, as sociedades humanas estariam dis- postas, segundo uma escala unilinear evolutiva, obedecendo a determinados es- tágios de desenvolvimento e “toda a humanidade deveria passar pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado” (CASTRO, 2005, p.14). O desenvolvimento unilinear ascendente experimentado por todas as sociedades humanas era possí- vel, segundo a perspectiva evolucionista, devido à uniformidade do pensamento humano, isto é, toda a humanidade compartilhava de umaunidade psíquica. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos16 Se você ainda não se deu conta do teor etnocêntrico da teoria evolu- cionista isso vai ficar evidente ao saber que, segundo esta perspectiva, as so- ciedades que ocupam o ápice da escala evolutiva são as sociedades ocidentais. As sociedades “primitivas”, os “selvagens” seriam a ilustração do que um dia foi a sociedade europeia, a mais civilizada, ou a infância da humanidade cuja vida adulta é representada pela sociedade civilizada, como sugeriu James Fra- zer (1854-1941). Some-se a isto o interesse que tinham não exatamente pelo que era diferente nas culturas observadas, mas pelas semelhanças que permitiam classificar as sociedades, de acordo com a escala evolutiva que preconizavam. Outra característica da Escola Evolucionista é a ausência do trabalho de campo, o que a fez conhecida como “antropologia de gabinete”. Os trabalhos dos evolucionistas se baseavam, sobretudo, em relatos de terceiros – viajan- tes, comerciantes, missionários – com o objetivo de classificar as sociedades (de acordo com o grau de desenvolvimento apresentado) em primitivas, selva- gens ou civilizadas. Embora Lewis MorganLewis Morgan14 tenha conhecido viajado para conhecer os Iroqueses sobre os quais escreveu, não havia naquele momento da antropologia que se formava uma preocupação com a coleta de dados in loco e nem com a sistematização dos mesmos. Esse tipo de preocupação surgiria mais tarde com Bronislaw Malinowski, um dos expoentes do funcionalismo. Antes de explorar este assunto, vamos às críticas direcionadas aos evolucionistas! Um dos principais porta-vozes das críticas ao pensamento evolucionis- ta foi o alemão – posteriormente naturalizado norte-americano – Franz Urich Boas (1858-19421858-194215). Seus interesses de geógrafo motivaram sua ida ao Canadá para obter informações acerca da distribuição e mobilidade entre os esquimós, suas rotas de comunicação e histórias das migrações. Esta expedição não o tor- nou automaticamente antropólogo – tanto que suas observações geográficas fo- ram publicadas três anos antes das etnográficas –, mas foi fundamental para a sua conversão à antropologia. 14 Em uma dessas viagens, obstinado por conhecer os costumes iroqueses, Morgan ignora o pedido de sua esposa para voltar para casa devido à doença de sua filha mais velha. Maistarde, ao retornar, as duas filhas haviam morrido devido à escarlatina. Diante disso, ele nunca mais viajou para coletar dados. 15 Boas morre durante a Segunda Guerra Mundial enquanto participava de um almoço com alunos e alguns colegas de profissão, entre eles o francês Claude Lévi-Strauss, então exilado nos Estados Unidos. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 17 Boas foi o grande responsável pelo desenvolvimento da antropologia nos Estados Unidos, formando discípulos (um dos seus alunos foi o brasileiro Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala) que desenvolveram suas pro- posituras, consolidando o chamado culturalismo norte-americano e formando três vertentes de pensamento que se dedicaram a estudar: personalidade e cul- tura; linguagem e cultura; cultura e ambiente. Além disso, foi crítico dos deter- minismos – biológico e geográfico – , esforçou-se para provar que a inferiori- dade dos negros nos Estados Unidos estava relacionada a causas sociais, não raciaisraciais16. Segundo Castro (2010), seu principal papel na antropologia cultural americana não foi como formalizador de teoria, mas o papel de crítico das teo- rias em voga, como o evolucionismo e o racismo. As críticas tecidas por Boas são direcionadas principalmente ao méto-méto- do comparativodo comparativo utilizado pelos evolucionistas, na busca por leis uniformes de evolução, pensando cultura e sociedade humana no singular. Lembre-se: para os evolucionistas, a humanidade era uma só. O que diferenciava as sociedades conhecidas era o grau de progresso que elas apresentavam, o estágio de desen- volvimento rumo à civilização. A proposta boasiana surge quando ele critica esta comparação ampla do evolucionismo – todas as sociedades humanas – sem considerar as peculiaridades de cada povo e a hipótese de srcens distintas e independentes dos fenômenos observados e que estes poderiam ter sido trans- mitidos de uma sociedade para outra. O método indutivométodo indutivo (histórico/empírico) proposto por Franz Boas se baseou numa comparação de áreas restritas e bem definidas, considerando as particularidades de cada cultura estudada para, então, verificar a possibilida- de de comparação. Com tal abordagem, Boas está considerando que não existe uma história única para toda a humanidade, mas que cada sociedade possui sua própria história e uma cultura específica. Assim procedendo, a antropologia bo- asiana está relativizando, reconhecendo a diversidade cultural ao atribuir o “S” da pluralidade à história e à cultura. 16 Retomaremos a contribuição de Boas no combate ao racismo quando formos tematizar diversidade cultural, raça e multiculturalismo. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos18 Tentemos simplificar comparando estas duas abordagens antropoló- gicas: EVOLUCIONISMO CULTURALISMO História unilinear, singular multilinear, plural Comparação ampla – todas as socie-dades criteriosa – território restritoe bem definido Cultura exclusividade da socie-dade civilizada cada sociedade tem seus pró- prios costumes; culturas (no plural) Principais au- tores e obras Lewis Morgan ( A Socie- dade Primitiva, 1877); Edward Tylor ( A Ciên- cia da Cultura, 1871); James Frazer (O Ramo de Ouro ,1890). Franz Boas ( As Limitações do Método Comparativo; Raça e Progresso ); Margaret Mead (Sexo e Temperamento ); Ruth Benedict (O Crisântemo e a Espada). Perceba que ambas as escolas antropológicas se utilizam de uma pers- pectiva diacrônicadiacrônica. O que isto quer dizer? Que através da história é que se pode compreender as sociedades estudadas, seja olhando para o que elas foram um dia ou o que elas se tornarão. A escola funcionalista, à qual dedicaremos as próximas linhas, já não se utiliza da perspectiva diacrônica como as duas ante- riores, mas de uma análise sincrônicasincrônica das sociedades. Passemos à abordagem funcionalista da antropologia. O FuncionalismoFuncionalismo teve seus mais ilustres representantes nas figuras de Alfred R. Radcliffe-Brown (1881-1955) e Bronislaw K. Malinowski (1884- 1942), deixando suas marcas na antropologia britânica, que James Frazer ini- ciara em 1908 , ao inaugurar a primeira cátedra de Antropologia Social. Para Adam Kuper (1978), porém, a antropologia britânica surge, de fato, após a Se- gunda Guerra Mundial. Mais precisamente, em 1922, quando são publicados os primeiros estudos funcionalistas. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 19 Malinowski17 e Radcliffe-Brown deram forma a uma antropologia bri- tânica, mas se apropriando de questões distintas. O primeiro foi o responsável por estabelecer um intensivo trabalho de campo em sociedades não ocidentais (ou exóticas, como eram denominadas) e o segundo se preocupou em lapidar conceitos mais precisos, tecendo uma teoria que auxiliaria os novos pesqui- sadores que iam a campo. Se até aquele momento a análise antropológica se amparava na história, Radcliffe-Brown se encarrega de desvincular a análise antropológica da história, passa a empreender o estudo das sociedades sem ne- cessariamente preocupar-se com o seu passado, apenas com o presente, deline- ando uma análise sincrônicasincrônica da sociedade e diferenciando o olhar funcionalis- ta das perspectivasanteriores (evolucionismo e culturalismo). Transportando noções das Ciências Naturais como processo, estrutura e função, Radcliffe-Brown as transformou em “ferramentas”, que permitiriam melhor interpretar uma dada realidade, fazendo uma analogia do sistema social com um organismo vivo. Os costumes e crenças da sociedade primitiva cum- prem alguma funçãofunção na vida social da mesma, assim como os órgãos de um corpo desenvolve funções para o desempenho de um organismo. Para compre- ender uma sociedade é preciso, segundo a perspectiva funcionalista, compre- ender o significado de um determinado costume. Assim procedendo, Radcliffe- -Brown privilegia conceitos como funçãofunção, processoprocesso e estrutura.estrutura. Everardo Rocha (1988, p. 25) resume bem a abordagem funcionalista do referido autor: [...] A realidade concreta a ser estudada, observada, descrita, com- parada e classiicada pela Antropologia é um luxo permanente, é um processo: o “processo social”. Pode ser percebido como o encadeamento das relações, das ações, das interações entre seres humanos ocupando “papéis sociais”. É esta amplitude de contato que acontece na vida em sociedade. [...] Dentro do “pro- cesso social” a constância de determinados tipos de relação – a disposição de pessoas num certo número de famílias, por exem- plo – aponta uma outra dimensão, a da “estrutura social” [...]. A assertiva acima explicita a proposta da escola funcionalista concebi- da por Radcliffe-Brown, preocupando-se com o rigor teórico e o uso adequado de conceitos, ainda que a inspiração venha das Ciências Naturais – além da 17 No capítulo referente ao trabalho de campo na antropologia nos deteremos às contri- buições de B. Malinowski. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos20 sociologia de Émile Durkheim –, já que compara o sistema social ao corpo hu- mano, consagrando o estudo funcional da sociedade do “outro”. Como veremos adiante, a grande contribuição de Malinowski foi na área do trabalho de campo, preconizando um método que permitiria uma efi- ciente análise funcionalista para a antropologia. A importância desta contri- buição assume tão grande proporção que Adam Kuper (1978) chega a afirmar: “Houve, com efeito, uma revolução funcionalista e Malinowski foi seu líder” (p.11). Continuando nesta viagem pelo caudaloso rio de questões, construções e problemas antropológicos, uma parada na França para conhecer um ilustre senhor que também nos chega através de outra canção de Caetano Veloso. Em “O Estrangeiro”, o referido cantor/compositor afirma que o antropólogo Clau- de Lévi-Strauss (1908-2009) detestou a Baía de Guanabara por parecer uma boca banguela. Essa percepção da Baía de Guanabara é assim exposta por Lévi- -Strauss, em Tristes Trópicos 18 (1996), livro que relata uma das suas visitas ao Brasil: [...] Sinto-me mais embaraçado para falar do Rio de Janei- ro, que me desagrada, apesar de sua beleza celebrada tan- tas vezes. Como direi? Parece-me que a paisagem do Rio não está à altura de suas próprias dimensões. O Pão de Açúcar, oCorcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram ao viajante, que penetra na baía, cacos perdidos nos quatro can- tos de uma boca desdentada (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 75). Independentemente do que achou da paisagem carioca e da famosa baía, Lévi-Strauss muito contribuiu e conturbou o campo antropológico com a sua Antropologia Estrutural. Inspirado na linguística de Ferdinand Saussu- re e Roman Jakobson, somando às ideias das suas “três amantes” (Geologia, Marxismo e Psicanálise), o antropólogo francês constrói o estruturalismo na antropologia dos anos 1940. O mencionado autor busca noções e categorias em outras searas, considerando que outras disciplinas científicas, trataram seus problemas como os etnólogos gostariam de tratar os seus e nelas busca modelos de métodos e soluções.Ressaltando que a noção de estrutura é utilizada quase que exclusiva- 18 Livro escrito em quatro meses e ao qual se dedicou o autor quando na verdade gostaria de dedicar a escrever o segundo volume de As Estruturas Elementares do Parentesco . A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 21 mente para questões de parentesco, em Antropologia Estrutural (2008), Lé- vi-Strauss adverte que a noção de estrutura social não está associada a uma realidade empírica, mas aos modelos construídos a partir dela. Com isso, ele evidencia a distinção entre estrutura social e relações sociais. Estas últimas são, segundo o “pai do estruturalismo”, a matéria prima para a construção de mo- delos que fazem emergir a própria estrutura social e tem as seguintes caracte- rísticas: 1. Caráter de sistema à modificação em um elemento repercute nos demais elementos; 2. Todos os modelos fazem parte de um grupo de transformações à cada transformação corresponde a uma mesma família; 3. É possível prever como reagirá um modelo caso haja modificação em um dos seus elementos devido às características anteriores; 4. O modelo deve ser construído de maneira que contemple todos os fa- tos observados. Um exemplo da aplicabilidade de tal método é o estudo de sistemas de parentesco. É no seu livro As Estruturas Elementares do Parentesco que se encontra demonstrada a função do sistema de parentesco e sua significação. Para tentar facilitar o entendimento, vamos ao exemplo! Tomemos uma família qualquer, mas seguindo a lógica tupinambá. Um casal que tem uma filha que se casou com o tio materno. Esse tipo de casamento encontra restri- ções em nosso sistema de parentesco, salvo em algumas regiões, porém, aceitá- vel na cultura tupinambá. Isso ocorre porque o que os tupinambás chamam de “irmão da mãe” (tupi totyra) e que em nossa cultura chamamos de tio paterno, poderia se casar com a filha do casal porque sendo o “irmão da mãe”, conside- rando um homem da geração anterior e morador de outra casa, é culturalmente aceitável. Em outras palavras, o que para nós significa expressões como pais, tios, avós, sobrinhos, etc. assumem outro significado em outras culturas. Isso também explica porque o incesto embora seja quase um valor universal de rejei- ção entre culturas, são praticados em algumas culturas com um hábito aceitável pela convenção do sistema de parentesco. Para o estruturalismo, a cultura era apreendida pelo significado dado aos signos e aos comportamentos, segundo os nativos daquela cultura. Lévi- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos22 -Strauss defendia a ideia de que os mitos dos índios brasileiros estruturavam seus valores, crenças e o comportamento aceitável. Também percebeu que o mesmo mito se modificava e era contado de uma forma diferente em outras tri- bos indígenas. Por fim, para o estruturalismo, a cultura constitui a linguagem que identifica os signos e significados e que estruturam o comportamento. Observe-se, no entanto, que apesar da análise estruturalista ter sido re- cebida e aplicada em diferentes países, como uma espécie de “telefone sem fio”, outros autores vão se apropriando das proposituras levistraussianas de modo que nem sempre corresponde à proposta srcinal. Assim, Lévi-Strauss revela seu incômodo em entrevista concedida a Didier Eribon (2005, p.105) “[...] A popularidade que o estruturalismo teve implicava uma série de consequências deploráveis. O termo foi aviltado, fizeram dele aplicações ilegítimas, às vezes ridículas até. Não posso fazer nada.”. Para além dos desdobramentos que uma dada teoria ou determinado método possa ter, segue o movimento de desenvolvimento da antropologia com suas idas e vindas, com ganhos e perdas, como é comum ao desenvolvimento das ciências. Eis que nesse trajeto de conhecimento antropológico, desembar- caremos novamente nos Estados Unidos (lembre-se que lá estiveram Morgan,Boas e, durante o exílio, Lévi-Strauss), para apresentá-lo a outro ilustre repre- sentante da antropologia, Clifford James Geertz (1926-2006). Etnógrafo e intelectual, considerado um dândi literário, Geertz estudou rituais, mercados jogos e festividades. Segundo Adam Kuper (2002) sua influ- ência deve ser levada a sério, visto que escreveu sobre uma nova ideia de cultura – a primeira definição de cultura na antropologia veio de E. Tylor –, aplicou tal ideia a casos específicos e “deu à abordagem cultural um apelo sedutor, atraindo a atenção de várias pessoas”(Kuper, 2002, p.104). Kuper (op.cit) afirma também que através da leitura de seus livros e ensaios podemos “reconstituir a trajetória da visão antropológica de cultura na segunda metade do século 20”. Assim como ocorreu com outros antropólogos, também Geertz vai bus- car inspiração em outras paragens! Inicialmente inspirado em Max Weber e Talcott Parsons (década de 1950), ao propor uma antropologia interpretativa (ou hermenêutica), o dândi literário da antropologia liga seu fazer antropológi- co à filosofia e à teoria literária (segundo momento da sua trajetória). No início de 1970, as referências a Weber e Parsons desaparecem do seu texto e foram substituídas por K. Burke (crítico literário), Suzane Langer (filósofa) e Paul Ri- A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 23 coeur (filósofo francês). Dos dois primeiros, aderiu à ideia de que a característi- ca central que define os seres humanos é a capacidade de exibir um comporta-comporta- mento simbólicomento simbólico. De Ricouer, extraiu a ideia de que, como as ações humanas transmitem significados, elas podem e devem ser lidas de forma bastante seme- lhante aos textos escritos, pois o importante nas ações humanas é o conteúdo simbólico. Em A Interpretação das Culturas (1973) estão reunidos ensaios que or- bitam em torno da ideia de cultura como sistema simbólico.sistema simbólico. Explica Geertz: [...] mais estudos empíricos do que indagações teóricas, pois sinto-me pouco à vontade quando me distancio das ime- diações da vida social. Mas todos eles preocupam-se, ba- sicamente, em levar adiante, em cada caso imediato, uma visão particular, que alguns chamariam peculiar, do que seja a cultura, do papel que ela desempenha na vida social, e como deve ser devidamente estudada (Prefácio, p.vii) Sendo a cultura um sistema simbólico, logo, devem os processos cul- turais ser lidos, traduzidos e interpretadosinterpretados. Este exercício de interpretação das culturas constitui a etnografiaetnografia1919,, a descrição densa à qual é reduzida a antropologia. O teor da perspectiva proposta por Geertz está ilustrada no seu conceito de cultura, um dos mais famosos, depois daquele proposto por Edward Tylor, e inspirado em Max Weber: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de signiicados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do signiicado. É justa- mente uma explicação que eu procuro, ao construir expres- sões sociais enigmáticas na sua superície (Geertz, 2008, p.04). O objetivo da citação acima é apenas explicitar, na medida do possível, a antropologia geertziana, visto que no capítulo referente ao conceito antropo- lógico de cultura este conceito semiótico será retomado. Por enquanto, passe- mos àqueles que sucederam Clifford Geertz na jornada antropológica à qual nosdedicamos. 19 Tema que já foi mencionado aqui anteriormente, mas que será explorado novamente na seção dedicada ao trabalho de campo na antropologia. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos24 Em 1984, os discípulos de Geertz se reuniram em Santa Fé, Novo Mé- xico “para matar o pai”, conforme costuma-se dizer. Trata-se de referência a um seminário da Escola de Investigação Americana de Santa Fé, que foi editado e tornou-se uma espécie de manifesto da chamada antropologia pós-moderna, o Writing Culture (1986). Tematizando a escrita do texto antropológico, a auto- ridade etnográfica e a relação entre pesquisadores e pesquisados, autores como James Clifford (1945), Georges Marcus, Michel Fischer e Michel Taussig criti- caram as ideias de Geertz, deslocando o foco da análise antropológica da inter- pretação das culturas para as representações da cultura que são construídas no texto antropológico. Nesse sentido, há uma aproximação entre antropologia e teoria literária, uma preocupação com a escrita dos textos pelos antropólogos, tanto durante o trabalho de campo quanto depois dele. Recorramos a um exemplo. Em seus trabalhos, James Clifford procu- rou questionar a autoridade das interpretações feita pelos próprios antropólo- gos em suas etnografias, em que muitas vezes desconsideravam os sujeitos da pesquisa pela presença do observador. Ficou confuso? Pois bem, para essa abor- dagem, as informações colhidas nas pesquisas etnográficas não consideravam as relações de dominação e sociais que envolvem pesquisador e pesquisado, re- forçando o primeiro como autoridade para escrever sobre a cultura estudada. Para esses autores, por mais que o antropólogo tente se aproximar da realidade e descrevê-la, sempre vai limitar a uma subjetividade do pesquisador e, portan- to, carregada de uma abordagem ideológica. Aqui finalizamos o nosso “sobrevoo” pelas chamadas “escolas antro- pológicas”, esperando que o(a) leitor(a) esteja familiarizado(a) com as ideias gerais propaladas pelas mesmas e a importância de cada uma delas para a con- figuração da antropologia que praticamos hoje. Em que pese as teorias e méto- dos defendidos, é a sua atenção à diversidade cultural que a constitui como uma importante lente para ver o mundo e situar nossas práticas nele, desfazendo- -nos da miopia que não permitia que se enxergasse nada além dos nossos pró- prios costumes (as sociedades dos outros) e/ou da hipermetropia que nos cega- va quanto à diversidade que nos cerca dentro da nossa própria cultura. Agora que apresentamos algumas das reflexões sobre a diversidade cultural realizadas pelas escolas antropológicas, você deve estar se perguntan- do: qual a contribuição dessa ciência na atualidade? Em que ela colabora para a compreensão da realidade em que vivemos? E para a minha formação? Todas, A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 25 uma vez que tem como principal objeto de estudo a culturacultura, elemento presente em nosso cotidiano. Mas, afinal, o que a antropologia considera como cultura? Qual o efeito dela? Retomemos o fôlego, pois vamos mergulhar em outro capí- tulo das divagações antropológicas. Pronto para o novo embarque? 1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo Você tem cultura? Este é o título de um artigo publicado pelo antropó- logo Roberto DaMatta. Mas é também a pergunta que lançamos a você, caro(a) leitor(a). Caso precise de algum tempo para elaborar sua resposta, fique à vonta- de, enquanto abrimos as cortinas para um dos conceitos centrais na antropologia: culturacultura. Certamente, a interrogação no início deste parágrafo lhe remeteu ao co- nhecimento adquirido sobre livros, música erudita, artes plásticas etc., que distin- gue as pessoas cultas daquelas “sem cultura”. Este é um pensamento corriqueiro no senso comum, ao qual Roberto DaMatta se refere no início do texto supracita- do. Diferente do sentido quer circula no senso comum, no sentido antropológico, cultura é um conceito fundamental que permite interpretar a vida em sociedade. Assima define DaMatta (1981, p.02): “a maneira de viver total de gru- po, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas”. Ou seja, a cultura está sempre mediando as nossas ações, prescrevendo a maneira como de- vemos nos comportar em sociedade, balizando nossas atitudes e valores. Em menção à importância que o conceito de cultura assume para a dis- ciplina, Adam Kuper (2002) cita Robert Lowie (representante da Antropologia Cultural Americana). Em 1917, Lowie estabelece uma relação entre as discipli- nas e os assuntos aos quais elas se dedicam. Deste modo, afirma que, para a antropologia, a cultura é o assunto. Assim como para a psicologia, o assunto é a consciência; a vida para a biologia e a eletricidade, um ramo da física (KUPER, 2002, p. 09). Para reforçar a importância do conceito para a nossa disciplina, podemos também evocar outro antropólogo norte-americano, Clifford Geertz (1980). Este afirma que os antropólogos sempre estudaram a cultura, “mesmo quando não sabiam exatamente o que exprimir por este termo” (p. 22). Mas, an- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos26 tes de passar à utilização do conceito no sentido antropológico, vamos ver como se desenvolveu a palavra e como ela adquiriu o significado que hoje comporta. Antes de chegar ao conceito de cultura, a própria palavra – e, lógico, seus significados – evoluiu, transformou-se. Tal evolução ocorreu através da língua francesa, durante o Iluminismo e se difundiu para outras línguas, a exem- plo do inglês e do alemão. Tendo sua srcem no latim, a partir de 1700, ela já aparece no vocabulário francês, significando cuidado dispensado ao campo ou ao gado. À medida que o tempo passa, ela vai assumindo outros sentidos, como cultura de uma faculdade (no sentindo de capacidade, competência), cultivo das artes ou letras, perdendo gradualmente os seus complementos e passando a ser utilizada como a “educação do espírito” (CUCHE, 1999). Posteriormente, chega-se a algo próximo do que os evolucionistas (sociais/culturais) pensaram como cultura: estado daquele que possui erudição. Por fim, o Dicionário da Aca- demia Francesa de Letras estigmatiza a palavra ao utilizá-la na assertiva “espí- rito natural e sem cultura”, explicitando a oposição repetidamente tematizada pela antropologia em épocas futuras: natureza X cultura. Já para a perspectiva iluminista, cultura assume o caráter distintivo da espécie humana, a soma dos saberes agregados e transmitidos pela huma- nidade ao longo de sua história. Você verá, então, como esta ideia de cultura está próxima daquela defendido pela antropologia, que se delineia nos moldes evolucionistas. É durante o Iluminismo, também, que o homem e a razão são tomados como o objeto de reflexão. Isso facilita a criação de disciplinas como a Antropologia e a Sociologia, no século XIX, visto que neste momento se pensa na unidade do homem, quer dizer, a humanidade é uma só. A antropologia, por exemplo, vai tomar como questão norteadora como se pode pensar na diver- sidade (de costumes) diante desta unidade (da espécie humana). Este é o fio da meada para puxar o conceito de cultura. Vamos juntos desembaraçar este novelo cultural? É a partir da busca pela explicação da diversidade de comportamentos, de costumes (sabendo que a humanidade é uma só) que surge o conceito de cul- tura, com seu sentido descritivo. Isto é, não havia a preocupação em dizer o que deveria ser cultura (normatizando), como o faziam os filósofos, mas em descre- ver como ela se apresentava nas sociedades humanas. Ressalve-se que, embora o desenvolvimento da palavra cultura tenha ocorrido no contexto francês, no sentido antropológico, o primeiro conceito que repercute na disciplina surge na A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 27 Inglaterra e o seu autor foi Edward Tylor (1832-1917), em A Ciência da Cultura (publicado srcinalmente em 1871), texto incluído no livro Cultura Primitiva. Neste escrito, o autor pretende atestar a cientificidade que sustentava a Antro- pologia, ao justificar o método comparativo a teoria evolucionista e ao elaborar o clássico conceito de cultura: Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográico, é aquele todo complexo que inclui conhecimen- to, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras ca- pacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade. Tylor apud (CASTRO, 2005, p. 69). Embora tenha o mérito de ser a definição que é acolhida pela comu- nidade antropológica, ela vem marcada pelo berço evolucionista. O que quero afirmar com isso? Pretendo chamar a sua atenção para o fato de que cultura, neste caso, é sinônimo de civilização e as únicas sociedades que estavam no estágio civilizatório eram as sociedades ocidentais, segundo os evolucionistas (e Tylor, lembre-se, era um deles!). Logo, apenas as sociedades ocidentais eram possuidoras de cultura. Perceba, então, que o conceito de cultura tyloriano era hierárquico (visto que apenas a sociedade europeia era civilizada), e só depois vai sendo relativizado e pluralizado por outros autores. Por outro lado, além de propor um conceito descritivo de cultura, Tylor acentua o seu caráter coletivo ao pensá-la enquanto atributo de indivíduos que vivem em sociedade e a des- naturaliza ao concebê-la como algo adquirido. Ou seja, cultura não é algocultura não é algo inato, é algo que se aprendeinato, é algo que se aprende. Deste modo, começamos a enveredar por um caminho que nos interessa explorar: como a cultura se apresenta tão diversa- mente. Antes, porém, vamos a quem começa a alargar a perspectiva cultural na antropologia e a desvendar tal diversidade sob outro prisma. O responsável por este movimento de relativização e por atribuir plu- ralidade ao conceito é Franz Boas (1858-1942). Lembra do quadro que compara as propostas evolucionistas e culturalistas? Dando mais uma olhada, vai ficar claro o avanço de Boas em relação aos evolucionistas no que diz respeito à cul- tura. Boas se pronuncia a partir dos Estados Unidos (reitero que ele era alemão, mas passou a morar naquele país) quando este percebe que todas as sociedades possuem cultura e que cada uma delas se desenvolve nas suas particularida- des, independentes umas das outras. Mais: um mesmo evento ou traço cultural Fundamentos Antropológicos e Sociológicos28 pode ter srcem diferente e se desenvolver e sentidos também diversos, não no mesmo sentido (unilinear) como propunham os evolucionistas. Aliás, é nos Estados Unidos que o conceito de cultura é melhor recepcionado e aprofundado teoricamente, em parte devido ao fato de ser uma nação pluriétnica, um país de imigrantes. Como mencionei acima, Franz Boas problematizou a questão cultural, reconhecendo que toda sociedade possui cultura e que as particularidades des- ta devem ser estudadas detalhadamente. Isto lhe rendeu o “título” de “pai do culturalismo norte-americano”. Se Boas deu o primeiro impulso para a ala- vancada dos estudos culturais, foram seus discípulos que se empenharam em melhor desenvolver este campo de estudo. Deste modo, a partir de 1930, com o interesse de ressaltar o vínculo entre o indivíduo e sua cultura, como os sujeitos incorporam e vivem sua cultura,configura-se dentro da antropologia americana o que se chamou de “Escola Cultura e Personalidade”. Entre os adeptos desta relação entre personalidade e cultura, havia alguns autores ressaltando a influ- ência da cultura sobre o indivíduo e outros, dedicando-se a estudar a reação dos indivíduos à sua cultura, tendo como suporte a Psicologia e a Psicanálise para se concentrar na questãoda personalidade. São representantes desta perspecti- va Ruth Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-1978), ambas alunas do Boas. Assim como estas discípulas do antropólogo alemão, outros também en- veredaram por caminhos específicos para estudar a cultura, formando a Escola Cultura e Ambiente (Julien Steward) e Cultura e Linguagem (Edward Sapir). Visto que estamos pensando cultura em solo norte-americano, podemos trazer à baila novamente outra sistematização para o estudo da cultura, que se tornou tão clássico quanto a definição proposta por Tylor, pois repercutiu sobre- maneira na antropologia. Trata-se da definição de cultura proposta pelo norte- -americano Clifford Geertz (1926-2006), expoente da antropologia interpretativa: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de signiicados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do signiicado. É justa- mente uma explicação que eu procuro, ao construir expres- sões sociais enigmáticas na sua superície. (Geertz, 2008, p.04). A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 29 Para Geertz, o que está na superfície, explícito é como se fosse a pon- ta do iceberg , então, é preciso um mergulho profundo para compreender toda a engrenagem por trás dos códigos explicitados pelos sujeitos. Ao propor tal conceito e a ele dedicar uma série de artigos, Geertz pretende reduzi-lo ao que ele chama de “dimensão justa”, um conceito mais limitado e especializado que o de Tylor – que para ele muito mais confunde do que esclarece – asseguran- do a sua utilidade nas análises antropológicas. Está claro como os autores vão se dedicando ao estudo da cultura e como vão ajustando o conceito à medida que conhecem mais o universo estudado, trazendo contribuições que alargam os horizontes antropológicos? Sigamos, então, na exploração deste terreno, não esquecendo que ele foi revolvido e adubado por estes autores que discutimos até aqui e continua a ser fertilizado por vários outros. Muito embora haja esta dedicação ao estudo da cultura e alguns auto- res se empenhem em conceitua-la, não há um consenso a respeito do mesmo. O importante é observar a diversidade que as sociedades expressam. Assim sendo, tendo exposto o desenvolvimento do conceito e explicitando as principais defi- nições, voltemos às ideias do Roberto DaMatta que apontamos no início des- te capítulo, quando lançamos a pergunta ao leitor e aqui reiteramos: você tem cultura? (Segunda chance para amadurecer suas ideias a respeito da cultura!). Passemos à análise da diferença que a cultura assume para o senso comum e para a Antropologia. É recorrente, nos usos do senso comum, relacionar cultura a erudição, educação, sofisticação, separando as pessoas em grupos conforme o maior nível de cultura observado. DaMatta (1981) observa que isso acontece também com o conceito de personalidade. Afirma-se que alguém tem personalidade, levan- do-nos a entender que outrem não a tem. É chegada a hora de desfazer este equívoco, inicialmente à luz das ideias do antropólogo supramencionado, já que iniciamos este capítulo com os exemplos que ele utiliza. Iniciemos esclarecendo que assim como não existe indivíduos sem personalidade – o que ocorre é que alguns têm a personalidade mais forte que a de outros – não existe indivíduos sem cultura. Todos nós, humanos, pertencemos a alguma cultura. Sim, o ho- mem depende do seu aparato biológico, precisa satisfazer necessidades fisioló- gicas – alimentação, sono, respiração, atividade sexual – que são comuns a toda a humanidade. Mas a maneira de atender a estas necessidades é sempre a mes- ma em todos os lugares, em todas as sociedades humanas? Não! Como vamos Fundamentos Antropológicos e Sociológicos30 satisfazê-las varia de uma cultura para outra. Ou seja, há um número limitado de funções e uma grande variação na maneira de atendê-las. Assim sendo, o ser humano é predominantemente cultural, como apontou Alfred Kroeber (1876- 1960). Ele observou que através da cultura, o homem se distanciou do mundo animal e é um ser que superou suas limitações orgânicas, preconizando, pois, a oposição entre o orgânico (biológico) e o cultural. É apoiado em Kroeber, que Roque Laraia (1996) ressalta que o homem faz parte do reino animal, passou por um processo seletivo, sendo capaz de su- perar diferentes condições climáticas, possuindo um equipamento físico muito pobre. Ao contrário dos outros animais, seu aparato biológico não passou por grandes transformações para se adaptar ou superar as diversidades do ambien- te físico. As modificações que lhe possibilitaram sobreviver a adversidades fo- ram, sobretudo, externas, foram modificações no ambiente que habita. Se carecer de um exemplo que torne esta questão das diferenças cultu- rais mais palatável, podemos voltar àquele histórico encontro dos europeus com os nativos das américas que mencionamos no tópico anterior. Aquele espanto que dá espaço ao discurso sobre “o outro” (marcado por adjetivos pejorativos, inferiorizando aqueles que não cobriam as vergonhas, que não falavam a mes- ma língua, que não possuíam armas de fogo, etc) foi um espanto causado pelo choque culturalchoque cultural, pelo encontro de culturas diferentes, a do europeu e a dos ameríndios. Já neste momento, fica claro que as diferenças culturais existem. Apesar das diferenças facilmente identificáveis, são seres pertencentes à mes- ma espécie, mas a maneira de se colocar no mundo e de interagir com ele, nos mais diversos aspectos, resulta na diversidade que observamos e, que por vezes, assusta. Vimos, na seção anterior, como este encontro com a diferença pode ser marcado negativamente quando a percebemos como ameaça à nossa própria identidade, fazendo emergir o etnocentrismo. Etnocentrismo este que pode se desdobrar em violência (e não apenas violência física). Deve-se enfatizar que o etnocentrismo não foi uma prerrogativa apenas dos europeus, que se depara- ram com um povo diferente. Esta visão de mundo que percebe a diferença como ameaça, inferiorizando-a, pode se manifestar aqui mesmo onde eu estou e aí onde você se encontra. Basta que não tenhamos o cuidado de relativizar, de per- ceber que o que há diferente é maneira de enxergar o mundo e de atender aos seus apelos. Dito isto, vamos olhar para a diversidade um pouco mais de perto... Não é preciso ir tão longe no tempo e/ou no espaço. Já ouvimos repe- A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 31 tidamente que o Brasil é o país da diversidade. Esta diversidade pode ser vista nas diferentes paisagens, na geografia que se modifica de estado para estado, nas diferenças climáticas, mas é uma diversidade que se manifesta, sobretudo, nos costumes, nos hábitos de cada região, ao longo de toda a extensão territorial. Não é difícil fazer uma associação entre alguns estados e seus costumes: a Bahia daaxé music , do acarajé, dos cultos afro-brasileiros; o Rio Grande do Sul do chimarrão, do churrasco, do vanerão; Rio de Janeiro, terra do samba, da feijoada, da malan- dragem etc. Nestes casos, estamos falando de cultura. É a cultura que está sempre imprimindo sua marca, sempre intermediando as ações, os modos de sentir, pen- sar e interagir com o nosso entorno e diferenciando cada sociedade. Acarajé, prato típico da Bahia Vanerão, dança típica do Rio Grande do Sul Fundamentos Antropológicos e Sociológicos32 Esta diversidade apontada nos exemplos acima pode ser ampliada, se pensarmos nos diferentespaíses e continentes do mapa ou restringida, se pen- sarmos nos grupos que coexistem em cada uma destas culturas. As diferenças que fervilham a nossa volta, desde tempos idos, representam a diversidade cul- tural. É para ela que se voltam os holofotes antropológicos desde os primeiros tempos da antropologia quando foi preciso estabelecer objeto de estudo, teoria e método próprios. A ela se dedicaram os antropólogos mesmo sem ter um con- ceito de cultura estabelecido, sem precisar defini-la. Como explicar que uma mesma humanidade apresente tantos e tão dis- tintos comportamentos? Antes de evidenciar a resposta, vamos pensar sobre o que nãonão determina esta diversidade: o ambiente geográfico e a biologia. As dife- renças de comportamento entre homens não podem ser explicadas pelas diver- sidades somatológicas (relativas ao corpo humano) ou mesológicas (relativas ao meio ambiente), afirma Roque Laraia (1996). Ele aponta para a mobilização que houve na década de 1950, quando antropólogos e outros especialistas se reuniram no encontro proporcionado pela UNESCO e redigiram um documento relatando que dados científicos não confirmavam a teoria de que as diferenças genéticas he- reditárias constituiriam um fator de importância primordial para explicar a cau- sa das diferenças entre culturas. Da mesma maneira, antropólogos como Franz Boas, Alfred Kroeber e Leslie White teceram críticas a geógrafos que propalaram a ideia de que o ambiente geográfico define a diversidade cultural. Devemos ter clareza de que fatores biológicos e/ou geográficos podem influenciarinfluenciar os comportamentos, mas nãodeterminam.determinam. Podemos utilizar os exemplos dados por Laraia para ilustrar tal afirmação. No que diz respeito ao bio- lógico, pensemos no dimorfismo sexual. Anatômica e fisiologicamente homens e mulheres são diferentes. Porém, não são essas diferenças que determinam os seus comportamentos e sim a educação que lhes é dispensada. Conforme a sociedade em que vivem, diferentes papeis são atribuídos a homens e mulheres. Há socieda- des indígenas em que as mulheres não se recolhem após o parto, este papel cabe ao homem (couvade ); em outras, os homens realizam o trabalho que requer mais força, restando às mulheres as tarefas relativas aos filhos e à alimentação; alguns rituais são proibidos às mulheres e outros preferencialmente desempenhados por elas. Pode ser extensa esta lista com os diferentes papeis sociais desenvolvidos por homens e mulheres. Reflita um pouco você mesmo sobre as diferenças que per- cebe sobre os comportamentos relativos a homens e mulheres na sua sociedade! A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 33 No que diz respeito ao aspecto geográfico, Laraia lembra dos lapões e esquimós. Ambos habitam regiões geográficas semelhantes (frias), mas se pro- jetam no mundo de maneiras diferenciadas e os tipos de habitações por eles construídas, assim como a maneira de obter o alimento, são exemplos disso. Não significa, porém, que a antropologia, ao estudar a cultura, está des- cartando os dados biológicos ou geográficos, ela só está empenhada em mostrar que a diversidade de comportamentos não pode ser explicada pelos dados bio- lógicos, genéticos ou climáticos, topográficos etc., como sugeriam os defensores dos determinismos biológico e geográfico. Podemos pensar que o biológico im- pulsiona em algum sentido a cultura, mas não determina os comportamentos, Iglus, habitações típicas dos esquimós Exemplo de habitação em região de frio extremo, diferente daquelas construídas por esquimós Fundamentos Antropológicos e Sociológicos34 muito menos a diversidade destes. Volto a afirmar, todos nós temos necessida- des fisiológicas, já que todos somos também um corpo biológico. Porém, o uso que fazemos deste corpo, a maneira como atendemos a estas necessidades, varia de sociedade para sociedade. Tomemos como objeto de reflexão umas das nos- sas necessidades básicas: a alimentação. Precisamos de energia para respirar, andar, correr, desempenhar nossas atividades cotidianas, e para tanto nos ali- mentamos. Porém, o que comemos, a que horas, com quem, de que maneira, é a nossa cultura que vai nos “dizer”. Não nos dedicamos a temperar especialmente um peru, assá-lo e comê-lo numa segunda-feira, por exemplo. Assim como não costumamos comer feijão com arroz numa ceia de natal. Para ir além, lembre-se que os japoneses dispensam talheres (utilizados pelas sociedades ocidentais) e comem com hashi (e nós aqui fazemos malabarismos para conseguir pinçar al- gum alimento com as tais varinhas!), que os franceses comem escargot (um tipo especial de caramujo) e que em algumas culturas as pessoas comem sentadas no chão, levando a comida à boca com as mãos. No Marrocos, dispensam-se talheres ou instrumentos similares, utilizam as mãos para levar os alimentos à boca Comida japonesa e o hashi, utilizado pelos japoneses para pegar a comida A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 35 Voltando nossos olhares para a sociedade na qual vivemos (ocidental, brasileira) também seremos capazes de perceber a variação cultural através da alimentação, principalmente no que diz respeito ao que se come e quais os ho- rários para comer determinados alimentos. Quem já não ouviu alguém no nor- deste afirmar que “é pesado” comer feijão à noite, enquanto alguém que vem da região sudeste estranha comer cuscuz com carne de bode no café da manhã? O que estaria, então, por trás da diversidade cultural já que não é a biologia ou a geografia? A esta altura você já sabe a resposta... CULTURA! A capacidade que o homem possui para se adaptar a diferentes situações, sua ca-ca- pacidade de aprenderpacidade de aprender, de simbolizar,simbolizar, a plasticidadeplasticidade que lhe é peculiar, características exclusivas da humanidade e que lhe torna o único ser capaz de produzir cultura. Você pode nascer na França, ser educado naquela cultura e ainda assim mudar para outro país e se adaptar a uma nova cultura; aprender um novo idioma, outras etiquetas, adaptar o paladar a novos sabores etc. Então, em qualquer parte do mundo, onde houver ser humano, haverá cultura! Como exemplifica DaMatta (2010), observando uma sociedade de formigas é possível constatar o seu funcionamento e sua ação modificando o ambiente. No entanto, não há nada distinguindo um formigueiro de outro, o ambiente é sempre modificado da mesma maneira. Há uma sociedade, uma co- letividade, uma totalidade de indivíduos ordenada, há divisão de trabalho, mas não há cultura. Não há cultura porque não existe uma tradição conscientemente elaborada que passe de geração a geração, que permita individualizar, tornar singular uma dada comunidade em relação a outras (DaMatta, op. cit). Para que haja cultura é preciso que haja tradiçãotradição e para que isto ocorra, é preciso consciência das regrasregras que vivenciamos. Dito de outra maneira, nós apren- demos que não podemos nos comportar de determinada forma porque nos foi ensinado, de acordo com a cultura a qual nós pertencemos, o que é permitido ou não. Sendo o homem o único a modificar o ambiente de forma consciente, ele é o único que produz regras que limitam ou indicam o modo de fazê-lo. É pertinente ressaltar, no entanto, que não são regras que estão enunciadas expli- citamente em algum livro ou manual. Não há placas listando o que pode ou não ser feito em cada cultura ou como devemos nos comportar quando comparti- lhamos de hábitos comuns à nossa sociedade. Nós aprendemos a nossa cultura no convívio com os nossos semelhantes, reproduzindo o idioma que nossos pais falam, comendoo que eles nos ensinam a comer, gostando do que eles e aqueles Fundamentos Antropológicos e Sociológicos36 que nos cercam nos ensinam a gostar (para além das preferências individuais). Assim sendo, você sabe que não lhe é permitido casar com sua mãe ou com sua irmã, por exemplo. Sabe que não deve ir a um restaurante e pegar a comida com as mãos (pensando na nossa sociedade, brasileira) ou como se comportar numa missa e em outros rituais religiosos. A partir do que foi exposto acima, fica fácil chegar à conclusão de que a cultura é característica exclusiva das sociedades humanas, visto que o homem é o único que possui consciência. Mais que isso, o homem é o único capaz de sim- bolizar, de comunicar através da fala. Como único portador desta capacidade, ele é também o único a poder aprender e transmitir as regras culturais aos seus descendentes. Você pode pensar: um macaco é capaz de executar algumas atividades tal qual um ser humano! Sim, em alguma medida, sim. Porém, o macaco não é capaz de se comunicar através da fala, não simboliza, logo, ele não produz cultura. Vamos a um exemplo! Clifford Geertz (1980) relata que um casal de primatólogos (como o próprio nome sugere, são especialistas em macacos) em- preendeu a árdua tarefa de criar um chimpanzé como um irmão adotivo de sua filha, dispensando a mesma atenção e educação aos dois. Embora tenha apren- dido várias coisas que não imaginaríamos para um chimpanzé, tais como abrir latas com abridor, manusear pistola de água etc., o animal não aprendeu a falar. Neste momento acabaram-se as semelhanças de comportamentos. A menina, claro, continuou a se desenvolver e a aprender, enquanto o chimpanzé não dei- xou de ser chimpanzé, apesar da influência e dos cuidados que os humanos lhes dispensaram. Mais que isso, o chimpanzé não seria capaz de ensinar tudo o que aprendeu a outros da sua espécie. O que houve no caso do chimpanzé pode ser chamado de condicionamento, não aprendizado. As regras sociais mencionadas pelo Roberto DaMatta, embora caracte- rizem uma dada cultura, não precisam ser e não são estáticas, pois a cultura éa cultura é dinâmicadinâmica, permitindo, portanto, que estas regras sejam atualizadas. Somada à plasticidade que o homem possui, à capacidade de mudança e adaptação, as regras se reconfiguram conforme as necessidades da sociedade, reelaborando ao mesmo tempo a própria cultura. Para que fixemos melhor a dinamicidade da cultura, pensemos nos comportamentos femininos na sociedade ocidental, já que cada sociedade define os papéis que serão desempenhados por homens e mulheres. Durante muito tempo, às mulheres foi interdito o espaço público A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 37 como ambiente para desempenhar atividades laborais ou para outros tipos de atividades que não fossem de interesse da família e do lar. Assim como não eram bem vistas as mulheres que vestissem determinadas roupas, que fumas- sem em público ou sentassem em uma mesa de bar desacompanhadas. Alguns comportamentos continuam não sendo tolerados por indivíduos isoladamente, mas se olharmos pelo prisma da cultura, há, de fato, uma mudança instaurada. As mulheres podem trabalhar e ser remuneradas por este trabalho; as roupas que vestem já não são as mesmas, podem escolher em que momento terão fi- lhos (graças ao advento de métodos contraceptivos como a pílula) ou se querem tê-los e podem, inclusive, escolher com quem casar! E toda esta mudança não quer dizer que elas deixaram de ser mulheres... Considerando o que foi até aqui exposto sobre a importância do concei- to de cultura – a cultura como explicação para a diversidade de comportamen- tos, suas características, como a antropologia se dedica a conhecer a diversidade cultural e a importância do referido conceito para que ocorra o desenvolvimento da própria disciplina –, percebe-se que ela, a cultura, serve não apenas para aqueles que querem se dedicar à Antropologia. Através da consciência da di- versidade cultural, de que todo sistema cultural tem sua própria lógica, apren- demos (ou deveríamos) a respeitar outros modos de vida. Dedicando-nos a co- nhecer os códigos culturais operantes na cultura do outro, podemos interagir de maneira mais tranquila. A interação com um universo diferente do nosso é sempre desafiadora. Perceba como é comum uma certa insegurança durante uma viagem a outra ci- dade ou país, quando nos afastamos das nossas referências. O afastamento dos nossos costumes permite que olhemos nós e, sobretudo, para o outro com um olhar mais brando, pelo menos com maior empenho em enxergar o que há de diferente e como funcionam mundos distintos. Basta imaginar uma viagem tu- rística, em como ela desperta a sua curiosidade sobre a música do lugar visitado, a culinária, os sotaques, os hábitos que caracterizam determinado lugar e seu povo. Transferir para as nossas relações pessoais ou profissionais esse interesse pelo “outro” pode ser igualmente interessante e fértil. Nas páginas seguintes veremos as interfaces da cultura numa mesma sociedade, como elas nos intimam a exercitar um olhar crítico sobre o diferente, pois se concretizam em temas nem sempre fáceis de digerir como sexualidade, gênero e religião. Quantas vezes já não nos encontramos “discutindo” sobre es- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos38 tas questões que se configuram de múltiplas maneiras: o beijo entre um casal de gays na novela; o ministro que não considera os cultos afro-brasileiros como religião, a travesti que é agredida no ônibus ou na rua etc. Se não é fácil lidar com o sabor de uma iguaria com a qual o nosso paladar não está acostumado, o que dizer de questões que mexem com as emoções e com os valores que nos foram transmitidos, tradicionalmente pela nossa cultura? Independente do campo de atuação profissional, estamos sempre su- jeitos a lidar com uma cultura diferente da nossa. Porém, se direcionarmos a questão da diversidade para o âmbito das profissões, saberemos que uma inter- venção antropológica pode não só facilitar a comunicação entre dois universos como também uma possível intervenção. Imagine um nutricionista que precisa prescrever uma dieta para seu paciente. Ele pode elencar uma série de alimen- tos proibidos e outros tantos que devem integrar sua refeição. Será que este nu- tricionista terá o mesmo êxito que aquele que conhece a realidade do paciente, inclusive o que está ao seu alcance ou não no que diz respeito às práticas alimen- tares? A substituição dos alimentos que devem ser evitados pode ser indicada de acordo com as possibilidades culturais do sujeito. Esta dificuldade de interlocução com culturas diferentes já esteve pre- sente no interior da própria antropologia quando esta resolveu se dedicar ao es- tudo do outro e, sobretudo quando passou a olhar para o outro de perto, a partir do trabalho de campo. Os antropólogos que se dedicaram a tentar explicar as diferenças, desde os primórdios, não estiveram isentos ao etnocentrismo. Basta recapitular a perspectiva evolucionista para ilustrar tal afirmação. A tentativa de explicar a diferenças entre as sociedades além-mar e a sociedade europeia se baseou ainda numa perspectiva etnocêntrica, visto que as sociedades encontra- das foram “admitidas” na humanidade, no entanto, pertencendo a uma forma inferior da mesma, pois apenas as sociedades europeias estavam no ápice da escala evolutiva proposta pelos adeptos desta perspectiva. Não se pode esquecer também que se tratava de uma antropologia de gabinete, logo, boa parte dos evolucionistas não conhecia os “nativos” face-to-face , só os “conhecia” através dos relatos de terceiros. Imaginemos como foi o encontro dos antropólogos com os nativos de “carne e osso”... Afastar o etnocentrismo daAntropologia também não foi tarefa fácil. A seguir, apresentaremos os primeiros movimentos da An- tropologia, no sentido de conhecer as sociedades que saem dos discursos de via- jantes e se configuram diante dos olhos curiosos dos antropólogos quando estes A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 39 passam a explorar novos horizontes, buscando entender o ponto de vista dos nativos. Antes disso, porém, coloco de novo a questão que iniciou esta seção, considerando que agora você tem subsídios para respondê-la: você tem cultura? Tente transmitir esta interrogação a outras pessoas e veja em que medida estas compreendem a cultura tal como você, a partir de agora... 1.3 A pesquisa antropológica (etnografia): colocar-1.3 A pesquisa antropológica (etnografia): colocar- se no lugar do “outro”se no lugar do “outro” Como vimos no primeiro tópico, à medida que a Antropologia se desen- volve, alguns “ajustes” vão sendo realizados tanto nas teorias quanto no método por ela utilizado. O trabalho de campotrabalho de campo etnográfico foi, sem dúvida, um gran- de avanço dentro da disciplina. Você recorda que os primeiros trabalhos antro- pológicos foram baseados nos relatos de terceiros (comerciantes, missionários, viajantes etc.) e as críticas que foram direcionadas aos evolucionistas ,entre ou- tras coisas, pela fragilidade dos dados com os quais trabalhavam? Pois bem, esta ausência de dados confiáveis vai ser abolida no momento que os antropólogos, por um ou outro motivo, vão ao encontro dos nativos, coletando dados in loco , sem intermediários (exceto nas ocasiões em que são necessários os intérpretes para traduzir o idioma não conhecido e para apresentar o pesquisador aos na- tivos). Fica evidente que este tipo de pesquisa se diferencia daquela praticada pelos evolucionistas, por exemplo, que ficou conhecida como “antropologia de gabinete”. Coube ao funcionalista Bronislaw Malinowski (1884-1942) o papel de “pai do trabalho de campo antropológico”, embora Franz Boas (1858-1942) já tivesse experimentado estar diante de outra cultura, movido pelo interesse nos esquimós e Morgan, atraído desde jovem pelos costumes iroqueses tenha ido visitá-los. É preciso que alguns pontos sejam esclarecidos, então. Pronto para mais uma imersão nas águas da antropologia? É verdade que Boas foi a campo, esteve entre os nativos, mas há di- ferenças entre esta sua incursão na sociedade esquimó e o trabalho elaborado por Malinowski. O primeiro estava preocupado em fazer uma coleta de dados direta, mas não havia uma preocupação com o método. Seu interesse inicial era obter informações sobre a distribuição e a mobilidade dos esquimós, sobre suas migrações (lembre-se da sua formação na geografia). Tanto que como resulta- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos40 do desta pesquisa foram divulgados inicialmente os dados geográficos e apenas três anos depois os dados considerados etnográficos. Como coloca Celso Castro (2010, p.10): “Boas parece ter permanecido entre os esquimós muito mais como um observador do que como um pesqui- sador participante, no sentido que essa expressão assumiria na antropologia pós-Malinowski”. De acordo com Castro (op.cit.), o principal papel de Boas na antropologia cultural americana não foi como formalizador de teoria, mas o pa- pel de crítico das teorias vigentes, como o evolucionismo e o racismo. Embora Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) tenha sido publicado anos depois da ida de Boas a campo, a perspectiva antropológica e o cuidado na coleta de da- dos são as principais diferenças que colocam Malinowski como “pai do trabalho etnográfico”, ainda que cronologicamente venha depois de Boas. Malinowski tornou célebre o método de pesquisa cuja principal característica era a imersão total na cultura do “outro” e cujo sucesso dependia da capacidade do antropólo- go de “vestir a pele de outrém”, pensar e agir como o faziam os “selvagens”, ca- racterizando o que mais tarde Clifford Geertz denominaria antropólogo semica- maleão, “um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (GEERTZ, 2009, p.85). Para o referido autor, a publicação do diário de campo do próprio Malinowski teria jogado por terra esta imagem do antropólogo tão bem situado e adaptado à cultura nativa. No momento em que Malinowski, com o seu olhar funcionalista per- cebe que, para entender a cultura do outro é necessário conhecê-lo de perto, inaugura um novo e importante tempo para a Antropologia. Além do “rompi- mento” com a história – lembre-se de que a análise funcionalista se atém ao momento presente, sem se preocupar com o passado ou o futuro da sociedade estudada, ou seja, defendia uma perspectiva sincrônica – Malinowski instaura um método que será característico da Antropologia, a observação partici-observação partici- pantepante. Segundo o referido autor, para entender a cultura do outro é necessário que você viva tal qual os nativos da sociedade estudada vivem, experimentando todos os aspectos da sua cultura, colocando-se no lugar do outro. Assim, inicia a sua clássica etnografia: Imagine o leitor, que de repente desembarca sozinho numa praia tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a lancha ou a pequena baleeira que o trou- xe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se instalou A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 41 na vizinhança de um homem branco, comerciante ou missio- nário, não tem nada a fazer senão começar imediatamente o seu trabalho etnográico [...]. (MALINOWSKI, 1976, p.19) Você consegue se imaginar como proposto pelo Malinowski? Consegue imaginar uma situação de isolamento numa comunidade diferente da sua cultura de srcem, preparando-se para viver a cultura do outro com o qual tem contato pela primeira vez? Talvez seja importante este exercício para dimensionar a importância do que sugere o autor referido para a Antropologia e também para refletir sobre como é estar no lugar do outro, mesmo que o outro seja alguém que mora no seu bairro, mas lhe parece exótico. Pois bem, continuemos com a nossa jornada... Quando desembarca nas Ilhas Trobriand (Nova Guiné), e relata o afas- tamento do barco que o levou até lá, ele se refere também ao afastamento da sua cultura, à entrega a um novo modo de vida. Esta não foi uma tarefa fácil (que o diga o diário de campodiário de campo20 publicado postumamente pela sua viúva!), pois não se consegue se desvencilhar de todos os seus gostos, costumes, de toda a sua cultura e assimilar a cultura do outro, como num passe de mágica. Lembra Geertz (2009, p.86) que Malinowski dizia “coisas bastante desagradáveis sobre os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente desagradáveis para ex- pressar esses comentários”. Para tornar esta experiência mais próxima de você, imagine-se viajando para outro país, a França, por exemplo. Apesar do glamour que caracteriza a “cidade luz”, ao chegar lá, além do impacto visual e do clima diferente (especialmente se for inverno), o segundo estranhamento diz respei- to ao idioma. É preciso algum tempo para familiarizar os ouvidos e eliminar o sotaque até compreender e ser compreendido através de uma língua que não é a sua. No entanto, aprender a língua ainda não é suficiente para viver como os franceses, pois a cultura vai além do idioma. Os hábitos alimentares, o que pode ser dito em público, como dizer, as saudações etc. Todo este universo contribui para o “espanto” diante de uma cultura diferente. O que dizer, então, do contato de Malinowski com os nativos trobriandeses? 20 Durante o período em que está imerso em suaspesquisas, além de tomar notas dos aspectos que julga importante para compreender a sociedade do outro, o antropólogo seutiliza de um “diário de campo” no qual pode descrever sua experiência pessoal durante o período de trabalho de campo. Após a morte de Malinowski sua esposa tornou públicas as anotações do antropólogo (Um Diário no Sentido Estrito do Termo ; Editora Record, 1997), causando grande celeuma por expor suas angústias, o desconforto diante dos nativos e suas impressões “menos nobres”, digamos assim. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos42 Em que pesem as dificuldades do pesquisador tão bem reveladas em seu diário, o resultado do que foi produzido pavimentou um novo caminho para a Antropologia. Afirma Eunice Durham que Malinowski alterou radicalmente a prática etnográfica [...] passando a viver afastado do convívio de outros homens brancos e aprendendo a língua nativa, tarefa para a qual, aliás, era extremamente dotado. Desse modo, embora não dispensando o uso de informantes, substitui-o em grande parte pela observaçãodireta, que só é possível através da convivência diária, da capaci- dade de entender o que está sendo dito e de participar das con- versas e acontecimentos da vida da aldeia. (DURHAM, 1976, XIII) Devemos lembrar que até então a prática antropológica se baseava em dados secundários, sem que houvesse envolvimento com os sujeitos investiga- dos ou sistematização de um método que permitisse atingir os objetos iniciais da pesquisa de forma mais acurada. O outro estava tão distante culturalmente quanto geograficamente e os tipos de pesquisas realizadas não possibilitavam uma aproximação mais detalhada e precisa. Ao apontar para a importância da observação participante, Malinowski a toma como imprescindível para a com- preensão das sociedades estudadas. Ele entende que os tipos de pesquisas re- alizadas até então – exemplifica com pesquisas quantitativas – fornecem uma espécie de “esqueleto” da sociedade investigada. Tal esqueleto precisa de “carne e sangue” a fim de que se obtenha uma percepção adequada da realidade e isto viria da observação participante, que possibilita o testemunho de fatos cotidia- nos e representativos da sociedade ou grupo em questão. Não esquecendo que estamos falando de uma abordagem funcionalista, ele critica as pesquisas de outrora que apenas descreviam traços culturais. Para Malinowski, não importa constatar a existência de determinado evento, fenômeno ou traço cultural, é preciso saber a função que desempenha para a sociedade na qual ele se encon- tra, daí a importância da observação participante. A proposta de observação participante do Malinowski, tem a ver com o que ele denomina “magia do etnógrafo”, que consiste em seguir as regras do bom senso somada aos princípios científicos. Assim poderíamos resumir o queo autor propõe na realização do trabalho de campo como princípios metodoló- gicos a seguir: 1.1. Estabelecer objetivos; 2.2. Ter boas condições de trabalho (viver entre os “nativos” sem depender dos brancos); 3.3. Utilizar métodos especiais de A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 43 coleta, manipulação e registro de evidências. Ressalte-se, no entanto, que o fato de estabelecer objetivos não significa que ele não possa mudar de ponto de vista ou incluir algo que não estava programado no início da pesquisa. Assim como ir ao campo inspirado por resultados de estudos científicos não equivale a ir fazer pesquisa sobrecarregado por ideias pré-concebidas. Afinal, diz o “pai do traba- lho de campo” que devemos moldar as teorias aos fatos, questionando se eles são relevantes ou não para a sua teoria. Logo, o etnógrafo é um caçador ativo e atento dos fatos etnográficos! Como havíamos adiantado em outros momentos do texto, o movimen- to de constituição da Antropologia, de suas teorias e seus métodos é feito por ganhos e perdas, por avanços, retrocessos, propostas e contestações. Este mo- vimento não se dá de forma linear e bem arranjado, porém tentamos “arrumar” a casa para que o leitor possa ser bem recebido. Sendo assim, passemos àquele que vai ser um dos principais críticos ao tipo de trabalho de campo sustentado por Bronislaw Malinowski. Já havíamos assinalado nas linhas anteriores que Clifford Geertz não concorda totalmente com o que propõe o polonês funcio- nalista, não acredita que é possível perceber o mundo como o nativo o percebe, ainda que viva como ele. Geertz reconhece que traduzir para o leitor o que se passa na cultura do outro é algo realmente desafiador, mas uma tarefa [...] um pouco menos misteriosa que se colocar ‘embaixo da pele do outro’. O truque é não se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiritual interna com seus informantes. Como qual- quer um de nós, eles também preferem considerar suas almas como suas, e, de qualquer maneira, não vão estar muito interes- sados nesse tipo de exercício. O que é importante é descobrir que diabos eles acham que estão fazendo. (GEERTZ, 2009, p. 88) As criticas de Geertz são dirigidas principalmente a esta impossibilida- de de se colocar inteiramente no lugar do nativo, de viver e pensar como eles, pois o antropólogo, segundo afirma o próprio Geertz (Op. Cit.), não é capaz de perceber o que seus informantes percebem. Ao mesmo tempo em que tece as críticas ao modelo malinowskiano de fazer pesquisa, ele propõe uma nova ma- neira de trabalho etnográfico. Lembra que o Geertz defendeu uma antropologiainterpretativa? Nesta perspectiva a cultura deve ser lida e interpretada como um texto de segunda mão, pois o acesso ao texto srcinal só os nativos possuem. Sendo assim, cabe ao antropólogo interpretarinterpretar os fatos que observa na cultura Fundamentos Antropológicos e Sociológicos44 alheia. Vejamos um exemplo utilizado pelo do próprio Geertz (inspirado em Gilbert Ryle), a diferença entre o ato de piscar como algo involuntário (tique nervoso) e uma piscadela (ato conspiratório, pensado): [...] a diferença entre um tique nervoso e uma piscade- la é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda. O piscador está se comunicando e, de fato, comunicando de uma forma pre- cisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em par-ticular, (3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um código socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros. (GEERTZ, 1989, p. 5) O autor supracitado chama a atenção para o fato de que no segundo caso trata-se de algo pensado, a pálpebra é contraída de propósito, transmitindo um código, logo há um sinal de cultura, há algo que deve ser “decifrado”. Conse- gue compreender a distinção? A preocupação em estabelecer um aparato teórico-metodológico pró- prio para a Antropologia já se delineia quando a mesma estabelece um objeto de estudo que tem como essência o estudo do homem “primitivo”, ou “selvagem”, ou “primevo”, conforme anuncia Kuper (1978). Também François Laplanti- ne (2004, p.13) caracteriza o conhecimento antropológico emergindo com “aobservação rigorosa, por impregnação lenta e contínua, de grupos humanos minúsculos com os quais mantemos uma relação pessoal”. Porém, o olhar an- tropológico acaba indo além destes tipos de sociedade, projetando o fazer etno- gráfico em diferentes direções. Se nos seus primórdios, os olhos da Antropologia estiveram voltados para os costumes “exóticos”, para as sociedades distantes de “nós” geográfica e culturalmente, chega um determinado momento em que a nossa própria so- ciedade torna-se objeto de estudo. Neste momento, já que não há o distancia- mento geográfico e os antropólogos estão analisando a própria cultura, existem também desafios. Já afirmava Roberto DaMatta (1978) que “fazer antropologia é transformaro exótico em familiar e o familiar em exótico”. Vimos quão árduo foi o processo de construção do pensamento antropológico e o desafio de des- bravar culturas até então desconhecidas, as chamadas “sociedades primitivas” e transformar todas aquelas diferenças encontradas em algo familiar, compre- ensível. Quando direcionamos um olhar antropológico para a nossa sociedade, não é um processo menos desafiador e problemático. Transformar o familiar A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 45 em exótico requer alguns cuidados e artifícios também. Já não há um idioma a aprender (embora existam expressões ou gírias características de determinados grupos que precisam ser “traduzidas”), por exemplo, mas um distanciamento que permita encarar hábitos tão próximos de nós como passíveis de serem estu- dados, descobrir no meio do nosso universo cultural questões que podem e de- vem ser pensadas antropologicamente, tornam-se também obstáculos a serem superados. Qualquer que seja o grupo ou sociedade estudada, o antropólogo que pretende construir um trabalho etnográfico deve estar sempre com os senti- dos treinados, especialmente, dois deles: visão e audição. Retomo Laplantine (2004, p.15) para enfatizar a experiência etnográfica como “atividade percepti- va baseada no despertar do olhar, na surpresa provocada pela visão, buscando observar atentamente tudo que encontramos, até mesmo os comportamentos que parecem insignificantes (anódinos)”. Este tipo de observação (etnográfica) deve incluir as expressões corporais, os hábitos alimentares, os silêncios, enfim, todos os detalhes que pareceriam desnecessários ao observador não iniciado na antropologia. Nesse sentido, o referido autor estabelece uma importante distin- ção entre ver e olhar. No primeiro caso, podemos falar de recepção de imagem através de um contato imediato. No caso da percepção etnográfica, há um olhar questionador buscando significados, o que leva Laplantine (2014, p.18) a afir- mar que etnografia é mais olhar que visão, “é a capacidade de olhar bem e olhar tudo, distinguindo e discernindo o que se encontra mobilizado”. Perceba que além da diferença entre ver e olhar, há que se ter consci- ência de que o olhar do pesquisador que vai a campo na Antropologia é treina- do pela sua imersão na disciplina, pelo corpo teórico que ele utiliza, de acordo com sua formação acadêmica. Porém, apenas o olhar não é suficiente para com- preender uma determinada realidade e construir um trabalho antropológico consistente. Roberto Cardoso de Oliveira (1988) afirma que a domesticação do olhar para a pesquisa de campo deve se somar o “ouvir”, também condicionado pela teoria antropológica. Segundo Cardoso de Oliveira (op. cit.), olhar e ouvir são como muletas utilizadas pelo pesquisador para que ele possa caminhar na estrada do conhecimento. Para compreender outros aspectos não captáveis pelo olhar, devemos ouvir o que os “nativos” têm para nos dizer, temos que ouvir o sentido que eles atribuem a tudo que compõe seu universo, estabelecendo um diálogo com ele. Este diálogo inclui as conversas informais, as entrevistas (gra- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos46 vadas ou não) e/ou questionários. Assim procedendo estamos preenchendo o tal esqueleto malinowskiano com carne e sangue! Mas ele só terá vida quando passarmos para a “terceira etapa” do trabalho etnográfico: escrever. No momento da escrita estaremos articulando os dados (obtidos pelo “olhar” e pelo “ouvir”) com o arsenal teórico que vai direcionar a construção do texto, assim como influenciou a coleta dos dados. Está claro, então, que a descri- ção etnográfica é marcada, desde o início, pelo contexto no qual ela é construída e pelo posicionamento do antropólogo (sob o ponto de vista teórico e pelo lugar que ele ocupa na sua sociedade e na sociedade do outro). Ao escrever uma etno- grafia estamos ordenando, classificando, tentando explicar uma determinada realidade observada. Trata-se de uma descrição na qual o pesquisador está colo- cando suas impressões, controlando informações, ordenando-as conforme sua percepção e seus objetivos. Deste modo, Laplantine (2004) adverte que é uma ilusão achar que aquilo que colocamos no papel é uma cópia fiel da realidade, pois, como acabamos de afirmar, há um ponto de vista ali implicado (e não é só o ponto de vista do “nativo”), uma escolha, uma perspectiva que se apresenta entre tantas possíveis. O que temos, em suma, é a representação da realidade estudada. Tendo definido as preocupações que cercam a execução de um trabalho de campo, no sentido antropológico, e como este vai assumindo características que lhe são peculiares, através da contribuição de diferentes autores, e ainda as fases de realização do mesmo, gostaria de chamar a atenção para um aspec- to fundamental para o êxito deste tipo de empreitada: a aceitação (ou não) do antropólogo na sociedade que pretende estudar. Não havendo empatia entre o pesquisador e os pesquisados outras duas possibilidades de reação são igual- mente problemáticas, visto que impossibilitam o desempenho da pesquisa: a in- diferença ou a rejeição. Como exemplo do primeiro caso, utilizarei a experiência de Clifford Geertz e Hildred (sua esposa e também antropóloga) na investigação sobre a briga de galos em Bali. Nada traduz melhor tal experiência que as pró- prias palavras do autor: Em princípios de abril de 1958, minha mulher e eu chega-mos a uma aldeia balinesa, atacados de malária e muito aba- lados, e nessa aldeia pretendíamos estudar como antropólo- gos. Um lugar pequeno, com cerca de quinhentos habitantes e relativamente afastado, a aldeia constituía seu próprio mundo. Nós éramos invasores, proissionais é verdade, mas A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 47 os aldeões nos trataram como parece que só os balineses tra- tam as pessoas que não fazem parte de sua vida e que, no en- tanto, os assediam: como se nós não estivéssemos lá. Para eles, e até certo ponto para nós mesmos, éramos não-pes- soas, espectros, criaturas invisíveis. (GEERTZ, 1989, p. 278) Diferentemente do que experimentara em outros lugares da Indonésia e no Marrocos, o antropólogo não foi o centro das atenções! A invisibilidade, a falta de interação impossibilita o acesso ao mundo do outro de maneira satis- fatória, impossibilita o “ouvir” e, sobretudo, a participação na sua cultura. Na impossibilidade de mudar de objeto de estudo (lembrando que antes de ir a campo há todo um investimento na elaboração de um projeto de pesquisa), cabe ao antropólogo reverter esta falta de inserção no campo de alguma maneira. No caso do Geertz, acima relatado, a aceitação ocorreu por uma confluência de acaso e perspicácia. Enquanto assistiam a uma briga de galos, assim como boa parte dos aldeões em Bali, chegou um caminhão da polícia e instaurou-se uma correria para a fuga. Geertz e sua esposa se envolveram no tumulto e Na metade do caminho, mais ou menos, outro fugitivo en- trou subitamente num galpão — seu próprio, soubemos de- pois — e nós, nada vendo à nossa frente, a não ser campos de arroz, um campo aberto e um vulcão muito alto, seguimo--lo. Quando nós três chegamos ao pátio interno, sua mu- lher, que provavelmente já estava a par desses acontecimen- tos, apareceu com uma mesinha, uma toalha de mesa, três cadeiras e três chávenas de chá, e todos nós, sem qualquer comunicação explícita, nos sentamos, começamos a beber o chá e procuramos recompor-nos. (GEERTZ, 1989, p. 281). Quando um policial chegou para abordá-los, o nativo saiu em defesa do casal, explicando detalhadamente não só quem eram os dois, mas deonde vinham e o que ali faziam. Após tal evento, o casal não só deixou a invisibilidade como passou a centro das atenções para os balineses, já que havia decidido fugir junto com eles quando poderiam se explicar à polícia sem grandes problemas. Não preciso dizer que a partir de então o trabalho foi desenvolvido sem a ame- aça da indiferença. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos48 Nos casos em que impera a antipatia – não a empatia ou apatia – por parte dos sujeitos investigados, tem-se também uma situação complicada e difí- cil de reverter, cabendo ao pesquisador encontrar interstícios através dos quais possa ter acesso ao mundo do outro. A falta de colaboração por parte dos sujei- tos investigados é algo que traz muitas dores de cabeça aos antropólogos, como experimentou Geertz em Bali e Evans-Pritchard entre os Nuer . Neste último caso, o autor manifesta as dificuldades enfrentadas durante sua estada no seio daquele povo. Ele relata que chegou a um momento da convivência entre os nativos em que os recebia em sua barraca, compartilhava do tabaco (fumando Nativo de Bali exibindo o galo antes da briga Briga de galos em Bali A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 49 juntos), havia brincadeiras, conversas informais. Por outro lado, não era recebi- do nos abrigos deles e nem conseguia obter informações sobre assuntos sérios. Representativo da não contribuição do nativo é a tentativa de diálogo entre ele e Cuol, quando a cada pergunta feita pelo antropólogo, a resposta é outra per- gunta, impossibilitando o acesso à informação desejada e finalizando o ensaio de conversa com um pedido de tabaco. Longe das “sociedades simples” e dentro da nossa, também experien- ciamos percalços, especialmente se estamos lidando com grupos que não são bem vistos pelos demais indivíduos de dada sociedade – os chamados outsiders ou desviantes –, a exemplo das prostitutas, dos michês, dos adeptos de jogos, dos gays e lésbicas. Geralmente a intermediação de alguém que seja bem vindo ao grupo estudado facilita muito a inserção no “campo”, mas não garante a eli- minação da tensão que permeia o trabalho, considerando que é preciso romper ou atenuar a possibilidade de ser visto como uma ameaça ou como alguém que pode trazer problemas. Quero dizer que algumas vezes podemos ser vistos com desconfiança e isto pode minar o trabalho do antropólogo. Quando estivemos demonstrando como o antropólogo atua na inves- tigação da cultura do outro, tínhamos como objetivo não apenas mostrar que ele não age como um curioso do senso comum interessado em conhecer outro universo para classificar ou mesmo julgar o outro. Somado ao método e à teoria que o subsidia para ir fazer o seu trabalho de campo, o antropólogo leva também as premissas que estão contidas no código de éticacódigo de ética21. Mais que isso, ele vai a campo com o interesse de mostrar a importância de “olhar” e “ouvir” a cultura do outro, esteja ele num país do outro lado do oceano ou no bairro vizinho ao nosso, já que no momento atual a antropologia não precisa necessariamente de um deslocamento geográfico para encontrar as diferenças. Elas estão o tem- po todo em nossa volta incitando as nossas reflexões: as famílias homoparen- tais, os rituais ou grupos religiosos, as festas populares, os skatistas, são alguns exemplos do que pode ser construído antropologicamente como objeto de estu- do. Eventos recentes como os “rolezinhos” ou práticas discriminatórias que têm como pressuposto o conceito de “raça” são exemplos de fenômenos sobre os quais os antropólogos podem se debruçar de modo a produzir um conhecimen- to qualitativo e favorecer as possíveis intervenções quando for o caso. 21 No Brasil seguimos o código de ética proposto pelas Associação Brasileira de Antropo- logia (ABA). Disponível em: <http://www.abant.org.br/?code=3.1> Fundamentos Antropológicos e Sociológicos50 Evoco François Laplantine (2004, p.14) para lembrar o que de algum modo vínhamos indicando desde as primeiras páginas deste livro: “O conhe- cimento antropológico da nossa cultura passa obrigatoriamente pelo conheci- mento das outras culturas e nos conduz especialmente a reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas, mas não a única”. Deste modo a antropologia, assim como a sociologia, pode facilitar o entendimento do contexto onde atuam os diferentes profissionais. A intervenção de qualquer conhecimento nos modos de agir e pensar dos indivíduos devem levar em consideração o contexto cultural dos sujeitos, de maneira a ter um acesso efetivo ao seu universo e intervir de maneira eficiente. Assim sendo, todo o esforço antropológico tem valido a pena ao apontar para estas possibilidades todo o tempo, ainda que nos primórdios tenhamos caminhado um tanto tropegamente. Se você conseguiu chegar até aqui mesmo após navegar por águas nun- ca dantes navegadas, nós o felicitamos. Mas também não poderia deixar de lan- çar mais algumas questões: você percebeu que nos altos e baixos da maré, no balanço deste mar antropológico, o trabalho de campo nos aproxima do outro nos permitindo enxergar as diferenças sob um ângulo que possibilita o enrique- cimento do fazer antropológico? Percebe em que medida a etnografia contribui para o entendimento da realidade humana e a contribuição dos principais au- tores para os ajustes necessários à prática da observação participante? Mesmo quando os antropólogos se voltam para sua própria sociedade é a etnografia que fornece os meios necessários para a compreensão dos diversos modos de vida. Como afirma Oscar Saez (2013, p.42-43): A etnograia é uma operação mais complexa, muito mais com- plexa, que na sua observação participante, nas suas entrevistas ou no diálogo entre o antropólogo e o nativo leva embutidas as teorias, as hipóteses, as interpretações. Todo (sic) que há de mais essencial na Antropologia está no momento da pesquisa etnográica, e não espera a se manifestar até o momento em que o antropólogo se esconda a analisar suas notas e seus diários. Espero, então, que tenha ficado evidente o quanto a antropologia ga- nhou ao se colocar próximo ao outro ou no lugar do outro, através da prática et- nográfica e apesar das críticas dirigidas a ela. Não gostaria de tentar etnografar algo que chama a tua atenção? Que tal o exercício? A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 51 1.4 1.4 Contribuições Contribuições da da Antropologia Antropologia no no BrasilBrasil Até aqui abrimos juntos várias portas do interior da Antropologia e conseguimos espreitar como ela se construiu e como se sustenta a partir das contribuições de países como Inglaterra e Estados Unidos. Que tal conhecer agora como a Antropologia se pinta de verde e amarelo? Vamos saber como a Antropologia aporta em terras brasileiras e como é tomada para analisar uma realidade com sotaque peculiar desde a sua formação? O “Brasil lindo e triguei- ro” do João Gilberto, além de samba e pandeiro também tem Antropologia! A esta altura você já é quase um antropólogo, tão familiarizado que deve estar com as propostas antropológicas. Retomemos o fôlego e a caminhada.... Roberto Cardoso de Oliveira (1984) estabelece uma gênese da chamada Antropologia Brasileira, marcada pela definição de seu objeto de estudo que eram os negros, os índios e os brancos, por duas tradições que se estabelecem tanto na academia quanto no mundo profissional que lhe é exterior: Etnologia Indí- gena e Antropologia da Sociedade Nacional. Como todo começo é sempre difícil e um trançar de pernas que dificulta a caminhada, Cardoso de Oliveira se refere ao períodoinicial da Antropologia no Brasil, entre as décadas de 1920 a 1930, como sendo o “período heroico”, um período em que tanto a profissão quanto o campo antropológico não estavam institucionalizados nestas terras. Tal perío- do tem como desbravadores desta seara Curt Nimuendajú (Etnologia indígena) e Gilberto Freyre (Antropologia da Sociedade Nacional). O primeiro viveu entre 1883 e 1945 e se chamava, na verdade, Kurt Unkel22. Alemão de srcem, tem uma trajetória incomum se comparado aos que transitam e fazem a Antropologia, vis- to que não tinha formação acadêmica, não era professor em nenhuma instituição e não se filiava a nenhuma tradição teórica. Apesar dessas características, se so- bressaia na Antropologia pelos diversos trabalhos de campo realizados e por focar seus estudos, justamente nas características mais marcantes das sociedades indí- genas (MELATTI, 1985). Gilberto Freyre, por sua vez, já é seu conhecido, e sua contribuição para uma Antropologia Brasileira está explicitada em "Casa Grande & Senzala" (já aqui mencionado) e "Sobrados e Mocambos". 22 Tornou-se Nimuendajú (aquele que faz a sua própria casa) após um ritual de batismo realizado pelos índios Apapokuva-Guarani. Daí abrasileirou o Kurt srcinal e passou a as- sinar como Curt Nimuendajú-Unkel. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos52 A segunda fase da Antropologia no Brasil delimitada por Cardoso de Oliveira (1984) ocorre entre as décadas de 1940 e 1950, configurando o que ele chama de período carismático e elege como expoentes Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro, autores fundamentais para a consolidação do campo antropo- lógico no Brasil. O terceiro período, burocrático, inicia-se em meados dos anos 1960 e vai até a década de 1980, tendo como marco para a expansão dos estudos antropológicos no Brasil, a implementação dos primeiros cursos de mestrado em Antropologia. Nestas décadas em que a Antropologia se firma no Brasil estabelecendo relações, digamos, de parentesco com a Antropologia feita em outros países, acaba assumindo características próprias porque o próprio contexto exige, devido aos ob- jetos de estudo aqui delimitados e às tradições teóricas às quais se filiam os antro- pólogos em formação. Sim, os autores mencionados por Cardoso de Oliveira supra- mencionados são responsáveis por solidificar o campo de atuação dos antropólogos e formam suas linhagens, se assim posso colocar. Mas aqui gostaria de dedicar o espaço a três antropólogos, que através de sua obra, permitem o acesso à Antropo- logia do Brasil. Seja bem vindo à Antropologia em verde e amarelo! Agora que conhecemos um pouco da trajetória percorrida pela Antro- pologia para o estudo da diversidade cultural, alguns de seus principais con- ceitos e a contribuição metodológica dessa ciência que estimula a mudança do olhar, as diferentes culturas, vamos conhecer algumas interpretações sobre a sociedade brasileira, através de três pensadores: Gilberto Freyre, Sérgio Buar- que de Holanda e Roberto DaMatta. Cabe, entretanto esclarecer que a escolha por esses pensadores foi arbitrária dentre tantos antropólogosantropólogos que prestaram seu esforço para pensar a cultura brasileira. Embora a teoria de Gilberto Freyre tenha, por muitas vezes, sido consi- derada conservadora, por explorar as relações de harmonia entre índios, escra- vos e colonizadores, não podemos negar a grande contribuição de ruptura com as interpretações anteriores de Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Viana que foram influenciados pela noção de superioridade/inferioridade do pensamento positivista. Freyre se dedicou principalmente em descrever a con- tribuição que cada etnia ofereceu na composição do povo brasileiro. Casa Grande e Senzala foi publicado pela primeira vez em 1933 e faz parte da trilogia que, juntamente com “Sobrados e Mocambos (1936) e “Ordem e Progresso” (1958), buscam descrever a formação da sociedade brasileira, a partir A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 53 das relações subjetivas e do cotidiano. Para Freyre, a abolição da escravatura e a proclamação da República pouco teria mudado a respeito do modelo agrário e pa- triarcal. O escravo tinha sido substituído pelo boia-fria, a senzala pelo mocambo e o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista que surgira. Para compreender a relação entre o poder a as relações privadas esta- belece uma relação entre os espaços da casa grande, modelo patriarcal que no período colonial exerce forte poder, e a senzala, lugar da reclusão dos negros escravizados, mas ao mesmo tempo em que se reestruturam traços culturais como religiosidade e hábitos alimentares, reinventados pela diversidade cultu- ral africana e das possibilidades limitadas. Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses. Valeu-se também dos registros dos pensadores da época da colônia e também buscou estudar o cotidiano e a cultura dos índios e dos negros, submetidos à colonização. Em sua análise da colonização portuguesa do Brasil, observou que a so- ciedade se baseou no modelo agrário e escravocrata, utilizando-se,inicialmente, do trabalho indígena e, mais tarde, do negro, formando um povo “híbrido”. A mis- cigenação, para ele, teria sido a forma como os portugueses compensaram a busca de ocupação territorial tão extensa, em meio ao pouco contingente de lusitanos que ali chegavam. É necessário lembrar que a maior parte dos portugueses que aportavam no Brasil eram homens que encontraram nas mulheres índias e ne- gras, a melhor forma de povoamento. “Atraídos pelas possibilidades de uma vida livre”, afirma Freyre (1996, p.21), “inteiramente solta, no meio de muita mulher nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus”. Por conta disto, os índios foram submetidos ao cativeiro, à prostituição e à degrada- ção dessa cultura, em detrimento do domínio dos interesses europeus. Segundo Gilberto Freyre, a sociedade se forma em meio a um processo que conjuga desigualdades na condição dos negros e índios que se misturam ao mandonismo do branco ,no interior da casa-grande, constituindo um modelo único das relações sociais e culturais. As relações de poder, a vida doméstica e sexual, os negócios e a religiosidade misturavam-se para a formação do Brasil. Percebeu no trabalho árduo do negro na plantação da cana-de-açúcar a base para o fortalecimento da casa-grande. Na casa-grande se concentrava todos as Fundamentos Antropológicos e Sociológicos54 instituições sociais existentes naquela época: a família, que fundamenta o pa- triarcalismo; a economia e a política, que definiam os rumos da produção, das relações com a escravidão e da exportação; a religiosidade, através do catolicis- mo reforçado pelas capelas e pela freqüência das autoridades religiosas nesse espaço; fundamentando, dessa maneira, a colonização portuguesa no Brasil. Assim sendo, não só índios e negros tiveram que se adaptar às novas condições determinadas pela colonização (como se submeter ao catolicismo e a língua portuguesa), mas também os próprios portugueses tiveram que mudar seus hábitos alimentares, passando também a sofrer influência das etnias mar- ginalizadas. A respeito disso, afirma Gilberto Freyre, que a dieta dos portugue- ses, baseada no uso do leite, ovos e carne, ficou comprometida na colônia, pois só apareciam em datas especiais, festas e comemorações. Somado a isso, Gilberto Freyre afirmava que o português apresentava uma capacidade de se misturar facilmente com outras raças, uma vez que estes vinham sem família,sozinhos. Diante desse contexto, o contato humano, exis- tencialmente necessário, contribuía para a reprodução, primeiro com as índias e, depois, com as negras, escravas de um povo que nascia. Sem esquecer que, para os interesses da colonização, era preciso povoar o território. A casa-grande conta também com a colaboração da Igreja Católica no empreendimento de difundir a fé cristã e propagar valores que levam os índios a vestir roupas e abandonar a vida na floresta, enquanto o senhor de engenho tentava escravizá-los. Os homens índios eram usados no trabalho extrativista e na guerra contra outros exploradores e as mulheres indígenas na reprodução e for- mação da família. Numa situação ou noutra, o resultado foi o extermínio de várias comunidades indígenas ou a ocupação do interior do Brasil pelos índios fugidos. Para ele, em todas as colonizações ocorridas naquele período, foi na sociedade brasileira onde aconteceu a maior troca de valores culturais, embora tivesse tam- bém provocado o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente. A relação do português com a índia resultou nos mamelucos que atua- vam como bandeirantes na exploração das novas terras. O mameluco e o índio se caracterizavam pelo traço cultural do nomandismo, sendo portanto, de pouca utilidade para a produção agrícola da cana de açúcar. Os portugueses, por sua vez, haviam contribuído na formação da so- ciedade brasileira através da implantação da produção da cana de açúcar que aprenderam com os mouros no período da ocupação da Península Ibérica. Esse A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 55 fato, segundo Gilberto Freyre, determinou a relação entre as etnias formadoras da sociedade brasileira, entre homens e mulheres, do senhor e dos índios, da igreja e dos seus fiéis. Por muito tempo os índios foram submetidos à catequização cristã que modificava sua forma de vida e negava suas crenças na natureza. Contudo, nem a Igreja e nem o senhor de engenho conseguiram enquadrar o índio no siste- ma de colonização, uma vez que distante do seu habitat natural, o índio não se adaptava como escravo, adoecendo ou morrendo com facilidade. Na tentativa de solucionar os problemas na produção açucareira, os senhores passam a im- portar negros oferecidos pelo tráfico negreiros. Aos poucos as escravas negras foram ocupando o lugar das índias tanto na cozinha como na reprodução da população brasileira. Na agricultura, a pre- sença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado internacional. Gilberto Freyre afirmou que entre os africanos que vinham para o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só a dos índios como também a da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam quase sem nenhuma instrução. Considerava os negros vindos das áreas de cultura africana mais adian- tada um elemento ativo, criador na colonização do Brasil, degradados apenas pela condição de escravos. Para ele, o negro escravo e a cana-de-açúcar fun- damentavam a colonização aristocrática, que se repetia, posteriormente, nos ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa sociedade, valores culturais e sociais se misturam entre negros e brancos, cons- tituindo o caráter exclusivo do brasileiro. Descrevia o senhor de engenho como um homem extremamente pode- roso e rico, que passava a maior parte do tempo deitado na rede, enquanto o ne- gro sedimentava a sua riqueza com seu trabalho e sangue. A relação de mando- nismo que submetia o negro ao trabalho escravo, passava a ser transmitida aos negros recém chegados, pelos negros que já viviam aqui. Estes também haviam contribuído na colonização, através da reprodução de escravos ao mesmo tem- po em que serviam a experiências sexuais dos filhos dos senhores de engenho. A mulher escrava transitava entre a senzala e a casa-grande, estreitando a relação entre negros e colonizadores. Sofriam desde o assédio dos desejos sexuais dos homens, até os mais variados castigos das mulheres enciumadas. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos56 Entre as mulheres brancas, o costume do casamento cedo já faziam destas, mães e donas de casa aos dezoito anos. Além dos desgastes provocados pelos partos sucessivos, a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas e pouco atraentes. Por outro lado, as negras já se relacionavam com os brancos desde os primeiros dias de vida. A ama de leite ensinava as primeiras palavras num português errado, as cantigas e as brincadeiras, etc. Posteriormente, os iniciava nas experiências sexuais, negada às moças brancas, a quem o sexo só serviria à procriação, sacramentada pelo casamento. Em sua obra “Raízes do Brasil”, escrito em 1936, Sérgio Buarque de Holanda mostra a formação da sociedade brasileira como resultado da relação entre várias culturas. Portanto, sua interpretação inicia pela formação dos pa- íses Ibéricos, que segundo ele, faziam fronteiras entre a Europa com o mundo, através do mar, o que explicava um certo distanciamento dos traços culturais “europeizados” em relação a outros países. Portugal apresentava uma organiza- ção flexível, dada a relação de igualdade entre os homens, em contraposição ao modelo hierárquico do feudalismo. Essa forma de organização, chamada por Sérgio Buarque de “menta- lidade moderna”, reproduziu-se também na formação da sociedade brasileira. Ela também explicaria o sucesso dos portugueses para as missões de conquistas no Novo Mundo. Neste novo empreendimento, afirma ele, surgem dois tipos de homens: o aventureiro, que se lança ao novo ambiente, novos povos e desafios; e o trabalhador, capaz de explorar a terra com as técnicas aprendidas no contato com os povos asiáticos. Com objetivo de exploração da nova terra, a escravidão do negro teria sido a forma de produção, considerando a resistência dos índios brasileiros a esse sistema. O português vinha para a colônia buscar riqueza sem muito traba- lho, além disso, eles preferiam a vida aventureira ao trabalho agrícola. A escolha do trabalho do negro também se dava pelo conhecimento que os portugueses tinham da escravidão africana. Outro elemento que favoreceu a colonização teria sido a língua por- tuguesa, que segundo ele, teria facilitado a comunicação entre índios, portu- gueses e negros. Somado a isto, a Igreja Católica havia contribuído também na integração dessas etnias, resultando numa mestiçagem que forma a sociedade brasileira. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 57 Considerando que a estrutura da sociedade colonial era rural e a con- centração do poder nas mãos dos senhores rurais, definiu-se a abolição da escra- vatura como um grande marco na nossa história. A partir desse marco, aponta o desenvolvimento urbano, com a construção das estradas de ferro, superando, dessa maneira, o tráfico negreiro. Entretanto, afirma ele, muitos senhores rurais foram contra o fim da escravidão. Identifica esse período marcado por muitos conflitos entre as visões do mundo tradicional e moderna. A industrialização e o comércio não tinham a estrutura necessária ao desenvolvimento dessas ativida- des, enquanto a atividade no engenho ainda sustentava o modelo de segurança nos negócios para época. Neste sentido, o Estado é apropriado pela família, os homens públicos são formados pelas relações pessoais do universo doméstico, baseado nos laços sentimentais e familiares. Segundo ele, essa prática se reproduz na atualidade: o desejo de alcan- çar prestígio e riqueza sem esforço. Enxergar na esfera pública o caminho para esse desejo, sem o compromisso com a sociedade.Disso, resultou as dificulda- des de uma cidadania, construída de cima para baixo, com pouca participação do povo e a formação de uma intelectualidade que defendia sempre a perma- nência das estruturas conservadoras. Isso porque afirma a necessidade das re- voluções que partam do povo, como necessidade de mudança do quadro social, a exemplo da abolição da escravatura. Entretanto, essa cordialidade presente no exercício do poder, põe-se como um obstáculo para as mudanças, uma vez que o modelo colonial encontra-se arraigado no cotidiano das relações públicas e privadas. Daí a importância de compreender o processo de formação da socie- dade brasileira e suas consequências na conjuntura política, econômica e social. Por fim, nosso último antropólogo o niteroiense Roberto Da Matta (1936). DaMatta teve suas primeiras incursões etnográficas entre os índios Ga- viões (Maranhão) e Apinayé (Tocantins). Mas foi, principalmente, os estudos das manifestações culturais nos espaços urbanos que seu trabalho ficou mais conhecido. Os estudos sobre o carnaval, a morte, a mulher, o jogo do bicho, o futebol, a cidadania e o jeito de ser do brasileiro rendeu trabalhos sobre um Brasil complexo. O que tinha em comum entre essas diferentes temáticas era a compreensão da relação entre indivíduo e pessoa e entre os espaços do público e do privado. De um modo geral, percebeu que culturalmente temos uma rela- ção peculiar com o Estado, que oscila entre o exercício da cidadania ,enquanto Fundamentos Antropológicos e Sociológicos58 cidadãos com direitos iguais, e a noção de pessoa que usa da influência ou das relações de favores. Em “Carnavais, malandros e heróis”, publicado em 1971, procurou ana- lisar o ethos cultural dos brasileiros por meio da habitual frase “você sabe com quem está falando?” Tal frase se referia principalmente as formas de exercício do poder pelos políticos que sucumbiam o princípio da cidadania e faziam o uso da coisa pública em seu próprio favor. Com efeito, outras autoridades reprodu- ziam uma prática do “jeitinho brasileiro” e da malandragem, com as pequenas corrupções como sonegação de impostos, apadrinhamento e favoritismo. O carnaval também reproduziria essa relação entre indivíduo e socie- dade, nos quatro dias de festa e que se estendem cada vez mais aos dias que antecedem e às chamadas ressacas. A corrupção não é uma prática exclusiva dos políticos, mas se tornou um costume compartilhado por outros atores sociais e das mais variadas formas como estacionar em lugar proibido, furar fila, usar da influência para conseguir uma consulta ou atendimento em uma repartição publica. Para DaMatta, o Brasil é formado por contradições e complexidades nas relações entre os indivíduos e destes com o Estado, de modo a perceber que parece existir uma confusão entre o que é do domínio público e do domínio privado. Muitos são os estudos que tentam explicar a identidade da sociedade brasileira, levando em consideração o caleidoscópio cultural da sua formação. Nesse sentido, as ideias dos pensadores contemporâneos tentam compreender o dilema brasileiro, estabelecendo uma relação entre o nacional e as práticas co- tidianas. Delas também resultam a forma como as políticas públicas são cons- truídas e praticadas. Resta-nos saber como se articula o Estado brasileiro, através de suas políticas públicas e o acesso a estas pela o povo. Percorremos ao longo do nosso curso, pela formação de uma sociedade inicialmente interessada no desenvolvi- mento da metrópole portuguesa e o surgimento de uma elite brasileira, despro- vida de consciência social, nos tempos do imperialismo e das repúblicas, forjada em uma democracia. Vimos,ainda, que as bases dessa república exerciam o po- der com base no favoritismo de poucos e das relações clientelistas, excluindo do pacto de desenvolvimento social, as classes trabalhadoras e marginais. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 59 Todo esse distanciamento entre poder, direitos sociais e as classes marginalizadas produziriam, segundo Roberto DaMatta, a cultura do “jeitinho brasileiro", que conjuga a formalidade das leis (o que torna o Brasil um país de- mocrático republicano) com as estratégias para beneficiamento das elites, ora pelo apego destas a uma atitude autoritária, conforme sugere a expressão “você sabe com quem está falando?”, ora pelas relações de aproximação e familiarida- de, com objetivo de solucionar problemas do cotidiano. O primeiro se refere àquela atitude em que eu reforço minha autori- dade, respaldada nos títulos acadêmicos, nos status profissionais ou na identi- ficação com o sobrenome de família importante para justificar a contravenção. Como por exemplo, dificultar a aplicação da lei pela autoridade competente porque o indivíduo alerta sobre seu conhecimento e relação próxima com pesso- as que exercem algum poder na sociedade. O segundo reporta-se as estratégias de trânsito social, através das relações pessoais, para aqueles que sofrem com a precariedade dos serviços públicos. Como exemplo desse último, podemos citar os casos em que o indivíduo estabelece uma relação de aproximação (pertence- rem a mesma região ou cidade, conhecerem uma pessoa em comum, comparti- lharem da mesma religião ou time de futebol, etc.) para ter o serviço agilizado. A distância entre a formalidade da lei e as práticas cotidianas marcam, desde o princípio, as diversas formas do Estado brasileiro. Tal distanciamen- to, resultado da estrutura desigual das classes sociais brasileiras, pode explicar porque nem sempre a lei é aplicada igualitariamente para todos brasileiros. A respeito disso, temos como exemplo a atenuação das penas para pessoas in- fluentes, enquanto os presidiários incham a carceragem pela morosidade da lei, na revisão das penas e execução dos processos. Por fim, a Antropologia brasileira construiu suas próprias interpretações sobre a cultura do povo brasileiro que dão pistas para compreender nossa forma de pensar e agir no mundo, como fruto da formação híbrida, da condição de colo- nizados e dos desdobramentos políticos e culturais na contemporaneidade. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos60 INDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTARINDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR • • Hans Hans Staden.Staden. Direção e roteiro: Luiz Alberto Pereira, 1999. 92 min, color. Para fixar melhor o que foi apresentado até aqui,sugiro o filme cujo título é o nome de um viajante alemão que aportou em terras brasileiras e foi capturado pelos tupinambás (tribo indígena conhecida pela prática da antro- pofagia). Através do filme, você pode entender como se dá o encontro com a diferença, o que pode resultar do encontro entre dois universos totalmente dife- rentes. Pense no que aprendeu sobre etnocentrismo, relativização e alteridade! • MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociologia e Antro-Sociologia e Antro- pologiapologia. São Paulo: CosacNaify, 2003. Sugiro leitura do texto acima para pensar a atuação da cultura sobre os corpos, ou o homem total (biológico, social e cultural), conforme propõe Marcel Mauss. Neste texto, o autor demonstra como até mesmo a maneira de andar é condicionada pela cultura, assim como nadar, repousar etc. • EVANS-PRITCHARD, E.E. Apêndice. In: Bruxaria, oráculos eBruxaria, oráculos e magia entre os Azandemagia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (p. 243-255). Para conhecer um pouco mais sobre o trabalho de campo antropológi- co, indico a leitura do texto acima, no qual o autor relata algumas de suas expe- riências durante a execução do trabalho de campo e, ao mesmo tempo, lança as premissas que julga adequadas para o êxito neste tipo de empreitada. • PEIRANO, Mariza. A A Antropologia Antropologia como como Ciência CiênciaSocial Social nono BrasilBrasil. Etnográfica, v. IV (2), p. 219-232, 2000. Neste artigo, da Mariza Peirano você obtém outras informações sobre a trajetória da Antropologia brasileira. A n t r o p o l o g i a e o E s t u d o d a C u l t u r a T e m a | 0 1 61 RESUMO DO TEMARESUMO DO TEMA Na primeira seção, você pôde entender como o encontro com a diferença foi impor- tante para que a Antropologia se configurasse. A partir deste encontro, surgiram noções – alteridade, etnocentrismo, relativismo – que se tornaram elementares para a análise antropológica e surgiram as primeiras tentativas de explicação para as diferenças encontradas nas sociedades extra europeias. Destas tentativas de ex- plicação, surgiram as primeiras reflexões propriamente antropológicas, elaborando teorias e formando as chamadas “Escolas Antropológicas”, sendo a primeira delas o evolucionismo social/cultural, posteriormente contestado por outros autores, fa- zendo girar a roda da Antropologia rumo a explicações mais consistentes. Em “A Cultura como Lente para Enxergar o Mundo”, você foi apresentado a um conceito que se tornou fundamental para a Antropologia: o conceito de cultura. Qual foi a primeira definição, como ele é desenvolvido, os diferentes autores que se apropriam dele e como a cultura está atuando no nosso entorno. Nesse sentido, há uma distinção entre o que é natural e o que é cultural na nossa sociedade. Além disso, foi explicado como e porque só as sociedades humanas produzem cultura. Em seguida, o passeio antropológico seguiu os rumos do trabalho de campo, conforme desempenhado na Antropologia, tendo como precursor o antropólogo polonês B. Malinowski. A partir deste autor, que propõe o método da obser- vação participante, outros autores se inspiraram a tratar do tema, apontando contribuições e limites da proposta malinowskiana e lapidando esta importante fase do trabalho antropológico, que é a coleta de dados in loco . O último assunto abordado foi a Antropologia desenvolvida no Brasil. Você pôde conhecer como nasceu a Antropologia Brasileira, seus principais temas de estudo e como ela se expandiu para além da etnologia indígena que foi uma das suas principais linhas de pesquisa. Os autores responsáveis por formar a Antro- pologia Brasileira se inspiraram nas ideias que vinham de outros países, mas dando uma identidade nacional ao aplicar as teorias e métodos propostos por autores que se tornaram clássicos. Deste modo, os antropólogos que formaram a antropologia no Brasil, tornaram-se também clássicos. 02Tema CULTURAS CONTEMPÔRANEAS Ao longo deste conteúdo, veremos a contribuição do conceito de cultura para o es- tudo das diferentes expressões culturais. Assim sendo, através da cultura podemos refletir so- bre racismo, preconceito e discriminação, per- cebendo-os como construções históricas e que, portanto, assumem tonalidades distintas con- forme o contexto em que estão inseridos. Deste modo, veremos que é necessário entender como são elaboradas e sustentadas estas noções para então pensarmos nos antídotos antropológicos para reverter ou atenuar seus efeitos sobre a so- ciedade na qual estão atuando. A Antropologia permite, também, uma análise das sociedades contemporâneas, fazendo recortes de aspectos que são estratégicos para pensar estas sociedades como um todo. É o que você irá perceber nas seções dedicadas a temati- zar o estudo da cultura na sociedade contempo- rânea por meio das relações de gênero e da se- xualidade, das crenças religiosas e das diferentes configurações familiares. Finalmente, você terá acesso ao mundo do consumo através das lentes antropológicas, observando como é produzido o estímulo ao consumo e os desdobramentos deste que repercute também sobre o meio ambiente. Então, vamos consumir um pouco mais de An- tropologia? Fundamentos Antropológicos e Sociológicos64 2.1 Nós e os 2.1 Nós e os outros: raça, etnia e multiculturalismooutros: raça, etnia e multiculturalismo Experimentamos a diversidade cultural no Brasil através dos cinco sentidos: os sabores das comidas, os cheiros exalados pela flora, as diferentes paisagens, os vários ritmos musicais e pelas texturas produzidas com os diferen- tes elementos da natureza aqui encontrados. Pode-se dizer que tal diversidade é reflexo do que está na nossa srcem: a mistura. À diversidade encontrada na geografia, na fauna e na flora, somou-se os costumes dos europeus que aqui aportaram e se misturaram com os índios, assim como os costumes dos negros africanos. Essa mistura é retratada por Mário de Andrade, nos idos dos anos modernistas, através do herói nacional sem nenhum caráter, o “preto retinto e filho do medo da noite”, o Macunaíma. Ao narrar o banho de Macunaíma e seus dois irmãos numa água encantada – que deixou o primeiro branco louro dos olhos azuis, um de seus irmãos da cor do bronze e o outro tendo conseguido apenas molhar as palmas mãos e os pés deixou-as vermelhas, mantendo o resto do corpo negro – Mário de Andrade remete ao cruzamento do branco, do índio e do negro como “matéria-prima” para a formação da população brasileira. Quer seja pela ótica do romance modernista ou pela história do Brasil, o fato é que a mistura das “raças” repercutiu em diferentes aspectos da sociedade brasileira. Podemos nos lambuzar com uma boa feijoada, nos fartar de comer tapio- ca, balançar numa rede, balançar os quadris dançando um samba, um forró ou o que chamamos deaxé music . Podemos nos gabar de uma arquitetura que remete à Europa, assim como de vestimentas que lá buscaram inspiração. Por trás deste “mosaico cultural”, porém, existem questões que nos trazem importantes lembran- ças e reflexões sobre o papel desta mistura para o Brasil. Uma das mais fecundas diz respeito à questão racial e ao modo como lidamos com ela, seja no aspecto das relações afetivas, legislativas, sociais, no âmbito do público ou do privado. Se pode- mos pensar a mistura como algo positivo e até exaltá-la como uma marca do povo brasileiro, ela concorre também para ambiguidades que acabam despencando para algo problemático ou mesmo negativo, como no caso do racismo. Conforme coloca Lilia Schwarcz (2009), a ambiguidade que rege as re- lações raciais brasileiras pode ser ilustrada por um discurso que enfatiza uma sociabilidade social ímpar em oposição a dados estatísticos, que apontam para a segregação racial em diversos espaços e aspectos da sociedade. Ou seja, não há lei estabelecendo segregação racial, porém reside na sociedade brasileira: C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 65 Um racismo dissimulado, silencioso, por vezes cordial, na feliz expressão do historiador Sérgio Buarque de Holanda; que esca- pa ao espaço oicial, mas ganha os espaços mais cotidianos ou reina gloriosa na ideologia do senso comum: discurso tão pode- roso como o cientíico ou o religioso. (SCHWARCZ, 2009, p.72) Diante desta dissimulação, podemos exaltar a miscigenação que nos proporcionou a incorporação de traços culturais de outros povos, mas nas re- lações cotidianas olhamos com desconfiança para o sujeito de pele escura que senta ao nosso lado dentro do ônibus, não observamos a predominância de co- legas brancos na faculdade ou preferimos que alguém da nossa família case com fulano(a) que não é tão simpático(a), mas é branco(a), a casar com beltrano(a) que é bem legal, mas é negro(a). Percebe como lidamos com dois pesos e duas medidas? Se olharmos através da historia do Brasil, perceberemos como se cons- truiu esta ideia de democracia racial e de racismo baseados em saberes médicos, interesses políticos, e na necessidade de construção de um nacionalismo. Nesteprocesso, oscilamos entre o pessimismo ante à miscigenação e o olhar positivo sobre a mesma. Exemplo de visão negativa sobre a mestiçagem associando-a à degeneração: o chamado “darwinismo racial” que condenava a amalgamação de grupos étnicos (sobre este assunto, veja o quadro abaixo) tão diferentes, confor-me coloca Schwarcz (2009, p.84): Esse tipo de modelo considerava cada raça como essen- cial, ou seja, portadora de características intrínsecas, com capacidades e comportamentos especíicos. E o país re- presentava, nesse momento, um verdadeiro laborató- rio de raças. Ainal, era recorrentemente descrito pelos viajantes do século 19 como uma imensa nação mestiça. Vários autores e artistas defendem e representam esta ideia que seria reforçada pelos homens de sciencia, termo utilizado por Schwarcz para deno- minar os intelectuais que eram uma mistura de cientistas, políticos, pesquisa- dores e literatos. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos66 SOBRE OS GRUPOS ÉTNICOSSOBRE OS GRUPOS ÉTNICOS Para a Antropologia tanto quanto o conceito de raça, a definição de grupos étni- cos tem sido utilizada nas suas análise Antropológica. Assim sendo, determinadas popu- lações que compartilham de algumas características comuns, denominam-se grupo étni- co. Deste modo, havendo uma comunidade compartilhando características semelhantes, quer do ponto de vista geográfico, étnico ou religioso, podemos afirmar que estamos dian- te de um grupo étnico. Ciganos e índios, por exemplo, formam grupos étnicos. Aqui, podemos tomar como referência para pensar a questão da etni- cidade, o antropólogo alemão Fredrik Barth, visto que ao criticar o conceito de grupo étnico, então em voga, ele sinaliza como pensar a etnicidade. Segundo Barth (1998), a expressão grupo étnico é geralmente entendida na literatura antropoló- gica como uma população que possui os seguintes atributos: 1. Em grande medida se autoperpetua do ponto de vista biológico; 2. Compartilha valores culturais fundamentais. realizados de modo patentemente unitário em determinadas formas culturais; 3. Constitui um campo de comunicação e interação; 4. Tem um conjunto de membros que se identificam e são identificados por outros. Como constituindo uma categoria que pode ser distingui-da de outras categorias da mesma ordem. (Barth, 1998, p.189.) A crítica que o referido autor lança vai no sentido de mostrar que se trata de uma definição típico-ideal cujo conteúdo não se afasta muito da proposição tradicio- nal de que uma raça possui uma cultura, que esta possui uma língua e que deste modo se tem uma sociedade como sinônimo de unidade, que rejeita ou discrimina as de- mais. Feita tal ressalva, Barth propõe que as análises antropológicas sejam norteadas pelo que ele chama defronteiras étnicas , pois são elas que definem o grupo (trata-se, pois, de um tipo de organização social), não o conteúdo cultural que elas delimitam: As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa atenção são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter con- trapartida territorial. Se um grupo mantém sua identidade quan- do seus membros interagem com outros, disso decorre a exis-tência de critérios para determinação do pertencimento, assim como as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão. Os grupos étnicos não são apenas ou necessariamente baseados na ocupação de territórios exclusivos; e as diferentes maneiras, através das quais eles são mantidos, não só as formas de recru- tamento deinitivo como também os modos de expressão e va- lidação contínuas devem ser analisadas. (Barth, Op. Cit., p. 195) C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 67 Os critérios aos quais ele se refere são os chamados sinais diacríticos, aspectos que o próprio grupo (seus atores), elege como significativas para deli- mitar as fronteiras entre ele e os “outros”. Deste modo, o que define um grupo étnico não está nas mãos do observador, mas do próprio grupo, dos seus crité- rios de pertencimento por ele utilizado, segundo o autor. Passando para o contexto do século XX, especificamente para os anos1930, quando há uma preocupação em formar símbolos da identidade brasileira, podemos ilustrar a perspectiva otimista da mestiçagem, cujo representante é o per- nambucano Gilberto Freyre. Em Casa-grande & Senzala (lançado em 1933), Freyre Ilustração de Cícero Dias para o livro de Freyre (Casa-grande & Senzala), retratando o espaço onde ocorre a mistura referida pelo autor Fundamentos Antropológicos e Sociológicos68 enfatiza a convivência entre as três raças como símbolo da identidade brasileira e, ao mesmo tempo, tematiza a sexualidade brasileira,que representava esta ideia de mistura não problemática ao retratar o aspecto privado da miscigenação. Neste ponto, os encontros sexuais entre as negras e os senhores dos quais elas tem filhos são percebidos como expressão de uma mestiçagem bem feita e srcinal, cujo resul- tado era uma cultura homogênea apesar de baseada em três raças. Esta visão panorâmica e breve sobre a mestiçagem no Brasil aqui repre- sentada visa situar o leitor sobre a importância deste discurso para pensarmos logo mais a questão do multiculturalismo. Esta percepção da mistura é o que permite afirmar – ainda hoje – que o Brasil é o país da “democracia racial” (o discurso da de- mocracia racial coloca o Brasil como sendo um país desprovido de preconceito ra- cial), opondo-se ao tipo de modelo existente em outros países que têm como marca a segregação racial bem delimitada (inclusive judicialmente), cabendo aos negros lugares específicos. Em sociedades onde há este tipo de segregação não há a gradu- ação de cor existente nas terras brasílicas que permite embranquecer ou enegrecer os sujeitos, dependendo de quem é o observador e do objetivo deste olhar. No caso brasileiro, a nossa percepção de quão negro é o indivíduo baseia-se nas caracterís- ticas fenotípicas deste (tipo do cabelo, coloração da pele), enquanto para os norte- -americanos descender de uma família negra é o suficiente para também ser negro, ainda que não herde as características físicas. Esta oposição é utilizada por Oracy Nogueira na década de 1950 ao definir preconceito de marca (Brasil) e preconceito de srcem (Estados Unidos). No caso do preconceito de srcem, também conhecida como regra “gota de sangue” (one drop rule ), basta um bisavô negro para o indiví- duo pertencer à “raça negra”, reiterando uma visão essencialista. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 69 O mito da democracia racial ou o “racismo à brasileira” – como o deno- mina Roberto DaMatta e é o título do texto da Lilia Schwarcz acima apresentado – construiu-se e se sustenta numa perspectiva que acabou por mascarar um preconceito de raça e invisibiliza questões que emergem imbuídas de caracte- rísticas que nem sempre identificamos como racismo de fato, atenuando, in- clusive, sua gravidade. Para enfatizar quão problemática pode ser esta questão, podemos abordá-la comparando ao racismo que caracteriza os Estados Unidos. Tanto o racismo “à brasileira” quanto o racismo americano foram e são alvo de diversos estudos, inclusive aqueles de cunho antropológico que buscaram desconstruir a ideia de raça. Acredito que a esta altura já tenha o(a) prezado(a) aluno(a) percebido que a Antropologia não se utiliza dos pressupostos biológi- cos para explicar os comportamentos (e raça, como será posto logo mais é um dos conceitos que se apoia na biologia)! Se os Estados Unidos um dia foram colônias e a população nativa (indí- gena) foi dizimada, se lá chegaram negros africanos para compor a mão-de-obra escrava nos campos de algodão, poderíamos pensar que há muita semelhan-ça com a história do Brasil sob o ponto de vista populacional, principalmente. Ocorre, no entanto, que os personagens desta história são semelhantes, mas a atuação e o cenário são bem diferentes! Há miscigenação lá, como há aqui, mas a maneira de lidar com ela influência de maneira bem diferenciada no plano político-social. Para Peter Fry (2001), há que se pensar, sobretudo, que existe uma diferença essencial a ser considerada no caso dos dois países ao quais nos referimos acima: o tipo de dominação ao qual estiveram submetidos. No pri- meiro caso, a Inglaterra, devido ao poder do qual desfrutava enquanto potência mundial, não estava preocupada em conquistar os habitantes das suas colônias. Já Portugal, que não dispunha de tal estabilidade e poder, dominou casando com as negras (por falta de mulheres) e usando de subterfúgios para compensar impossibilidade de impor sua cultura. Que tipo de subterfúgio? Não impôs sua cultura – já que precisava se aliar à população local – transformou a cultura dos “nativos” em cultura nacional (Fry, 2001, p.46). Deve-se ressaltar, porém, que ainda hoje existem aspectos da colonização a que foram submetidos os norte- -americanos caracterizando o país: presença de populações nativas naquele ter- ritório, grupos de atuação religiosa entre os primeiros que lá chegaram para colonizar, elites políticas e econômicas com estrutura anglo-saxônica, povoa- mento do país através da imigração. Todas estas características interferem nos Fundamentos Antropológicos e Sociológicos70 modos de percepção da diferença, quer racial ou cultural, assim como ocorre no caso brasileiro. Embora o tipo de preconceito seja experienciado de maneira distinta, a noção de raça é construída sobre um lastro comum: um conjunto de caracte- rísticas biológicas que define os comportamentos dos indivíduos, naturalizando sua inferioridade. Tal perspectiva será combatida na seara da Antropologia por autores como Franz Boas e Claude Lévi-Strauss, que abrem caminho para que outros antropólogos ampliem suas perspectivas. EmRaça e Progresso (publicado em 1931, está inserido na coletânea lançada por Celso Castro em 2004, Antropo- logia Cultural ) Boas, que tinha migrado para os Estados Unidos e testemunhou o problema racial naquele país, ao observar o plantation, dedicou-se a desconstruir a ideia de que a inferioridade do negro estava condicionada pela sua raça. Para o mencionado autor, era necessário separar aspectos biológico/psicológicos das implicações sociais e econômicas. A explicação para a inferioridade do negro de- veria ser buscada na motivação social, não na configuração corporal. No que diz respeito à mistura racial, Boas afirma que, se baseando nas características anatômicas e condições de saúde de populações misturadas, não parece haver razão alguma para supor resultados desfavoráveis nas gerações descendentes desta mistura, e se dedica a exemplificar que tipo de fatores po- dem influenciar os resultados para chegar à afirmação de que a diferença está no ambiente social, as condições sociais são a grande influência para os com- portamentos distintos. O ambiente cultural é o mais importante fator para de- terminar os resultados dos testes de inteligência que pretendem demonstrar a superioridade ou inferioridade de uma raça. Segundo a perspectiva boasiana, todos pertencemos a tipos diferentes de cenários aos quais aprendemos a nos adaptar, nossas reações são determinadas por estas adaptações. Isto só pode ser detectado por um conhecimento minucioso das condições de vida dos sujeitos. A ruptura que Boas propunha entre comportamentos e traços genéti- cos é reiterada por um cientista que não está propriamente associado à Antro- pologia, mas que defende algo que vem a apoiar o viés antropológico. Para o geneticista italiano Guido Barbujani (2007), geneticamente somos todos iguais, todos pertencentes à raça humana. Se os genes determinam nosso aspecto fí- sico – isto explica porque nos parecemos com os nossos genitores – existem outras variáveis que atuam sobre estas características de modo a diferenciar os indivíduos: C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 71 [...] nós temos dietas, exercícios ísicos e também muitos outros fatores que são parte de nosso ambiente, não de nosso genoma. Como resultado, uma vez mais, diferenças ísicas são freqüente- mente (sic) grandes entre membros da mesma população (com- pare Prince e Ella Fitzgerald), e são geralmente pequenas entre as médias de populações diferentes. (BARBUJANI12, s/d, s/p) Embora Barbujani não seja antropólogo, o que ele afirma corro- bora e dá sustentação ao que já vem sendo proclamado nos circuitos antropo-lógicos: raça, assim como o ambiente, não determina comportamentos. Assim sendo, não faria sentido defender que haja uma raça superior a outra, se pensar- mos como Barbujani, que não há diferentes raças quando falamos de seres hu- manos. Todas as populações, afirma o geneticista, estão misturadas, inclusive a população europeia, como revelam estudos de DNA. Preocupado em enfrentar as questões vigentes que alimentam o racismo em termos científicos rigorosos, enfatiza o geneticista italiano: A palavra raça não identiica nenhuma realidade biológi- ca reconhecível no DNA de nossa espécie, e que portanto não há nada de inevitável ou genético nas identidades étni- cas e culturais , tais como as conhecemos hoje em dia. Sobre isso, a ciência tem ideias bem claras. As raças, nós a inven- tamos e nós a levamos a sério por séculos, mas já sabemos obastante para largar mão delas. (BARBUJANI, 2007, p.14) Então, podemos afirmar que as manifestações de racismo que temos ob- servado ao longo da nossa história decorrem de uma construção social que teve como substrato um dado biológico. Que construção foi essa? A noção de raça. Elegendo características biológicas como cor da pele, tamanho do crânio, configu- ração corporal etc. criamos um parâmetro para classificar pessoas e grupos, mui- tas vezes desconsiderando que somos parte de uma mesma humanidade. Você pode pensar: se foram os cientistas que subsidiaram a construção da categoria raça, como afirmar que eles não tinham razão? Uma das respostas possíveis: o co- nhecimento sobre determinados assuntos em determinadas épocas, acaba sendo influenciado pelo contexto político-social do qual fazem parte os autores ou cien- tistas. Se em dado momento, eles obtiveram respaldo para as suas proposituras, certamente, a sociedade da qual faziam parte colaborou para que isto ocorresse. 12 Entrevista disponível em: http://www.antropologia.com.br/entr/entr36_br.htm Fundamentos Antropológicos e Sociológicos72 Muda o contexto, mudam as ideias e elaborações teóricas. Sendo as- sim, embora aceitemos que raça é uma construção social e há elementos sufi- cientes para operar de modo a desconstrui-la, este ainda é um conceito utilizado para demarcar posições e reivindicar direitos civis. Exemplo disso é o contexto do multiculturalismo e a implementação de ações afirmativas. O que seriam es- tas tais ações afirmativas? Respondo utilizando as palavras do historiador ame- ricano George Andrews (1997, p.137): “Ação afirmativa indica uma intervenção estatal para promover o aumento da presença negra – ou de outras minorias étnicas - na educação, no emprego, e nas outras esferas da vida pública”. Para promover tal aumento, preconiza-se a cor como indicativo relevan- te para selecionar os candidatos a tais oportunidades. Assim sendo, segue o ca- minho contrário ao que propõem certos discursos de combate à discriminação. Enquanto há um coro de vozes afirmando que não se deve considerar raça ou cor como parâmetro para classificar pessoas ou grupos, a ação afirmativa sugere a continuação da cor como critério, porém num sentido diverso daquele histori- camente utilizadoe não como critério absoluto. Exemplo de ação afirmativa, que revela bem as divergências quanto ao assunto é a implementação de cotas raciais. Assim como outras ações afirmativas, esta sugere que pensemos como conciliar diversos conceitos, de modo a obter a superação de desigualdades sociais histo- ricamente inculcadas. E como é de racismo que estamos tratando... Vamos ao multiculturalismo como pano de fundo para pensar em raça e ação afirmativa! Como pudemos observar até agora, não se pode falar em cultura pura, ou mesmo em raça. Camuflada ou explícita, a diferença se faz presente nas socieda- des, tornando-as “caleidoscópios culturais”, formadas por grupos diferentes (nas características físicas, nos questionamentos políticos, nas reivindicações). Se, esta multiplicidade de características pode ser relacionada ao contexto de formação das sociedades, temos agora adicionado mais um ingrediente que veio tornar este caldeirão de diversidade um tanto mais complexo para ser pensado, a globali- zação. Sendo assim, omulticulturalismomulticulturalismo é a representação da transformação pela qual passa as sociedades contemporâneas (diriam alguns autores, pós-indus- triais), incluindo uma contundente questão política aí envolvida. Para Andrea Semprini (1999, p.09), o multiculturalismo é o sinal de que há uma crise na modernidade, haja vista que são as categorias deste projeto moderno que estão sendo questionadas, via reivindicações multiculturais e, ao mesmo tempo, exigências de integrar o conceito de diferença neste mesmo pro- C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 73 jeto. De acordo com o referido autor, “ao colocar à modernidade a questão da diferença, o multiculturalismo ultrapassa a especificidade de qualquer contexto nacional e propõe um sério desafio de civilização às sociedades contemporâne- as”. Tem-se, então, no multiculturalismo uma questão chave: a diferença deve ser pensada como enriquecimento ou empobrecimento? Afirma Semprini que as controvérsias multiculturalistas têm sido debatidas social e politicamente nos últimos anos pelo movimento contra a segregação racial, que passou a rei- vindicar direitos civis a partir dos anos 1960, o que seria o ponto de partida para o multiculturalismo. Com o fim da segregação teria, ao menos teoricamente, o fim do racismo (lembrando que nos EUA havia lei formalizando o preconceito), aumentando a base social, já que ocorreria a inclusão de indivíduos que foram marginalizados até então. Se até um determinado período, as diferenças coexistiram (não se amal- gamaram, de fato), como pensá-las a partir do momento em que se reivindica o direito de igualdade? Como manter a identidade étnica e/ou cultural quando se “evoca” a homogeneização, ao clamar pelos mesmo direitos usufruídos pela maio- ria? Não parece contraditório? Neste ponto, gostaria de utilizar a distinção que Andrea Semprini faz entre a interpretação política e a interpretação culturalista do multiculturalismo: no primeiro caso (interpretação política), há reivindicações de direitos sociais e políticos para uma minoria. Sob o ponto de vista culturalista pretende-se um reconhecimento cultural e identitário, mas nenhum direito espe- cial para o grupo. Talvez esta distinção permita-lhe pensar o porquê dos discursos díspares a respeito da implementação de cotas raciais no Brasil (veja no quadro abaixo um caso que ilustra a questão da ambiguidade da questão racial no Brasil repercutindo no debate das cotas raciais), exemplo de políticas afirmativas que visam a reparar desigualdades sociais historicamente construídas. Você pode pensar: se os negros não são inferiores, por que conceder-lhes cotas para ingressar no ensino superior? Ou pode achar que é o justo a ser feito para reparar o erro histórico que colocou os negros numa posição de inferioridade, privando-lhes do acesso às mesmas condições que a maioria branca. Para compre- ender esta questão, basta voltar ao que coloca George Andrews (1997), acima. Porém, não foi à toa que tematizamos racismo e miscigenação nos con- textos brasileiro e norte-americano. Evoco Roberto DaMatta (1997) para nos fa- zer refletir sobre o “problema”. Ao abordar o racismo à brasileira,relacionando ao multiculturalismo e a ação afirmativa (pense aqui nas cotas raciais), DaMatta Fundamentos Antropológicos e Sociológicos74 afirma que dois aspectos precisam ser considerados: 1.1. existem fatos sociais concretos que são a manifestação implícita do racismo e a dificuldade em dis- cuti-lo. É como se tratássemos de um tabu. 2.2. Há uma inter-relação entre estes fatos e os ideais políticos. Nesse sentido, DaMatta (1997, p.69) toca num ponto que é um dos tendões de Aquiles do multiculturalismo: “a justa vontade de er- radicar o preconceito, certamente, embaça a discussão de suas características históricas e de sua organização sociológica ou cultural”. Para demonstrar tal questão, o autor se remete a um episodio ocorrido em Cambridge quando fazia seu doutorado em Havard, em fins da década de 1960 (lembre-se que esta foi a década de efervescência dos movimentos por direitos políticos nos EUA). Na ocasião, um grupo de estudantes brasileiros fora convidado pelo gover- no americano para uma visita a centros culturais naquele país. Num dos salões de Havard, dois negros americanos, ligados ao incipiente movimento negro, passaram a falar sobre suas experiências que mudavam legislação, através de um movimento pacífico e democrático bem organizado etc. Os brasileiros retrucaram dizendo que aquelas transformações políticas não mudavam a estrutura efetivamente e que o foco do problema continuava lá: a estrutura capitalista e a exploração do trabalho. Era preciso, segundo os brasileiros, uma revolução que mudasse todo o sistema e então atingir as relações raciais. A resposta dos dois americanos representa o "coração do problema racial no Brasil": eles estavam trabalhando como podiam para mudar as relações raciais no seu país, enquanto os brasileiros, que tanto cobram do sistema americano e falavam em democracia racial, estavam em um grupo de 80, dos quais apenas 7 ou 8 eram negros! É como se dissessem: cadê a democracia racial? O im- passe não acaba por aí, pois ao final do debate, os brasileiros estavam se perguntando quem eram os negros que os americanos haviam descoberto entre eles! O episódio acima ilustra o que vínhamos tentando mostrar quan- do tangenciamos a questão da miscigenação no Brasil e nos Estados Unidos e que DaMatta explicita ao afirmar que o que está por trás deste debate é a maneira diferenciada como as sociedades classificam suas variedades étnicas. A miscigenação tanto num caso como no outro existe. Como lidamos com ela? Já oferecemos esta resposta em parágrafos anteriores, mas vale a pena dialogar com DaMatta. No Brasil, privilegiamos o meio-termo, a ambiguidade. Há um reconhecimento cultural e ideológico explícitos que se resume no “desiguais, mas juntos” segundo o referido autor. No caso norte-americano, os mestiços submergem como brancos e negros, reflexo da repulsa pela ambiguidade e do C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 75 sistema classificatório compartimentalizado (recordando que lá vale a one drop rule ! Uma gota de sangue negro na sua ascendência e você é negro.) o que resu- me a situação em “diferentes, mas iguais”. O que está em jogo, segundo Roberto DaMatta, não é negar a mestiçagem, mas perceber como cada sociedade lida com ela. O que precisamos é reconhecer como opera cada sistema nas percep- ções sociais para, então, instaurar oportunidades e igualdade para as minorias. Na sociedade brasileira, a ambiguidade inibiu a segregação espacial e a implementação da ideologiaracial no plano jurídico, mas também evitou a criação de grupos contra as minorias a exemplo da ku kux klan, nos Estados Unidos. Aqui, impera o reconhecimento social e simbólico do “intermediário”, levando a indeter- minação étnica. Porém, de acordo com Damatta o reconhecimento da mestiçagem levou à ideia de ausência de preconceito e à segregação de oportunidades. Este con- texto não impede a ação afirmativa, a democracia ou a igualdade, mas deve-se con- siderar que aqui opera um sistema gradativo, no qual as pessoas embranquecem ou enegrecem de acordo com atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos. Deve-se ter em conta ,também, segundo o autor, que assim como a “mulataria” não acabou com o nosso preconceito, a ação afirmativa também não acabou com o racismo nos Estado Unidos. Qual a saída, então? Para o autor em pauta, elaborar uma campa- nha nacional enfatizando a discriminação que atua na nossa suposta democracia racial e utilizá-la a favor de um comprometimento igualitário. Agora que está munido de um arsenal de teoria e exemplos sobre racismo, preconceito e multicultu- ralismo, você consegue se posicionar (a favor ou contra) a respeito das cotas, por exemplo? Acha que no Brasil, de fato não há racismo? Imagem da máscara utilizada pelos membros da ku kux klan, grupo racista que atuou nos Estados Unidos, usando de violência contra os negros libertos Fundamentos Antropológicos e Sociológicos76 2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e religiãoreligião É possível que apesar de estarmos tratando, ao longo de várias páginas sobre a diversidade cultural, sobre a questão das diferenças sob múltiplos as- pectos, você não tenha se sentido impactado ou mesmo incomodado. No entan- to, creio que a partir de agora, a indiferença ceda lugar a algumas inquietações (caso elas ainda não tenham se manifestado), pelo menos. Não porque você seja praticante de alguma religião que não a católica (aceita socialmente sem dis- criminação) ou exerça sua sexualidade de maneira condenável pela sociedade heteronormativa, por exemplo; mas porque estaremos lidando com temas que estão muito mais próximos de nós, estaremos tocando nas diferenças que estão lá naquelas sociedades longínquas geograficamente, mas estão também na nos- sa faculdade, no nosso bairro, nas notícias da TV ou mesmo na nossa própria família. São dimensões das cultura das quais não saímos incólumes e com as quais estamos lidando cotidianamente. Nascimento de Vênus, obra do pintor italiano Sandro Botticelli C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 77 Sexualidade não é algo que diz respeito ao âmbito privado, apenas. Não está circunscrita à vida íntima do indivíduo. Tudo o que diz respeito ao corpo pode ser pensado pelo viés da biologia, mas pode e devedeve ser, sobretudo, abordado pela Antropologia, pois o corpo é também uma construção cultural. A maneira como pensamos sobre o nosso corpo, o direcionamento que damos às nossas paixões (no sentido sexual e passional), o que nos permitimos ou não fazer sexualmente falando é mediado pela cultura. Tamanha é a importância da sexualidade para a sociedade, que esta já foi abordada por diferentes discipli- nas, algumas com o objetivo de conhecer para explicar, outras com o objetivo de conhecer, de saber para classificar e controlar, como foi o caso da medicina, no século XIX. Sexualidade é, pois, um tema que permite pensar diversos aspectos da sociedade, pois permite a articulação com diversos temas que a permeiam. É através dela que pensamos reprodução, casamento, família, gênero, parentesco e todas as implicações que estes assuntos têm para toda sociedade. Vamos pas- sear um pouco por estas paisagens antropológicas? Em Antropologia, os primeiros que se dedicaram ao estudo das sexua- lidades foram Bronislaw Malinowski (A Vida Sexual dos Selvagens) e Margaret Mead (Sexo e TemperamentoSexo e Temperamento13). A partir das sociedades das ilhas do Pa- cífico, Malinowski descreve a vida sexual dos selvagens,mostrando que o que entendemos por sexual não tem o mesmo sentido para os nativos do Pacífico. Deste modo, ao longo do texto vai estabelecendo comparações entre aqueles e a sociedade da época e instigando reflexões sobre as relações sexuais e as relações sociais entre homens e mulheres. Também Margaret Mead se aventurou pelas águas deste tema e suas proposituras foram de grande importância para as fe- ministas, pois já nos seus primeiros textos Mead propalava que as diferenças entre homens e mulheres não poderiam ser explicadas pelo viés biológico, mas por determinação da cultura. Em Sexo e Temperamento, ela demonstra tal afir- mação, ao comparar três sociedades,nas quais os papeis sociais atribuídos a ho- mens e mulheres não eram os mesmos, apesar de estarem em regiões próximas. Desde,então, este campo de estudo foi bastante ampliado, assim como o debate das questões a ele relativo, permitindo a abertura aos estudos antro- pológicos sobre sexualidades. Veja que o termo está no plural pois, embora a 13 Mead publicou um livro anteriormente Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa, mas Sexo e Temperamento é tomado como referência para os estudos feministas e atinge um amplo público extramuros antropológicos , tornando-se um best seller. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos78 sociedade busque normatizar as práticas relativas ao corpo, há sempre outras maneiras de viver a sexualidade, ainda que sejam consideradas práticas margi- nais. Além disso, a cultura (ela sempre!) de cada sociedade é que vai sancionar ou interditar determinadas práticas. Deste modo, sendo a cultura plural e a se- xualidade um dos aspectos da cultura, podemos também atribuir-lhe esta desi- nência de número. Vejamos um tanto das questões entrelaçadas à sexualidade... Se hoje podemos olhar para as bancas de revistas e ver nas suas capas mulheres com corpos desnudos ou “receitas” de como chegar ao orgasmo em 10 passos é porque a intimidade passou por transformações que vieram também de fora dos lares ou das alcovas. No que diz respeito à sexualidade feminina, o movimento feminista e o advento da pílula anticoncepcional foram as forças motrizes para que esta transformação pudesse ocorrer. A pílula permitiu des- vincular a maternidade do corpo das mulheres, evidenciando que a maternida- de não é algo natural, facultando às mulheres a escolha de quando ter filhos ou mesmo de não tê-los (ainda que a sociedade continue associando a maternidade como característica determinante da feminilidade. Trocando em miúdos: para ser mulher completa tem que ser mãe!). Com isso, pôde-se pensar que o corpo da mulher também poderia ser fonte de prazer para a mesma, não só como um receptáculo do prazer masculino e da fecundação. Se o uso da pílula foi liberado e as mulheres tiveram acesso a ela e a outros caminhos que lhes permitiram a emancipação na intimidade e no espaço público, isto ocorreu, em considerável medida, graças aos movimentos feministas. Este também já é um outro assunto. Mas já que estamos falando de mulheres e reprodução, cabe lembrar que outra reivindicação da agenda feminista é o direito à interrupção voluntária da gesta- ção, ou seja, direito ao aborto seguro. Considerando que a mulher deve ter autonomia do seu corpo e o gran- de número de mulheres que morrem em decorrência de abortos realizados de forma precária, as feministas buscam a conquista de mais este direito para as mulheres. Há, inclusive, uma discussão de classe social aí embutida, visto que mulheres de médio e alto poder aquisitivo também se submetem a abortos, mas em clínicas especializadas que, embora sejam clandestinas, possuem o suporte adequado para tal prática. As práticas sexuais nos remetem também à associação entre corpos, se- xualidadese saúde. Daí, eu convido o leitor a uma passagem pela década de 1980, quando foi descoberto que havia uma doença letal de srcem desconhecida levan- C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 79 do à morte um grande número de pessoas. Considerando que o maior número de infectados eram os gays, a ela foi atribuído o nome de câncer gay. À medida que os estudos avançam, descobre-se que não são apenas os gays que possuem tal do- ença, ela era transmitida por um vírus que debilitava o sistema imunológico hu- mano, tornando-o vulnerável a doenças (as chamadas “doenças oportunistas”). Era então isolado o vírus da AIDS, transmissível não apenas pela via sexual, mas também pelo sangue, de mãe para filho/a etc. O que tem isso a ver com sexualida- de? Bom, com esta descoberta, passa-se a regular os comportamentos sexuais. O grande pavor e as campanhas de ONG's e dos governos que espalharam a neces- sidade de utilizar o preservativo como meio de evitar a contaminação com o vírus que àquela época levava à morte em pouco tempo. As pessoas mudaram seus comportamentos sexuais em virtude de uma questão que se tornou preocupação do Estado, devendo este intervir para o seu controle e para a busca da cura. Fica claro, portanto, a interface pública que assume a sexualidade. E este é só um exemplo. Podemos elencar o discurso mé- dico que diz o que é ou não “natural” ou “adequado”, nos usos que fazemos dos nossos corpos, a gravidez na adolescência, que permite pensar nos padrões de comportamentos que mudam ao longo do tempo (lembra que a cultura é dinâ- mica?) e na homofobia, como reflexo do etnocentrismo, do discurso médico do século XIX que classificava as práticas homossexuais como doença. Se aqui estamos tratando dos comportamentos relativos a homens e mulheres, estamos tratando também de gênero.gênero. O conceito de gênero passou por algumas modificações desde que foi enunciado pela primeira vez (é comum no campo das ciências sociais isto ocorrer). O primeiro a formalizar um con- ceito de gênero foi o psicanalista norte-americano Robert Stoller, em 1963, ao tratar de identidade de gênero. Stoller pretendia com o conceito de identidade de gênero fazer a distinção entre o que era natureza e o que era cultura atuando sobre um sujeito. Assim sendo, podia-se falar de sexo como estando no domínio da natureza (genes, hormônios) e gênero (psicologia, sociologia) estando no do- mínio da cultura, ou seja, todo o aprendizado amealhado desde o nascimento. Grosso modo, o que se tem é uma classificação dos indivíduos de acordo com o aparato biológico (nascemos com a genitália de menino ou de menina). No entanto, o conceito de gênero vem para dizer que ser homem ou ser mulher não tem a ver com este aparato, mas com a maneira como aprendemos a ser um ou outro, isto é, como a cultura nos ensina. Quando falamos de aprendizado cultu- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos80 ral, estamos afirmando também que aí está influenciando o contexto histórico, o lugar e até mesmo a classe social. Embora as mulheres ocidentais pareçam todas iguais, se observamos de perto, perceberemos que as mulheres da zona urbana não se comportam da mesma maneira que aquelas da zona rural, assim como na zona urbana as mulheres de classe média se projetam no mundo de uma maneira que não corresponde àquelas de classe social diferente. Então, quando tematizamos gênero, estamos afirmando que existe uma distinção fisiológica sim, mas que ela não é determinante para pensar os comportamentos em sociedade, que o sentido atribuído a esta diferença natu- ral, varia de acordo com a cultura. Daí nos encontramos diante da identidade de gênero. Nem sempre alguém que nasce com o sexo feminino se identifica com aquele corpo, não se identifica com o aparato biológico. Outros casos que exigem também reflexão são os dos indivíduos que nascem com órgãos sexuais femininos e masculinos, que são os “intersexos” (outrora chamados hermafro- ditas), devendo ser submetidos a intervenção cirúrgica e tratamento hormonal e psicológico para se adequar ao sexo que lhe restou. Os estudos de gênero passam a tomar corpo e ganhar importância po- lítica através dos movimentos feministas dos anos 1970, que utilizavam a ideia contida no conceito de gênero para desnaturalizar as desigualdades entre ho- mens e mulheres. Se é na cultura que construímos homens e mulheres, pode- mos descontruir também as desigualdades neste plano, que inclui o social. Daí a abertura para reivindicar direitos iguais para homens e mulheres. As feministas impulsionam um movimento que pretende ampliar o lu- gar da mulher para além das paredes do lar, já que ela não é apenas a matriz reprodutora da família. Quando estabelece este movimento de emancipação fe- minina fazem repensar também o lugar do homem na sociedade, propondo que se repense as masculinidades, visto que ser homem e ser mulher se constrói mutuamente. Pensando por este viés da relação entre homens e mulheres, chegamos a uma intersecção que algumas vezes ocorre de maneira violenta. E nem sempre a violência é física ou explícita. As violências dirigidas às mulheres chegam à força física, mas ocorrem também através da intimidação, da tortura psicoló- gica, do assédio sexual, do cerceamento dos seus direitos e até mesmo quando o marido exige ter relações sexuais com sua esposa, sem seu consentimento e contrariando a sua vontade (o chamado estupro conjugal). Ainda que os núme- C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 81 ros mostrem que a situação continua preocupante, as mulheres conseguiram um reforço contra o problema da violência: a Lei Maria da Penha. Sancionada em agosto de 2006 com o objetivo de coibir e punir a violência contra as mu- lheres, a Lei n. 11.340/2006Lei n. 11.340/2006 recebeu o nome de Lei Maria da PenhaLei Maria da Penha como uma forma de homenagear a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima da violência do seu então marido, que chegou a atirar contra a mesma, deixando-a paraplégica. De acordo com a referida lei, todo tipo de violência ocorrido no âmbito doméstico ou no seio familiar de ser investigado por meio de inquérito policial e acompanhado pelo Ministério Público. Além de definir o que é a violência do- méstica e familiar contra a mulher, a lei acabou por modificar algumas questões nos aspectos policial e judicial. No caso deste último, a alteração foi feita de modo a permitir, por exemplo, a atuação do juiz no sentido de decretar a prisão preventiva do agressor – nos casos de risco à integridade da mulher – e para obrigá-lo a comparecer a programas de reeducação e recuperação. Deve-se enfatizar que a Lei Maria da Penha classifica como violência contra a mulher, não apenas a violência física, mas também violência psicoló- gica, sexual, patrimonial e moral, independente, inclusive, da orientação sexual da vítima. Há mais: caso a vítima seja portadora de deficiência, a pena do agres- sor aumenta em um terço. Para que você tenha ideia de quão importante é uma questão que para alguns não passa de “problema doméstico”, a lei à qual nos referimos é resulta- do de uma discussão que mobilizou várias ONG’s, a Secretaria Especial de Polí- ticas para as Mulheres e o Governo Federal. A preocupação com a efetividade da lei também mobiliza várias entidades articuladas com o Conselho Nacional de Justiça, visando à popularização da mesma para permitir que as mulheres víti- mas de violência tenham o devido acesso à justiça. Talvez você tenha percebido como isto vem repercutindo, seja através das propagandas veiculadas nas mí- dias; na piada que alguém dirige a um homem, advertindo em tom de anedota: “cuidado com a Lei Maria da Penha!”; ou mesmo algumamulher do seu círculo de amizade ou familiar que já teve que acionar a justiça para garantir a proteção através da lei. As campanhas contra a violência doméstica esbarram, porém, numa grande muralha que se junta ao medo de denunciar o agressor: o fator cultural. Isto fica evidente naquele dito popular que é muito repetido calando possíveis Fundamentos Antropológicos e Sociológicos82 denúncias: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!”. Este adágio popular acaba por reduzir a violência contra a mulher a um problema da intimi- dade do casal, circunscrito ao lar, quando na verdade não é. Não é à toa que o Conselho Nacional de Justiça incentiva as campanhas com o objetivo de operar o que denomina de mudança cultural, pois através dela pode se pensar na erra- dicação da violência contra as mulheres. Ou seja, tá na hora de utilizar a colher para jogar por terra a omissão diante da agressão, não acha? Ainda que a observância desta lei não esteja ocorrendo de maneira total- mente eficaz é mais um horizonte que se abre para superar a desigualdade de gêneros. Gostaria de sinalizar com este exemplo, como a interferência nos modos de vida das mulheres repercute na vida dos homens também. Ao promulgar uma lei deste tipo que visa à proteção das mulheres, exige-se que o homem modifique seu comportamento, não apenas em relação a sua companheira (ou ex), mas nas rela- ções com todas as mulheres. Ao ser punido, através de uma lei, os seus modos de interação serão repensados e isto reflete também em outros âmbitos da vida social. Muitas informações para se situar antropologicamente no mundo? Su- giro uma pausa, uma água e que retome mais uma vez o fôlego para encarar mais uma temática. Vamos falar sobre religião. Vejamos antropologicamente o que foi feito a respeito do tema... Assim como sexualidade e gênero, uma das faces da cultura que é qua- se sempre fonte de debates intensos e a partir da qual as intolerâncias (assim como as crenças) se revelam das formas mais intensas e violentas é a religião. Questionar a fé ou o deus do outro é algo recorrente, assim como as tentativas de impor o seu próprio deus ou a sua crença. Voltando à época da antropologia evolucionista, poderemos perceber quão antiga é a dificuldade em entender e mais ainda em aceitar que cada culto, cada ritual, cada sistema simbólico tem a sua lógica e atende às “necessidades” de quem os pratica. Ao lado do parentesco, da economia e da política, a religião foi um dos temas mais explorados no cam- po antropológico desde os seus primeiros tempos. Mas isto não quer dizer que a percepção de religião tenha sido a mesma. Não. E talvez justamente por isso tenha causado tanto estranhamento e tanta curiosidade aos que se aventuraram a estudar os rituais mágico-religiosos. Assim como Lewis Morgan pensou no desenvolvimento unilinear das sociedades humanas, a partir de uma escala evolutiva e dos períodos étnicos que compreendiam, respectivamente, selvageria, barbárie e civilização, James Frazer C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 83 (1854-1941), outro expoente desta corrente de pensamento, deteve-se a explicá-la através do desenvolvimento do tipo de pensamento predominante nas socieda- des, partindo da magia, passando pelo estágio intermediário que seria a religião, e chegando ao ápice da escala, a ciência (presente apenas nas sociedades desenvol- vidas como as europeias). Em sua principal obra, O Ramo de Ouro (1890), Frazer se detém a estudar a regra para a sucessão do sacerdócio no templo do bosque de Nemi, entendendo que qualquer um poderia ser sacerdote e rei daquele bosque, desde que arrancasse o ramo de ouro – planta sagrada – e, em seguida, matasse o sacerdote. A leitura que o referido autor fazia era a de que o sacerdote represen- tava o deus no bosque. Assim sendo, a morte do sacerdote significava a morte de um deus. Deste modo, Frazer pretendia estabelecer uma conexão entre sacrifícios de ideias e costumes selvagens com doutrinas da cristandade. Outro tipo de abordagem antropológica no âmbito da religiosidade vem de Robert Hertz (1882-1915), colaborador da Sociologia Francesa que tem como fundador e principal representante Émile Durkheim. Além de inspirar seus discípulos e seguidores, Durkheim se dedicou intensamente ao estudo des- te aspecto da sociedade, cuja expressão maior é o seu livro As Formas Elementa- res da Vida Religiosa (publicado em 1912). Hertz, um dos autores influenciados pelos ensinamentos de Durkheim, preocupa-se em demonstrar a importância da polaridade religiosa para pensar a sociedade como todo. A sistematização desta ideia está demonstrada em A Proeminência da Mão Direita (1909), no qual Hertz se detém a buscar uma explicação para o uso privilegiado que faze- mos da mão direita, cabendo à esquerda o papel de apoio, de auxiliar: “Não é porque seja fraca ou sem poder que a mão esquerda é desprezada: o contrário é verdade”, afirma Hertz (1908, p. 102). A distinção entre no uso das mãos seria, segundo o autor, reflexo da polaridade religiosa, pois as representações coleti- vas tiveram suas srcens nas emoções e nas crenças religiosas. No mundo religioso, segundo a leitura hertziana, a oposição sagrado x profano assume grande importância, separando seres e coisas que têm poder dos que não o tem. Assim sendo, as proibições e tabus mantêm esses elementos separados e estes, por sua vez, gerenciam toda a vida social. Conclui Hertz que se a polaridade sagrado (nobre) X profano (impuro) governa todo o universo, o corpo do homem não poderia escapar, logo, o lado direito diz respeito ao que é sagrado, nobre, masculino, forte, ativo. Por oposição, o lado esquerdo estaria atrelado a tudo que é profano, feminino, comum, passivo. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos84 Seguindo o rastro daqueles antropólogos que nutriram interesse pelas coisas sagradas e profanas, ou por maneiras de dominar a natureza, chegamos a Edward Evans-Pritchard (1902-1973), um dos representantes da antropologia social inglesa, que teve como precursores B. Malinowski e A. Radcliffe-Brown (já conhecidos nossos). Contratado pelo governo britânico para estudar uma de suas colônias, Evans-Pritchard desembarca entre os Azande, uma tribo locali- zada na África Central. Ele vai além de autores que pretendiam estudar o que lhes pareciam crenças religiosas irracionais e se dedica ao estudo da bruxaria entre os azande. Na sua perspectiva – funcionalista –, a bruxaria é percebida como força estabilizadora do sistema zande. Ela está presente em todas as ati- vidades daquela sociedade e é o fator explicativo da relação entre os homens e os infortúnios, assim como um meio de reação aos eventos funestos. Segundo Evans-Pritchard (2005, p.49), estas crenças compõem “um sistema de valores que regula a conduta humana”. Para nós, coisas misteriosas não são explicadas por leis naturais, são sobrenaturais. Entre ao Azande não há esta distinção en- tre natural e sobrenatural, a bruxaria é um evento ordinário, normal. Estamos lidando, pois, com classificações distintas das nossas. O que esta em jogo quando falamos magia, e ousamos estender à reli- gião, é o que Claude Lévi-Strauss (1908-2009) chama de eficácia simbólica. A eficácia da magia implica na crença que a sustenta, assim como ocorre na reli- gião, observados os devidos contextos. Três aspectos devem ser considerados no que diz respeito à eficácia simbólica, de acordo com Lévi-Strauss (2008, p.194), “a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; a crença do doente que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; a confiança e as exigências da opinião coletiva”. Mas não ache que religião foi assunto abordado apenas pelos autores clássicos da antropologia! Há diversos grupos de pesquisas e autoresque in- dividualmente, se debruçam sobre os diferentes tipos de cultos religiosos, aos diferentes sistemas de crenças, inclusive motivados pelas mudanças que vêm ocorrendo no perfil da sociedade brasileira – predominantemente católica – no que diz respeito à religião. Algumas pós-graduações no Brasil dispõem, inclusi- ve, de linhas de pesquisa dedicadas ao estudo de grupos religiosos. Não esqueça que, também nesse sentido, a mistura se fez na formação do Brasil! C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 85 Consagração da hóstia na missa católica Os orixás cultuados nos terreiros de candomblé Interior deInterior de uma mesquitauma mesquitano Irãno Irã Fundamentos Antropológicos e Sociológicos86 Apesar da mescla que se instaurou desde o início no Brasil, não esti- vemos isentos de conflitos religiosos – e em outras partes do mundo eles tam- bém se fizeram e fazem presentes – que até hoje se manifestam. Exemplo da intolerância ou do preconceito que se instaura também no campo religioso foi a notícia veiculada recentemente na mídia de que um juiz federal do Rio de Ja- neiro emitiu uma sentença argumentando que cultos afro-brasileiros – também chamados de religiões de matriz africana – como umbanda e candomblé não são religião. Tratava-se de uma ação do Ministério Público Federal solicitando a retirada de vídeos – no Youtube – de cultos evangélicos considerados ofensivos ao candomblé e à umbanda, por apresentar intolerância e preconceito. Para o juiz, para ser considerada religião, uma crença tem que se basear em algum livro (a bíblia, alcorão, torá), possuir estrutura hierárquica e culto a um só deus. Após a repercussão da sua postura, que mobilizou a opinião pública e um recurso do Ministério Público, o juiz Eugenio Araújo voltou atrás, modificando parte da sentença, ao admitir que a umbanda e o candomblé são religiões, mas manteve a negativa à solicitação de retirada dos vídeos. Se ao pensarmos em religião estamos pensando em crença, fé, eficácia simbólica, como,então, condenar alguém que cultua um deus que não é O Deus? Como não aceitar que existem outras crenças tão eficazes quanto as nossas para atender às nossas angústias e responder às nossas questões existenciais? Assim como há pluralidade no exercício da nossa sexualidade ou na forma de conce- bermos o gênero, as práticas religiosas são também plurais, graças a Deus, a Jah, a Oxalá, a Alá... Apesar da breve incursão em temas tão amplos e inquietantes (para dizer o mínimo), espero que você tenha conseguido refletir sobre a importância de pensá-los antropologicamente e como a Antropologia pode contribuir para a análise e intervenções nessas áreas. Pronto para mais um capítulo? C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 87 2.3. Diversidade familiar e parentesco2.3. Diversidade familiar e parentesco É inegável a importância dos estudos sobre o parentesco para o de- senvolvimento da Antropologia. Vários aspectos destes estudos fomentaram debates enriquecedores para a disciplina, apesar do impacto que algumas pro- posituras causaram. Família e parentesco, conceitos que constituem os “alicer- ces históricos da Antropologia”, como coloca Claudia Fonseca (2010), após um período à sombra de questões outras, passaram a incorporar as discussões an- tropológicas, tendo como combustível as mudanças nas relações familiares que testemunhamos há algumas décadas. Talvez um dos melhores exemplos disso seja a chamada família patriar- cal brasileira, a família que Gilberto Freyre tornou célebre e foi pintada como o único quadro a ilustrar a história da família brasileira. A família patriarcal as- sumiu um papel central em se tratando de família brasileira, ofuscando outros tipos de arranjos familiares que se formavam e existiam, “apesar dele”. Definida como um grupo extenso, formado pelo núcleo conjugal e a prole legítima, so- mando agregados, parentes, afilhados e escravos, a família patriarcal tinha o pai como o centro da autoridade, subjugando a esposa e os demais personagens que a compunham. Eleita como modelo dominante, o que estava fora do seu jugo era considerado uma massa amorfa que não poderia ser denominada família, com isso excluindo os arranjos formados pelos artesãos, pequenos proprietá- rios e funcionários da Coroa portuguesa, assim como outros personagens que povoavam a colônia. Mariza Corrêa (1994) propõe uma leitura crítica deste tipo de história, relativizando a importância e o papel desta família, questionando a associação mecânica feita por alguns autores entre o desenvolvimento econômico e social de uma dada região e a percepção da família patriarcal como sendo a grande responsável pela formação da sociedade brasileira, eleita como um modelo do- minante. Com a tessitura de seus argumentos, Corrêa nos alerta para o fato de que “a família patriarcal pode ter existido e seu papel ter sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha nem comandou do alto da varanda da casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira” (CORRÊA, 1994, p.27). A mencionada autora adverte que assim como houve a marginalização prática de outras formas familiares através da família patriarcal, esta margina- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos88 lização vem também se instaurando no aspecto teórico, quando alguns autores que fazem a história da família brasileira atribuem formas familiares alterna- tivas à marginalidade. Este modo de pensar uma configuração familiar como um tipo central, negando organizações diversas, é também utilizado quando se trata da família nuclear, aquela formada por um homem, uma mulher e uma prole restrita. Este tipo de estrutura familiar é apontada como o modelo por ex- celência, resultado do processo de industrialização e urbanização, não deixando espaço para que os demais arranjos familiares sejam reconhecidos ou percebi- dos como outras possibilidades legítimas. Este olhar monolítico sobre a família acaba por eclipsar a diversidade, tingindo com esta única cor o contexto social e as relações de parentesco da sociedade brasileira na atualidade, que apresentam uma multiplicidade de arranjos domésticos, contemplando diferentes formas de relações. Heloísa Almeida (2004) é uma das vozes da Antropologia que nos cha- ma a pensar em outros elementos que são importantes para pensar a família, afastando a ideia de que há uma crise familiar por não estarmos obedecendo a um único padrão de família. Almeida indica elementos como geração e classe para ilustrar possíveis fontes de diferença que afetam a construção dos arran- jos domésticos. Não se enquadrando no ideal normativo da família nuclear, os arranjos domésticos populares são classificados como famílias desestruturadas, responsabilizados de maneira mais incisiva pela chamada “crise da família”. A possibilidade de diversidade é dominada pela ideia de desestruturação que ca- racteriza a família “pobre e favelada”, como pensam alguns autores. Esta maneira de abordar a família (idealizando um único modelo) é o que favorece também a divulgação de uma suposta crise da mesma. Deste modo, os casos de mulheres que assumem a chefia da casa, a coabitação de várias pessoas na mesma residência, seja como uma maneira de obter cuidados – avós que cuidam de netos, filhos que cuidam dos pais – ou de superar a falta de dinheiro para ter seu próprio lar, como exemplifica Heloísa Almeida (2004), são configurações que atestam a pluralidade de arranjos familiares nas classes populares, mas não exclusivamente nelas. Você certamente já se deparou com algum desses tipos de arranjo que não estão de acordo com os padrões delimita- dos pela sociedade como sendo o modelo “correto”de família! C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 89 As classes mais abastadas desejam, também, um modelo de família que nem sempre corresponde à realidade. Os divórcios e separações que modificam as camadas populares também se fazem presentes nos lares de classe média. Com isso, as mães que administram um lar sem o pai são personagens presentes nos domicílios das camadas médias da sociedade, assim como são recorrentes os indivíduos que passaram recasamentos, formando as famílias recompos-famílias recompos- tastas1414 ou abrigando diferentes gerações sob um mesmo teto (nos casos em que o homem ou a mulher volta a morar com os pais, após o divórcio, levando consigo um ou mais filhos, por exemplo). As condições de vida – tanto material quanto social e afetiva – diferem, mas a flexibilidade da estrutura familiar é comparti- lhada tanto pela classe média quanto pelas classes populares. Está claro, então, que tanto a família patriarcal quanto a família nu- clear, vista como sua substituta, são estereótipos de famílias sobres os quais os holofotes incidem e deixam as demais organizações familiares à sombra, ali- mentando uma visão negativa da família? 14 Famílias que são formadas por casais que trazem filhos de relações anteriores transfor- mando um dos cônjuges ou ambos e padrastos e madrastas. A gravura acima é representativa de um modelo de família tradicional que tem sua srcem no casal composto por um homem e uma mulher, o marido e os filhos. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos90 Ao contrário de uma “crise” da família, devemos pensar, como sugere Goldani (1993) nestes casos que fogem à regra, como o fortalecimento dos laços familiares e de parentesco, visto que com o aumento da expectativa de vida “nós brasileiros, hoje, temos maiores chances de passarmos mais tempo como mem- bros de uma ou mais famílias, quer no papel de pai, mãe, filhos, esposos, avós, etc.” (GOLDANI, 1993, p.71). Disto resulta a necessidade de exercermos vários papéis ao mesmo tempo e a convivência de diferentes gerações, atuando no sen- tido de uma reestruturação da família. Goldani sugere ainda, que as famílias sejam percebidas não como estruturas fixas no tempo e sim como processos. É o que também sugere Cristina Bruschini (1993), ao indicar que a família é uma construção, não algo natural. Assim sendo, tem como característica a mutabi- lidade. Eis um ponto que deve ser explicitado. Assim como os outros temas trabalhados até aqui, também a família é uma construção, não é algo natural, embora muitas vezes tendamos a assim percebê-la. Pais, mães, filhos, sempre existirão em diferentes sociedades, mas os parâmetros para designar quem é pai ou mãe, por exemplo, variam de uma sociedade para outra. E esses parâmetros nem sempre coincidem com os vínculos biológicos, como estamos acostumados a pensar. Lembre-se, por exemplo, dos pais adotivos, para ajudar a quebrar esta ideia de que família de constrói a partir de “laços de sangue” apenas. Voltando à família na sociedade brasileira, existem estudos que pode- mos utilizar para ilustrar a pluralidade de percepções sobre a família e as inter- pretações feitas sobre elas. Se elegermos o matrimônio (casamento) como foco de análise, por exemplo, são vastas as possibilidades de leituras sobre a família. Se em outras épocas o casamento era “arranjado” pelos pais dos noivos, como uma maneira de manter ou conquistar patrimônio, hoje podemos falar em “livre escolha” dos cônjuges. Se para haver casamento era necessário confirmar no cartório e na igreja, hoje basta a coabitação (morar sob o mesmo teto) para se considerar e ser considerado casado. O que quero que você entenda é que mu- danças como estas, aparentemente sem importância, refletem na família e no parentesco. Aliás, são “detalhes” como estes que são os responsáveis por estas diferentes formas de família. Ao eleger um dos componentes da família para observação é possível que se tenha a dimensão de flexibilidade que ela possui, transformando e sendo transformada por mudanças internas que dialogam com as mudanças externas C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 91 que são, digamos, sua moldura. Considerando que não se trata apenas de uma questão privada e íntima, as famílias são produtoras e produtos de transforma- ções econômicas, sociais e demográficas. Deste modo, as mudanças que ocor- rem no mundo externo chamam os membros familiares a redefinir seus papéis. A reestruturação dos modos de produção, a participação da mulher no mercado de trabalho, o aumento na expectativa de vida, queda na taxa de fecundida- de são elementos que se articulam, configurando novos estilos de vida para os quais a família não está blindada. Percebe como isto torna legítimo o estudo an- tropológico da família, que não se trata de uma questão de foro íntimo somente? Os personagens e seus papéis, outrora definidos clara e hierarquica- mente, são revistos, à medida que as transformações no nível macro, isto é, na sociedade, os levam a tomar outras posições. Veja-se como exemplo o papel da mulher. Sua entrada no mercado de trabalho trouxe consequências que extra- polaram a esfera doméstica, incidem sobre as relações trabalhistas, o aspecto econômico etc. Constatando-se que o crescimento da atividade profissional fe- minina não alterou a divisão dos papéis e que as atividades relacionadas ao lar e aos filhos permaneciam sob a responsabilidade das mulheres, que se dividiam entre a casa e o trabalho fora dela, novas questões foram postas. Passou-se a perceber o binômio atividade feminina/vida familiar como uma questão social. Os olhares se voltaram para a mudança que ocorre no espaço conjugal, tendo em vista que é o comportamento feminino que transforma acentuada- mente a maneira de viver a conjugalidade. Mas, como foi colocado anteriormen- te, esta mudança não se restringe à esfera privada. Uma análise da interação familiar é legítima e possível porque “a atividade profissional das mulheres que são mães interpela a sociedade, seja a nível das empresas e das administrações de saúde, seja a nível da escola e da habitação” (SEGALEN, 1999, p.243-244). A mencionada autora lembra que o trabalho da mulher não é algo recente, mas o que o distingue na sociedade contemporânea é que em outras épocas não havia incompatibilidades entre tarefas domésticas e maternas com as atividades pro- dutivas, como ocorria na sociedade agrária. Apesar de existir um equilíbrio en- tre homem e mulher, a autoridade, que é fundamental, está nas mãos do homem tanto no público quanto no privado, que é sua reprodução. Nesta sociedade, há complementaridade do trabalho do homem e da mulher, que produz uma con- tinuidade das relações na casa e na aldeia. Muda-se o contexto, porém, a po- sição da mulher permanece como mola propulsora e termômetro de mudanças Fundamentos Antropológicos e Sociológicos92 nas esferas pública e privada. O aumento do grau de instrução, acesso à con- tracepção, reconhecimento do estupro e do assédio sexual etc. são fatores que deslocam a posição da mulher e que reflete na família como um todo. Outro elemento que deve ser considerado é a presença do Estado nas relações familiares. Para intervir nestas relações, ele conta com a assistência de peritos e autoridades morais personificados em médicos e psicólogos, que passam a oferecer subsídios para construir discursos e políticas que interferem sobrema- neira na conjugalidade e nas relações parentais, visto que lhe permite controlar as famílias através da criança15, que até certo período da história era ignorada. O que as diferenças na composição de diversos arranjos familiares reve- lam, volto a chamar a suaatenção, não é o fim da família ou sua desestabilização, mas transformações possíveis, desde que se tenha claro que “‘família’, longe de ser uma unidade natural, representa o agregado de diversas relações, é perpas- sada por diversas forças institucionais e envolve a participação mais ou menos íntima de diferentes personagens” (FONSECA, 2008, p.773). Seria preciso tirar a família da singularidade e da estática para atribuir-lhe o “S” que a sua dinami- cidade e diversidade atestam, fugindo à ortopedia a que foi lançada por teorias e ideologias que privilegiavam um modelo hegemônico – tal como a família patriar- cal ou nuclear – escondendo outras possibilidades existentes e resistentes. Em meio à diversidade e transformações que questionam ou reelabo- ram os papéis desenvolvidos na unidade familiar está a parentalidade a redefi- nir as trajetórias familiares. Segundo Claude Martin (2004), se tomarmos famí- lia nuclear como referência de legitimidade, as noções vigentes de parentesco, maternidade e paternidade, os papéis de pai e mãe parecem ser suficientes, mas com as transformações das estruturas familiares, diz o autor, esta família bipa- rental simples é interrogada por todos os lados e novos atores tomam seu lugar no contexto familiar, podendo ser conduzidos a desempenhar outros papéis na socialização das crianças, enquanto que aqueles, outrora legítimos e instituídos, podem ver seu papel desaparecer. Ou seja, a uma complexidade de trajetórias familiares correspondem papeis também complexos. Vejamos do que se trata... O recasamento já havia sido experimentado em outro período e com isso a possibilidade de um pai ou uma mãe substituta (padrastos e madrastas) se instaurou. A mortalidade, uma causa natural, construía viúvos e por deman- 15 Todos esses cuidados e direitos voltados para a criança que presenciamos atualmente, não ocorre em todos os momentos da historia. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 93 das várias, permitia-se que outro indivíduo substituísse o papel parental do falecido ou falecida, embora uma aura pejorativa acompanhasse estas figuras (vide os contos de fadas que retratam a madrasta má e o padrasto como prin- cipal agressor e violentador de crianças). O divórcio recorrente não cria então uma novidade, se consideramos o recasamento. Entretanto, se conjugarmos a expectativa de vida, a vontade do indivíduo e o modelo genealógico de filiação, o resultado é diferente. A viuvez de um dos cônjuges era frequente, devido às altas taxas de mortalidade, e um fato a ser suportado, algo que independia da vontade dos casais. A chegada de outra pessoa para exercer o papel parental satisfazia a uma demanda criada social e, muitas vezes, economicamente. À medida que a expectativa de vida aumenta, a tendência é que os casais passem mais tempo juntos, sem que o estado civil de viúvo ou viúva seja experimentado facilmente. Por outro lado, com o surgimento do divórcio o rompimento do vínculo conju- gal aparece como uma possibilidade de escolha. Os motivos para a ruptura não são legitimados apenas por falha de um dos cônjuges, mas por necessidades outras, que tem a ver muitas vezes com a realização pessoal (ou a ausência dela no âmbito matrimonial) ou consenso quanto ao fim da harmonia no seio con- jugal. Tem-se, pois, a separação entre o casal conjugal e o casal parental. Per- mitimo-nos eximir da questão da guarda dos filhos, maiores índices de homens ou mulheres que ficam com eles, os dados que comprovam ou descartam tais índices etc., visto que nosso interesse é chegar à entrada de outras pessoas que vão desenvolver o papel parental (de pai ou de mãe, ou alguém que vai cuidar das crianças, sem necessariamente, ser o pai ou a mãe), assumindo-o mais ou menos intensamente, sem que isto signifique, necessariamente, a ausência de um dos genitores (pai ou mãe biológico). Ou seja, na configuração de situações em que a pluriparentalidadepluriparentalidade1616 é a palavra de ordem. Embora o padrasto e a madrasta não gozem de estatuto jurídico que lhes atribui direitos e deveres relacionados aos “filhos do divórcio”, eles com- partilham o cotidiano com os pais biológicos, que são reconhecidos jurídica e socialmente. Tal situação remete mais de perto à questão da pluriparentalidade em uma sociedade que molda suas relações a partir de uma modelo de filiação genealógico. Tal modelo preconiza a ideia de que o indivíduo é gerado por dois outros indivíduos de uma geração ascendente e de sexos diferentes, que são 16 Grosso modo, a palavra designa uma situação em que há mais de uma pessoa responsá- vel por desempenhar o papel de pai e/ou de mãe. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos94 seu pai e sua mãe, e tem como norma a exclusividade, isto é, a posição de filho é dada por apenas um homem e uma mulher. Ao mesmo tempo em que podem ocorrer conflitos de diferentes ordens – conjugais, emocionais, psicológicos – esta situação de pluriparentalidade não se configura nos planos jurídico e social, se considerarmos que os padrastos e as madrastas não têm vínculos jurídicos ou biológicos com os/as filhos/as dos seus cônjuges. Assim sendo, não ocupam a posição de pais ou mães adicionais, “apenas” substituem aqueles ou aquelas que estão ausentes na nova arquitetura familiar que se construiu cotidianamente. Dentro do movimento de transformações das estruturas familiares há outro arranjo familiar que interroga fortemente a biparentalidade, abalando consideravelmente os pressupostos expressos no modelo genealógico de que falamos acima, e que privilegiam, não apenas a exclusividade da filiação, mas também o par heterossexual: são as famílias constituídas por casais de gays e casais de lésbicas, as chamadas famílias homoparentais. As famílias formadas por casais homossexuais ilustram a dinâmica na qual o parentesco está imerso, cujo movimento, segundo as épocas e os lugares, permite elaborar o que é permitido ou não, obedecendo aos parâmetros de cada cultura, (re)ordenando a trindade do parentesco: aliança, filiação, residência. No contexto atual, as famílias homoparentais se configuram como exemplo do que é interdito, visto que não pode corresponder à montagem fundada no as- pecto natural que necessita de um pai e uma mãe, escapando ao tal princípio genealógico. Na contramão do que indica e deseja a norma heterossexual, a fa- mília homoparental vem adquirindo visibilidade ao longo das últimas décadas. Independente dos meios utilizados para ser constituída, ela rompe com o mode- lo de família pai - mãe - criança, questiona a ligação entre sexualidade, família, casamento e filiação. Mais ainda: a diferença sexual não é mais considerada como uma diferença constitutiva ou incontornável da reprodução. A morte da cantora Cássia Eller, em 2001, já havia despertado a aten- ção para as famílias construídas por mães lésbicas, considerando que na oca- sião, a opinião pública questionava se a companheira da cantora tinha o direito de ficar com a guarda da criança – filho biológico da cantora – ou esta deveria ficar sob os cuidados do pai de Cássia. Anos depois, em São Paulo, um casal tor- nava pública a dupla maternidade de gêmeos concebidos através de reprodução assistida. O caso foi bastante divulgado pela mídia impressa e televisionada (o parto foi inclusive veiculado em programa da Rede Globo). Adriana e Munira C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 95 tinham pouco tempo juntas e quando decidiram ter filhos através de sêmen de doador anônimo, descobriram que uma endometriose que já tinha tirado o ová- rio direito de Adriana, comprometera também o esquerdo, impossibilitando a produção de óvulos. Assim sendo, sua parceira, Munira,doou os óvulos que seriam fecun- dados com sêmen cujas características genéticas buscavam a semelhança física com Adriana, que vivenciou os nove meses de gestação de um casal de gêmeos. Com o nascimento dos bebês (um menino e uma menina), passaram às questões burocráticas para reconhecer juridicamente as duas mães. Após ter o pedido de dupla maternidade negado por cinco vezes, as duas finalmente conseguiram registrar as crianças com o nome das duas, mediante os esforços da advogada Maria Berenice Dias, especialista em direito homoafetivo. Estes dois casos citados são exemplos da visibilidade que as famílias ho- moparentais vêm adquirindo ao longo dos anos, assim como os demais arranjos familiares que foram ofuscados, ora pela família patriarcal, ora pela família nucle- ar heterossexual. São exemplos também de que, apesar dos entraves biológicos e jurídicos, embora não sejam reconhecidas social e juridicamente, são famílias que existem e que interpelam a sociedade a reconhecer sua existência. A despeito de leis que assegurem os vínculos entre os indivíduos que compõem famílias homoparentais, estas organizações familiares têm sido cada vez mais notadas. Antes de tratar deste ponto, exatamente, gostaríamos de de- dicar algumas linhas à formação dos casais que são ponto de partida para estas famílias e a busca por reconhecimento jurídico e político como tais. Neste ponto, você pode articular gênero e sexualidade, já que foram debatidos anteriormen- te. Esta discussão sobre famílias e casais gays pode ilustrar como a Antropologia se coloca neste campo. Tomemos como representativo do debate e luta por reconhecimento legal, a discussão do PACS (Pacto Civil de Solidariedade), na França. Tal discus- são deu mostras de que a conjugalidade homossexual não é um dado recente e que há um forte movimento no sentido de institucionalizar a relação existente, a fim de assegurar direitos e deveres aos cônjuges. Esta discussão sacudiu não só as estruturas do mundo hétero como também os segmentos gays e lésbicos. Entre estes últimos, alguns defendiam que a união legitimada pelo PACS era um passo dado no sentido de sucumbir à ordem imposta pela norma heterosse- xual (que valoriza a família nuclear), que oprimiu gays e lésbicas durante anos, Fundamentos Antropológicos e Sociológicos96 em contraposição aos que percebem este tipo casamento como uma maneira de subverter a ordem patriarcal, ressignificar amor, família, sexualidade e até mes- mo poder (Castro, 2007). Outro ponto que se analisa é o receio de que a permis- são do casamento a gays e lésbicas favoreça uma estigmatização daqueles que não desejam viver uma parceria estável, criando “uma distinção entre ‘gays de primeira’ (casados) e ‘gays de segunda’ (não casados e acusados de promiscui- dade)”, como sugere Vale de Almeida (2007, p.159). Neste sentido, estaríamos diante de uma “dádiva ambivalente”, como sugere Butler (2003, p. 226). O fato é que antes e durante (e até mesmo se um dia chegarmos a um consenso, depois) o debate sobre conjugalidade homoerótica, casais de gays e lésbicas se formam todos os dias, em todas as partes, e isto ficou visível com a emergência do modelo individualista moderno e com o advento da AIDS, quan- do se buscou a conjugalidade como forma de se proteger da epidemia e buscar amparo legal devido às perdas de companheiros vítimas da doença (GROSSI, 2003). Assim, tais sujeitos continuam investindo neste tipo de união ,com ou sem o amparo de leis, arcando com as consequências que o preconceito instau- ra, experimentando os dissabores de atuar fora do script heterossexual. Se eles são capazes de viver e compartilhar alegrias e problemas semelhantes aos casais heterossexuais, ao mesmo tempo têm que lidar com obstáculos advindos “do preconceito da sociedade e dos efeitos particulares da socialização de papel de gênero em indivíduos homossexuais” (Mc Goldrick [1989] 1995 apud Nunan, 2007, p. 48). Reside aí uma das peculiaridades a ser considerada, por exemplo, ao se pretender explorar a maternidade lésbica. O debate brasileiro ganhou notoriedade a partir do Projeto de Lei 1151/95, proposto pela então deputada federal Marta Suplicy, que visa instituir a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. O referido Projeto de Lei foi debatido no âmbi- to legislativo, gerando propostas de alterações, assim como propostas de vetos. Os impasses, preconceitos e tensões nele imbricados, estenderam-se à sociedade mais ampla, que então impediu a votação do projeto. Mas eis que em 2011, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a união entre pessoas do mesmo sexo. Pela decisão do Supremo, os homossexuais passaram a ter reconhecido o direito de receber pensão alimentícia, em caso de separação; declaração con- junta de Imposto de Renda; ter acesso à herança de seu/sua companheiro/a. em caso de morte; podem ser incluídos como dependentes nos planos de saúde e poderão transformar a união em casamento. Ou seja, os casais homoafetivos C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 97 passam a ter quase os mesmos direitos que são concedidos aos casais heterosse- xuais, sendo que as questões sobre filiação não foram tematizadas. A decisão do Supremo dizia respeito ao pleito de um casal de gaúchas que viviam em união estável e não cria regra para casos semelhantes. No entanto, abriu precedentes para que situações semelhantes fossem julgadas de acordo com esta decisão. E novos horizontes continuam a se abrir, a senadora Marta Suplicy teve aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, o projeto de lei do Senado 612/2011, que altera os artigos 1.723 e 1.726 do Código Civil, para reconhecer como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo e a conversão desta união em casamento. Deste modo, haveria a adequação do Código Civil à decisão do Supremo Tribunal Federal. Outro passo dado nesse sentido foi a aprovação, em 2013, pelo Conselho Nacio- nal de Justiça, de uma resolução que obriga os cartórios do Brasil a celebrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Embora a legalização da união de pessoas de orientação homossexual seja um grande avanço no reconhecimento de direitos a uma população extre- mamente marginalizada, ela só foi possível porque ficou de fora da discussão o direito de filiação a estes casais, assim como no debate sobre o PACS na França. Isto não quer dizer, porém, que estes não consigam constituir famílias com fi- lhos. Existem estratégias elaboradas pelo casal que os permitem ser pais e mães, ainda que não obtenham automaticamente o reconhecimento jurídico de sua condição. As maneiras de conceber filhos através de uma díade homossexual são escolhidas de acordo com as trajetórias individuais e conjugais dos sujeitos e suas possibilidades materiais. Mas há pelo menos quatro maneiras: recomposi- ção familiar – um dos cônjuges tem filhos em relações heterossexuais anterio- res e eles passam a morar com o casal homossexual; coparentalidade – casais de gays e lésbicas entram em acordo para juntos conquistar a condição de pais e mães; adoção; reprodução assistida - uma das parceiras doa o óvulo a ser fe- cundado por sêmen de doador anônimo (veja o caso de Adriana e Munira, por exemplo), ou um dos parceiros doa um sêmen para fertilizar um óvulo de do- adora de óvulo e/ou útero, já que é necessário uma mulher para gestar o bebê. Trata-se de um procedimento custoso, cujo preço varia conforme a técnica em- pregada para a concepção, o que dificulta esta escolha, apesar dela representar a possibilidade de ter um filho biológico. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos98 Espero que você não tenha ficado atordoado com tantas informações sobre algo que lhe era tão familiar. Ou não foram tantas novidades assim, pois você já tinhareparado nesta diversidade familiar que nos circunda. Ou ainda: não foi novidade porque você mesmo faz parte de uma família que não se en- caixa tão perfeitamente naqueles modelos construídos pela nossa sociedade... Seja lá qual for a opção, o fato é que os diferentes arranjos familiares estão a nos rodear e isto não significa, fique claro, o fim da família, mas a sua reelaboração que é nutrida por mudanças que ocorrem fora dos lares também. 2.4 Cultura do consumo e meio 2.4 Cultura do consumo e meio ambienteambiente Vimos no decorrer de nossa viagem sobre a abordagem antropológica como a cultura é construída socialmente e como varia conforme a sociedade, a dinâmica dos diversos grupos e no transcorrer do tempo. Vimos também que são frutos da espontaneidade do cotidiano e do fazer humano e que podem, a depender da regularidade e reprodução pelos indivíduos, transformar-se em padrão cultural. Assim, temos o que é considerado a tradição de um povo ou grupo ou o que convencionamos dizer “estar na moda”. Em especial no modelo de sociedade em que vivemos, caracterizada pela diversidade cultural seja re- gional, religiosa, áreas profissionais, estilos de vida, etc., concorrem, ao mesmo tempo, com uma tendência à massificação dos comportamentos imposta pela sociedade do consumo. Aliás, a base da formação socioeconômica capitalista está centrada na produção em massa por meio das tecnologias cada vez mais avançadas e da necessidade de escoamento dessa produção pelo consumo. Ima- gine que o advento da acumulação da produção pela tecnologia provocou o mer- cado de produtos e serviços a estimular o consumo para além das necessidades básicas e essenciais, como comer ou se proteger do frio. Para muitas pessoas, não basta comer um sanduíche ou vestir um agasalho. É necessário que o san- duiche esteja acompanhado de brindes e outros complementos que fazem parte de um “combo”. Assim como o agasalho precisa ter aquela cor ou marca que vão atribuir-lhe um status para além da necessidade de proteção. O produto consu- mido possui o que Marx chamou de fetiche da mercadoria, ou seja, o encanta- mento ou a aparência que a mercadoria confere a quem a possui. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 99 O desenvolvimento tecnológico é inevitável, uma vez que, pelo trabalho o homem transforma a natureza e a busca pela melhoria da vida através das tec- nologias é contínua. Associada à característica produtiva do sistema capitalista de aquecimento da produção cria-se e intensifica-se a cultura do consumo. Con- sumimos além das necessidades básicas, ao mesmo tempo em que temos um mercado extremamente sedutor para o consumo. Muitas vezes a nossa identida- de esta fortemente associada pelo nosso padrão de consumo, como percebemos a noção de bem-estar associado aos bens materiais que conseguimos adquirir. Faz parte da nossa cultura o “ter” prevalecer sobre o “ser”. O consumo se limita apenas a saciar as necessidades imediatas. A dinâmica do consumo envolve as formas de produção e a circulação desigual da produção. Combinando a Revolução Industrial do século XVIII com a economia de mercado – uma economia baseada no consumo de bens – e, por conseguinte, de uma sociedade de consumo que emerge a partir da segunda metade do século XIX, com o impulso dado pelas revistas e cartazes, surge a chamada indústria cultural. É, pois, por meio das modificações trazidas pela industrialização que se desenvolve uma cultura de massa e uma indústria cultural. Os mesmos prin- cípios vigentes na economia industrial são aplicados na indústria cultural e na cultura de massa. Neste contexto, a cultura é produzida em série – por meio da indústria – perdendo seu poder contestatório, seu poder crítico, para ser consu- mida como qualquer outra coisa produzida pela indústria. Este cenário e seus desdobramentos são objeto de estudo da chamada Escola de FrankfurtEscola de Frankfurt, fundada como Instituto de Pesquisa Social, em 1923, por Carl Grünberg, inicialmente pensado para fazer um levantamento das lutas do movimento operário alemão. Em 1929, assume o controle do Instituto o filósofo Max Horkheimer, passando a investigar a modernidade e os problemas sociais dela decorrentes, formulando o que se chamou de teoria crítica da sociedade. Devido à ascensão de Hitler ao poder, o Instituto – boa parte dos seus pensadores era de judeus – migrou para os Estados Unidos17, só se restabelecendo em Frankfurt em 1953. A chamada “Escola de Frankfurt” teve como principais e primeiros expoentes pensadores inicialmente inspirados no marxismo como Max Horkheimer, The- odor Adorno e Herbert Marcuse, além de Jürgen Habermas e Walter Banjamim. 17 Em 1940, Walter Benjamim comete o suicídio enquanto atravessava os Pirineus, temen- do que os nazistas o capturassem. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos100 Este último autor, através do seu texto, A Obra de Arte na Era de sua Reprodu- tibilidade Técnica (1951) analisa as alterações que o cinema e a fotografia, por exemplo, têm provocado, repercutindo na produção da cultura. Para o referido autor, a reprodutibilidade técnica ofertada por estas novas técnicas de produção artística, levaria à perda da aura – “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”, conforme define Benjamim – da obra de arte. Dito de outra ma- neira, a obra de arte perderia sua autenticidade devido à sua produção serial. Como coloca Araújo (2010, p.123), São superados o conceito e a prática idealista da cultura, nos quais esta é colocada em uma esfera superior, apartada da realidade material e desfrutável, apenas, de forma indivi- dual e subjetiva pelo sujeito, emergindo, em seu lugar, o con- ceito e a prática materialista da cultura, nos quais esta se torna uma construção humana e histórica, possível de ser desfrutada, apropriada e produzida por qualquer pessoa. O poder da Indústria Cultural é aumentado e consolidado, produzindo verdadeiramente uma sociedade de consumo com o advento dos meios de co- municação, especialmente a TV, meio de comunicação de massa, por excelên- cia. A expressão “Indústria Cultural” foi utilizada pela primeira vez por Adorno e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento (neste ponto deve ser con- siderado o contato dos autores com a sociedade norte-americana). Para esses autores, a partir do momento em que as obras de arte foram assimiladas pelo mundo comercial, como mais uma mercadoria, elas perderam sua autonomia e seu poder contestatório. Assim sendo, a indústria cultural era percebida como instrumento de alienação, de dominação. Norteada pela produção em série, impossibilitando a criação particular do artista, a Indústria Cultural está interessada no lucro a ser obtido, padroni- zando a criação e os objetos de arte. Esta padronização, por seu turno, levaria a uma uniformização das consciências. A teoria crítica proposta pelos frankfur- tianos é direcionada à sociedade moderna, concentrando-se em alguns aspectos específicos. Critica-se: a arte produzida na sociedade capitalista, o consumo, a cultura de massa, a indústria cultural, a coisificação do homem, o cinema pro- duzido em Hollywood, os conceitos estéticos vigentes e a alienação. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 101 Os autores tecem suas críticas a partir da relação que se estabelece en- tre cultura e mercadoria. Daí Adorno pretende explorar essa conversão da cul- tura enquanto valor de uso ao valor de troca, conversão esta operada pela indús- tria cultural. Walter Benjamim, por sua vez, acreditava e defendia a ideia de que o cinema favorecia um outro tipo de arte revolucionáriaque abalaria o conceito vigente de obra de arte. Da discussão acerca da indústria cultural, surge o termo “cultura de massa”, que, segundo Ortiz (1985), tem caráter essencialmente ide- ológico. Assim explica o mencionado autor: A noção pressupunha que as massas possuiriam uma cultu- ra própria que simplesmente estaria sendo veiculada pelos meios de comunicação: as empresas culturais seriam instân- cias neutras que reletiriam democraticamente o gosto popu- lar existente. A ideia de indústria cultural refuta esta pretensa neutralidade dos meios de comunicação e vem reforçar a di- mensão que a cultura é algo fabricado. Ela agrega os elemen- tos heterogêneos dispersos na sociedade, mas vai integrá-los a partir do alto, dando ao produto inal uma nova qualidade. Onde a sociologia americana via o consumidor como sujeito do pro- cesso, a Escola o vê como o objeto das grandes empresas. Os indivíduos seriam manipulados para se conformar ao papel de consumidores no mercado de bens culturais. (ORTIZ, 1985, s/p) Mas a que tipo de cultura se referem os que estão no contexto de Frank- furt? Certamente não tem a ver com cultura no sentido antropológico. Os filó- sofos da Escola de Frankfurt estão se referindo a cultura no sentido da tradição alemã, de kultur , arte, filosofia, literatura e música, elementos que seriam indi- cadores do espírito de uma sociedade. Sendo assim, como pensar em Indústria Cultural e cultura de massa? Os chamados meios de comunicação de massa (hoje podemos pensar na TV como o principal e o mais poderoso) foram e são essenciais para a difusão deste tipo de cultura. Podemos apontar para o início da indústria cultural como sen- do o período marcado pelo processo de massificação das mídias, a impressão do primeiros jornais e dos folhetins, que ofereciam uma arte fácil de digerir atingindo um amplo público. Mas, para a consolidação deste processo, afirma Coelho (1993, p.06), foram necessários outros elementos: “O teatro de revista (como forma simplificada e massificada do teatro), a opereta (idem em relação à ópera), o cartaz (massificação da pintura) e assim por diante — o que situaria o aparecimento da cultura de massa na segunda metade do século XIX europeu”. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos102 Ou seja, está claro que isto só ocorre após a Revolução Industrial. Continuando na esteira do Teixeira Coelho (Op. cit.): Nesse quadro, também a cultura — feita em série, indus- trialmente, para o grande número — passa a ser vista não como instrumento de livre expressão, crítica e conheci- mento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve ser consumido como se consome qualquer outra coisa. É produto feito de acordo com as normas gerais em vigor: produ- to padronizado, como uma espécie de kit para montar, um tipo de pré-confecção feito para atender necessidades e gostos médios de um público que não tem tempo de questionar o que consome. Uma cultura perecível, como qualquer peça de vestuário. Uma cultura que não vale mais como algo a ser usado pelo indivíduo ou grupo que a produziu e que funciona, quase exclusivamente, como valor de troca (por dinheiro) para quem a produz. (p. 12) A discussão que tem início na teoria crítica da Escola de Frank- furt e que chama a atenção para a massificação que embaça ou exaure mesmo a consciência dos sujeitos, tornando-os alienados, não ficou obsoleta, num certo sentido. Exemplo da mercantilização da arte. Um dos mais famosos quadros de Leonardo da Vinci tornou-se acessível aos mais diversos públicos e finalidades. Foto da obra de arte Monalisa, de Leonardo da Vin- ci, 1503 C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 103 Com a crescente expansão das mídias, principalmente a internet, a tendência é cada vez mais consumir sem refletir. Consomem-se produtos que não tem a identidade de quem o produziu, assim como não visa individualizar o sujeito que a consome. Assim, podemos assistir ao grande espetáculo que se tornou a sociedade que alimenta e é alimentada pelas tendências lançadas pela economia de mercado. Para que haja a adesão a este tipo de prática, no entanto, há que se fazer instaurar um processo de significação, estabelecendo uma re- lação de reciprocidade entre coisas e pessoas, um processo de socialização que permita o ato do consumo. Tal papel é plena e satisfatoriamente desempenhado – na sociedade contemporânea – pelos meios de comunicação em massa e pelo marketing, que vão construir uma atmosfera favorável à experiência do con- sumo, pois se trata de um sistema simbólico operando. Assim Everardo Rocha (2000, p.24) explicita o papel das mídias para tornar possível tal experiência: [...] o sistema simbólico formado pelos meios de comunicação de massa organiza o comportamento do consumidor - e o ato mesmo de consumo aí subjacente – que se realiza, antes de qual- quer coisa, por que todos acessamos coletivamente os signiica- dos. São as mensagens orquestradas por forças como marketing, propaganda, embalagem, etc. que liberam a dimensão coletiva que classiica produtos e serviços. Ao tornar público, o signii- cado atribuído ao mundo da produção, disponibilizando um en-quadramento cultural e simbólico que o sustenta, este sistema realiza a circulação de valores e a socialização para o consumo. O autor supracitado adverte que as nossas escolhas não são guiadas por desejos, instintos ou necessidades, mas são conduzidas por códigos cultu- rais que permeiam as relações sociais estabelecendo identificação entre pesso- as, grupos e serviços. Espaços e apelos ao consumoEspaços e apelos ao consumo Dentro dessa lógica, além da publicidade e dos meios de comunicação são criados também espaços que favorecem ao consumo, como o exemplo dos shoppings centers . Criados por volta da década de 40, os shoppings centers são Fundamentos Antropológicos e Sociológicos104 espaços que reúnem uma grande quantidade de lojas que oferecem serviços e produtos variados, além de agregar em sua estrutura, espaços de socialização e lazer. Incluem,ainda, nessa estrutura, a segurança de quem transita por esses espaços, garantida por equipamentos de controle. O Brasil foi agraciado com o primeiro shopping center em 1966, mas a configuração de uma indústria de shopping centers só começa a se desenhar a partir da década de 1970, ganhando visibilidade e atraindo a atenção de investi- dores durante a década de 1980 (GARREFA, 2008). Devido a uma confluência de fatores, sobretudo socioeconômicos, Fernando Garrefa (Op. Cit) divide a his- toria destes “templos de consumo” no Brasil em quatro fases assim caracteriza- das: 1966 – 1980 – período que se inicia com o investimento de empresas do ramo imobiliário não especializadas e shoppings, e termina com o surgimento de grupos especializados neste tipo de empreendimento; 1980 – 1994 – o brasi- leiro passa a aceitar o formato shopping center e grupos familiares concentram atenção e investimentos na construção de shoppings que se expandem a partir da capital paulista, havendo também ampliação dos prédios já existentes; 1980 – 1994 – emerge o modelo enterteinment center, conjugando no mesmo espaço serviços, lazer e entretenimento. Há também o aumento do consumo tal qual nos Estados Unidos. O alto de índice de consumo se desdobra em conceitos de efemeridade e descartabilidade, característicos da sociedade de consumo até hoje. O último período delimitado por Garrefa inicia em 2006 e é caracterizado pelo investimento de capital estrangeiro neste setor e pela expansão do número de estabelecimentos. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 105 No final da década de 1980 Frúgoli Jr. (2008) desempenhou sua pesqui- sa em trêsshoppings centers na cidade de São Paulo, abordando-os , não apenas como espaço de consumo, mas também de sociabilidade e lazer. O referido autor evidencia que apesar da visão superficial que fazia parecer este tipo de estabele- cimento voltado para as elites, o que se verificava na década de 1980 era um mo- vimento de massificação pensado estrategicamente para arrebanhar um público maior, através de localizações bem planejadas,marketing e da própria arquitetu- ra dos prédios, que já se distanciavam doglamour das grandes galerias francesas que inspiraram os shoppings . Não é à toa que quando pensamos em consumo, quase que automaticamente visualizamos um grande espaço climatizado, com lu- zes, sons e aromas que nos faz esquecer as horas e o mundo externo, pois tudo é estrategicamente pensado para atrair consumidores. Trata-se, na verdade, de um mundo construído artificialmente que parece nos proteger da vida real onde o que é de carne e osso, de concreto e de asfalto, não é tão atraente. Na sociedade de consumo, como já deve ter ficado evidente para você, não se consome algo por uma necessidade imediata. Na verdade, se há uma ne- cessidade, é uma necessidade de consumir criada pelo sistema capitalista e a valo- Shopping Center: espaço de consumo, sociabilidades e lazer Fundamentos Antropológicos e Sociológicos106 rização deste ato. No espaço dos shoppings, pode-se atender a esta necessidade de comprar, mas ele vai além de um conjunto de lojas, de um lugar onde se adquire bens e serviços. Conforme coloca Valquíria Padilha (2007, p.34): Os shopping centers são símbolos de uma sociedade que va- loriza o espetáculo do consumo de bens materiais e do lazer- -mercadoria e que, além disso, oferece a uma parcela da população o direito a esse consumo e a esse lazer, enquan- to exclui dessa possibilidade a maioria da população. As-sim, esses centros comerciais coniguram-se como espaços de lazer alienado, reduzindo a identidade social ao universo do consumo, tanto dos que freqüentam tais espaços quan- to dos que não os frequenta, mas desejariam frequentá-los. Assim sendo, Padilha (op. Cit) concebe o shopping como referência para pensar a sociedade do consumo e do lazer. Ela vai além ao afirmar que a valorização deste espaço se deve também a ausência de políticas públicas que concebam o lazer como um direito social, daí a privatização do lazer e a restrição deste aos que dispõem do capital para obtê-lo. A indústria produz uma variedade de produtos e serviços que chegará ao consumidor por meio do mercado. No caso da sociedade contemporânea, os shoppings criam todas as condições favoráveis para o consumo a ponto de tornar-se também, fonte de lazer. Mesmo para quem é avesso a esse espaço, sente-se obrigado a visitar se quiser assistir a um filme, por exemplo, porque, estrategicamente os cinemas saíram dos centros da cidade para ocupar o espaço do shopping que traz, a reboque, consumo de comidas, roupas, livros e outros serviços. Interessante também é perceber o caráter transformador do capitalis- mo, capaz de se apropriar de expressões da contracultura e torná-las mercadoria para acumulação do capital. Vamos tomar dois exemplos de contracultura para compreender essa dinâmica. Uma delas é a contracultura hippie dos anos 60, que defendia as comunidades coletivas, um estilo de vida voltado à natureza, brincan- do com o jeans , um dos ícones da industrialização, que foi colorido e bordado. Outra contracultura que subverte o consumismo capitalista são os punks que, nos anos 70, embora não existindo um consenso ideológico, defendiam o comporta- mento do “faça você mesmo”, estilizando roupas com cortes e desbotamentos e uma estética bem peculiar e transgressora. Na passagem do século XX para XXI, o mercado capitalista se apropriou da estética das duas contraculturas e as trans- C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 107 formou em mercadoria para o consumo por diferentes grupos, que muitas vezes desconhecem os princípios e ideologias defendidas pelas culturashippie e punk . A circulação de pessoas e mercadorias, ocasionadas pela globalização, gerou uma ampliação, uma infinidade de referenciais simbólicas para o uso das mercado- rias, gerando o que Giddens (1991) chama de “desencaixe” da cultura de srcem ou dos sistemas sociais. Os símbolos criados num dado contexto já não tem o mesmo significado e passa, agora, a ser tratado como uma mercadoria para quem o possui. Consumo e impacto ambientalConsumo e impacto ambiental No mesmo caminho temos o movimento ambientalista que combate os efeitos da acumulação do capital na degradação ambiental. De uma lado, obser- va-se alguns grupos que procuram criar um estilo de vida baseado na busca pelo Moda Hippie Chic e Punk. A industrialização de roupas e assessórios destinados ao mercado consumidor Fundamentos Antropológicos e Sociológicos108 equilíbrio com o ecossistema a exemplo das ecovilas.ecovilas. São experiências de vida coletiva em que um grupo de pessoas constroem casas em um terreno coletivo e desenvolvem tecnologias de baixo impacto ambiental, associado ao aprovei- tamento dos recursos. Sendo assim, a sustentabilidade acontece por meio da produção de alimentos orgânicos para consumo pelos membros da comunida- de, reaproveitamento dos dejetos para produção de energia e fertilizantes na produção agrícola. Aproveitando o movimento de respeito à natureza, o mercado imobi- liário tem explorado a construção de empreendimentos ancorados no valor da sustentabilidade, muitas vezes em espaços destinados a preservação ambiental. Condomínios que possuem sistema de coleta de água da chuva, reaproveita- mento das águas que descem pelos ralos, energia solar etc., transformado em mercadoria destinada à população que dispõe do capital para consumir esse conceito de moradia. Intensificam-se também pacotes de serviços formatados e que incre- mentam o consumo: casamentos, formaturas, aniversários, etc, com fotos ar- tísticas, música e outras atrações que envolvem uma quantia considerável de Ecovilas: moradias com maiorEcovilas: moradias com maior aproveitamento dos recursos naturais e deaproveitamento dos recursos naturais e de menor impacto ambientalmenor impacto ambiental C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 109 dinheiro. Mais uma vez, prevalece o “ter” sobre o “ser”. As consequências dessa cultura do consumo são muitas, como o desmatamento e ocupação desordenada de espaços de preservação ambiental. Outro fator que pode contribui é a violên- cia urbana, é a desigualdade entre o acesso ao consumo pelas classes sociais. Observamos também um desenvolvimento frenético de tecnologias que mudam a cada ano ou mesmo em poucos meses. Compramos celulares que apresentam muitas funções, além da utilidade inicial que seria realizar ligações. Quem diria também que carros seguissem tendência de moda quando o assunto é cor e modelo? As mudanças frequentes nos modelos, peças e assessórios das tecnolo- gias, associado ao consumo excessivo resulta no descarte do lixo, em especial o tecnológico, no meio ambiente. A dinâmica da produção capitalista, com vistas ao mercado consumidor sobrevive, como vimos, da circulação da mercadoria em grande escala. Com as crises econômicas sofridas pelo capital, em especial a depressão norteamericano ,em 1929, levantou-se o debate em torno de buscar estratégias para aumentar o consumo, desenvolvendo o fenômeno na década seguinte que ficou conhecido como obsolescência programadaobsolescência programada. A obsolescência programada leva ao estimulo ao consumo excessivo e cria problemas ambientais de descartes do lixo eletrônico FundamentosAntropológicos e Sociológicos110 Segundo essa estratégia de produção, a indústria produz tecnologias com curto tempo de duração para garantir a circulação de novos produtos. São casos dos eletrônicos ou eletrodomésticos que não dispõem de peças de reposi- ção ou são altos os custos do conserto, sendo muitas vezes mais em conta des- cartar o quebrado e comprar um novo. De olho também num consumidor aten- to e embevecido pelas novidades, são criados modelos, formas, cores e funções diversificadas, ao mesmo tempo em que intensifica as estratégias de vendas. Com efeito, as pessoas acumulam bens materiais que já não fazem mais uso. O fato é que a intensidade de produtos que logo caem em desuso cria um problema de descarte com graves consequências no meio ambiente. Além da falta de espaço para a quantidade de lixo produzido, ainda existe o risco de contaminação do solo e mananciais pela radioatividade emitida pelas baterias e outros componentes químicos. Daí você pode perguntar: o que a Antropologia tem a ver com isso? A resposta vai em dois sentidos, e aqui utilizarei as palavras de Foladori &Taks, (2004, p.323): Seu papel é desmistiicar os preconceitos sobre a relação das sociedades com seus ambientes naturais — preconceitos tais como os mitos da existência de um vínculo harmonioso en- tre sociedade e natureza, nos tempos pré-industriais, o da tecnologia moderna como causa última da crise ecológica, ou o do papel sacrossanto da ciência como guia em direção à sustentabilidade. A segunda área é metodológica, e con- cerne à questão de como abordar os problemas ambientais de modo a caminhar rumo a sociedades mais sustentáveis. Um dos mitos as ser desconstruído pela Antropologia diz respeito à ideia de que as sociedades “primitivas” viviam em harmonia com o ambiente e que o desequilíbrio ambiental do qual desfrutamos é produto das sociedades complexas, pós-industriais. Os autores supramencionados se baseiam em da- dos de diferentes áreas de conhecimento para cogitar que sociedades de “tec- nologias simples” e antigas tiveram participação na devastação de flora e fauna, muito antes que as indústrias lançassem seus resíduos nos ares e nas águas, não havendo, pois, nenhuma sociedade “ecologicamente inocente”. Há uma série de exemplos, segundo Foladori & Taks, (2004), permitindo afirmar que os danos ambientais de populações antigas foram tão impactantes quanto os são os das sociedades contemporâneas. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 111 Pensando no aspecto metodológico, com o qual a Antropologia pode contribuir ao abordar a questão do meio ambiente, “diz respeito à forma de considerar a cultura, aos diferentes papéis que os setores e classes sociais têm na produção dessa cultura e, portanto, das práticas e concepções referentes ao meio natural” (Op. cit, p.334). Entendendo a cultura como um “processo em formação” e resultado de “interesses contraditórios e de participação desigual”, estes autores acreditam que uma Antropologia Ecológica Moderna pode contri- buir não apenas para as discussões sobre a problemática ambiental, mas tam- bém para a orientação e implementação de políticas públicas. Lembre-se que a Antropologia está interessada nas diferenças apresentadas por vários grupos sociais. Deste modo, o conhecimento por ela produzido permite obter detalhes acerca dos grupos com o seu entorno com as práticas simbólicas que regem as relações entre aqueles e o meio ambiente. Finalizaremos esta reflexão com as palavras de Foladori & Taks (2004, p.342), É necessário reconhecer que, segundo sua posição na distri- buição da riqueza social, na ocupação do espaço construído e nas decisões políticas, os grupos e classes sociais respondem de maneiras diferentes tanto aos impactos internos quan- to àqueles provenientes da natureza externa - por exem- plo, eventos extremos que podem culminar em desastres. Trocando em miúdos, também no que diz respeito aos problemas am- bientais, a Antropologia pode contribuir, seja relativizando a imagem das socie- dades que transformam (e transformaram) o seu entorno, de modo a produzir efeitos graves que têm desdobramentos nocivos para diferentes esferas da sua vida, ou como produtora de um conhecimento específico que pode subsidiar políticas públicas de modo a minimizar tais efeitos a partir de intervenções que atinjam os códigos culturais atuantes nas sociedades, de modo a conseguir mu- danças nas práticas relativas ao meio ambiente, a relação com a natureza e ao consumo. Nesse sentido, a natureza não é vista como algo externo, mas como um entorno que inspira dinâmicas particulares que tem mão dupla, ou seja, o modo de interferir na natureza é formatado pelos códigos culturais vigentes e os impactos desta atuação repercutem na vida social. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos112 INDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTARINDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR • O romance modernista de: ANDRADE, Mario. Macunaíma. Rio de Janeiro: Agir, 2008. É uma boa leitura para pensar duas questões: a presença do negro na literatura brasileira e a mistura entre as três “raças” que dão srcem à população brasileira, articulando com o perfil que esta mistura delineia. • Minha Vida em Cor de Rosa. Direção: Alain Berliner. França/Bélgi- ca/ Reino Unido, 1997. 88 min. Sugerimos, para pensar gênero, este filme, que conta a história de um menino que se veste de menina e a repercussão disso para a família e a comunidade onde vive. • A Excêntrica Família de Antônia. Roteiro e direção: Marleen Gor- ris. Bélgica / Holanda / Inglaterra, 1995. 102 min. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch? v=7wexPzXy7eU>. Acesso em: 03 de mai. 2014. Já que tratamos das diferentes configurações familiares, o filme suge- rido é um exemplo de como uma família pode se formar, sem necessariamente ter sua srcem no casal heterossexual, unido pelo casamento cujos frutos são os filhos. O filme ilustra como uma família pode ser formada de uma maneira diferente, conjugando outros vínculos que não apenas o biológico. • FOLADORI, Guillermo & TAKS, Javier. Um olhar antropoló- gico sobre a questão ambiental. Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, Out. 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132004000200004&lng=e n&nrm=iso >. Acesso em: 10/06/2014 Através do artigo acima você terá acesso a outras informações sobre a abordagem das questões ambientais, sustentabilidade e a crise ecológica sob a perspectiva antropológica. C u l t u r a s C o n t e m p ô r a n e a s T e m a | 0 2 113 RESUMO DO TEMARESUMO DO TEMA Os estudos sobre a cultura contemporânea compreendem a desnaturalização dos comportamentos por meio das diversas formas que a cultura opera. Vimos que nosso comportamento é definidos pelos aspectos biológicos, variando pela forma como cada cultura enxerga o mundo e constrói a vida cotidiana. Neste sentido, vimos como o preconceito em relação às diferenças se constrói, toman- do como base critérios raciais, de gênero e culturais. O multiculturalismo, ao mesmo tempo em que difunde a valorização das diversidades étnica e cultural, posiciona-se politicamente no sentido de combater ações racistas que separam indivíduos por seus traços biológicos, sendo que estes não determinam compor- tamento social. A diversidade também é visível na relação entre homens e mulheres, por meio das construções culturais que atribuem papeis femininos e masculinos, ao mes- mo tempo em que observamos a flexibilidade desses papeis na atualidade. Tam- bém foi possível perceber a diversidade da sexualidade que redefine práticas sexuais para além da procriação e do padrão heterossexual. Nas relações familiares,também foi possível observar novas configurações de parentesco que redefinem papéis sociais entre os membros que a compõem. Por fim, vimos também como a cultura do consumo, estimulada pela sociedade industrial e pela produção massificada, constrói espaços e estilos de vida que leva ao consumo para além das necessidades imediatas e os efeitos disto no meio ambiente. SOCIOLOGIA Parte 02 03Tema Olá! Estamos iniciando o estudo dos fundamentos da Sociologia considerando os fa- tos que favoreceram o seu surgimento, significa- do e a sua função. Nós sabemos que tem respostas para explicar fatos do nosso cotidiano, porém nem to- das essas respostas têm explicações lógicas da re- alidade. Não cabe a você, aluno, agora como um universitário, explicar a sua realidade a partir do senso comum, como uma pessoa sem estudos. Salienta-se que aqui você irá perceber que a importância dessa área de conhecimento está na possibilidade de compreender a sociedade em transformação, de modo que possamos me- lhor nos situar dentro dela, através de informa- ções confiáveis e não apenas no senso comum, no conhecimento ralo, não sistematizado e cheio de preconceitos e desinformação que chega até nós através dos meios de comunicação ou pelas ruas, a todo o momento, induzindo-nos a reproduzir informações vagas sem nenhuma cientificidade. Para tanto, será abordado, neste tema, o surgimento e a atualidade da Sociologia, como uma área das Ciências Sociais voltada para os es- tudos da sociedade e do indivíduo, na tentativa de conhecer alguns temas importantes para esse fim, como a questão das desigualdades, da classe social e dos desafios do mundo globalizado. E aí? Vamos começar? Bons estudos! INDIVÍDUO, TRABALHO E SOCIEDADE Fundamentos Antropológicos e Sociológicos116 3.1 Sociologia: surgimento e atualidade3.1 Sociologia: surgimento e atualidade Iniciamos a discussão acerca da Sociologia com os seguintes questio- namentos: Por que o estudo da sociedade?Por que o estudo da sociedade? E que sociedade é esta que estamos falando?E que sociedade é esta que estamos falando? Uma breve resposta para perguntas tão complexas partem da neces- sidade de compreender um mundo em constante transformação. Vivemos ao mesmo tempo conflitos entre países que passam por uma crise econômica; pre- paração dos atletas para os jogos olímpicos ou para as copas mundiais; desen- volvimento de pesquisas genéticas para maior controle de doenças congênitas; redefinição de padrões estéticos, como o uso da tatuagem ou das técnicas de cirurgia plástica; explosão de novos estilos musicais; campanhas políticas para escolha de novos presidentes e desenvolvimento de combustíveis com menor impacto ambiental. Essas e outras transformações causam direta ou indiretamente impac- tos em nossa vida. Já percebeu como as pessoas têm escolhido se comunicar por meio de wathsapp ou do facebook mesmo estando na presença de um grupo que resolve se encontrar em um restaurante para comer pizza? Já atentou para o fato da violência urbana ter influenciado na arquitetura das casas, com seus mu- ros altos ou no crescimento das moradias na forma de condomínios fechados? Percebeu quantas formas diferentes de constituição da família estão presentes hoje? Também como são variadas as formas de expressar a crença religiosa? Ou como estamos buscando cada vez mais formação para nos preparar para o mercado de trabalho, com cursos de línguas ou especializações? Pois bem, esses são exemplos de como a sociedade faz parte da nossa vida íntima, das nossas relações de amizade e de trabalho. A Sociologia, enquanto ciência, procura compreender a correlação en- tre os fatos para explicar comportamentos, crenças, valores e as tecnologias que desenvolvemos para atender as nossas necessidades básicas e existenciais. En- tendendo o comportamento das pessoas como algo socialmente composto. A necessidade da constituição de uma ciência da sociedade se justifica pelo próprio contexto histórico do século XIX, numa época de profundas transformações. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 117 E mais uma vez perguntamos: que sociedade é esta que esta-E mais uma vez perguntamos: que sociedade é esta que esta- mos falando?mos falando? Estamos falando da sociedade moderna, industrial, urbana e capita- lista em construção no século XVIII. A sociedade moderna foi um projeto do IluminismoIluminismo1818 do século XVII comprometido em romper com o modelo feudal que já vinha se transformando nos séculos anteriores. No campo da economia, profundas mudanças foram ocasionadas com o processo de industrialização na zona urbana no lugar da produção agrícola e artesanal. Lembra-se da Revolução IndustrialRevolução Industrial, muito estudado na escola, es- pecificamente, na matéria de história? Então, essa revolução modificou radical- mente a forma de produção, com vistas ao aumento significativo da produção para atender ao mercado que se intensifica nesse período. No lugar das fer- ramentas e dos trabalhos manuais são construídas máquinas que aceleram a produção. As potentes máquinas à vapor da época logo passam a ser a ordem da produção que a economia capitalista desejava: a busca do lucro por meio da grande produção. Na área rural, por outro lado, o trabalho estava ficando cada vez mais escasso, levando a um intenso processo migratório para as cidades (êxodo ru- ral). Entretanto, o mercado de trabalho não comportava a massa de trabalhado- res que chegavam às cidades, causando muitos problemas sociais. A produção em grande escala, a concentração de pessoas diferentes morando nas cidades e a falta de estrutura como moradia, trabalho e saneamento como também a péssima qualidade de trabalho gerou uma série de problemas sociais, como de- semprego, doenças e conflitos sociais, levando muitos pensadores da época a se dedicarem a explicar esses acontecimentos. No campo da política, não poderia ser diferente. Muitas mudanças ocorreram também neste âmbito. O abuso de autoridade dos monarcas em toda 18 Movimento cultural e filosófico que idealizou, entre outras coisas, uma sociedade com basenos princípios da razão em contraposição ao teocentrismo (a vida natural e social regida pela vontade divina) da sociedade feudal. Com efeito, na vida política e econômica, o Ilu- minismo defendeu ,respectivamente, a formação do Estado de direitos e a economia regida por princípios racionais da oferta e procura. São alguns dos seus principais pensadores John Locke (1632 - 1704), Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Adam Smith (1723-1790) e Immanuel Kant (1724-1804). Fundamentos Antropológicos e Sociológicos118 Europa estava sendo questionado e os ideais do LiberalismoLiberalismo1919 ganham força nos principais países. O descontentamento com o regime monárquico e a influencia das ideias iluministas de democracia e igualdade de direitos levou o povo a se manifestar em defesa por melhores condições de vida, eclodindo em revoltas nos Estados Unidos (1775-1783) e na França (1789). Em especial podemos citar a Revolução Francesa que aconteceu motivada pelo fim da monarquia absolutista, pelo dis- tanciamento da Igreja Católica das decisões políticas e também, devido a luta pela criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Veja quanta transformação que a sociedade sofreu com essas duas grandes revoluções: a Industrial e a Francesa. Mas, não para por aí. Além das mudanças ocorridas no âmbito econômico e político também aconteceu uma transformação do pensamento dos indivíduos com o surgimento e com a con- solidação das ciências, o desenvolvimento das universidades (espaços de cons- trução do saber), o fortalecimento das explicações racionais e dosavanços tecnológicos. Como exemplo podemos citar a obra do biólogo Charles Darwin (1809-1882) sobre “A Evolução das espécies” (1859), livro este que causou gran- de impacto no pensamento da sociedade moderna, ao defender a teoria de que a srcem do ser humano seria algo decorrente das leis naturais, contrapondo-se, pela primeira vez, à ideia teológica de srcem divina. Aliás, caros alunos, esse é um ponto essencial no pensamento que se solidifica nesse período e resulta do pensamento racional e crítico que tem sua srcem no Renascentismo. No campo do pensamento social, essa obra, citada acima, influenciou pro- fundamente a filosofiaPositivistaPositivista2020 que antecederia o surgimento da Sociologia. Segundo Aron (2013), as próprias transformações ocorridas na Europa no século XIX foram explicadas por Augusto Comte (1798-1857) pela lei dos Três EstadosTrês Estados que justificava o processo evolutivo do pensamento humano em: 19 Ideologia desenvolvida pelos pensadores Iluministas do século XVII e que sustenta a so- ciedade capitalista baseada em alguns princípios fundamentais para a compreensão da so- ciedade: liberdade de expres são (política e econômica); igualdade de direitos; individu ali- dade; democracia e direito a propriedade privada. 20 O Positivismo criado pelo filósofo francês Augusto Comte teve um papel fundamental nas práticas do Imperialismo cultural do século XIX, ao defender o estado positivo como grau mais elevado de civilidade já atingido pelas sociedades humanas. Imbuída na crença de dois movimentos fundamentais – ordem (das regras sociais) e progresso (avanço tecnológico)- justificou um arrojado processo de colonização ou influência em outros países, com base no modelo europeu, industrial, liberal e urbano. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 119 teológicoteológico (período em que os fenômenos sociais e naturais são explicados pela vontade divina); metafísicometafísico (pensamento que se opõe as explicações teológi- cas, mas não explicam a razão dos fenômenos) e positivopositivo (estágio vigente no século XIX em que a humanidade busca explicações pelo crivo da ciência e, por- tanto, da racionalidade). Diante desse contexto, a constituição do pensamento social e da So- ciologia, no século XIX, estão apoiados na tentativa de explicação de que seria possível o mesmo rigor racional para análise do comportamento social, tal como ocorria nas ciências naturais e exatas. Esse foi o caminho percorrido pelo Posi- tivismo de Augusto Comte que atribuiu à ciência o pensamento que orientaria a vida social na emergente sociedade industrial. Mas foi o francês Émile Durkheim (1858-1917) o primeiro a constituir a Sociologia como ciência definindo um objeto de estudo e uma metodologia, elementos fundamentais para um conhecimento ser considerado científico. Durkheim definiu os fatos sociaisfatos sociais como objeto de estudo da Sociologia, que seria todo o comportamento humano e toda ação social, construído socialmente e que é imposto socialmente. Para fugir do senso comum e da racionalidade exigida pelo conheci- mento científico Durkheim afirmou ser possível a objetividade da Sociologia pelas três características dos fatos sociais: a exterioridade, a generalidadea exterioridade, a generalidade e a coercitividadee a coercitividade. Vamos,então, entender cada um desses elementos? Vamos,então, entender cada um desses elementos? • Segundo esse autor os fatos sociais são exterioresexteriores ao indivíduo porque quando nascemos na sociedade já existem leis e normas de comportamentos. Na medida em que crescemos vamos aprenden- do a viver em sociedade por meio da socialização e da educação que compartilhamos, com a família, com a comunidade, na escola, no trabalho e em todas as outras trocas de experiências que comparti- lhamos ao longo da nossa vida; • A generalidadegeneralidade dos fatos sociais refere-se aos valores, informa- ções e comportamentos que se repetem na maioria dos comporta- mentos dos indivíduos, como por exemplo, falar a mesma língua ou compartilhar da mesma crença religiosa; Fundamentos Antropológicos e Sociológicos120 • Por fim, a coercitividadecoercitividade que se refere ao fato de fazemos aquilo que a sociedade determina, ou seja, a sociedade tem um poder de moldar nosso comportamento independente da nossa vontade. Um exemplo disso é a questão do voto, em nosso país, ainda é obrigató- rio, mesmo indo contra a vontade de alguns. Com essa caracterização do objeto de estudo, Durkheim firmou a ca- pacidade de um estudo do comportamento social, como um método capaz de se distanciar dos preconceitos e julgamentos do senso comum, conferindo a Socio- logia o status de ciência. Condomínio fechado: um exemplo de fato socialCondomínio fechado: um exemplo de fato social Você já percebeu como está aumentando a construção dos condomínios fechados como forma de moradia? Com forte investimento do setor imobiliário nesse modelo de moradia e apelo publicitário que remete a ideia de vida feliz, os condomínios fechados são vendidos como alternativa à violência urbana e a promessa de tranquilidade e conforto. Esse modo de moradia pode ser visto como um exemplo de fato social. Começamos pela generalização da oferta de moradia no estilo de condomínios fechados, que se não são exclusivas, consti- tuem-se como uma tendência da construção imobiliária. Também as estruturas das casas (condomínio horizontal) ou dos prédios (condomínio vertical) já são formatadas, independente da vontade dos futuros moradores. Os espaços cole- tivos e de lazer demarcam os espaços de socialização dos moradores, bem como as normas de convivência tais como: identificação na entrada do condomínio, horários de funcionamento dos espaços coletivos, tolerância para o volume do I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 121 som, lugares de destinação do lixo, etc. Enfim, a moradia em condomínios fe- chados tende a generalizar um tipo de habitação. Sua existência é exterior a escolha dos indivíduos e exerce uma coerção no comportamento dos indivíduos que compartilham desse mesmo espaço. Então, caro aluno, até agora traçamos o caminho do surgimento da So- ciologia e da definição do objeto de investigação, mas agora vamos conhecer al- gumas concepções de pensadores que contribuíram para análise da sociedade da sua época, em especial, osclássicosclássicos2121 da Sociologia: o francês Émile Durkheim (1854-1917) e os alemães Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920). No entanto, antes de começar a conhecê-los é importante dizer que o grande desafio dos primeiros sociólogos foi o de compreender as transformações que ocor- riam na passagem do século XVIII para o século XIX, principalmente em relação aos efeitos da industrialização e da urbanização da vida social. Ou de como se relacionava os indivíduos com a sociedade, ou seja, indivíduo e a coletividade. Também é interes- sante perceber que, embora fossem contemporâneos do mesmo contexto histórico e social, Durkheim, Marx e Weber tinham um olhar totalmente diferente um do outro sobre a sociedade industrial capitalista, como veremos a seguir. Émile Durkheim e a constituição da SociologiaÉmile Durkheim e a constituição da Sociologia Émile Durkheim (1854-1917) foi responsável pela criação da primeira Escola Francesa de Sociologia. Em seus trabalhos estudou sobre religião, edu- cação, instituições sociais e o suicídio. Em todas suas obras buscou explicar a presença da vida social regida por leis próprias, criadas pelos homens e que volta a eles em forma das normas e padrões de comportamento. O ponto fundamental dopensamento de Durkheim era entender as transformações sociais por meio da compreensão dos laços que marcam a rela- ção entre os indivíduos. Para isso, identificou dois tipos de laços que ele chamou de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. A solidariedade mecânicasolidariedade mecânica são as relações sociais em sociedades tradicionais onde todos compartilham dos mesmos valores e comportamentos. 21 Entende-se por clássicos pensadores que são reconhecidos como fundamentais para a análise sociológica e que servem de base para as explicações de fenômenos da nossa atualidade. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos122 Neste tipo de sociedade não existe separação entre relações familiares e o tra- balho, uma vez que todos trabalham juntos. A divisão do trabalho estaria deter- minada pelas diferenças entre sexo e idade. Como consequência, os indivíduos compartilham do que Durkheim chamou de uma consciência coletiva,consciência coletiva, ou seja, compartilham os mesmos valores, as mesmas ideias, as mesmas crenças e comportamentos (DURKHEIM, 1995). Ao passo que na solidarie- solidarie- dade orgânica,dade orgânica, próprio das socie- dades industriais, as relações sociais acontecem entre pessoas de culturas diferentes, que compartilham de va- lores diferentes e que exercem traba- lhos diferentes que exige uma inter- dependência. A sociedade industrial, formada como vimos de indivíduos oriundos de diferentes localidades, reproduziria uma consciência co-consciência co- letivaletiva por decorrência da individua- lização, causada, entre outros fatores, pela separação da família do trabalho. Ou seja, na sociedade industrial, as famílias já não mais trabalham juntas, cada um dos seus membros exerce uma tarefa em ambientes de trabalho diferentes. Sendo assim, os indivíduos passariam a ter maior contato com indivíduos de va- lores e comportamentos diferentes do que os compartilhados com sua família. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 123 Ainda segundo Durkheim (1995), não existe sociedade sem regras e de um modo geral seguimos o que a sociedade determina. O mecanismo de con- servação e proteção da sociedade seria determinado por uma moral socialmente compartilhada. Mas, não é a moral no sentido valorativo, mas do conjunto de regras sociais que orientam o comportamento dos indivíduos. Por isso, Durkheim vai dar uma atenção ao papel da educação como o condutor responsável pela transmissão de valores e formação do individuo para viver em sociedade. Neste sentido, a concepção da educação não se restringe somente a educação formal escolar, mas aquela que acompanha a vida do indi- víduo desde a hora em que ele nasce até a sua morte. Entendia, ainda que, viver em sociedade significa aprender os códigos, reconhecer regras de condutas e tudo que se relaciona ao trânsito social. Por isso mesmo percebia que a educa- ção é histórica, ou seja, varia conforme a sociedade (espaço) e o tempo histórico. Em um contexto de grande diversidade de pessoas convivendo juntas e agindo conforme sua vontade, a grande preocupação observada por Durkheim seria a manutenção da ordem social. Isso porque os problemas sociais existen- tes no século XIX, como desemprego e violência urbana eram vistos como um problema dos indivíduos que não conseguiam se adaptar às regras. Mas, vale aqui uma pergunta: o que acontece quando os indi-Mas, vale aqui uma pergunta: o que acontece quando os indi- víduos não conseguem se adaptar às normas sociais? víduos não conseguem se adaptar às normas sociais? As ações isoladas dos indivíduos que não se adaptavam as normas so- ciais são penalizadas pelas instituições de controle social, como no caso das pri- sões ou a exclusão social pela conversão social. Neste caso, o que pune as falhas na conduta dos indivíduos é o direito repressivodireito repressivo presente na consciência co- letiva compartilhada por todos. Entretanto, quando um conjunto de indivíduos se rebela contra os padrões sociais põe em cheque a autoridade das instituições sociais e, por consequência, a harmonia social. O estado de desarmonia social leva a um fenômeno que Durkheim cha- mou de anomiaanomia2222 e estaria mais propenso de acontecer quando prevalece a 22 Durkheim entende o conceito de anomia como comportamentos desviantes das normas vigentes. Tal desvio esta relacionado à crise das normas e regras sociais , na qual a disfunção da sociedade, na garantia de condições sociais, geram situações de anomia como a mendicância, por exemplo, uma vez que o indivíduo, dado a determinadas circunstâncias, não consegue se adaptar a ordem social como conviver com a família, receber um salário pelo trabalho, possuir uma moradia, etc. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos124 consciência individual, no qual os indivíduos agem conforme seus próprios inte- resses ao invés dos interesses coletivos. Sendo assim, os conflitos e a situação de miséria presente no cenário europeu do século XIX, causadas pelo desemprego e pelas falta de estrutura no trabalho nas cidades, era visto como um problema de falta de adaptação dos indivíduos as estruturas sociais. Neste caso, as falhas de conduta deveriam ser reestabelecidas por meio do direito restitutivo pelo qual o contrato jurídico passa a orientar as condutas e a cooperação entre os indivíduos. Para retomar a harmonia social perturbada pelo estado anômico das consciências individuais só por meio de uma moral que reestabeleça a cooperação coletiva e, mais uma vez, aparece o papel da educação na transmissão de valores sociais. Karl Marx e as relações sociais de Karl Marx e as relações sociais de produçãoprodução Vimos a ideia de sociedade pelos olhos de Èmile Durkheim. E como seria a concepção de sociedade em Karl MarxKarl Marx2323? Primeiro, é importante anteciparmos que Marx (ARON, 2013) tinha uma visão bem diferente da sociedade industrial daquela desenvolvida por Durkheim e porque não dizer contraditória. Para Marx, o ponto de partida para compreensão da sociedade são as relações sociais de produçãorelações sociais de produção, que separa os indivíduos em classes sociais. O que determina a posição social do indivíduo numa classe ou noutra é possuir ou não os meios da produção e o capital, separando-os em proprietários ou capi- talistas dos trabalhadores assalariados ou proletariados. Segundo ele, o sistema capitalista se caracteriza pela exploração do trabalho pelo fato do trabalhador não receber o suficiente e justo pelo tempo e esforço do trabalho realizado – aa mais-valiamais-valia. Seria a mais-valia o lucro produzido pelo trabalho, que não perten- cendo ao trabalhador, concentrar-se-ia nas mãos do capitalista. Na sociedade industrial, que criou o trabalho assalariado, intensificou- -se a concentração de riqueza nas mãos dos proprietários dos meios de produ- 23 O alemão Karl Marx (1818-1883) desenvolveu estudos sobre a sociedade, a política e a eco-nomia. Seu pensamento influenciou várias áreas do conhecimento por suas analises sobre o sistema capitalista que julgou como injusto por promover a desigualdade entre as classes sociais. Além disso, contribui para a organização política dos sindicatos e a consolidação do ideário socialista. Seu pensamento revolucionário ganhou força por meio da teoria do Mate- rialismo Histórico que explica as mudanças tecnológicas, econômicas e sociais ocorridas ao longo da história da humanidade atra vés das lutas entre as classes sociais. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 125 ção, restando ao trabalhador apenas a venda da força de trabalho. Marx (apud Sell, 2002) defendiaque as bases do desenvolvimento econômico capitalista da sua época assentavam em duas grandes contradições:duas grandes contradições: 1. O princípio da liberdade do indivíduo (por meio do trabalho assala- riado) estava associado ao poder de consumo do trabalhador; 2. O acúmulo da riqueza produzida (pela exploração do trabalho), seja na produção de mercadoria ou de serviços, não pertencia a tra- balhador que realizou o trabalho, mas ao proprietário dos meios de produção. Com efeito, a grande promessa da democracia e da liber- dade do indivíduo de construir sua própria riqueza pelo trabalho encontra barreiras, já que a lógica do capital não é o de distribuir igualitariamente a riqueza produzida, mas o consumo por meio do poder do salário do trabalhador. Para explicar a condição dos indivíduos que se submetem a exploração do trabalho, Marx desenvolveu o conceito dealienaçãoalienação. A crença na superação do tra- balho servil pela liberdade do trabalho assalariado impedia que o trabalhador usu- fruísse dos frutos do seu próprio trabalho. Sendo assim, por mais que o trabalhador realize um trabalho, considerando o tempo e o esforço utilizado para a produção de algo, o resultado final do seu trabalho, ou seja, o produto, não lhe pertence. Assim, o trabalhador é alienado por não lhe pertencer o resultado final da sua produção. Outra importante concepção de alienação em Marx é a alienação po-alienação po- lítica.lítica. Nesse conceito, ele tece críticas ao princípio da democracia capitalista que cria a ideia de que somos livres para escolher nossos representantes e ide- ologias. O sistema político reproduz os valores da ideologia liberal que sustenta o capitalismo e que pertence aos interesses da classe dominante. As institui- ções sociais como Igreja, escola, mídia, por exemplo, seriam responsáveis em transmitir a ideologia da classe dominante como se pertencesse a realidade das demais classes sociais. É aqui que consideramos o ponto contraditório entre Durkheim e Marx. Diferente da concepção de Durkheim de que os problemas sociais da épo- ca eram srcinados pelo aumento da consciência individual e das dificuldades Fundamentos Antropológicos e Sociológicos126 de adaptação do indivíduo ao padrão social, Marx atribuía à estrutura econô- mica e política capitalista que promove a exploração do trabalho a causa das desigualdades sociais entre ricos e pobres. Com vistas a solucionar os problemas sociais gerados pela contradição do capitalismo, Marx retomou um ideal de organização da sociedade baseada na promoção da igualdade social – o socialismo.o socialismo. E não via outra forma de diminuir as desigualdades sociais se não fosse por uma mudança estrutural no modelo econômico e político no qual todos os indivíduos viveriam da mesma forma e usufruindo igualmente da riqueza produzida. Marx idealizou, através dos seus estudos sobre o modelo de socie- dade capitalista, a sociedade comunista,sociedade comunista, na qual o nível de consciência de igualdade compartilhada pelos indivíduos descartaria a necessidade do Estado controlando o comportamento dos indivíduos. Entretanto, seria ne- cessária uma sociedade de transição entre o Capitalismo e o Comunismo, dado o alto grau de individualização e interesse das classes dominantes que seria o modelo socialista. Entendendo as sociedades capitalista, socialista e comunistaEntendendo as sociedades capitalista, socialista e comunista Marx entendia que as sociedades passavam por processos de mudan- ças impulsionados pela luta de classes. Em sua crítica à sociedade capitalista e na ideia de superação das desigualdades projetou a seguinte sequência: CAPITALISMO → SOCIALISMO → COMUNISMO • CAPITALISMO:• CAPITALISMO: produção em grande escala, economia de livre mercado, Estado com pouco controle das atividades econômicas, plu- ripartidarismo, sociedade dividida em classes sociais (burgueses e proletariado) que vivem em condições desiguais, propriedade privada. • SOCIALISMO:• SOCIALISMO: Estado forte que controla todas as atividades eco- nômicas e políticas,, possui um único partido (Socialista/Comunis- ta) controlado pela classe trabalhadora (ditadura do proletariado). • COMUNISMO:• COMUNISMO:Fim do Estado e das classes sociais, igualdade social. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 127 Para Marx, como a classe dominante não tem interesse em se desfazer da riqueza acumulada, a transição da sociedade capitalista para a sociedade so- cialista aconteceria por meio darevolução do proletariado,revolução do proletariado,ou seja, pela or- ganização política dos trabalhadores.. Com efeito, seu pensamento além de desen- volver um minucioso e sistemático estudo sobre o sistema capitalista, influenciou a mobilização das lutas operárias no século XIX por melhorias nas condições de trabalho e as experiências de regimes socialistas ao longo do século XX. Como exemplo, podemos citar a Revolução RussaRevolução Russa2424 em 1917 que foi inspirada no ideário comunista/socialista resultando na tomada do poder das mãos do czar Nicolau II, culminando na criação da União da República Soviéti- ca (URSS), primeiro país que adotou o regime socialista. Também podemos destacar a Revolução CubanaRevolução Cubana2525, que destituiu do poder o ditador Fulgêncio Batista, em 1959, por cometer crimes de corrupção e violência. Nos dois casos, os regimes socialistas vão se opor ao sistema capita- lista, implementando um conjunto de políticas sociais e econômicas com vistas à universalização da saúde, educação, moradia, etc, na sociedade. Dessa maneira, é possível perceber que o pensamento de Karl Marx, não só desenvolveu um estudo sistemático da forma como se organizava poli- ticamente, economicamente e socialmente a sociedade capitalista criando uma teoria crítica que a define como injusta e desigual, como, também, lançou as bases para uma ação que levasse a uma mudança nas condições de vida dos tra- balhadores e que até hoje inspira movimentos sociais que se posicionam contra as disparidades sociais geradas pela exploração do trabalho, como, por exem- plo, o sindicato. Pertence a Marx (em parceria com Friedrich Engels) a célebre frase que conclama a organização da classe trabalhadora e que encerra sua obra “Ma- nifesto, do partido comunista” de 1847: “Proletários de todos os países, uni- -vos!” (MARX; ENGELS, 2006, p.3). 24 Os bolcheviques grupo interno do Partido Operário Social-Democrata Russo, liderado por Lênin, defendiam que o poder do regime czarino deveria ser tomado pela revolução do proletariado. 25 Tendo como principais líderes Che Guevara e os irmãos Raúl Castro e Fidel Castro, a Rev- olução Cubana foi influenciada pela experiência Russa e difundiam os ideias socialistas de Karl Marx. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos128 WWeber e a eber e a ação social dos ação social dos indivíduosindivíduos Para finalizar mais uma definição de sociedade, vamos conhecer as ideias do também alemão Max Weber (1864-1920) que desenvolveu estudos na área de Economia, Religião, Direito e Burocracia. Em especial, procurou estu- dar o processo de racionalização da vida social desenvolvida na sociedade ca- pitalista. Essa racionalização se referia, em especial, a formas burocráticas de planejamento do social, político e econômico que a Sociedade Industrial Capi- talista promoveu. Seu conhecimento em História rendeu o desenvolvimento de uma So-So- ciologia compreensivaciologia compreensiva que estuda como as ações sociais se modificam de acordo com o tempo e a sociedade. Para entender a diversidade das ações so- ciais desenvolveu um método do tipo ideal, que pressupõe tendência de com- portamentos em cada época ou sociedade. Nas palavras de Weber: Obtém-se um tipoideal mediante a acentuação unilateral de um ou vá- rios pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantida- de de fenômenos isolados dados, difusos e discretos, que se pode dar em maior ou menor número ou mesmo falar por completo, e que se I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 129 ordenam, segundo pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento (WEBER, 1991, p.106). Diferente da visão de Durkheim, para qual a sociedade se impõe à von- tade dos indivíduos e da concepção de Karl Marx de que a sociedade capitalista coloca em condições de desigualdade social trabalhadores explorados e capi- talistas que usufruem da riqueza produzida, Weber enxerga a sociedade comouma teia de relações ou para ser mais preciso de ações sociaisações sociais que ligam os indivíduos entre si e estes com a sociedade. Para ele, os indivíduos não são simples marionetes que seguem a socie- dade nem tampouco são limitados a determinação do poder econômico. Os con- flitos presentes no século XIX eram visto por Weber como característicos das tensões dos diferentes interesses econômicos, mas não eram determinantes. Também estavam presentes outros interesses: políticos, religiosos, jurídicos, etc. Esses interesses que ele chamou de esferasesferas se relacionam entre si, embora cada uma apresente sua autonomia, de modo que a sociedade não se limita a uma imposição sobre os homens (seja pelas instituições ou pela economia), mas se constitui numa dinâmica rede de relações. Para Weber, a relação indivíduo e sociedade é explicada pela ideia deque os indivíduos agem racionalmente na sociedade, ou seja, que sua ação é sempre pensada na medida em que interage com outro indivíduo. Assim, Weber acreditava na intencionalidade das relações. Para isso, desenvolveu a tipologia da ação social, na qual identificou quatro tiposquatro tipos: • • Ação Ação racional racional com com relação relação à à tradição tradição -- que é a ação orientada pelos hábitos, costumes e crenças compartilhadas em um determi- nado grupo, como por exemplo, o indivíduo que escolhe a pessoa que vai se casar por influência da família; • • Ação Ação racional racional com com relação relação a a um um valorvalor - que é quando o indi- víduo age com base em uma crença ou defende a honra, a exemplo dos casos heroicos como se arriscar a própria vida para salvar umdesconhecido que caiu no rio; • • Ação Ação racional racional com com relação relação a a um um objetivoobjetivo - em que o indiví- duo age com base numa lógica que procura atingir um fim, como o Fundamentos Antropológicos e Sociológicos130 estudante que investe no curso superior para ingressar no mercado de trabalho; • • Ação Ação afetiva afetiva e e emocionalemocional - em que a ação é regida pelo humor ou estado de consciência do indivíduo, como no caso dos xinga- mentos entre torcedores durante uma partida de futebol. É importante afirmar que a expressão “tipo ideal” não significa o tipo idealizado ou mais valorizado da ação social e sim, como tendência, como ex- pressão social que mais se destaca em determinada sociedade (SELL, 2002). Tomemos a relação de poder para exemplificar a metodologia do tipotipo idealideal usada por Weber que identificou três tipos de dominação26. Sendo assim, identificou os tipos ideais: • • Dominação Dominação tradicional,tradicional, como no caso dos monarcas que impri- miam a autoridade pela legitimidade do poder conferida a realeza e transmitida pela hereditariedade. Aqui representado per Dom Pe- dro II (1825-1891), último Imperador do Brasil entre 1831 e 1889; • • Dominação Dominação carismática,carismática, a exemplo de Mahatma Gandhi (1969- 1948) que liderou uma mobilização social pela independência da Índia da colonização inglesa, por meio do seu carisma e espírito pacifista; • • Dominação Dominação legal,legal, no qual o poder legítimo é exercido por um representante eleito pelo voto, como o exemplo do presidente do Uruguai José Mujica (Pepe Mujica) eleito pelo povo em 2009. Aliás, se percebermos nossas ações, elas são muitas vezes motivadas pelo conjunto de todos esses tipos. Tomemos o exemplo da busca pelo diplo- busca pelo diplo- ma de curso superiorma de curso superior. Eu procurei ingressar no curso superior e adquirir o diploma porque o mercado de trabalho exige e também sei que com ele poderei galgar um melhor emprego e melhor salário (ação racional com relação a um objetivo). Mas também procurei porque a sociedade valoriza e atribui status a quem possui um diploma de curso superior (ação racional com relação a um va- lor). E por fim, busquei o curso superior porque meus irmãos possuem diploma e meus pais me incentivam (ação racional com relação à tradição). 26 Dominação é a relação que existe entre os indivíduos na condição de mando e obediência. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 131 O fato é que Weber identificou na sociedade moderna um processo de racionalização que impera a ação dos indivíduos voltados para as atividades do trabalho, da política e da cultura. Nesse contexto, o homem passa por um “desen- cantamento do mundo” quando as explicações divinas e interferências da religião no campo da política e da economia dão lugar a formas mais racionais de práticas sociais. No campo da política, a racionalização se estabelece com a constituição do Estado moderno democrático, pactuado entre cidadão e o Estado. A dominação ou exercício do poder não acontece mais pela tradição do monarca ou pelo carisma de um líder, mas pela legitimidade do direito do poder conferido ao representante do povo, escolhido por meio do voto. No campo da economia as relações de trabalho, as formas da produção não são orientadas à revelia dos imperadores, clérigos ou monarcas, mas são planejadas por admi- nistrações jurídicas e burocráticas. Caros alunos, como vimos, a Sociologia não apresenta uma única for- ma de enxergar os acontecimentos da sociedade. A falta de consenso entre os autores representa a complexidade que é própria da vida social. Suas análises, aqui apresentadas de uma forma bem limitada, são igualmente importantes para compreensão de muitos fenômenos que vivemos na atualidade e que ire- mos discutir ao longo do livro. Assim como Durkheim, Marx e Weber viveram em uma época de gran- des transformações, estamos também, na contemporaneidade, em profundas mudanças estimuladas pelas transformações tecnológicas que interferem não só em nossa vida privada, mas também em nossas relações com o mundo que nos cerca. Nos próximos conteúdos, conheceremos outros autores que analisa- ram fenômenos sociais que fazem parte da sociedade atual e que sofreram in- fluência dessas teorias de base. Antes de iniciar o próximo conteúdo, entretanto, devemos ficar atentos a duas questões: a importância de conhecer a sociedade contemporânea, por meio dos desdobramentos da sociedade moderna,sociedade moderna, e re- conhecer a importância interpretativa dos clássicos da Sociologiaimportância interpretativa dos clássicos da Sociologia para as análises dos processos sociais estudados atualmente. Mais do que isso, caro aluno, independentemente da área de formação que escolheu, é importante re- conhecer a importância das interpretações da Sociologia sobre os fatos sociais, de forma à desnaturalizar crenças e de práticas do cotidiano e contribuir para a formação do senso crítico e de cidadania. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos132 3.2 Indivíduo e Sociedade3.2 Indivíduo e Sociedade Ao estudar os clássicos da sociologia, no conteúdo anterior, dá paranotar que tanto Durkheim, como Karl Marx e Max Weber tinham, ao construir suas teorias, a intenção de explicar a sociedade a partir das transformações so- fridas, principalmente pelos efeitos da Revolução Industrial e suas consequên- cias. Para tal, necessária foi a reflexão não só dessa sociedade, mas daqueles que a compõem: os indivíduos. Assim, a discussão “indivíduo e sociedade”, que ora trazemos para você, vai nos levar a fazer uma série de reflexões sobre a importância do in- divíduo na construção da sociedade e da influência da sociedade na formação do indivíduo. Dessa forma, é importante compreender como, ao longo da his- tória, o indivíduo tem se relacionado com a sociedade e como a percebe. Por outro lado, também é importante considerar as mudanças sociais e sua influ- ência sobre o indivíduo. Sabendo que a sociedade é histórica, e a história muda, é lógico pensar que essa sociedade também segue o ritmo, ou seja, também se modifica. Ainda, na mesma lógica, sabemos que a sociedade é formada pelos indivíduos, então, não é difícil notar que os indivíduos não estarão inertes a essas mudanças, se- guindo o fato de também estarem nesse processo de transformação, pois socie- dade e indivíduo estão em constante processo de relação. Mas, para começarmos a entender a relação existente entre sociedade e indivíduo temos que, primeiramente, saber responder a essa questão: como se dá o processo de constituição do homem na sociedade? Essa é uma pergunta que vários teóricos têm se feito e que impulsiona vastos estudos e hipóteses, pois a relação indivíduo/sociedade é uma questão sociológica fundamental e indica a complexa relação existente entre sujeito e a estrutura social. Para aprofundar essa discussão, é importante compreendermos como a Sociologia vem avançando nesses estudos. Neste sentido, podemos demarcar os seguintes momentos: • • Período Período pré-moderno,pré-moderno, referente à Idade Média, na qual impe- rava o regime feudal e absolutista (Europa do século XVI). Nessa época, os dogmas religiosos serviam como explicação para os fenô- I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 133 menos sociais e suas justificativas eram calcadas nas explicações de quem detinha o poder e o conhecimento. Neste momento his- tórico, a fé e a superstição imperavam, direcionando o comporta- mento dos indivíduos que se submetiam ao autoritarismo da reale- za absolutista e ao poder do clero, sem questionar suas liberdades individuais e seus direitos. Nesse sentido, o indivíduo não seNesse sentido, o indivíduo não se apresentava como sujeito de sua própria história e eramapresentava como sujeito de sua própria história e eram regidos pelos dogmasregidos pelos dogmas2727 religiosos. religiosos. • • Período Período da da ModernidadeModernidade é marcado por grandes transforma- ções em diversas áreas. O capitalismo, o iluminismo e a ilustração revolucionam a forma de ver e viver a sociedade. Neste período, a teocracia (em que imperava as leis religiosas, na forma de governo, bem como nos assuntos cívicos), assim como o absolutismo real, são questionados e substituídos pelas explicações científicas eexplicações científicas e pela racionalidade crítica do indivíduo.pela racionalidade crítica do indivíduo. • • Período Período Pós Pós ModernoModerno defendido por alguns teóricos. Reconhe- ce o indivíduo como “descentrado”, cuja identidade não encontra mais centralidade no Estado-nação. Neste caso, não há frontei-não há frontei- ras entre o indivíduo e a sociedade ou, se existem, essasras entre o indivíduo e a sociedade ou, se existem, essas demarcações são imperceptíveis e flexíveis.demarcações são imperceptíveis e flexíveis. Como você pode perceber, na concepção moderna, aparece a figura do sujeito, isto é, o indivíduo assume uma posição ativa, que o leva a fazer vários questionamentos sobre a sua relação com a sociedade em contraposição a pos- tura anterior (Idade Média), de total submissão do sujeito aos fenômenos so- ciais, marcados por explicações de caráter religioso. Em nossa discussão, vamos nos ater às concepções da modernidade, debatendo as ideias da Sociologia Moderna, que confere importância ao indi- víduo e a sociedade. Melhor dizendo, vamos considerar as relações sociais de- finidas pelo sexo, religião, nacionalidade, idade, entre outros elementos, que contribuem para a constituição tanto do sujeito quanto da sociedade, afinal, de 27 Dogmas aqui é expresso como verdades absolutas e não questionáveis. Os dogmas religi- osos davam explicações aos mais variados fatos da realidade na sociedade. O indivíduo que questionasse e/ou não seguissem os dogmas instituídos pela igreja, era m presos e julgados pela Santa Inquisição e se culpados a pena variava sendo a de maior grau a morte na guilho- tina ou na fogueira. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos134 acordo com Bourdieu (1997), o “real é relacional”, ou seja, a realidade depende do modo como a interpretamos, do modo como os indivíduos se relacionam entre si e com a estrutura. As indagações sobre a relação indivíduo e sociedade sempre intri- garam aqueles que se predispuseram a refletir sobre o homem e a coletivi- dade – objeto da Sociologia. Por conta disso, surgem perspectivas teóricas como o Estruturalismo, que ressalta o papel da sociedade na sua relação com o indivíduo e a Filosofia do Sujeito, cuja primazia é o indivíduo sobre a sociedade. Para Bourdieu (1992), o Estruturalismo reduz o indivíduo a um mero suporte da estrutura, ou seja, sociedade, e na Filosofia do Sujeito, o indivíduo centra-se nele mesmo – razão, consciência e ação não são influen- ciados pela sociedade. Mas então, qual o nível de influência da sociedade sobre oMas então, qual o nível de influência da sociedade sobre o indivíduo? Ou, até onde o indivíduo indivíduo? Ou, até onde o indivíduo pode interferir na sociedade?pode interferir na sociedade? Para responder essa pergunta é importante trazer de volta os três clás- sicos da Sociologia. Você poderá lembrar como também saber mais como eles pensavam ser a sociedade. Para Durkheim (1854-1917), a sociedade impõe valores e regras que ditam formas de comportamento, portanto, há uma prevalência da sociedade sobre o indivíduo, já que ela compõe um conjunto de normas que existem para além da vontade do indivíduo, isto é, de modo exterior ao indivíduo, morali- zando e coagindo o seu comportamento, um exemplo disso é a qualificação profissional. Quando mais nos qualificamos mais oportunidade de trabalho surgem, então, é necessário nos qualificarmos sempre para que possamos competir no mercado de trabalho. Essa necessidade se transforma em uma imposição, que não é criada por nós, e sim pela sociedade capitalista que tem como uma das suas características o crescimento da competitividade no âm- bito do trabalho. Nesta mesma linha de raciocínio, Marx (1818-1883) acreditava que o modo de organização do homem para produzir, ou seja, o modo de pro- dução capitalista era determinante nas relações sociais modernas. Assim, os indivíduos organizados em classes sociais desenvolvem uma relação de conflito, configurando, dessa forma, a sociedade como um espaço de antago- I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 135 nismo. Para Marx (1997, p. 21) ,“ os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado ”. Apesar desse entendimento, muitas críticas são feitas ao pensamento marxista, por considerar suas ideias deterministas ou economicistas,ou seja, para esse autor, a economia é demasiadamente considerada como determinante da vida social. Dessa forma, pensava que todos os problemas sociais têm expli- cações voltadas para a questão econômica. Já Max Weber (1864-1920), em suas análises, compreendia que a so- ciedade não está acima dos indivíduos, mas é (a sociedade) fruto das ações so- ciais dos indivíduos que se relacionam de forma recíproca. De toda forma, considerando as contribuições desses teóricos e de outros mais atuais, o que podemos analisar é que a vida em sociedade com- preende um conjunto de relações que os indivíduos constroem ao longo da sua vida. Viver em sociedade significa compartilhar com outros indivíduos as informações necessárias à sua sobrevivência, à sua existência em sociedade. Isso porque os valores, as regras de conduta, o significado das coisas foram criados pelo homem ao longo do tempo e têm por finalidade atribuir sentido à sua existência e àquilo que o cerca. Aprendemos esses códigos e informações, no momento em que interagimos com outros seres humanos, na família, na rua, no trabalho, na escola. Esse aprendizado é o que chamamos de socialização.socialização. Ela acontece no cotidiano da vida do indivíduo, afinal, estamos o tempo todo aprendendo ou ensinando a alguém conhecimentos que auxiliam o nosso transito social. Para isso, não dependemos exclusivamente da escola. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos136 Portanto, caro aluno, viver em sociedade significa compartilhar valores, conhecimentos e informações que permitem o sujeito compreender os códigos sociais; isso porque, conforme observou Durkheim, mesmo que eu pense dife- rente da sociedade, meu comportamento é guiado pela generalidade dos com- portamentos, de modo que se eu me distancio ou transgrido regras, sou punido pela lei ou pelas convenções sociais. Aliás, a individualização é considerada uma das características da sociedade moderna e contemporânea, dada as condições de diminuição dos contatos e também pela intensificação dos mesmos de forma mediada, através da tecnologia. O fato é que as instituições como escola, trabalho, família, grupos sociais, dentre outros, procuram, pela socialização, mediar as re- lações entre os indivíduos e as exigências de relações com a sociedade. O conjunto dos comportamentos reproduzidos por muitos indivíduos é conhecido como padrão culturalpadrão cultural, que é legitimado e reconhecido social- mente. Esses padrões de comportamento separam os indivíduos em diversas categorias como idade, sexo, classe social, status , etc. Se você estivesse andando no shopping encontrasse uma senhora de mais ou menos 65 anos de minissaia, você iria estranhar? Apesar de entender que as pessoas são livres para vestirem o que quiserem e o que acham ficar bem, com certeza a primeira vista causa estranheza, porque são os padrões culturais que informam o comportamento adequado, não importando que seja para um jovem de 18 anos ou o que esperar do comportamento de uma avó em relação aos seus netos. Embora não sendo fixo e imutável, os padrões de comportamento ten- dem a servir como referenciais de conduta, transmitidos pelas instituições so- ciais e aprendidos pelo indivíduo no processo de socialização. Nesta perspectiva, para Giddens e Bourdieu (1930-2002), a realida- de social é um sistema simbólico ordenado (crenças, normas) , que coagem, forçam, constrangem a ação e as oportunidades de vida dos indivíduos; estas operam de forma implícita, definido as disposições e as atuações destes. Ambos os autores comungam da ideia de estruturação da realida-estruturação da realida- de socialde social, isto é, há um ambiente coletivo relativamente estável (cenários de ação para Giddens e condições objetivas da realidade durável para Bourdieu) que coage os indivíduos, mas que não se constitui numa jaula de ferro, ou seja, numa condição imutável. Pierre Bourdieu, em suas obras, busca entender o indivíduo numa re- lação interativa com o meio que lhe influencia, ou seja, sua investigação sobre o I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 137 agente28 considera as suas experiências e a sua história. O sujeito é atravessado, perpassado por uma cadeia de experiências, relacionadas aos diferentes campos da realidade, cujos maiores destaques são as dimensões econômica e cultural. Nesta abordagem fica patente que o indivíduo sofre influência da reali- dade social a que pertence, e que, na maioria das vezes, é reproduzida de forma inconsciente, sem perder de vista, no entanto, a capacidade geradora do sujeito. Com essa reflexão, o autor desenvolve o conceito de habitus habitus como uma dispo- sição duradoura, criada pelo meio em que foi adquirido e que define a ação do indivíduo, mas é passível de mudanças. É uma disposição estruturadaestruturada pela coletividade/sociedade, mas também é estruturanteestruturante, já que também reflete a subjetividade do indivíduo (BOURDIEU, 1992). O habitus habitus é como um princípio de disposições adquiridas, assimiladas pela experiência, portanto, variáveis segundo o lugar e o momento e ajustáveisajustáveis a uma infinidade de situações possíveis; ele tem um caráter imprevisívelimprevisível, que possibilita o indivíduo criar estratégias (considerada como “[...] orientação da prática, que não é nem consciente e calculada, nem mecanicamente determina- da [...]”) (BOURDIEU, 2004, p. 36) de acordo com sua conveniência. Os campos de atuação profissional são pródigos em exemplos de ha- ha- bitus.bitus. Pessoas que compartilham um mesmo ofício tendem a possuir valores semelhantes, estão submetidas às mesmas normativas de conduta profissional e partilham o acesso ao mesmo tipo conhecimento, ainda que cada indivíduo se especialize ou interprete as informações de maneira particular. Ou seja, os profissionais estruturam e são estruturados pela profissão que escolhem e, as- sim, inserem-se em um universo com regras, valores particulares. Magistrados e médicos são os exemplos mais conhecidos em nossa sociedade. Mas, você pode estar se perguntando: por que Bourdieu en-Mas, você pode estar se perguntando: por que Bourdieu en- fatiza mais as dimensões econômica e cultural como infatiza mais as dimensões econômica e cultural como influenciadorasfluenciadoras do comportamento dos indivíduos?do comportamento dos indivíduos? Na Sociologia a educação, é tratada em seu sentido amplo, pois é per- cebida como o instrumento mais importante de socialização e que, de fato, per- mite que aprendamos a viver em sociedade. Conforme Durkheim, os indivíduos 28 Bourdieu utiliza o termo agente em substituição ao termo indivíduo ou sujeito, indicando uma posição ativa deste. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos138 nascem destituídos de qualquer informação e é pelo processo de socialização que ele se tornará um ser social. Pierre Boudieu chama de capital culturalcapital cultural o conjunto de informações e conhecimentos adquiridos pelo indivíduo na educa- ção familiar, escolar e comunitária. Esse capital cultural é importante para o su- cesso do indivíduo na educação escolar, no mercado de trabalho e na vida como um todo, uma vez que ele agrega informações do cotidiano e do conhecimento formal, transmitido pela escola. A condição em que o indivíduo vive, a família a qual pertence e a esco- la que frequenta vão diferenciar o capital que o indivíduo vai agregar ao longo do tempo. Dessa forma, se este sujeito pertence a uma classe menos favoreci- da economicamente, se tem uma família com baixa instrução e se vive em um ambiente com pouco acesso a cultura e lazer, ele estará em clara desvantagem competitiva em relação a outros indivíduos mais favorecidos. Entretanto, não se pode afirmar que essas condições não são passíveis desuperação e/ou trans- formação. Outra questão importante são as condições econômicas e sociais dife- rentes. Isso acontece porque nossa estrutura societal, o modelo econômico não distribui de forma igualitária o acesso à educação, moradia, saúde, trabalho, dentre outros aspectos da vida coletiva. Com efeito, observamos que enquanto uma parcela bem pequena dos indivíduos usufrue desses benefícios, a grande maioria tem acesso precário, ou mesmo inexistente. Nosso modelo econômico defende a propriedade privada e a livre con- corrência, o que efetivamente faz com que o Estado tenha pouco controle so- bre grande parte da riqueza produzida que fica concentrada nas mãos de pou- cos. Além disso, a riqueza é também resultado da exploração do trabalho, que produz a chamada mais-valia,mais-valia, que é o lucro auferido pelo dono dos meios de produção que paga apenas um salário para o trabalhador. Este, por sua vez, possui apenas sua mão de obra para oferecer como mercadoria e, a partir dela, sobreviver de seu salário. Consequentemente, trabalhadores não partilham os lucros auferidos com a venda dos produtos que eles mesmos fabricam. Essa ló- gica alimenta a concentração da riqueza nas mãos dos donos do capital, que se tornam cada vez mais ricos. Essa situação define grande parte das experiências que influenciarão o indivíduo na sociedade moderna. Por conseguinte, podemos considerar que Bourdieu não descarta a in- fluência do indivíduo sobre a sociedade, mas a condiciona aos recursos mate- I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 139 riais e simbólicos que o mesmo possui e/ou experimenta. Para Bourdieu, a ação do indivíduo é mais inconsciente: o habitus pode, em maior ou menor grau, mo- dificar as regras dependendo da posição do indivíduo na sociedade. O poder é limitado aos recursos externos e internos do indivíduo e neste caso, se sobressai o caráter anímico (inconsciente reproduzido) do sujeito. (BOURDIEU, 1992). Apresentado o entendimento de Bourdieu sobre indivíduo e sociedade, traremos agora para você, as ideias de Anthony Giddens sobre a ação reflexiva. A capac A capacidade de idade de ação reflação reflexiva do Indivíduo na exiva do Indivíduo na SociedSociedadeade Anthony Giddens é um teórico da atualidade cuja obra é claramente influenciada pela percepção do mundo como sendo dinâmico e globalizado, que apresenta contradições e, sobretudo, rupturas com os paradigmas e as certezas. A obra de Giddens traz a tona uma das discussões mais atuais das Ciências So- ciais: o descentramento ou fragmentação do sujeito na chamada modernidade tardia (alguns autores usam o termo pós-modernidade). Buscando fugir de rótulos, o autor tenta explicar os fenômenos sociais da atualidade considerando a aceleração da sociedade por conta dos novos mo- dos de produção, da tecnologia e das novas formas de relacionamento entre os indivíduos. A “alta-modernidade” ou a “modernidade tardia” coloca o agente 29 frente a uma encruzilhada: a difícil manutenção da “unidade” frente à crescente fragmentação da identidade. Giddens causa polêmica com sua obra. Alguns dos seus conceitos são questionados e seu posicionamento e, em consequência, sua teoria, em rela- ção às mudanças na sociedade, causa incertezas quanto à real compreensão do autor sobre ambiente social. No entanto, é inquestionável a contribuição e o avanço teórico do autor no que diz respeito aos sistemas binários, mais especifi- camente, à contraposição entre indivíduo e sociedade, que informa muito sobre o mundo contemporâneo. Segundo o autor, a ênfase que é dada à sociedade, em detrimento ao indivíduo30 não consegue descrever satisfatoriamente a ação humana, pois en- fatiza a primazia do todo social sobre o individual. Sob outro ponto de vista Gid- 29 O autor também utiliza essa terminologia em substituição a palavra indivíduo. 30 Teoria identificada como estruturalismo, como já indicamos acima. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos140 dens afirma que as ações cotidianas de um indivíduo podem produzir consequ- ências globais, principalmente a depender da posição que ele ocupa. O inverso também é verdadeiro: a ordem global interfere sobre a vida do indivíduo. Desta forma, o autor demarca sua posição em relação à natureza rela- cional entre indivíduo e estrutura social. Assim, os indivíduos (sujeitos ativos) e suas ações determinam seu próprio destino e seu presente (GIDDENS, 1999). Neste sentido, a ênfase de sua análise recai sobre os contextos31 que indicam as regras que devem ser seguidas pelo indivíduo. “Os contextos for- mam ‘cenários’ de ação cujas qualidades os indivíduos costumam recorrer para orientar o que fazem e o que dizem uns aos outros” (GIDDENS, 1999, p. 309). A contextualidade da ação facilita o entendimento do que os indivíduos envol- vidos dizem e fazem. São cenários de ação e interação que estruturam a vida social e dão significação as práticas sociais. O ambiente externo, para Giddens, afeta a construção do corpo e da au- to-identidade. O modo como o indivíduo se percebe no mundo tem a ver com os problemas existenciais de seu tempo, de sua sociedade, de sua realidade. Para o autor, não há como não sofrer a influência do ambiente externo, que incide sobre a construção do “eu,” através de um processo reflexivo: reflexividade da aceitação (passividade) e da negação (reação), numa luta constante contra as influências externas (GIDDENS, 2002). Neste movimento, o autor identifica que a diversidade de ambientes pode gerar um sujeito fragmentado (ou descentrado como chamam os pós-es- truturalistas e os pós-modernos) ou ainda, em certas circunstâncias, promovem a integração do eu (unificação da identidade individual). Caro aluno, para facilitar melhor a sua compreensão, é bom esclarecer que a teoria de Giddens explicita, portanto, a importância do ambiente externo para o sujeito que depende deste para se formar, assim, como para compre- ender o indivíduo, é necessário entender a sua ação no ambiente em que está inserido. Na perspectiva do autor, a sociedade tem papel coercitivo, já que pos- sui regras e meios institucionais para coibir e orientar a ação individual, mas também é passível de transformação pela ação do indivíduo (GIDDENS, 1999), o que significa afirmar que a sociedade é estruturante e também estruturada por esses indivíduos. Como exemplo dessa afirmação, podemos observar a questão da política. A política de um país é que vai dar a forma administrativa a socie- 31 Situações diferentes com características próprias e composições diferentes. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 141 dade, no entanto, diante de um contexto democrático, nós é quem escolhemos nossos gestores. Então, veja que ao mesmo tempo em que a política estrutura uma sociedade, nós somos responsáveis por estruturar essa política, indicando de forma participativa e responsável nossos governantes através do voto. Você já pensou na sua participação política como cidadão e da sua responsabilidade como eleitor? Reflita mais sobre essa questão. No que se refere à oposição entre tradição e modernidade são apon- tadas, na obra de Giddens, as mudanças históricas nos sistemas sociais, suas organizações e seus reflexos sobre o indivíduo, a saber: o descentramento ou fragmentação da identidade, os dilemas existenciais, as patologias e a questão da segurança. A tradição tem papel importante, já que pode ser considerada um meio organizador da memória coletiva. Ela se materializa na sociedade de modo ativo e interpretativo. Assim, a tradição, segundo Giddens (1997), é uma verdade; uma eficácia causal, antíteseda indagação racional, visto que ligada a memó- ria é responsável pelas experiências do cotidiano, pelas práticas que organizam o futuro. Os rituais (casamento, funerais, batizados, etc); são um exemplo de como a tradição se manifesta de maneira prática na sociedade. Este processo, no entanto, não cristaliza o passado, não torna a tra- dição intocável ou imutável, muito pelo contrário, pois o passado, tendo como base o presente, é reconstruído parcialmente de forma individual, mas funda- mentalmente de forma social e coletiva (GIDDENS, 1997). Se o tradicional é parâmetro para as ações cotidianas, as mudanças do mundo moderno são in- tensas e atingem cada vez mais não só as bases da atividade individual e da constituição do eu (GIDDENS, 2002), mas atingem também a tradição através do modo como reinterpretamos o passado. Nos contextos pós-tradicionais, ou modernos, não há outra escolha senão decidir como ser e como agir (GIDDENS, 1997) e isso também implica um posicionamento no que diz respeito à tradição. Giddens refere-se à alta modernidade como um período de alta tensão, de transição e como um prenúncio de transformações estruturais em contra- posição a “calculabilidade” que expressa ambientes socialmente estáveis e crô- nicos (GIDDENS, 2002). Na modernidade – por ser aberta – não se consegue fazer previsões sobre si mesmo e sobre o ambiente. A modernidade leva a incal- cubilidade, ou seja, não é possível calcular o risco, devido à complexidade dos cenários, ainda que se saiba o que está ocorrendo. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos142 Com base na análise do ambiente externo e de suas transformações (tradicional e alta-modernidade), Giddens trata da natureza relacional do indi- víduo com o meio e com o outro. Para o autor, "as partes só podem ser defini- das nos termos do outro” (GIDDENS, 1999, p. 288). Isso implica dizer que as significações que formam uma totalidade se dão no jogo interno das diferenças, assim como ocorre na construção da alteridade. A significação é construída pela interseção da produção de significan- tes com objetos e eventos do mundo (ambiente), enfocados e organizados pelo indivíduo (reflexividade), ou seja: o significado das coisas só é percebido se con- textualizado e percebido como ação de um indivíduo consciente. A relação com o outro é considerada o ambiente-chave para se construir o projeto reflexivo do eu, pois permite e requer a autocompreensão e organização subjetiva contínua do mundo. Dito isso, admite-se que o indivíduo é produto das relações sociais32, mas não só. É também produtor. É a ação que faz do sujeito agente. A ação re- mete ao conceito de agência que faz referência a uma ação intencionada – que difere de uma resposta reativa. Logo, agência é a capacidade para realizar algo, ou seja, é mais que intenção, é o poder de intervir no curso dos acontecimentos (GIDDENS, 2003). Para chegar a esta compreensão, Giddens diferencia a ação composta por uma consciência prática: esse tipo de ação está presente nas atividades cor- riqueiras, cotidianas e inconscientes, ou seja, a consciência prática compreende ações não premeditadas em contraposição a racionalização, que controla e mo- nitora a ação e possibilita uma consciência discursiva (GIDDENS, 1999). A reação racional do indivíduo frente às mudanças que põem em che- que seu cotidiano, a sua segurança, se configura estímulos que produzem uma ação reflexiva. No intuito de preservar a auto-identidade o indivíduo relaciona e/ou reorganiza, exclui ou reinterpreta o conhecimento que seja potencialmen- te perturbador (dissonância) para se proteger (casulo protetor). É uma reação seletiva às diversas fontes de informação que perturbam a rotina do indivíduo e o força a repensar as maneiras estruturadas de lidar com as tensões. O indiví- 32 Você percebe a semelhança da teoria de Giddens com algumas ideias defendidas por Max Weber (1864-1920)? Pois, bem, se você voltar ao conteúdo anterior lembrará que a teoria de Weber está voltada as ações dos indivíduos e a teia das relações que se estabelecem entre os indivíduos é o que marca a relação destes com a sociedade. Para esse autor, toda relação estabelecida não se dá a toa e sim estimuladas por uma intenção. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 143 duo perde as referências em cenários de risco e de perda eminente do controle (GIDDENS, 2002). Esta é a reflexividade da organização dos problemas, em outras pala- vras, o resultado da ação é reflexo da condução do problema vivido pelo agente. A reação do indivíduo, tais como sentimentos de ansiedade e medo, mediante as incertezas do mundo moderno podem variar de intensidade a depender da forma como ele percebe e programa sua vida nos contextos mais restritos de sua ação. Assim, o envolvimento, ou melhor, o enfrentamento mediante mudanças no estilo de vida possibilita contornar as alterações do mundo. Estas mudanças reordenam a autoidentidade. Neste itinerário, o autor identifica em sua obra Identidade e Moder-Identidade e Moder- nidadenidade (2002), as tribulações do eu, isto é as aflições que o indivíduo enfrenta nos processos de adaptação e conformismo, de forma intensa e complexa. No entanto, o autor esclarece que este processo compõe possibilidades de ação e não oposições recíprocas. Para ele, a ação reflexiva amplia o quadro de possibili- dades de comportamentos e de reações. As reações – unificação/fragmentação, impotência/apropriação, autoridade/incerteza, experiências personalizadas/ experiências mercantilizadas - diferem numa busca de construção da autoiden- tidade e podem gerar patologias ou projetos futuros. Observa-se, assim, que o agente tende a se mobilizar diante de si- tuações desconfortáveis que não lhe dão prazer e, inversamente, nas rela- ções prazerosas, que ele chama de relações puras - já que são geradas pela confiança e intimidade; o agente tende a conservar, enquanto lhe trouxer retribuições psíquicas. Sendo assim, podemos considerar que Giddens, ao tratar da reflexivi- dade, refere-se a uma capacidade inerente à ação humana acionada na busca de um resultado pensado, projetado. Neste caso, o indivíduo é, antes de tudo, o ator capaz de pensar as propriedades estruturais e de agir conscientemente. O indivíduo, neste caso, exerce uma influência (organiza, reinterpreta, exclui) so- bre os problemas impostos pela sociedade, o que não quer dizer que os indivídu- os não sejam produtos das relações sociais e que tenha uma consciência prática. A ação reflexiva responde as motivações e estímulos de forma racional, reflexiva, como alternativas concretas de reconstrução da vida cotidiana. Desta forma, o indivíduo tem possibilidades e limites que são captados de forma refle- xiva favorecendo-o a fazer opções. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos144 Indivíduo e sociedade na construção da Indivíduo e sociedade na construção da identidadeidentidade Não podemos negligenciar a complexidade que envolve o tema a res- peito da identidade, posto que o indivíduo como um ser social é partícipe da dialética da sociedade em uma realidade social heterogênea, fragmentada e di- versificada (BERGER, 1985). Assim: Essa participação transforma os indivíduos em atores sociais coletivos. Identidade é um fenômeno que emerge da dialética entre o indivíduo e sociedade. Sendo formada por processos sociais, uma vez cristalizada é mantida, modificada ou, mesmo, remodelada pelas relações sociais. Os processos sociais envolvidos na formação e manutenção da identi- dade são determinados pela estrutura social (1985, p. 43-44). Compreende-se, portanto, que a identidade está estritamente rela- cionada a um contexto histórico da existência do indivíduo, que a constrói a partir da cultura e dos valoresdos diferentes grupos sociais que compõem a sociedade. Há de se observar que sendo contextualizada historicamente, a identidade sofre a ação do tempo e do espaço, conjunções naturais de trans- formação, estando organicamente ligada a sociedade que por sua vez é asso- ciada aos atores sociais coletivos e a complexidade da força dos grupos sociais existentes que os envolvem. Os vários grupos sociais, formados pelos atores sociais que compõem a sociedade mais ampla, vivem de formas diversas e pensam em termos de di- ferenças e contrastes. Por conseguinte, o que fica explícito é a atribuição da identidade como um processo construído que, ao mesmo tempo, é individual e coletivo, o que implica considerar o fato de que não apenas o indivíduo, como um ator social coletivo, passa por transformações históricas extrínsecas, mas, também, mudanças intrínsecas como: visões de mundo, ideologias e valores. Todos nós somos suscetíveis às mudanças a partir do contexto e do determinado tempo em que nos encontramos. Muitas situações do nosso coti- diano, que antes eram rejeitadas por nós, hoje somos mais acessíveis a elas e o contrário também ocorre como, por exemplo, a questão do cigarro. Você lem- bra que algum tempo atrás o ato de fumar era sinônimo de glamour? Os jovens da época que não aderiam a esse ato eram classificados como “caretas” e muitos compactuavam com essa ideia. Mesmo quem não era adepto, não se importava I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 145 com quem fumava a sua volta. Os meios de comunicação levavam essa informa- ção através das propagandas de apologia ao cigarro, difundindo o ato de fumar, não como um vício comprometedor da saúde, mas sim como uma atitude que era comum e legitimada. Diferente dos tempos atuais, em que o conceito de meio ambiente e saúde aliado ao de qualidade de vida transmite que o ato de fumar perdeu o seu encanto sendo até mesmo intolerado. Vimos, então, que a nossa consciência e, consequentemente, a nossa identidade, modifica-se através da transformação das relações sociais, do tempo e do espaço, assim podemos afirmar que a iden- tidade é histórica, relacional e mutável. Dessa forma, é importante afirmar que o individuo como ator/sujeito coletivo e social constrói, desconstrói e reconstrói sua identidade a depender das novas necessidades sociais e subjetivas, sem que ele se cristalize num espa- ço-tempo anacrônico. Podemos dizer, portanto, que o individuo é constituído não só de uma única, mas de várias identidades. Hall denomina esse processo de “concepções mutantes do sujeito humano”. Admite não a destruição, mas o deslocamento da identidade através de várias rupturas nas estruturas da socie- dade no decorrer da história; o indivíduo é, dessa forma: [...] contextualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais so- mos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos ro- deiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assu- me identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente (HALL, 2001, p.13). O autor defende, ainda, a ideia que essas variações mais constantes de identidade que ocorrem na sociedade contemporânea passa pela chamada “crise de identidade”. Sustenta a teoria que as identidades, que por muito tempo se viam solidificadas, estão em declínio no mundo moderno, emergindo novas identidades que caracterizam o indivíduo ou uma cultura. Há certa dificuldade de compreensão sobre a noção de multiplicidade de identidades, e esta reside no fato de que nas sociedades modernas há um desprendimento do sujeito para com as questões tradicionais que serviam de referência para conceitualizá-lo no tempo e no espaço, possibilitando que se Fundamentos Antropológicos e Sociológicos146 enquadre em categorias socialmente construídas. Mas, na medida em que surge uma multiplicidade de significações e representações culturais, o indivíduo aca- ba por internalizar diferentes identidades, resultado de um complexo processo de subjetivação, podendo adaptar-se, mais ou menos, a cada uma, de acordo com suas necessidades. Podemos ilustrar essa discussão falando sobre a mulher na contem- poraneidade. Ao estudar a mulher e seu processo de desenvolvimento, acredi- tamos no salto político e social que este gênero vem alcançando a cada época graças as lutas travadas pelo Movimento Feminista. Em pensar que em tempos atrás a mulher tinha somente a função de ser dona de casa e cuidadora de seus filhos e marido que a sustentava, e nem o maior direito político ela tinha: o de votar e ser votada. A mulher na contemporaneidade se emancipa, não desen- volve apenas o papel de dona de casa e sim de provedora do lar. Importante observar que não só houve mudanças de papéis e sim, também, de significados que representam a mulher na sociedade. Você percebeu a diferença de papéis e identidade? Você percebeu a diferença de papéis e identidade? A multiplicidade de identidades não deverá ser confundida com o que chamamos de papéis. Castells (2010, p. 23) define bem cada termo quando diz que, em geral, as “identidades organizam significados, enquanto papéis organi- zam funções”. Concluindo esse conteúdo é interessante salientar que: seja a partir dos autores clássicos, seja através dos sociólogos contemporâneos, o que notamos é que quando debatem sobre a relação indivíduo e sociedade, a percepção dos autores estão voltadas para as experiências pessoais que não se limitam às cons- ciências individuais, mas devem ser interpretadas como parte da experiência social de nossa época. Agora que você, caro aluno, tem a noção dos fundamentos da Sociolo- gia, interessante entrar em algumas questões presentes na realidade da socie- dade em que vivemos e como a Sociologia explica essas questões. Assim, nos dois próximos capítulos vamos refletir sobre a questão de classe e desigualdades no contexto da globalização. Vamos lá? I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 147 3.3 Classe e desigualdade3.3 Classe e desigualdade Você já ouviu falar em desigualdade social? Basta observar a sua volta que seus sinais estão em todos os lugares e podem ser percebido pelas condições econômicas refletidas no tipo desigual de roupa, carro, moradia como também, no acesso às políticas públicas como a saúde, a educação, o lazer ou nos bens culturais. É fato que os recursos materiais determinam muita coisa em nossas vi- das e isso faz com que o estudo das desigualdades sociais se destaque como um dos temas mais desafiantes da Sociologia, devido a sua visibilidade em função da facilidade de acesso aos meios de comunicação que expõe a pobreza como uma realidade marcante, constituindo-se como um dos principais problemas da atualidade. A importância do tema faz emergir alguns questionamentos no qual a Sociologia inclina-se para compreender, como: por que as desigualdades sociais existem? Como explicar a existência de indivíduos ou grupos de indivíduos que estão separados de acordo com a distribuição desigual de renda? O que faz com que alguns indivíduos pertençam a uma camada e não a outra da estratificação social? Por que naturalizamos a distribuição desigual de bens, poder e prestígio que estão presentes na sociedade? Fundamentos Antropológicos e Sociológicos148 Não podemos responder esses questionamentos nos baseando em expli- cações do senso comum, do tipo: “As desigualdades existem porque uns ganham mais que outros, pois uns trabalhammais que outros”, “Ah, porque Deus quis as- sim”, “Por que uns estudam e outros não querem estudar”, ou ainda, “As desigual- dades sociais existem porque uns são pobres e outros são ricos”. Observem que são respostas superficiais que apenas mostram o que nossos olhos alcançam, sem uma visão crítica e consciente da realidade e, assim, não atinge a raiz do problema. A questão é: como podemos combater realmente um problema se não o conhecemos profundamente? Você conhece alguma pessoa que apresentou certo tipo de doença e que foi curada apenas com uma noção superficialmente da doença? Claro que não! Para que haja a cura, a doença teve ser diagnosticada e para tal necessário se faz uma investigação profunda que aponte o conceito da doença, a forma, as causas, o tratamento e, além disso, a sua prevenção. Entende-se que o interesse e a dedicação em conhecer a fundo um mal que pode nos sucumbir deveria ser o mesmo voltado para os problemas sociais que, se diga de passagem, também nos desalenta aos poucos, como por exem- plo, a questão das desigualdades sociais ou o que ela acarreta na vida dos indi- víduos em sociedade. A falta de oportunidade expressa na pobreza, na fome e na miséria em que vive uma parcela expressiva da população, não só no Brasil, mas em outros países, têm suas raízes na desigualdade social devido a diversas questões, entre elas podemos destacar: • a forma de como um país foi colonizado; • dívidas externas; • a acumulação de capital nas mãos de poucos; • a discriminação étnica e racial. Ainda, associado a tudo isso, está o mau gerenciamento político (DIAS, 2005). Dessa forma, fica claro que não podemos deixar na superficialidade a compreensão da desigualdade social, que de uma maneira significativa, é um problema intrigante pela contradição que permeia a sua condição, ao observar- mos que a sociedade contemporânea, mesmo avançada tecnologicamente, com I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 149 o sistema econômico mundial, quase predominantemente capitalista, alcançan- do grandes avanços no processo de produção de alimentos, ainda é inapta a superar este persistente obstáculo na grande parte do mundo. O Brasil, por exemplo, vive essa contradição. Segundo notícias desta- cadas em 29 de julho de 2013, no site33 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD): O Brasil registrou um salto de 47,8% no Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) do país entre 1991 e 2010, um avanço con- sistente puxado pela melhora acentuada dos municípios menos desen- volvidos nas três dimensões, acompanhadas pelo índice: longevidade, educação e renda. Os dados são do Atlas do Desenvolvimento Humano Brasil 2013 (Desenvolvimento Local – IDHM – Atlas Brasil, 2013). Para aqueles que não têm conhecimento mais aprofundado sobre o tema, ao ler essa informação acima pode ter a impressão que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo por ser um país pobre economicamente. Será que isso é verdade? Vejamos algumas informações a respeito. A notícia34 destacada no jornal ‘O Estadão’ de 06 de março de 2010 aponta que o Brasil se caracteriza no cenário internacional como “o primeiro lugar no ranking de exportação em vários produtos agrícolas – açúcar, carne bo- vina, carne de frango, café, suco de laranja, tabaco e álcool. Também é vice-líder em soja e milho e está na quarta posição na carne suína”. O que coloca esse país como o terceiro maior exportador agrícola do mundo perdendo somente para os EUA e União Europeia (LANDIM, 2010). Com essa informação, você ainda tem como continuar a pensar que o Brasil é um país pobre? Claro que não. A conclusão que chegamos é que ao afirmar que um país tem um alto índice de desigualdade social não quer dizer que o país é pobre economicamente. No caso do Brasil é, ao contrario, quando mais se desenvolve economicamente amplia, ainda mais, as desigualdades sociais devido à concen- tração de renda nas mãos de poucos. 33 Disponível em: www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3752. Acesso em: 06 de jun de 2014. 34 LANDIM. Brasil já é o terceiro maior exportador agrícola do mundo. 2010. Disponível em: http://www.estadao.com .br/noticias/economia,brasil-ja-e-o-ter ceiro-maior-exportador a- gricola-do-mundo,520500,0.htm. Acesso em: 06 de jun. de 2014. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos150 Você está percebendo que falar sobre desigualdade não é tão fácil as- sim é uma questão complexa que exige uma bagagem teórica, mas a sociologia pode auxiliar na sua compreensão. Veja um exemplo dessa complexidade: observamos que de um ponto de vista histórico, as sociedades são formadas por indivíduos com inúmeras diferen- ças, certo? É claramente visível toda essa diversidade, é só olharmos a nossa volta. Então, podemos entender que é difícil de acreditar em igualdade, uma vez que é impossível termos uma sociedade composta por membros exatamente iguais. Apesar de compreendermos que as desigualdades existem e sempre existirão, pois parece inevitável que as desigualdades sociais sejam eliminadas, pelo contrário continuarão a surgir, a crescer e a se perpetuar enquanto o merca- do continuar a desempenhar um papel central na produção e distribuição de bens e serviços; há as reivindicações propostas pelos movimentos sociais pela garantia da igualdade de direitos, de oportunidades que sustentam o discurso de que todos deveriam ter igual possibilidade de alcançar os vários benefícios e privilégios dis- ponibilizados pela sociedade, não havendo qualquer tipo de barreira social, como o impedimento do acesso de pessoas de determinado sexo, raça, etnia ou religião, ou seja, igualdade pelos direito constitucionais aplicados sem distinção. Então, percebe o quão complexo é a questão da desigualdade? Partindo desse breve delineamento sobre a desigualdade social, pros- seguiremos a aprofundar mais sobre o tema à luz de teorias sociológicas partin- do de alguns conceitos básicos, como: estrutura e estratificação social, classe e; mobilidade social. Estrutura e Estratificação SocialEstrutura e Estratificação Social A estrutura social nada mais é do que a forma de como está organizada a sociedade em seu contexto social, econômico, político e cultural que juntos determinam e caracterizam uma sociedade. Como faz parte de uma conjuntura, “[...], a estrutura social não é estática, mas dinâmica, pois as relações sociais en- tre os indivíduos e grupos se alteram, renovando a vida social constantemente” (LAKATOS, 1986, p.161). E o que vai caracterizar essa estrutura é a sua estratificação, ou seja, a forma de como os indivíduos e/ou grupos são diferenciados em posições (sta- tus) ou camadas sociais. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 151 Os sociólogos usam o conceito de estratificação social para descrever a hierarquia de posições ou camadas sociais de indivíduos ou grupos existentes em todas as sociedades, explicitando as desigualdades a partir dos “estratos” que cada individuo e/ou grupo ocupam. Geralmente, associamos o termo es- tratificação social a recursos ou posse, porém é importante salientar que a sua definição envolve outros atributos, como gênero, idade, religião, entre outros. Assim, a estratificação pode ser definida simplesmente como desigualdades es- truturadas entre diferentes grupos de pessoas que não possuem a mesma posi- ção e os mesmos privilégios, com os mais privilegiados no topo e os menos favo- recidos na base, o que apenas confirma a inexistência de sociedades igualitárias. A estratificação social é histórica, ou seja, modifica-se através do tem- po. Dessa forma, as primeirassociedades existentes chamadas primitivas eram nômades e a forma de subsistência baseava-se na caça e na coleta de frutos. Nesta época, quase inexistia a estratificação, visto que havia pouca produção de riquezas e, consequentemente, poucos recursos a serem divididos. Contudo, há com o tempo uma mudança significativa quando a agricultura começa a se desenvolver e com ela a importância da propriedade privada. Com o desenvolvimento da agricultura, eleva-se a quantidade de riqueza, uma vez que a terra torna-se um instrumento essencial para a produção e, devido a essa importância, os povos ,que antes eram nômades, começam a vincular-se a um território, dando início a propriedade privada e as disputas pelo melhor lugar para produzir. Como resultado, tem-se o aumento na estratificação que define as di- ferentes posições que os indivíduos ocupam na sociedade: aqueles que estão no topo - dono de uma propriedade privada quem planta mais; e aqueles que estão na base - os que plantam menos, quem não planta, quem não tem uma propriedade ou aqueles que trabalham para os que possuem uma propriedade privada. (GIDDENS, 2012). Nas sociedades industriais e pós-industriais, os seus membros identifi- cam altos níveis de consumo com sucesso profissional/social e felicidade pessoal, escolhendo o consumo como objetivo de vida em busca de status. Status “é a loca- lização do indivíduo na hierarquia social, de acordo com a sua participação na dis- tribuição desigual da riqueza, do prestígio e do poder” (VILA NOVA, 2012, p.128). Nessas sociedades, a estratificação social é mais transparente, pois os recursos para acompanhar o consumo são distribuídos de forma desigual e, as- sim, também desigual será como os indivíduos empregarão suas rendas dis- poníveis para satisfazer necessidades reais (transporte, alimentação, moradia, Fundamentos Antropológicos e Sociológicos152 remédio, roupas, etc) e efêmeras (roupas de grife, carro do ano, tecnologia de ponta, etc). Só um número menor de pessoas terá as suas necessidades reais e efêmeras correspondidas, outras só as reais e, ainda, aquelas em que ambas as necessidades não fazem parte da sua realidade. Verifica-se que em toda a histó- ria das sociedades existe um tipo de estra- tificação social como uma representação da desigualdade social presentes nas so- ciedades onde as pessoas, em grupo, são divididas em estratos sociais, seja como resultado de riqueza econômica, ou poder político e religioso, seja em relação à fun- ção que se cumpre na sociedade. A divisão ou estratificação so- cial pode assumir formas diferentes em sociedades diversas. Podemos distinguir 04 sistemas básicos de estratificação: escravidão, casta, estamento e classe. A escravatura é um tipo de desi- gualdade extrema, na qual as pessoas são tratadas como objeto de posse de outras, sendo consideradas como uma propriedade. Esta forma de estratificação pode variar conforme a sociedade. Aqui no Brasil, por exemplo, os escravos eram privados de todos os direitos apenas restando o dever de servir aos seus ‘donos’ sobre constantes supervisão e punições (VILA NOVA, 2012). Desde o século XVIII, muitas pessoas passaram a considerar a escravi- dão uma condição desumana e moralmente errada. E a partir de quando a liber- dade foi garantida aos escravos no continente americano, há cerca de um século atrás, a escravatura começa a reduzir gradativamente, porém, ainda hoje, algu- mas notícias são expostas e documentam que pessoas são levadas à força e manti- das contra a sua vontade em cativeiro para trabalhos forçados sem remuneração. Veja essa notícia35 que saiu no G1 do dia 27/04/2014 “Trabalhado-“Trabalhado- res em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia.res em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia. 35 ALVES. Trabalhadores em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia. Homens trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-humanas. 2014. Disponível em: www. G1nortefluminense.com. Acesso em: 04 de jun. de 2014. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 153 Homens trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-hu-Homens trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-hu- manas”manas”. Podemos perceber, que este fato é apenas um em tantos outros noti- ciados na mídia que vai desde trabalhadores rurais e urbanos escravizados para trabalhos forçados à mulheres que são sequestradas e mantidas como escravas na prática do sexo. Embora não tenhamos mais senzalas nem correntes, a es- cravidão contemporânea ainda traz condições de total submissão e subumanas através da coerção física, ameaças de morte, castigos, dívidas que impedem o livre exercício do ir e vir, jornadas de trabalho que ultrapassam às 12 horas por dia, situação precária dos alojamentos, alimentação e condição de trabalho, en- fim, é o ato de arrebatar a liberdade do outro. Segundo dados alarmantes do Ministério do Trabalho (2013), de 1995 a 2013, 46.478 trabalhadores foram libertados no Brasil nessas circunstâncias. É bom salientar que, mesmo atualmente, a escravidão sendo ilegal em todos os países repre- sentando uma violação aos Direitos Humanos, ainda persiste, não só no Brasil, mas em outros países como, Haiti, África, Reino Unido, Irlanda, Índia, China, etc. O sistema de castas, por sua vez, é um sistema de estratificação social fechado (sem possibilidade de mobilidade social ou de mistura entre eles, es- tabelecendo casamento dentro da mesma casta), no qual a posição social do indivíduo é determinada, geralmente, para toda a vida. Assim, as sociedades divididas em castas podem ser consideradas um tipo especial de sociedade de classe, na qual a posição é atribuída ao nascer, ou seja, as desigualdades estão no fator hereditário sustentados em diferenciações como religião, raça ou etnia, cultura, ocupação, etc. Como exemplo, podemos citar a índia, um país asiático considerado o segundo país mais populoso do mundo com uma estimativa de 1,21 bilhão de habitantes (estimativa 2010) tem a maior parte da população inserida na crença Fundamentos Antropológicos e Sociológicos154 religiosa do hinduísmo, fato que influencia intimamente na sua organização so- cial que está baseada no sistema de castas à mais de dois mil anos. No entanto, salienta-se que: Na realidade, embora a Índia tradicional seja o exemplo mais evidente desse tipo de estratificação, outros exemplos podem ser encontrados, mesmo nas sociedades do presente. Onde quer que existam indivíduos localizados hereditariamente no sistema de posições sociais de modo atransmitir aos seus descendentes a mesma localização, aí encontramos castas (VILA NOVA, 2012, p. 158). No hinduísmo, há uma lenda que na formação do mundo as pessoas nasceram de um corpo de um deus – Brahma (um das principais divindades desta religião), sendo que as partes que compõe esse corpo é que deram vida as pessoas. Assim, a zona do corpo de onde surgiram é o que vai classificar e de- terminar os níveis de pureza e impureza como também os valores desiguais. O sistema de castas reflete-se nesta lenda onde cada estrato social será diferencia- do a partir dos distintos níveis de pureza e valor o que vai garantir que algumas castas sejam superiores a outras. Dessa forma, na sociedade indiana existem quatro castas: • Brâmanes – composta pelos sacerdotes, filósofos e professores; • Xátrias – formada pelos guerreiros e governantes; • Vaixás – constituída pelos comerciantes e agricultores; e • Sudras – composta de artesãos, operários e camponeses. Dentre essas castas também estão os chamados de dalits que são con- siderados aqueles que estão debaixo dos pés de Brahma que seriam os descen- dentes daqueles que teriam violado o sistema de castas, tornando-se intocáveispor sua impureza, o que faz com que pessoas que estão associadas as outras castas superiores evitem tocá-los. Os dalits, considerados seres inferiores e impuros desprezados como humanos são responsáveis por exercerem atividades menos valorizadas na so- ciedade como, por exemplo, remover dejetos humanos. Eles sofrem restrições extremas e são excluídos do convívio de outras pessoas que estão em castas su- periores, como não poder rezar no mesmo templo e não podem beber da mesma I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 155 fonte de água, pois poderiam contaminar com suas impurezas a água e conse- quentemente, contaminar as outras castas. Sobrevivem através dos restos de comida, roupas, e utensílios adquiridos catados nos lixos. Os intocáveis (dalits) são os membros mais desfavorecidos que partici- pam da organização social da Índia refletindo, dessa maneira, uma hierarquiza- ção econômica e política dessa sociedade. Podemos de uma forma geral, reunir duas principais características do sistema de castas: 1) As castas, ou estratos, passam de pai para filho, portanto, é hereditário, como também, vitalício. Quem nasce em uma casta será desta casta até o fim dos seus dias. Assim, quem nasce brâmane, morrerá brâmanes; 2) Não existe mobilidade social nesse sistema, sendo o casamento entre diferentes castas proibido. Dessa forma, há exigência da ‘pureza’ da casta assegurada pelas regras de endogamia (casamento dentro do próprio grupo social). Apesar do sistema de castas ter sua proibição legal desde 1950 continua a existir mesclado ao sistema de classe devido ao processo de urbanização e industriali- zação crescentes nos países ocidentais. Porém, a tradição milenar das castas persiste a todo esse processo do capitalismo e globalização das sociedades contemporâneas. Outro tipo de estratificação social é o ‘estamento’ (ou status), típico das sociedades aristocráticas, como, por exemplo, a Europa durante a Idade Média que possuía como o modo de organização social e político o feudalismo, que re- presentou durante séculos na sociedade europeia uma sociedade de estamentos. Na sociedade feudal, os indivíduos eram diferenciados a partir da sua titulação de nobreza e tinham privilégios e obrigações distintos dos deveres e direitos dos servos e camponeses porque a desigualdade, além de existir de fato, era transformada em direito. O sistema de estamento apresentava algumas características peculia- res entre elas: 1) O prestígio tem um maior peso que a riqueza, pois é obtido heredita- riamente, isto quer dizer que a riqueza por si só não confere prestígio e sim a nobreza; Fundamentos Antropológicos e Sociológicos156 2) A localização do indivíduo na hierarquia social é não somente uma realidade econômica de fato, mas, principalmente de direito. Assim, o nobre é considerado de um estado maior não por possuir riqueza e sim por ter nascido nobre. Essa última característica significa que cada pessoa tinha de executar as tarefas próprias de sua ocupação, sendo que os direitos e os deveres distri- buídos aos membros de cada estamento são definidos por lei. Dessa forma, um indivíduo não poderia sair do seu estamento, visto que este era regido por nor- mas que definiam a posição do indivíduo dentro da sociedade, bem como seus privilégios e suas obrigações. O estamento era dividido em estados: o da nobreza – formava o mais alto estamento e seus membros exerciam atividade econômica. O segundo es- tado – o clero – dispunha de certos privilégios em matéria de imposto e gozava de direitos. O terceiro estado era constituído do resto ou chamados plebeus que eram servos, camponeses livres, mercadores e artesãos, portanto, todo aquele que não era nobre nem sacerdote era deste estado. Uma sociedade de estamen- tos apresentava muita semelhança com as castas, porém se diferenciava destas por não ser tão fechada, ou seja, a mobilidade social, de forma bem difícil, pode- ria existir seja por mérito extraordinário (conquista de terras, de riqueza), por casamento, ou por funções religiosas. O Feudalismo tem seu declínio com a ascensão da burguesia, uma cate- goria social que se dedicava às atividades comerciais e financeiras desenvolvidas nas cidades. Com o declínio do feudalismo, consequentemente, há a decadência da organização estamental da sociedade europeia. A ascensão da burguesia se dá no final da Idade Média quando come- çou a ter consciência da sua força econômica na sociedade. No entanto, é bom lembrar que a riqueza não era garantia de um estado maior e sim o título nobre. Porém, na tentativa de mudar esse quadro, a burguesia insatisfeita aproveita a desarticulação política da nobreza e promove 1789, a Revolução Francesa. Uma das consequências dessa revolução foi a extinção da diferenciação legal dos in- divíduos através da proclamação da igualdade dos cidadãos perante a lei. As- sim, a burguesia consegue valer seus interesses e se afirmar politicamente. Além da ascensão da burguesia, outros marcos contribuíram para a fi- nalização do Feudalismo: I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 157 • A forma de riqueza passa de imobiliária (terras) a mobiliária (di- nheiro); • As terras cultivadas tornam-se esgotadas, sem recursos técnicos para recuperá-las; • Limites técnicos para a mineração da prata – travando fortemente o curso do dinheiro; • A peste negra – dizimou cerca de ¼ da população europeia; • Revolução Burguesa (fim do poder absoluto) – Início do sistema capitalista Com o declínio do sistema de estratificação de estamento, nasce a so- ciedade de classes. Muitas vezes empregamos o termo ‘classe’ para definir uma forma de comportamento ou categoria profissional, como: “Ela é uma pessoa de classe”, ou “A classe dos médicos se manifestou na reunião com a prefeitura”. No entan- to, na Sociologia o termo ‘classe’ é utilizado para indicar a hierarquização e/ou categoria social de certos grupos na estrutura da sociedade capitalista. Diferentemente das castas e dos estamentos, o sistema em classe é composto por grupos sociais não definidos por questões hereditárias ou religio- sas, nem por leis ou privilégios especiais, reportando-se apenas a uma dimensão estritamente econômica. O sistema de classe difere em muitos aspectos da escravidão, castas ou estamentos. Segundo o sociólogo Anthony Giddens (2012), 04 (quatro) carac- terísticas identificam o sistema de classe diferenciando-a das outras estratifica- ções sociais: 1) O sistema de classe é fluido, Ou seja, ao contrário de outros tipos de estratificação social, as classes não se estabelecem a partir da religião ou por questões legais. Não existindo restrições para o casamento entre pessoas de classes diferentes. Na realidade, as fronteiras entre uma classe e outra não são claros; 2) As posições nas classes é algo conquistada. O que Giddens (2012) quer dizer é que a classe onde um indivíduo está situado não é he- reditária, assim, não é simplesmente definida no nascimento como Fundamentos Antropológicos e Sociológicos158 verificamos no sistema de castas e estamento. Este fato significa que os indivíduos podem ter livre acesso a qualquer camada social, ou seja, a mobilidade social é muito comum do que nos outros tipos. No entanto, na prática, as possibilidades reais de ascensão social não são as mesmas para todas as pessoas devido as desigualdades sociais presentes em toda a sociedade. O que Giddens quer dizer aqui é a possibilidade de mobilidade presente nesse modo de estratificação. É importante compreender mobilidade social como a mudança que os in- divíduos fazem de uma posiçãosocial (status) para outra, possibilitando a uns a ascensão e levando outros a descer na hierarquia social. Assim, a mobilidade social poderá ser ascendente (ex: uma pessoa pobre que ganha na loteria e melhora de vida) ou descendente (ex: um empresário que perde suas ações na bolsa de valo- res). A possibilidade dessa mudança varia de sociedade para sociedade a depender do tipo de sistema de estratificação social. Temos as sociedades fechadas onde não existe ou são muito reduzidas as chances de mobilidade social como o sistema de escravidão, de castas e o estamento. E as sociedades abertas, é o caso das socie- dades estratificadas em classe onde há uma maior possibilidade de mudança de posição social. No entanto, sabemos que mesmo as sociedades tidas abertas não são tão abertas assim, pois por maiores que sejam as possibilidades de mobilidade social ascendente oferecida aos indivíduos em uma sociedade, a mudança de posi- ção social não depende só dos indivíduos e sim das oportunidades que, diga-se de passagem, não são iguais para todos. Aqui no Brasil temos um ótimo exemplo de mobilidade social a partir da história de vida de Luiz Inácio da Silva – o Lula, filho de um casal de agricultores analfabetos que viviam a fome, a miséria na zona rural de Garanhus (PE) e de sindicalista tornou-se o 35º Presidente do Brasil. 3) A classe tem base econômica. O sistema de classe tem uma proprie- dade importante que é depender de diferenças econômicas entre os indivíduos, o que ressalta as desigualdades em relação à posse de recursos materiais e financeiros. Quer dizer que os fatores econô- micos vão determinar a posição que o indivíduo ocupa no sistema de classe, o que difere, por exemplo, do sistema de castas onde os fatores econômicos não são um fator determinante para ocupar uma posição superior na estratificação social, mas o prestígio hereditário. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 159 4) O sistema de classe é em grande escala e impessoal. Diferenciando de outros sistemas de estratificação social, o sistema de classe atua por meio de relações impessoais e de grande escala como, por exem- plo, as desigualdades de salário e condições de trabalho. Em com- paração com outros sistemas, as desigualdades são definidas pelas relações pessoais de dever e obrigação como o sistema de escravos (relação instituída entre os escravos e os senhores). Karl Marx (1818-1883) se dedicou a investigação das sociedades mo- dernas baseadas em classes, na tentativa de compreender como elas funciona- vam, chegando a conclusão que as sociedades industriais eram fundamentadas em relações econômicas capitalistas. Marx foi o primeiro a utilizar o termo ‘clas- se social’ com frequência em seus estudos, na tentativa de explicar a natureza das mudanças que transformaram radicalmente as tradicionais estruturas so- ciais da Europa no final do século XVIII com na transição entre o Feudalismo e a Sociedade Industrial (capitalista). Para esse autor: [...] as classes são expressão do modo de produzir da sociedade, no sentido de que o próprio modo de produção se define pelas relações que intermedeiam entre as classes sociais, e tais relações dependemda relação das classes com os instrumentos de produção. Numa socie- dade em que o modo de produção capitalista domina, sem contrastes, em estado puro, as classes se reduzirão fundamentalmente em duas: a burguesia, composta pelos proprietários dos meios de produção, e o proletariado, composto por aqueles que não dispondo dos meios de produção tem de vender ao mercado sua força de trabalho (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p.171). Dessa maneira, Marx define classe em termos da relação de agrupamen- tos individuais com os meios de produção em que a dominação econômica está totalmente atrelada à dominação política. Enfatiza a existência de duas classes antagônicas que vivem em eterno conflito (burguesia e proletariado), salientando a relação de exploração e opressão existente nas sociedades capitalistas.É importante dizer que, não podemos reduzir toda a diversidade exis- tente nas sociedades apenas as duas principais classes sociais indicadas por Karl Marx, que fundamentam as sociedades capitalistas. A forma como as clas- Fundamentos Antropológicos e Sociológicos160 ses se estruturam determinam o surgimento de outras várias fragmentações de classes, bem como de classes médias ou intermediárias que estão na fronteira que separam os capitalistas dos trabalhadores, ou seja, referem-se aqueles que ocupam uma posição na pirâmide social acima da pobreza e abaixo da riqueza. Salienta-se que não é uma tarefa fácil identificar com precisão a classe social a qual o indivíduo pertence. É necessário analisar historicamente cada sociedade para perceber como as classes se formam no processo de produção da estrutura social sem perder de vista as questões que envolvem o processo de produção como propriedade, renda, consumo, profissão e poder. Categorias que definem como as diferentes classes se situam na estratificação social e como também se expressam as desigualdades nas sociedades modernas. Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) ao estudar a socie- dade construíram percepções diferentes no que diz respeito à questão da estra- tificação social, mesmo partindo de um ponto em comum: que a sociedade se caracterizava por conflitos, pelo poder e por recursos. Porém, Marx colocava o conceito de classe e as questões econômicas no centro de todos os conflitos sociais. Já Weber, percebia esses conflitos não como uma simples questão de classe ou por causa somente do fator econômico, mas algo atrelado também à questão do poder (status) e do privilegio. Assim, para Weber a questão eco- nômica não define totalmente a posição de uma pessoa dentro do sistema de estratificação. Além das classes sociais e dos grupos de status, Max weber distinguia um terceiro tipo de estratificação social, com base no poder político. Do ponto de vista político, a diferenciação se dá pela distribuição do poder entre grupos e partidos e também no interior destes. ‘Partido político’, do ponto de vista de Weber, é uma associação cuja adesão é voluntária e que visa assegurar o poder a um grupo de dirigentes, a fim de obter vantagens materiais para seus membros (Dias, 2010). Entende-se que Weber chama a atenção pelo fato de que não importa o tipo de estratificação (estamento, classes, partidos), o que todos tem em co- mum é que seja na participação, na distribuição da riqueza quanto a participa- ção na distribuição do prestígio tudo leva a um fator único – o poder, ou seja, a possibilidade de impor aos outros a própria vontade. Por fim, entendemos a desigualdade social como parte da estrutura das sociedades e sua construção social é histórica em diferentes períodos. Salienta- I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 161 -se que essa estrutura é representada pela estratificação social como forma pela qual as sociedades estabelecem seus critérios de hierarquia e, quando existem, os critérios e possibilidades de mobilidade social. 3.4 Desafios do mundo globalizado3.4 Desafios do mundo globalizado Para terminar o tema, vamos nos debruçar sobre o estudo da globaliza- ção que nos anos de 1990 começou a ser uma das expressões mais faladas e di- fundidas. Por certo você também já ouviu em conversas informais, na televisão, em sala de aula que a globalização é uma consequência do mundo moderno e a causa de todos os problemas nele existente. Convido você a apreciar a formação do significado mais preciso desse fenômeno presente em nosso cotidiano. Para começar, podemos entender a globalizaçãocomo o processo do aumento fundamental das relações econômicas entre os países do mundo, a partir do final da década de 1980. No entanto, essa compreensão é insatisfató- ria, no momento em que notamos que a globalização envolve outros indicativos presentes em diversas dimensões. Vários autores tem essa compreensão, entre eles, o sociólogo Giddens (2000, p. 23) que afirma: “[...] globalização não é um processo singular, mas um conjunto complexo de processos. E que estes operam de uma maneira contraditória ou antagônica”. Assim, a união dos fatores políti- cos, sociais, culturais e econômicos cria a globalização contemporânea. Você Já sabe que a globalização atinge as diferentes esferas que com- põem a sociedade, o que falta entender é como cada esfera é atingida. Na economiaNa economia, há o processo de reprodução ampliada do capital inte- grada à economia mundial, o que determina um aumento dos fluxos financei- ros, dos investimentos estrangeiros nos países e do comércio mundial. A glo- balização não só intensifica o movimento do capital como também a força de trabalho. Segundo Ianni (1996, p.22), O modo que o capitalismo se globaliza, articulando e rearticulando as mais diversas formas de organização técnica da produção, envolve am- pla transformação na esfera do trabalho, no modo pelo qual o trabalhoentra na organização social da vida do indivíduo, família, grupo e clas- se, em todo o mundo. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos162 A questão do desenvolvimento da informática e da automação também foi um fator fundamental para a constituição da globalização, uma vez que não se trata apenas de um desenvolvimento tecnológico, mas sim de uma transfor- mação na organização dos processos produtivos industriais, pela maneira que se tornou mais ágil, integrado, centralizado e planejado. Consequentemente, além de trazer um ritmo mais acelerado na economia e o aumento dos fluxos financeiros traz também novas formas de relação de trabalho, como exemplo, podemos indicar o processo de terceirização36. A globalização afeta a economia também pela questão espacial. A di- mensão espacial do desenvolvimento tornou-se algo crucial devido ao crescen- te ritmo e facilidade dos fluxos de capitais. Cabe mencionar que alguns países são lugares interessantes para o capital, enquanto outros não possuem esse di- namismo, a exemplo disso temos a China e a Índia que se transformaram em locais altamente lucrativos por apresentarem um maior contingente de mão- -de-obra barata como também por se destacarem como um continente com um alto nível populacional, maior do que outros países, capaz de se transformar em um potencial mercado consumidor. Sem falar que a abertura comercial desses países facilita a entrada e a saída de capitais, o que pode ocorrer tanto nos ramos industriais como no capital financeiro (DIAS, 2010). Na políticaNa política, compreende-se que a globalização demonstra que os países não estão isolados nem os seus problemas, existindo direitos, deveres e condições socioeconômicas de ordem global. Assim, necessário se faz a criação de alguns mecanismos com o objetivo de regular de forma global a chamada política internacional. Dessa forma, surge uma nova forma de governabilidade do território através de instituições e organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização das Nações Unidas (ONU) e Orga- nização Mundial do Comércio (OMC). Segundo Dias (2010), um dos aspectos mais relevantes disso é a cria- ção de instâncias para a construção de consensos mundiais em torno de Di- reitos Humanos, dos Direitos da Criança, a criação de tribunais internacionais 36 Segundo o relatório técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estu- dos Socioeconômicos) – ‘O processo de Terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores no Brasil’ (2007; p.05): terceirização é o “processo pelo qual uma empresa deixa de executar uma ou mais atividades realizadas por trabalhadores diretamente contratados e as trans- fere para outra empresa”. Este fato é muito comum em instituições públicas e privadas que terceirizam o trabalho de serviços gerais como: limpeza, jardineiro, cozinheira etc. I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 163 de guerra, deliberações a respeito da preservação ambiental e da regulação das relações de trabalho. Os efeitos da globalização no âmbito político também se dão pela dis- puta entre as nações para expandir seu poder, desenvolver suas riquezas e o po- derio militar. Na realidade, a globalização tem sido tanto resultado de conflitos, guerras e invasões quanto de cooperação e concordância entre grupos sociais e sociedades. No âmbito da culturaNo âmbito da cultura, a globalização pode ser abordada de várias maneiras não existindo consenso, seja no que diz respeito às identidades cul- turais relacionadas com o território seja pela discussão da homogeneização ou intensificação das diferenças sociais e culturais. Alguns autores entendem que a globalização é um fenômeno que homogeneizou a cultura e suas explicações são geradas a partir da criação da Indústria Cultural e da Cultura de Massa. De certa forma, observamos que as diferentes sociedades existentes no mundo seguem, contagiadas, por uma oferta de produtos culturais disponíveis globalmente como alimentação, música, ideias, moda, etc. Um exemplo disso é a rede de fast-food McDonald´s e a Coca-cola que são marcas globalizadas conhecidas por todo o mundo. A indústria da moda ilustra bem essa noção do conflito entre a diversi- dade e a homogeneização. Um exemplo disso é o caso de um acessório que apa- rece sendo utilizado por uma atriz ou cantora internacional. Imediatamente, o acessório utilizado pela atriz se torna tão popular que será fabricado massifica- mente e posto no mercado, seja em uma boutique ou em tabuleiros de vendedo- res ambulantes. O importante é que em poucos dias muitas pessoas estarão ad- quirindo e utilizando o tal acessório usado pela atriz no intuito de acompanhar a moda proposta, o que a faz sentir-se parte de um grupo de pessoas descoladas. Apesar desse exemplo, é muito prematuro dizer que a globalização pro- vocará a extinção de culturas tradicionais substituindo-as por valores culturais novos e globais. Mesmo porque não é difícil notar quando olhamos a nossa volta que cada indivíduo possui peculiaridades distintas e que seria impossível pa- dronizar todos em um só modelo. Quando relacionamos a questão cultural com a globalização é impor- tante fazer a distinção desse fenômeno com o conceito de mundialização que, apesar de aparentemente parecer a mesma coisa, possuem conotações diferen- tes. Para Ortiz (1994), a globalização seria um termo utilizado para referir-se Fundamentos Antropológicos e Sociológicos164 aos aspectos econômicos das novas formas de integração. A noção de mundia- lização está relacionada aos aspectos culturais, os quais conteriam especifici- dades que impediriam a homogeneização, a exemplo disso está a música que, mesmo fazendo parte de uma cultura de massa, ainda a sua apreciação se dá de forma subjetiva. No socialNo social, pode-se afirmar que a globalização aumentou os fluxos de pessoas, de imigrantes que se deslocam em razão de melhores condições de tra- balho ou que fogem de calamidades ou guerras. Entretanto, é preciso perceber que as distintas dimensões da globalização não são simétricas, isto é, os fluxos econômicos (comerciais e financeiros) e culturais (valores e hábitos) são muito mais intensos e velozes que a circulação de pessoas, que encontram muitas res- trições para cruzarem fronteiras (DIAS, 2010). As mudanças sociais que ocorrem diante da globalização podem ser definidas como a transformação, ao logo do tempo, das instituições,da econo- mia, da política e da cultura de uma sociedade. Mas, não podemos deixar de destacar as mudanças nas relações sociais, sabendo que essas relações definem as relações entre os indivíduos e estes com a sociedade. No mundo do trabalho e do consumo, por exemplo, dá para ver essas mudança, já que influenciam as relações sociais propriamente ditas, alterando comportamentos, atitudes, visão de mundo, valores e formas de convívio entre pessoas e grupos sociais, em escala local e global, especialmente a partir do uso da tecnologia nos lares dos usuários junto com a televisão e o celular, que possi- bilita estar em conexão 24 horas por dia. Você percebe que, ao mesmo tempo em que a tecnologia tem o poder de unir as pessoas que se encontram distantes ao mesmo tempo, separa das pes- soas que estão por perto? Esse fato não é difícil de observar basta olhar a nossa volta que logo encontraremos, em restaurante, bares ou em uma roda de ami- gos, as pessoas em grupos unidas, porém distantes, com olhares fixos em seus aparelhos celulares. Isso, você, como aluno, sabe que é muito comum acontecer em salas de aula onde o momento de traçar uma relação com o professor/cole- gas de turmas e aprendizagem é trocado por redes sociais. É importante deixar- mos claro que não há nada contra as redes sociais, mas como tudo há de ter um tempo para elas que não seja em momentos em que a socialização presencial se torna importante para o desenvolvimento humano. Mesmo diante de toda essa explanação, que revela a globalização em vários âmbitos que compõem a sociedade, conceituar esse fenômeno é algo difí- I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 165 cil porque não há um conceito único e amplamente aceito. Por exemplo, alguns autores conceituam globalização como o processo de intensificação das relações que se travam no âmbito econômico em escala mundial. Na realidade, as obras de Karl Marx já expressavam o aumento desse fluxo de comércio e, consequentemente, das relações envolvidas nesse processo entre os países desde o século XV. Então, esses autores não trazem nenhuma inovação no conceito de globalização, uma vez que, já vem ocorrendo há um longo período da história humana e certamente não se restringe ao mundo contemporâneo. Mas, o que há de novidade é o ritmo e a intensificação dessas relações que se tornam presentes nas diversas dimensões existentes (cultura, ambiente, social, políti- ca, etc) como já visto anteriormente. Destacam-se também os aparatos institucionais que surgem com o objetivo de gerir e regular esse processo. Para ilustrar, podemos citar a questão da tecnologia da comunicação e da informação que rompe com o tem- po e o espaço, tornando-se algo global e que precisa de instituições como as empresas de telecomunicação (Tim, Vivo, Maxtel, etc) e as televisivas (SBT, Record, Globo, etc) para administrar e regular essas atividades. Mas, além disso, tem toda uma legislação que mantem as regras para a utilização e expansão desses recursos. Sentimos na pele essa intensificação da tecnologia quando utilizamos as redes virtuais ou e-mails para entrarmos em contatos com entes queridos que não estão próximos de nós. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos166 Antes de toda essa tecnologia, que possibilita a comunicação mais rá- pida, tínhamos a carta e o telefone fixo para esse fim. A carta levava, a depender da localidade onde a pessoa se encontrava, dias e até mesmo meses para chegar ao seu destino. O telefone fixo era um aparelho que quando se encontrava em um domicílio, certamente estava associado a classe alta da sociedade, pois nem todos possuíam condições financeiras para tê-lo. Porém, para atingir a popu- lação, independente da classe social, havia os telefones fixos em vias públicas (orelhão). Esse instrumento também não facilitava o processo de comunicação devido a quantidade de fichas necessárias para tal fim. Dá para perceber o desconforto e a dificuldades de um tempo não mui- to distante (final do século XX) no que diz respeito à comunicação, mas o desen- volvimento da tecnologia favoreceu toda uma sociedade, visto que, a tecnologia facilita a compreensão do: • • O O tempotempo – já que hoje, a qualquer hora e em pouquíssimo tempo, podemos entrar em contato com alguém que esteja do outro lado do mundo e; • • O O espaçoespaço – a tecnologia rompe com a ideia de espaço, no mo- mento em que não precisamos nos deslocar para conseguir o que queremos, por exemplo, compras pela internet. Observem que o desenvolvimento das tecnologias das comunicações e da informação aumentou a velocidade e o alcance das interações entre as pes- soas por todo o mundo, aprofundando e acelerando processos de globalização, pois cada vez mais pessoas estão se interconectando por meio dessas tecnolo- gias e estão fazendo em locais que antes eram isolados ou poucos servidos pelas comunicações tradicionais. Observem: duas pessoas localizadas em lados opostos do planeta, no Brasil e na China, por exemplo, não apenas podem conversar em tempo real, como também enviar documentos e imagens um ao outro com a ajuda da tecnologia do satélite. Em relação à funcionalidade e os efeitos da globalização surgem deba- tes no meio científico com concepções divergentes que estão divididos em duas argumentações: uma trata como um fenômeno natural e benéfico a sociedade e a outra com uma visão pessimista da realidade. A primeira argumentação, muito defendida pelo teórico canadense da I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 167 comunicação Herbert Marshall Mcluhan (1911-1980), afirmava que a globali- zação é um efeito produzido pela história da humanidade e que a sua srcem e estabelecimento é algo natural e benefíco por gerar a ideia de que é possível reduzir o mundo a uma única aldeia global. Para Marshall, essa aldeia produ- ziria tecnologia como um instrumento necessário a romper com o tempo e o espaço, através da difusão instantânea, das informações para toda a população como também das viagens mais rápidas encurtando significamente as distân- cias. Com o tempo e as distâncias reduzidas, haveria uma maior mobilidade que possibilitaria o desenvolvimento do mercado global na perspectiva de formar uma identidade universal e, assim, uma cidadania global (COSTA, 2010). Já Milton Santos (1926-2001), crítico ferrenho da globalização e logi- camente crítico da percepção otimista de Marshall, não acreditava nos efeitos benéficos, naturais e homogeneizantes da globalização. Por entender que, [...] os indivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno, cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na di- versidade dos lugares. Na realidade, a globalização agrava a heteroge- neidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutural (SANTOS, 2010, p.143). Nesta citação, este autor, faz menção à heterogeneidade referindo-se às crescentes diferenças que o processo de globalização traz, como a intensificação das disparidades regionais, a acentuação das desigualdades sociais e a centra- lização de riqueza, embora seja fato a globalização atingir a todos e modificar a vida cotidiana nos mais distintos espaços geográficos e sociais. Dessa forma, para Milton Santos, os argumentos utilizados por Mar- shall para enaltecer a globalização não possui fundamento. No que diz respeito à velocidade da difusão das informações para todos, Santos (2010) acreditava que a mídia produz diversas notícias que, no entanto, nem sempre se traduz em informação, como por exemplo, revistas de fofoca sobre artistas que traz notí- cia, mas não informação. É certo e unânime admitirque a concentração de riqueza tem aumen- tado no mundo atual, gerando novos tipos de desigualdades. O acesso à infor- mática se destaca como sendo um desses tipos. E assim, o conhecimento passa a ser incorporado por uma minoria, que cada vez mais detém um maior controle dos processos de riqueza global. Fundamentos Antropológicos e Sociológicos168 Sobre a mobilidade que diminui as distâncias e favorece o desenvolvimen- to do mercado global, Santos (2010) rebate argumentando que nem todos tem aces- so a essa mobilidade por não possuírem condições financeiras para deslocar-se de um Estado para outro como também falta recursos para se inserir em um mercado, que cada vez mais demarca as diferenças entre as classes sociais, tornando mais vi- sível as desigualdades sociais e, consequentemente, a exclusão social. Esses efeitos colaterais da globalização tão forma aos movimentos antiglobalização, opositores desse fenômeno muito presente durante os últimos anos durante as reuniões dos blocos econômicos e organizações reguladoras da economia global. O sociólogo britânico Anthony Giddens foi um dos primeiro teóricos a discutir, sociologicamente, sobre a globalização e os seus efeitos nas relações sociais, contribuindo com estudos teóricos sobre a vida moderna, a reflexivida- de, a sociedade de risco, o declínio da tradição e as relações de confiança. Em seu livro As consequências da modernidade , Giddens apresenta a ideia de que: [...] a forma globalizante da modernidade é marcada por poucas incer- tezas, novos riscos e mudanças na confiança das pessoas nos outros indivíduos e instituições sociais. Em um mundo de rápidas mudanças, as formas tradicionais de confiança se dissolvem. Nossa confiança nas pessoas costumava a se basear em comunidades locais, mas, nas socie- dades mais globalizadas, nossas vidas são influenciadas por pessoas que jamais conhecemos ou encontramos que podem viver em outro lado do mundo relação a nós. Esses relacionamentos interpessoais significam que somos forçados a “confiar” ou ter confiança em “sistemas abstratos”, como agências en- carregadas da produção de alimentos e da regulação em ambiental ou sistemas bancários internacionais. Dessa forma a confiança e o risco estão intimamente ligados. A confiança nas autoridades é necessária se quisermos confrontar os riscos que nos rodeiam e reagir a eles de um modo efetivo. Porém, esse tipo de confiança não costuma se dar habitualmente, mas é tema de reflexão e reavaliação” (GIDDENS, 2012, p. 112). Dessa forma, para Giddens (2012), contrariando alguns teóricos que dizem ser a globalização algo sem novidade, uma vez em que as trocas econô- micas, políticas e sociais sempre existiram ao logo da história da humanidade, esse fenômeno que atinge a contemporaneidade é novo pelo fato de seus efeitos I n d i v í d u o , t r a b a l h o e s o c i e d a d e T e m a | 0 3 169 serem sentidos em toda a parte e não sendo privilégio de alguns como o fato de provocar incertezas, riscos e mudanças na relação de confiança das pessoas. Alguns anos atrás era mais fácil mudar de emprego caso não nos adaptás- semos às atividades que nos eram propostas, principalmente se você tivesse uma boa qualificação profissional, poderia rejeitar um e logo estaria em outro emprego. Hoje, essa atitude seria perigosa, pois a qualificação profissional está mais acessível para todos (ou quase todos) através de programas governamen- tais (PRONATEC, EAD, PROUNI, FIES, etc) e que provocam estímulos aos jo- vens à qualificação profissional cada vez melhor. O resultado é o crescimento de pessoas qualificadas e o aumento da competitividade no mercado de trabalho. Este exemplo é uma representação do que Giddens aponta quando se refere às incertezas e os novos riscos. Hoje mesmo gostando pouco da atividade que exer- cemos em certo emprego vem o medo e a incerteza de sermos absorvido pelo mercado de trabalho, caso pedíssemos demissão. A decisão não será fácil de ser tomada, visto a pergunta que fica no ar: “Será que eu vou correr esse risco?” Outra questão trazida por Giddens (2012) sobre os efeitos da globaliza- ção é a mudança na relação de confiança entre as pessoas. Esta perda de confia- bilidade entre as pessoas é atingida devido ao processo crescente da violência. Vivemos um momento em que a violência está na roda de conversa em todos os lugares e, por sua recorrência constante, já pode ser considerada um fenô- meno que atualmente tem sido a que exige uma maior investida por atenção espe- cial seja pela população, pelos representantes políticos ou pelos cientistas sociais. Não é novidade dizer que a violência sempre acompanhou o curso da civilização e da história da humanidade, mas com a velocidade com que as in- formações são produzidas a presença na contemporaneidade desse fenômeno pode dar a impressão de que ela se tornou um fenômeno natural. Na realidade, essa sensação de naturalidade é devido aos meios de comunicação que trans- formam a violência em uma mercadoria midiática com programas diários37 que tem audiência com a exploração e a banalização desse fenômeno muito comum nas sociedades. 37 O programa “Cidade Alerta” da emissora RECORD mostr a diariamente notícias jornalísti- cas sobre a violência urbana e crimes registrando, quase diariamente, um índice de audiên- cia que varia entr e 10 e 12 pontos ocupando a vice-lider ança do IBOPE (Instituto Brasile iro de Opinião Pública e Estatística) como o programa mais assistido pela população brasileir a, atrás apenas da emissora Globo (http://noticias.r7.com/c idade-alerta/) Fundamentos Antropológicos e Sociológicos170 É aí onde entra a questão de Giddens. Diante dessa banalização da violência presentes em todos os lu- gares, em suas diferentes formas tem como se sentir seguro? Dar para con- fiar em todo mundo? Claro que não! O sentimento de ‘não con- fiança’ associa-se com o sentimento do medo estabelecendo o que a socio- logia denomina de ‘Cultura do Me-Cultura do Me- do’do’3838. Sendo essa cultura responsável por adquirir outros costumes como gradear, colocar filmadoras, portões, cercas elétricas nas nossas residências. O simples fato de trocarmos os grandes centros da cidade pelo shopping center como alternativa de aproveitar o comércio ou a grande procura por casas em condomínios fechados onde o lazer se restringe ao espaço reservados aos condôminos, são alguns exemplos de costumes adquiridos como consequência da violência da vida moderna. A violência tem muitas formas de manifestações. A violência física, por exemplo, se caracteriza pelos tipos de agressão (socos, pontapés, tapas), mas tam- bém existe a violência simbólica e psicológicas que geralmente está presente nas relações de poder entre dominantes e dominados, ou relações interpessoais e afe- tivas. O importante a perceber é que conforme as formas de violência ficam mais evidentes, mais são construídas estratégias de proteção contra elas através de normas, regras e leis estabelecidas. Um exemplo disso é a lei Maria da Penha que foi formulada, devido o crescente número não só de assassinato, mas de violência de forma geral que vem vitimando muitas mulheres. Segundo o Mapa da Violência de 2013 cons- truído pelo Instituto Sangari em abril de 2013: 38 Segundo o livro: Sociologia em Movimento (2013) construído por diversos autores, a Cultu- ra do Medo representa o resultado cultural desagregador que ocorre quando um sentimento difundido de perigoso se reproduz na sociedade, diminuindo o grau de coesão entre os in- divíduos e facilitando estratégias de dominação autoritárias, que se valem do processo de isolamento e alienação social. Na atualidade, a cultura do medo está fortemente associada à criminalidade urbana e aos valores do senso comum associados a