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Prévia do material em texto

3ª Edição
 
Cândida Margarida Oliveira Matos
Enedina Maria Soares SoutoLídia Marcelle Arnaud Aires
Patrícia Santos Silva
3ª Edição
 
F952 Fundamentos antropológicos e sociológicos / Cândida Margarida Oliveira Matos [et al.] –
 Aracaju : UNIT, 2014.
 254 il.: 23 cm
 
Série Bibliográfica (Grupo Tiradentes)
 Inclui bibliografia.
1. Antropologia. 2. Sociologia. 3. Conhecimentos antropológicos e sociológicos. 4. Compreensão
social e cultural. I. Matos, Cândida Margarida Oliveira. II. Souto, Enedina Maria Soares .III. Aires, Lídia
Marcelle Arnaud . IV. Silva, Patrícia Santos V. Universidade Tiradentes- Educação a Distância. VI. Título.
CDU: 572.028
Ficha catalográfica: Marcos Orestes de S. Sampaio CRB/5 1296
Impressão:Impressão:
Gráica Santa Marta
Rua Hortêncio Ribeiro de Luna, 3333
Distrito Industrial - João Pessoa - PB
Telefone: (83) 2106-2200
Site: www.graicasantamarta.com.br
Banco de Imagens:Banco de Imagens:
Shutterstock
Redação:Redação:
Núcleo de Educação a Distância - NeadAv. Murilo Dantas, 300 - Farolândia
Prédio da Reitoria - Sala 40
CEP: 49.032-490 - Aracaju/SE
Tel.: (79) 3218-2186
E-mail: infonead@unit.br
online@set.edu.br
Jouberto Uchôa de Mendonça
Presidente do Conselho de Administração doPresidente do Conselho de Administração do
Grupo TiradentesGrupo Tiradentes
Jouberto Uchôa de Mendonça Junior
Superintendente GeralSuperintendente Geral
André Tavares
Superintendente Administrativo FinanceiroSuperintendente Administrativo Financeiro
Eduardo Peixoto Rocha
Superintendente AcadêmicoSuperintendente Acadêmico
 
Ihanmarck Damasceno dos SantosSuperintendente de Relações InstitucionaisSuperintendente de Relações Institucionais
e de Mercadoe de Mercado
Jouberto Uchôa de Mendonça
Reitor – Unit Reitor – Unit 
Dario Arcanjo de Santana
Diretor Geral- FitsDiretor Geral- Fits
Temisson José dos Santos
Diretor Geral – FacipeDiretor Geral – Facipe
Jucimara Roesler
Diretora de Educação a DistânciaDiretora de Educação a Distância
Jane Luci Ornelas Freire
Gerente de Educação a DistânciaGerente de Educação a Distância
Flávia dos Santos Menezes
Gerente de OperaçõesGerente de Operações
Lucas Cerqueira do Vale
Gerente de Tecnologias EducacionaisGerente de Tecnologias Educacionais
Maynara Maia Muller
 Coordenadora Pedagógica de ProjetosCoordenadora Pedagógica de Projetos
Corporativos OnlineCorporativos Online
Equipe de Produção deEquipe de Produção de
Conteúdos Midiáticos:Conteúdos Midiáticos:
 Assessor Assessor
Rodrigo Sangiovanni Lima
Revisor ortográficoRevisor ortográfico
Ligier de Goes Costa
DiagramadoresDiagramadores
Andira Maltas dos Santos
Claudivan da Silva Santana
Edilberto Marcelino da Gama Neto
Edivan Santos Guimarães
IlustradoresIlustradores
Geová da Silva Borges Junior
Matheus Oliveira dos Santos
Shirley Jacy Santos Gomes
WebdesignersWebdesigners
Fábio de Rezende Cardoso
José Airton de Oliveira Rocha Júnior
Marina Santana Menezes
Pedro Antonio Dantas P. Nou
Equipe de Elaboração deEquipe de Elaboração de
Conteúdos Midiáticos:Conteúdos Midiáticos:
SupervisorSupervisor
Alexandre Meneses Chagas
 Assessoras Pedagógicas Assessoras Pedagógicas
Ana Lúcia Golob Machado
Lígia de Goes Costa
 
Projeto GráficoProjeto Gráfico
Andira Maltas dos Santos
Edivan Santos Guimarães
 
Palavras dos AutoresPalavras dos Autores
Começamos estas linhas dando-lhe as boas vindas e parabenizando-o
pelo ingresso em uma nova jornada, a jornada do conhecimento. Se alguns obs-
táculos tiveram que ser superados para chegar aqui, outros certamente surgirão
até que se conclua esta fase de aprendizado. Mas como diria Guimarães Rosa
(2006, p.318) “a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e
depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. Assim sendo, assegure a
sua persistência e vamos desbravar os horizontes da Antropologia e da Sociologia,
que estão a ofertar novas lentes para enxergar o mundo! Nas páginas que seguem,
 você encontrará subsídios para pensar criticamente as transformações passadas e
presentes experimentadas pela sociedade e as diferenças com as quais temos que
lidar cotidianamente.
 Ao lado da Ciência Política, a Antropologia e a Sociologia compõem as
chamadas Ciências Sociais. Neste livro, dedicamos a primeira parte à antropologia,
mostrando como ela surge, como se constrói como ciência, criando as ferramen-
tas necessárias para abordar a diversidade cultural. Deste modo, veremos como o
encontro com a diferença foi o momento crucial para a Antropologia se colocar no
mundo e configurar noções necessárias para a compreensão de tal diversidade.
 À Sociologia dedicamos à segunda parte do livro, mostrando igualmente
como ela surge, os problemas que dão vida a esta ciência e como ela se projeta
com suas teorias e métodos a fim de oferecer explicações para as mudanças que
impactaram a vida em sociedade e procurando dar conta das relações que elas
instauram. Deste modo, a aventura sociológica começa com os autores clássicos
como Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber, passando por cenários que nos
obrigam a pensar a relação indivíduo/sociedade tornando-se imprescindível para
compreender a realidade que nos toma e da qual somos partícipes.
 Assim como a Antropologia, a Sociologia o auxiliará na compreensão de
questões que se apresentam tanto na sua vida profissional quanto na vida pes-
soal. Se E.E. Evans-Pritchard (2005, p. 243) estava certo ao afirmar que “Na ci-
ência, como na vida, só se acha o que se procura.”, boas buscas! E conte conosco
neste empreendimento!
 
Parte 1 Antropologia
1 Antropologia e o estudo da cultura __________________ 7
1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranhamento do “outro” . . . . . . . 8
1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
1.3 A pesquisa antropológica (etnograia): colocar-se no lugar do “outro” . . . . .39
1.4 Contribuições da Antropologia no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
2 Culturas contempôraneas ________________________63
2.1 Nós e os outros: raça, etnia e multiculturalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e religião . . . . . . . . . . . . . . . 76
2.3. Diversidade familiar e parentesco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
2.4 Cultura do consumo e meio ambiente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
SumárioSumário
 
Parte 2 Sociologia
3 Indivíduo, trabalho e sociedade ________________ 115
3.1 Sociologia: surgimento e atualidade .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .116
3.2 Indivíduo e Sociedade . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. .132
3.3 Classe e desigualdade .. . . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . .147
3.4 Desaios do mundo globalizado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161
4 Estado, sociedade e poder _______________________ 177
4.1 As micro e macrorelações de poder . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .178
4.2 Estado e sociedade . . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . . . .. . . . . .. . . . .. . . . .. . .192
4.3 Cidadania e institucionalização dos direitos humanos . . . . . . . . . . . . . . . .208
4.4 Participação política e m ovimentos sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .224
REFERÊNCIAS ________________________________________ 243
 
ANTROPOLOGIA
Parte 01
 
Neste tema, vamos estudar o que é a
disciplina de Metodologia Científica e por que
ela é importante para a sua formação acadêmica
e profissional. Como estamos no início dos conte-
údos da disciplina, estudaremos também técnicase procedimentos para organização dos estudos e
um melhor aproveitamento no estudo de textos.
É importante destacar que o seu suces-
so nos estudos e, consequentemente, profissional,
depende apenas de você, da sua capacidade de ir
em frente e de buscar “aprender a aprender”. Vocêperceberá que a Metodologia Científica vai se tor-
nar uma auxiliar fundamental em seus estudos.
ObjetivObjetivos da os da AprendizagemAprendizagem
 Ao terminar a leitura e as atividades do Tema 1,
 você deverá ser capaz de:
 D entender a importância da disci-
plina para a formação acadêmica e
profissional;
 D adotar procedimentos e técnicas na
organização dos estudos;
 D desenvolver o hábito pela leitura,
realizando análises de texto;
 D praticar as técnicas de sublinhar,
esquematizar, resumir e fichar no
estudo de texto.
METODOLOGIA
CIENTÍFICA E
TÉCNICAS DE
ESTUDO
 
ANTROPOLOGIA E O
ESTUDO DA CULTURA
Tema01
 A partir de agora, estaremos abrindo as
portas da antropologia para que você seja apre-
sentado ao mundo que ela permite (re) desco-
 brir através de algumas noções e conceitos que
se configuraram ao longo de sua formação en-
quanto disciplina e que se tornaram chaves para
o entendimento da realidade humana sob a ótica
antropológica. A gênese da Antropologia ocorre
 justamente no momento em que as diferenças
entre as sociedades se tornam evidentes ou, na
 verdade, no momento em que se percebe que as
diferenças existem. Assim sendo, nas páginas a
seguir, você perceberá como a antropologia se
apropria da “diferença”, tornando-a objeto de
estudo e como este encontro faz emergir inter-
rogações que acabam nutrindo a disciplina e
exigindo que ela se coloque no mundo portando
ferramentas próprias para dar conta dessas in-
terrogações.
 Aqui, você terá acesso às primeiras no-
ções que permitem o seu ingresso, de fato, no
mundo antropológico. Um convite, ao mesmo
tempo, a deixar de lado – ainda que momenta-
neamente – seus preconceitos e juízos de valor,
permitindo-se a olhar para seu entorno com as
lentes que a disciplina está lhe ofertando. Fazen-
do isso, você já estará experimentando uma das
noções elementares para a antropologia e que
explicaremos logo abaixo: relativização. A partir
daí, estará pronto para entender outras noções e
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos8
conceitos tão importantes quanto. Seguindo por esta visita exploratória, apre-
sentaremos o conceito antropológico de cultura, diferenciando-o do que signi-
fica para o senso comum e como se tornou central para a análise da realidade
humana. Estabelecidos conceitos e noções, a antropologia precisava de um mé-
todo que lhe permitisse estudar a cultura do “outro”. Nesta seção o surgimento e
os desdobramentos do trabalho de campo antropológico através de seus princi-
pais colaboradores. E para finalizar essa viagem antropológica, apresentaremos
a antropologia tal como se desenvolveu no Brasil, destacando seus principais
expoentes e contribuições. Contribuições essas que se tornaram matéria-prima
para as gerações seguintes, seja para levá-las adiante ou adequa-las a novas re-
alidades e incorporar novas ideias.
 Vamos, pois, para a plataforma de embarque! O ingresso é a vontade
de aprender e a bagagem você receberá ao final do livro!
 
1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranha-1.1 Percebendo as diferenças culturais: o estranha-
mento do “outro”mento do “outro”
 
 Você já ouviu falar de – ou ouviu a própria canção – “Sampa”, com-
posta por Caetano Veloso e que homenageia São Paulo, a partir da experiência
do cantor e compositor baiano ao “conhecer” a grande metrópole? Permita-me
reproduzir aqui uns versos que podem nos servir de pontapé inicial para um
pensamento antropológico: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu
rosto/Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/ É que Narciso
acha feio o que não é espelho [...]”. Trata-se da reação de um sujeito a um novo e
diferente universo com o qual tem contato pela primeira vez ao sair de sua terra
natal. O encontro com a diferença pode gerar diferentes reações e exploraremos
tais respostas mais adiante ao tratar de etnocentrismo e relativismoetnocentrismo e relativismo. Por
enquanto, gostaríamos de despertá-lo para a questão das diferenças.
No caso da canção do Caetano, trata-se de um encontro com a dife-
rença, marcado por um deslocamento geográfico que lhe permite “descobrir”
outras arquiteturas, outros modos de vestir, outras paisagens, outros sotaques,
enfim, um mundo totalmente diferente do seu. De tal encontro, resulta o estra-
nhamento e, em seguida, sua impressão, marcada pelas referências de srcem,
caracterizando como “mau gosto” tudo o que vê naquela cidade, reconhecendo,
 
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ao mesmo tempo, que é uma visão configurada pelas experiências do lugar de
onde veio “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. Porém, o estranhamen-
to e o juízo de valor que empregamos para classificar “o outro”, “o diferente”, “o
exótico” – muitas vezes sem nos darmos conta – não aflora apenas através de
um deslocamento geográfico, seja para São Paulo (conhecida como o lugar da
diversidade) ou para qualquer parte do planeta. A diferença está o tempo inteiro
a nossa volta!
Sair da sua cidade, estado ou país torna mais perceptível as diferenças
culturais –culturais – abordaremos o conceito de cultura mais adiante––, entretanto, já
convido o(a) leitor(a) a refletir sobre o que é cultura, não qurendo dizer com
isto que não lidamos com diferenças significativas no nosso cotidiano. Ao pen-
sar nos grupos sociais dos quais você faz parte, certamente perceberá quantas
diferenças permeiam seu universo, sem precisar sair do lugar! As famílias não
têm a mesma configuração, os gostos gastronômicos das pessoas se diferenciam
conforme os grupos a que pertencem, a música ouvida pelos seus colegas de
faculdade pode ser diferente daquela apreciada pelos amigos do circuito extra
acadêmico, para citar alguns exemplos.
Não é preciso possuir qualquer habilidade de previsão ou adivinhação
para saber que a percepção da diferença nem sempre se dá tranquilamente e
interjeições pouco elegantes devem ter escapado ao ver dois homens como pais
de uma mesma criança; ao saber que na casa do João eles apreciam uma boa
 buchada buchada de de bodebode12 ou que seu colega de faculdade curte um bom arrocha e
deprecia o rock’n’roll!
Considerando que já tenha despertado os seus sentidos para o que é
diferente e que aguçamos sua curiosidade para pensar sobre toda a diversidade
a sua volta, gostaríamos de lhe apresentar clássicos encontros com a diferença,
a partir dos quais foi concebida e gestada a antropologia. Essa disciplina passa
a tematizar a capacidade infinita que o homem possui para elaborar modos de
 vida e formas de organização social extremamente diversificadas.
Certamente as aulas de história e geografia da vida escolar ainda eco-
am na sua memória, a ponto de lembrar a divisão do Velho Mundo e Novo Mun-
do, Imperialismo, Colonialismo, Período das grandes navegações e descobertas
delas advindas. Não é necessário muita precisão, mas um pouco de noção de
12 Iguaria nordestina elaborada com as vísceras do caprino, envolvidas em bolsas forma-
das pelo estômago do mesmo.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos10
tais eventos para guiar-nos nesta viagem a tempos e territórios longínquos e,
possivelmente, alguns retornos bruscos ao aqui, agora.
 Ao delimitar o período de pré-história da antropologia, a partir do
século XIV, o antropólogo francês François Laplantine (2005), afirma que a
gênese da reflexão antropológica coincide com a descoberta do Novo Mundo,
sendo os primeiros viajantes os responsáveispor ela. Desta experiência, surge
a questão: aqueles que acabaram de ser descobertos pertencem à humanidade? 
 As primeiras respostas foram elaboradas a partir do contexto religioso, cujos
representantes (os missionários) especulavam se os selvagens tinham alma e
se o pecado srcinal se estendia a eles também. Passa-se, então, a construir a
figura dos chamados “selvagens” ora como bons, por estarem livres das máculas
trazidas pelo progresso, ora como maus e infelizes por não fazerem parte da
civilidade do mundo ocidental, do reino da culturacultura. Acrescentemos que, para
alguns, estes nativos não teriam nenhum futuro enquanto para outros viajantes
e missionários, os selvagens poderiam se desenvolver e ascender à civilização,
desde que houvesse interferência da ação missionária (a partir do século XVI)
ou pela intervenção da ação administrativa (leia-se colonização).
Para esta classificação entre os ocidentais (civilizados) e os selvagens,
que pertencem ao reino da natureza, além do critério religioso, foram levados
em consideração os hábitos alimentares, a aparência física e a inteligência, me-
dida através da linguagem. Ou seja, se não compreendiam a língua falada pelos
nativos, como afirmar se são inteligentes ou não? Como exemplo de encontro
entre ocidente e Novo Mundo podemos pensar como exemplo mais próximo a
chegada dos europeus ao Brasil. E aqui, refresco a memória do(a) nobre leitor(a)
com um dos textos que ilustram o impacto do encontro com a diferença, a famo-
sa carta de Pero Vaz de Caminha:
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho
para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acu-
diram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três,
de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia
dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa
alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam
arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Ni-colau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os
pousaram. Ali, não pôde deles haver fala, nem entendimento
de proveito, por o mar quebrar na costa. [...] Muitos deles ou
quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bi-
cos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles tinham
 
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os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pa-
reciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bi-
cos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. [...] Ali por então
não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria
deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.
(Carta de Pero Vaz de Caminha)
Este trecho da famosa carta de Caminha permite que tenhamos uma
dimensão do que foram os primeiros olhares sobre aqueles que estavam dis-tantes do modelo ocidental em vários sentidos: o instrumental bélico, ou seja,
armas e todo o aparato necessário para guerras; as vestes ou ausência delas; a
configuração corporal (cabelo, estatura, cor da pele etc.); os adereços que reve-
lam estéticas diferentes; a fala incompreensível etc. Lembre-se que até então
não se tinha outro modo de vida que não fosse o do Velho Mundo. Logo, o que
era familiar dizia respeito a seus próprios modos de vida, daí o grande choquechoque
culturalcultural que este encontro causa.
 A descoberta do outro, da diferença, permite que exploremos a partir
daqui algumas noções elementares em torno das quais se constrói o pensamen-
to antropológico: alteridade, etnocentrismo, relativismo. Para tanto, continue-
mos tomando como referência a “descoberta” de um novo mundo.
Estar diante de seres com costumes tão diversos, como foi colocado an-
teriormente, inspira diversas elaborações sobre quem são eles – seres humanos
ou animais? – mas também sobre aqueles que estão olhando para os nativos. Tan-
to em um caso como no outro, a semente foi plantada naquele momento, mas
até hoje dá frutos (nem sempre tão bons). O que deve ficar claro, como sugere
Laplantine (2005), é que o selvagem é sempre colocado em oposição ao civilizado.
 Além disso, gostaria de destacar que estamos tratando de um encontro de sub-encontro de sub-
 jetivi jetividades.dades. Logo, todo discurso construído sobre os seres observados é marca-
do pelo contexto da época em que foi escrito ou dito, vem conformado pelo lugar
que o autor ocupa na sociedade, pela sua biografia, pela formação que teve etc.
Prossigamos, então... Sendo bons ou depreciativos os discursos cons-
truídos sobre a diferença, o importante é que ela passa a ser tematizada tendo
como pano de fundo interesses nem sempre louváveis (lembram do que aconte-
ceu com a população indígena no Brasil quando aqui aportaram os europeus?).
O encontro com um mundo além-mar e o interesse que ele desperta faz emergir
o que podemos chamar alteridadealteridade: olhando para o outro podemos enxergar a
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos12
nós mesmos. Como afirma DaMatta (2010, p.26): “Apesar das diferenças, e por
causa delas, nós sempre nos reconhecemos nos outros”.
É como se o outro fosse um espelho para que enxerguemos quem so-
mos nós, é pelo contraste que nos reconhecemos. Ou seja, foi preciso conhecer
outros modos de vida para que reconhecêssemos os nossos próprios costumes.
Devemos saber, então, que nesse momento de pré-antropologia, conforme su-
gere Laplantine, o interesse não é pelo outro em si, “mal se olha para ele, olha-se
a si mesmo nele” (2005, p.51). O que importa é que neste momento é questio-
nada a existência de um único tipo de sociedade. A diversidade é de um modo
ou de outro tocada e explorada. A partir daí, começam as buscas por respostas
que possam explicar as diferenças. Antes de passar a estas buscas, gostaríamos
de familiarizá-lo com outras noções que marcam o pensamento propriamente
antropológico.
Sugiro que retomemos os exemplos utilizados até aqui para que pos-
samos pôr em palavras uma experiência que de algum modo cada um de nós já
teve em maior ou menor grau. Tomando como referência a musica SAMPA; ao
chegar em São Paulo e encontrar um lugar diferente do seu em todos os aspec-
tos, inspirando maneiras de viver igualmente diversas e chamar tudo aquilo de
“mau gosto” podemos falar de etnocentrismoetnocentrismo. Assim como estamos tratando
de etnocentrismo quando achamos que a família de alguém não deve ser con-
siderada família por não ter um homem e uma mulher desempenhando res-
pectivamente os papéis de pai e mãe de um(a) ou mais filhos(as). Também há
etnocentrismo ao julgar os hábitos alimentares dos outros considerando infe-
riores ou nojentos porque não estão de acordo com o que estamos acostumados
a considerar comestível e, sobretudo, apreciável.
Sempre que hierarquizamoshierarquizamos as diferençasas diferenças, colocando nossos va-
lores e visão de mundo como melhores que os dos outros, estamos sendo et-
nocêntricos. Utilizemos as palavras do Everardo Rocha (1988) para reiterar e
ampliar a nossa colocação:
Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio gru-
po é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensa-
dos e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nos-
sas deinições do que é a existência. No plano intelectual, pode
ser visto como a diiculdade de pensarmos a diferença; no plano
afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.
Perguntar sobre o que é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um
 
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fenômeno onde se misturam tanto elementos intelectuais e racio-
nais quanto elementos emocionais e afetivos. No etnocentrismo,
estes doisplanos do espírito humano – sentimento e pensamen-
to – vão juntos compondo um fenômeno não apenas fortemente
arraigado na história das sociedades como também facilmente
encontrável no dia-a-dia das nossas vidas. (ROCHA, 1988, p. 05)
 A assertiva acima aponta para as sensações experimentadas diante do
que nos é diferente e, sobretudo, deixa claro que quando falamos em atitudesetnocêntricas não estamos tratando de questões individuais pura e simples-
mente, mas de valores e pensamentos que foram construídos socialmente. São
resultado da nossa vivência, enquanto indivíduos pertencentes a determinados
grupos. Uma perspectiva etnocêntrica dá srcem a expressões e interjeições que
ilustram a nossa dificuldade em lidar com a diferença e a facilidade em atribuir
a tudo que vem da nossa sociedade, do nosso grupo, como o melhor, o mais
 belo, o mais desenvolvido em oposição ao que vem do grupo ou sociedade do
outro, que por oposição é ruim, estranho, inferior, primitivo. Reflita e perceba
se não é mais fácil e mais confortável comer uma carne de sol com macaxeira
do que um salmão cru, sendo você nordestino. Você pode até passar a gostar da
segunda opção, mas o primeiro contato quase sempre não é tão gostoso ou fácil.
Podemos, pois, denominar de etnocêntrico o olhar ocidental sobre as
 Américas, por exemplo. Quando os primeiros viajantes e missionários questio-
naram se eram seres humanos aqueles nativos de modos tão selvagens, quan-
do impuseram sua religião ou quando os subjugaram e espoliaram o fizeram
acreditando que eram superiores a aqueles desprovidos de qualquer traço de
“civilidade”. Em todas estas atitudes, temos também uma visão etnocêntrica,
que motivou ações cujas consequências foram extremamente graves.
Colocar o nosso sistema cultural em relação com o sistema cultural
do outro, permite-nos experienciar a alteridade, mas nos faz correr o risco de
ser etnocêntrico. Qual seria, então, o “antídoto” para o etnocentrismo? Embo-
ra não seja nenhum pecado ou delito imperdoável, olhar para a diferença sem
hierarquizá-la, sem julgar o outro, é sempre um exercício mais interessante.
Quando praticamos tal exercício e reconhecemos que o outro não é melhor nem
pior, que seus costumes e valores são apenas escolhas dentro de um universo
de possibilidades, que aquilo que nos parece estranho ou inconcebível faz todo
o sentido no contexto ao qual pertence, estamos relativizando.relativizando. Como aduz
Everardo Rocha (1988, p.10):
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos14
Quando vemos que as verdades da vida são menos uma ques-
tão de essência das coisas e mais uma questão de posição es-
tamos relativizando. Quando o signiicado de um ato é visto
não na sua dimensão absoluta mas no contexto em que acon-
tece: estamos relativizando. Quando compreendemos o “ou-
tro” nos seus próprios valores e não nos nossos: estamos re-
lativizando. Enim, relativizar é ver as coisas do mundo como
uma relação capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter
um im ou uma transformação. Ver as coisas do mundo como
a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar que
naquilo que é olhado. Relativizar é não transformar a dife-
rença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e
mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
 
No entanto, nem sempre conseguimos nos desvencilhar dos preconcei-
tos, dos nossos valores e do ímpeto de julgar ou classificar o comportamento dos
outros grupos. Lembre-se da canção de Caetano Veloso citada no início do tex-
to! Quando ele se depara com outra realidade, a primeira reação é de criticá-la.
Logo após, podemos entrever uma tentativa de relativização no verso seguinte:
“É que Narciso acha feio o que não é espelho...”. Ou seja, o que foge dos nossos
padrões, das nossas referências, é difícil de ser aceito. Relativizar é um apren-
dizado, não é apertar um botão e automaticamente muda-se de opinião e de
ponto de vista. Mas o primeiro passo é saber que a diversidade humana deve ser
 vista com bons olhos e se desvencilhar das pré-noções que nos embaça a visão.
Ou como sugere Marshall Sahlins (2007, p. 22): “O relativismo é a suspensão
provisória dos nossos próprios juízos, a fim de situar as práticas em questão na
ordem histórica e cultural que as tornou possíveis”.
Mesmo a antropologia, que se debruça sobre a diversidade de costu-
mes, que se esforça para afastar o etnocentrismo, sugerindo a relativização, já
experimentou épocas difíceis e etnocêntricas em alguma medida. Isto pode ser
percebido quando observamos a emergência e o desenvolvimento da discipli-
na tomando como referência as chamadas “Escolas AntropológicasEscolas Antropológicas”13, cujas
ideias principais serão expostas nas linhas subsequentes, associadas aos autores
cujos textos se tornaram clássicos da antropologia. Não que suas ideias estejam
em voga até hoje, mas elas pavimentaram o caminho para aqueles que se inte-
13 Utilizamos tal expressão para nos referir a um período de congruência de ideias que es-
tiveram vigentes, respondendo satisfatoriamente às questões postas por aqueles autores
que se dedicavam à antropologia.
 
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ressaram em construir uma ciência antropológica tal como ela se apresenta hoje,
principalmente, se considerarmos que, essencialmente, “ideias de vanguarda
reeditam oportunamente ideias nem sempre tão novas” (SAEZ, 2013, p.8).
Como assinalamos anteriormente, a antropologia começa a se desen-
 volver quando se interessa por questões que brotam do encontro entre mun-
dos diferentes. Como assinala Jesús Azcona (1992): “À perplexidade diante
da diversidade e do assombro de encontrar-se face a culturas e mentalidades
diferentes corresponde a necessidade de buscar a razão dessas diferenças e o
questionamento da própria sociedade ocidental” (p. 40). Nesse sentido, apesar
do olhar etnocêntrico e tendencioso dos viajantes, missionários e comerciantes
que se dedicaram a conhecer – ainda que por motivos pouco nobres – os povos
não europeus, os relatos produzidos por eles foram de grande importância para
a constituição da antropologia. Tais relatos serviram de fonte de dados e inspi-
ração para pensar a diferença e para tematizá-la sob um ponto de vista que se
pretendia antropológico.
Foram dados colhidos por terceiros, que alimentaram umas das primei-
ras elaborações antropológicas sobre o outro, o chamado evolucionismo social ou
cultural, que teve como principais expoentes Lewis Henry Morgan (1818-1881),
nos Estados Unidos; Edward Burnett Tylor (1832-1917) e James George Frazer
(1854-1941), na Inglaterra, considerados os “pais fundadores” da disciplina. Di-
ferente de outras elaborações acerca dos povos além-mar que questionavam se
aqueles seres eram também humanos, os evolucionistas defendiam a ideia de
que a humanidade era uma só. Logo, aqueles seres, ainda que tão diferentes,
eram também seres humanos. No entanto, havia algo que separava tais povos
da sociedade ocidental: o estágio de desenvolvimento ao qual pertenciam. Sen-
do assim, podemos nos perguntar: onde está contido o etnocentrismo nesta
propositura? Observemos os detalhes das ideias evolucionistas...
Para os adeptos da teoria acima, as sociedades humanas estariam dis-
postas, segundo uma escala unilinear evolutiva, obedecendo a determinados es-
tágios de desenvolvimento e “toda a humanidade deveria passar pelos mesmos
estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais
indiferenciado ao mais diferenciado” (CASTRO, 2005, p.14). O desenvolvimento
unilinear ascendente experimentado por todas as sociedades humanas era possí-
 vel, segundo a perspectiva evolucionista, devido à uniformidade do pensamento
humano, isto é, toda a humanidade compartilhava de umaunidade psíquica.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos16
Se você ainda não se deu conta do teor etnocêntrico da teoria evolu-
cionista isso vai ficar evidente ao saber que, segundo esta perspectiva, as so-
ciedades que ocupam o ápice da escala evolutiva são as sociedades ocidentais.
 As sociedades “primitivas”, os “selvagens” seriam a ilustração do que um dia
foi a sociedade europeia, a mais civilizada, ou a infância da humanidade cuja
 vida adulta é representada pela sociedade civilizada, como sugeriu James Fra-
zer (1854-1941). Some-se a isto o interesse que tinham não exatamente pelo que
era diferente nas culturas observadas, mas pelas semelhanças que permitiam
classificar as sociedades, de acordo com a escala evolutiva que preconizavam.
Outra característica da Escola Evolucionista é a ausência do trabalho
de campo, o que a fez conhecida como “antropologia de gabinete”. Os trabalhos
dos evolucionistas se baseavam, sobretudo, em relatos de terceiros – viajan-
tes, comerciantes, missionários – com o objetivo de classificar as sociedades
(de acordo com o grau de desenvolvimento apresentado) em primitivas, selva-
gens ou civilizadas. Embora Lewis MorganLewis Morgan14 tenha conhecido viajado para
conhecer os Iroqueses sobre os quais escreveu, não havia naquele momento da
antropologia que se formava uma preocupação com a coleta de dados in loco e
nem com a sistematização dos mesmos. Esse tipo de preocupação surgiria mais
tarde com Bronislaw Malinowski, um dos expoentes do funcionalismo. Antes de
explorar este assunto, vamos às críticas direcionadas aos evolucionistas!
Um dos principais porta-vozes das críticas ao pensamento evolucionis-
ta foi o alemão – posteriormente naturalizado norte-americano – Franz Urich
Boas (1858-19421858-194215). Seus interesses de geógrafo motivaram sua ida ao Canadá
para obter informações acerca da distribuição e mobilidade entre os esquimós,
suas rotas de comunicação e histórias das migrações. Esta expedição não o tor-
nou automaticamente antropólogo – tanto que suas observações geográficas fo-
ram publicadas três anos antes das etnográficas –, mas foi fundamental para a
sua conversão à antropologia.
14 Em uma dessas viagens, obstinado por conhecer os costumes iroqueses, Morgan ignora
o pedido de sua esposa para voltar para casa devido à doença de sua filha mais velha. Maistarde, ao retornar, as duas filhas haviam morrido devido à escarlatina. Diante disso, ele
nunca mais viajou para coletar dados.
15 Boas morre durante a Segunda Guerra Mundial enquanto participava de um almoço com
alunos e alguns colegas de profissão, entre eles o francês Claude Lévi-Strauss, então exilado
nos Estados Unidos.
 
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Boas foi o grande responsável pelo desenvolvimento da antropologia
nos Estados Unidos, formando discípulos (um dos seus alunos foi o brasileiro
Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala) que desenvolveram suas pro-
posituras, consolidando o chamado culturalismo norte-americano e formando
três vertentes de pensamento que se dedicaram a estudar: personalidade e cul-
tura; linguagem e cultura; cultura e ambiente. Além disso, foi crítico dos deter-
minismos – biológico e geográfico – , esforçou-se para provar que a inferiori-
dade dos negros nos Estados Unidos estava relacionada a causas sociais, não
raciaisraciais16. Segundo Castro (2010), seu principal papel na antropologia cultural
americana não foi como formalizador de teoria, mas o papel de crítico das teo-
rias em voga, como o evolucionismo e o racismo.
 As críticas tecidas por Boas são direcionadas principalmente ao méto-méto-
do comparativodo comparativo utilizado pelos evolucionistas, na busca por leis uniformes de
evolução, pensando cultura e sociedade humana no singular. Lembre-se: para
os evolucionistas, a humanidade era uma só. O que diferenciava as sociedades
conhecidas era o grau de progresso que elas apresentavam, o estágio de desen-
 volvimento rumo à civilização. A proposta boasiana surge quando ele critica
esta comparação ampla do evolucionismo – todas as sociedades humanas – sem
considerar as peculiaridades de cada povo e a hipótese de srcens distintas e
independentes dos fenômenos observados e que estes poderiam ter sido trans-
mitidos de uma sociedade para outra.
O método indutivométodo indutivo (histórico/empírico) proposto por Franz Boas se
 baseou numa comparação de áreas restritas e bem definidas, considerando as
particularidades de cada cultura estudada para, então, verificar a possibilida-
de de comparação. Com tal abordagem, Boas está considerando que não existe
uma história única para toda a humanidade, mas que cada sociedade possui sua
própria história e uma cultura específica. Assim procedendo, a antropologia bo-
asiana está relativizando, reconhecendo a diversidade cultural ao atribuir o “S”
da pluralidade à história e à cultura.
16 Retomaremos a contribuição de Boas no combate ao racismo quando formos tematizar
diversidade cultural, raça e multiculturalismo.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos18
Tentemos simplificar comparando estas duas abordagens antropoló-
gicas:
EVOLUCIONISMO CULTURALISMO
História unilinear, singular multilinear, plural
Comparação
ampla – todas as socie-dades criteriosa – território restritoe bem definido
Cultura exclusividade da socie-dade civilizada
cada sociedade tem seus pró-
prios costumes; culturas (no
plural)
Principais au-
tores e obras
Lewis Morgan ( A Socie- 
dade Primitiva, 1877);
Edward Tylor ( A Ciên- 
cia da Cultura, 1871);
James Frazer (O Ramo
de Ouro ,1890).
Franz Boas ( As Limitações do
Método Comparativo; Raça e
Progresso ); Margaret Mead
(Sexo e Temperamento ); Ruth
Benedict (O Crisântemo e a
Espada).
Perceba que ambas as escolas antropológicas se utilizam de uma pers-
pectiva diacrônicadiacrônica. O que isto quer dizer? Que através da história é que se
pode compreender as sociedades estudadas, seja olhando para o que elas foram
um dia ou o que elas se tornarão. A escola funcionalista, à qual dedicaremos as
próximas linhas, já não se utiliza da perspectiva diacrônica como as duas ante-
riores, mas de uma análise sincrônicasincrônica das sociedades. Passemos à abordagem
funcionalista da antropologia.
O FuncionalismoFuncionalismo teve seus mais ilustres representantes nas figuras
de Alfred R. Radcliffe-Brown (1881-1955) e Bronislaw K. Malinowski (1884-
1942), deixando suas marcas na antropologia britânica, que James Frazer ini-
ciara em 1908 , ao inaugurar a primeira cátedra de Antropologia Social. Para
 Adam Kuper (1978), porém, a antropologia britânica surge, de fato, após a Se-
gunda Guerra Mundial. Mais precisamente, em 1922, quando são publicados os
primeiros estudos funcionalistas.
 
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Malinowski17 e Radcliffe-Brown deram forma a uma antropologia bri-
tânica, mas se apropriando de questões distintas. O primeiro foi o responsável
por estabelecer um intensivo trabalho de campo em sociedades não ocidentais
(ou exóticas, como eram denominadas) e o segundo se preocupou em lapidar
conceitos mais precisos, tecendo uma teoria que auxiliaria os novos pesqui-
sadores que iam a campo. Se até aquele momento a análise antropológica se
amparava na história, Radcliffe-Brown se encarrega de desvincular a análise
antropológica da história, passa a empreender o estudo das sociedades sem ne-
cessariamente preocupar-se com o seu passado, apenas com o presente, deline-
ando uma análise sincrônicasincrônica da sociedade e diferenciando o olhar funcionalis-
ta das perspectivasanteriores (evolucionismo e culturalismo).
Transportando noções das Ciências Naturais como processo, estrutura
e função, Radcliffe-Brown as transformou em “ferramentas”, que permitiriam
melhor interpretar uma dada realidade, fazendo uma analogia do sistema social
com um organismo vivo. Os costumes e crenças da sociedade primitiva cum-
prem alguma funçãofunção na vida social da mesma, assim como os órgãos de um
corpo desenvolve funções para o desempenho de um organismo. Para compre-
ender uma sociedade é preciso, segundo a perspectiva funcionalista, compre-
ender o significado de um determinado costume. Assim procedendo, Radcliffe-
-Brown privilegia conceitos como funçãofunção, processoprocesso e estrutura.estrutura. Everardo
Rocha (1988, p. 25) resume bem a abordagem funcionalista do referido autor:
[...] A realidade concreta a ser estudada, observada, descrita, com-
parada e classiicada pela Antropologia é um luxo permanente,
é um processo: o “processo social”. Pode ser percebido como
o encadeamento das relações, das ações, das interações entre
seres humanos ocupando “papéis sociais”. É esta amplitude de
contato que acontece na vida em sociedade. [...] Dentro do “pro-
cesso social” a constância de determinados tipos de relação – a
disposição de pessoas num certo número de famílias, por exem-
plo – aponta uma outra dimensão, a da “estrutura social” [...].
 A assertiva acima explicita a proposta da escola funcionalista concebi-
da por Radcliffe-Brown, preocupando-se com o rigor teórico e o uso adequado
de conceitos, ainda que a inspiração venha das Ciências Naturais – além da
17 No capítulo referente ao trabalho de campo na antropologia nos deteremos às contri-
buições de B. Malinowski.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos20
sociologia de Émile Durkheim –, já que compara o sistema social ao corpo hu-
mano, consagrando o estudo funcional da sociedade do “outro”.
Como veremos adiante, a grande contribuição de Malinowski foi na
área do trabalho de campo, preconizando um método que permitiria uma efi-
ciente análise funcionalista para a antropologia. A importância desta contri-
 buição assume tão grande proporção que Adam Kuper (1978) chega a afirmar:
“Houve, com efeito, uma revolução funcionalista e Malinowski foi seu líder”
(p.11).
Continuando nesta viagem pelo caudaloso rio de questões, construções
e problemas antropológicos, uma parada na França para conhecer um ilustre
senhor que também nos chega através de outra canção de Caetano Veloso. Em
“O Estrangeiro”, o referido cantor/compositor afirma que o antropólogo Clau-
de Lévi-Strauss (1908-2009) detestou a Baía de Guanabara por parecer uma
 boca banguela. Essa percepção da Baía de Guanabara é assim exposta por Lévi-
-Strauss, em Tristes Trópicos 18 (1996), livro que relata uma das suas visitas ao
Brasil:
[...] Sinto-me mais embaraçado para falar do Rio de Janei-
ro, que me desagrada, apesar de sua beleza celebrada tan-
tas vezes. Como direi? Parece-me que a paisagem do Rio não
está à altura de suas próprias dimensões. O Pão de Açúcar, oCorcovado, todos esses pontos tão enaltecidos lembram ao
viajante, que penetra na baía, cacos perdidos nos quatro can-
tos de uma boca desdentada (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 75).
Independentemente do que achou da paisagem carioca e da famosa
 baía, Lévi-Strauss muito contribuiu e conturbou o campo antropológico com
a sua Antropologia Estrutural. Inspirado na linguística de Ferdinand Saussu-
re e Roman Jakobson, somando às ideias das suas “três amantes” (Geologia,
Marxismo e Psicanálise), o antropólogo francês constrói o estruturalismo na
antropologia dos anos 1940. O mencionado autor busca noções e categorias em
outras searas, considerando que outras disciplinas científicas, trataram seus
problemas como os etnólogos gostariam de tratar os seus e nelas busca modelos
de métodos e soluções.Ressaltando que a noção de estrutura é utilizada quase que exclusiva-
18 Livro escrito em quatro meses e ao qual se dedicou o autor quando na verdade gostaria
de dedicar a escrever o segundo volume de As Estruturas Elementares do Parentesco .
 
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mente para questões de parentesco, em Antropologia Estrutural (2008), Lé-
 vi-Strauss adverte que a noção de estrutura social não está associada a uma
realidade empírica, mas aos modelos construídos a partir dela. Com isso, ele
evidencia a distinção entre estrutura social e relações sociais. Estas últimas são,
segundo o “pai do estruturalismo”, a matéria prima para a construção de mo-
delos que fazem emergir a própria estrutura social e tem as seguintes caracte-
rísticas:
1. Caráter de sistema à modificação em um elemento repercute nos
demais elementos;
2. Todos os modelos fazem parte de um grupo de transformações à 
cada transformação corresponde a uma mesma família;
3. É possível prever como reagirá um modelo caso haja modificação em
um dos seus elementos devido às características anteriores;
4. O modelo deve ser construído de maneira que contemple todos os fa-
tos observados. Um exemplo da aplicabilidade de tal método é o estudo
de sistemas de parentesco. É no seu livro As Estruturas Elementares
do Parentesco que se encontra demonstrada a função do sistema de
parentesco e sua significação.
 
Para tentar facilitar o entendimento, vamos ao exemplo! Tomemos
uma família qualquer, mas seguindo a lógica tupinambá. Um casal que tem uma
filha que se casou com o tio materno. Esse tipo de casamento encontra restri-
ções em nosso sistema de parentesco, salvo em algumas regiões, porém, aceitá-
 vel na cultura tupinambá. Isso ocorre porque o que os tupinambás chamam de
“irmão da mãe” (tupi totyra) e que em nossa cultura chamamos de tio paterno,
poderia se casar com a filha do casal porque sendo o “irmão da mãe”, conside-
rando um homem da geração anterior e morador de outra casa, é culturalmente
aceitável. Em outras palavras, o que para nós significa expressões como pais,
tios, avós, sobrinhos, etc. assumem outro significado em outras culturas. Isso
também explica porque o incesto embora seja quase um valor universal de rejei-
ção entre culturas, são praticados em algumas culturas com um hábito aceitável
pela convenção do sistema de parentesco.
Para o estruturalismo, a cultura era apreendida pelo significado dado
aos signos e aos comportamentos, segundo os nativos daquela cultura. Lévi-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos22
-Strauss defendia a ideia de que os mitos dos índios brasileiros estruturavam
seus valores, crenças e o comportamento aceitável. Também percebeu que o
mesmo mito se modificava e era contado de uma forma diferente em outras tri-
 bos indígenas. Por fim, para o estruturalismo, a cultura constitui a linguagem
que identifica os signos e significados e que estruturam o comportamento.
Observe-se, no entanto, que apesar da análise estruturalista ter sido re-
cebida e aplicada em diferentes países, como uma espécie de “telefone sem fio”,
outros autores vão se apropriando das proposituras levistraussianas de modo
que nem sempre corresponde à proposta srcinal. Assim, Lévi-Strauss revela
seu incômodo em entrevista concedida a Didier Eribon (2005, p.105) “[...] A
popularidade que o estruturalismo teve implicava uma série de consequências
deploráveis. O termo foi aviltado, fizeram dele aplicações ilegítimas, às vezes
ridículas até. Não posso fazer nada.”.
Para além dos desdobramentos que uma dada teoria ou determinado
método possa ter, segue o movimento de desenvolvimento da antropologia com
suas idas e vindas, com ganhos e perdas, como é comum ao desenvolvimento
das ciências. Eis que nesse trajeto de conhecimento antropológico, desembar-
caremos novamente nos Estados Unidos (lembre-se que lá estiveram Morgan,Boas e, durante o exílio, Lévi-Strauss), para apresentá-lo a outro ilustre repre-
sentante da antropologia, Clifford James Geertz (1926-2006).
Etnógrafo e intelectual, considerado um dândi literário, Geertz estudou
rituais, mercados jogos e festividades. Segundo Adam Kuper (2002) sua influ-
ência deve ser levada a sério, visto que escreveu sobre uma nova ideia de cultura
– a primeira definição de cultura na antropologia veio de E. Tylor –, aplicou tal
ideia a casos específicos e “deu à abordagem cultural um apelo sedutor, atraindo
a atenção de várias pessoas”(Kuper, 2002, p.104). Kuper (op.cit) afirma também
que através da leitura de seus livros e ensaios podemos “reconstituir a trajetória
da visão antropológica de cultura na segunda metade do século 20”.
 Assim como ocorreu com outros antropólogos, também Geertz vai bus-
car inspiração em outras paragens! Inicialmente inspirado em Max Weber e
Talcott Parsons (década de 1950), ao propor uma antropologia interpretativa
(ou hermenêutica), o dândi literário da antropologia liga seu fazer antropológi-
co à filosofia e à teoria literária (segundo momento da sua trajetória). No início
de 1970, as referências a Weber e Parsons desaparecem do seu texto e foram
substituídas por K. Burke (crítico literário), Suzane Langer (filósofa) e Paul Ri-
 
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coeur (filósofo francês). Dos dois primeiros, aderiu à ideia de que a característi-
ca central que define os seres humanos é a capacidade de exibir um comporta-comporta-
mento simbólicomento simbólico. De Ricouer, extraiu a ideia de que, como as ações humanas
transmitem significados, elas podem e devem ser lidas de forma bastante seme-
lhante aos textos escritos, pois o importante nas ações humanas é o conteúdo
simbólico.
Em A Interpretação das Culturas (1973) estão reunidos ensaios que or-
 bitam em torno da ideia de cultura como sistema simbólico.sistema simbólico. Explica Geertz:
[...] mais estudos empíricos do que indagações teóricas, pois
sinto-me pouco à vontade quando me distancio das ime-
diações da vida social. Mas todos eles preocupam-se, ba-
sicamente, em levar adiante, em cada caso imediato, uma
visão particular, que alguns chamariam peculiar, do que
seja a cultura, do papel que ela desempenha na vida social,
e como deve ser devidamente estudada (Prefácio, p.vii)
Sendo a cultura um sistema simbólico, logo, devem os processos cul-
turais ser lidos, traduzidos e interpretadosinterpretados. Este exercício de interpretação
das culturas constitui a etnografiaetnografia1919,, a descrição densa à qual é reduzida a
antropologia. O teor da perspectiva proposta por Geertz está ilustrada no seu
conceito de cultura, um dos mais famosos, depois daquele proposto por Edward
Tylor, e inspirado em Max Weber:
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de signiicados que ele mesmo teceu, assumo
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do signiicado. É justa-
mente uma explicação que eu procuro, ao construir expres-
sões sociais enigmáticas na sua superície (Geertz, 2008, p.04).
O objetivo da citação acima é apenas explicitar, na medida do possível,
a antropologia geertziana, visto que no capítulo referente ao conceito antropo-
lógico de cultura este conceito semiótico será retomado. Por enquanto, passe-
mos àqueles que sucederam Clifford Geertz na jornada antropológica à qual nosdedicamos.
19 Tema que já foi mencionado aqui anteriormente, mas que será explorado novamente na
seção dedicada ao trabalho de campo na antropologia.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos24
Em 1984, os discípulos de Geertz se reuniram em Santa Fé, Novo Mé-
xico “para matar o pai”, conforme costuma-se dizer. Trata-se de referência a um
seminário da Escola de Investigação Americana de Santa Fé, que foi editado e
tornou-se uma espécie de manifesto da chamada antropologia pós-moderna, o
Writing Culture (1986). Tematizando a escrita do texto antropológico, a auto-
ridade etnográfica e a relação entre pesquisadores e pesquisados, autores como
James Clifford (1945), Georges Marcus, Michel Fischer e Michel Taussig criti-
caram as ideias de Geertz, deslocando o foco da análise antropológica da inter-
pretação das culturas para as representações da cultura que são construídas no
texto antropológico. Nesse sentido, há uma aproximação entre antropologia e
teoria literária, uma preocupação com a escrita dos textos pelos antropólogos,
tanto durante o trabalho de campo quanto depois dele.
Recorramos a um exemplo. Em seus trabalhos, James Clifford procu-
rou questionar a autoridade das interpretações feita pelos próprios antropólo-
gos em suas etnografias, em que muitas vezes desconsideravam os sujeitos da
pesquisa pela presença do observador. Ficou confuso? Pois bem, para essa abor-
dagem, as informações colhidas nas pesquisas etnográficas não consideravam
as relações de dominação e sociais que envolvem pesquisador e pesquisado, re-
forçando o primeiro como autoridade para escrever sobre a cultura estudada.
Para esses autores, por mais que o antropólogo tente se aproximar da realidade
e descrevê-la, sempre vai limitar a uma subjetividade do pesquisador e, portan-
to, carregada de uma abordagem ideológica.
 Aqui finalizamos o nosso “sobrevoo” pelas chamadas “escolas antro-
pológicas”, esperando que o(a) leitor(a) esteja familiarizado(a) com as ideias
gerais propaladas pelas mesmas e a importância de cada uma delas para a con-
figuração da antropologia que praticamos hoje. Em que pese as teorias e méto-
dos defendidos, é a sua atenção à diversidade cultural que a constitui como uma
importante lente para ver o mundo e situar nossas práticas nele, desfazendo-
-nos da miopia que não permitia que se enxergasse nada além dos nossos pró-
prios costumes (as sociedades dos outros) e/ou da hipermetropia que nos cega-
 va quanto à diversidade que nos cerca dentro da nossa própria cultura.
 Agora que apresentamos algumas das reflexões sobre a diversidade
cultural realizadas pelas escolas antropológicas, você deve estar se perguntan-
do: qual a contribuição dessa ciência na atualidade? Em que ela colabora para a
compreensão da realidade em que vivemos? E para a minha formação? Todas,
 
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uma vez que tem como principal objeto de estudo a culturacultura, elemento presente
em nosso cotidiano. Mas, afinal, o que a antropologia considera como cultura?
Qual o efeito dela? Retomemos o fôlego, pois vamos mergulhar em outro capí-
tulo das divagações antropológicas. Pronto para o novo embarque?
1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo1.2 A cultura como lente para enxergar o mundo
 Você tem cultura? Este é o título de um artigo publicado pelo antropó-
logo Roberto DaMatta. Mas é também a pergunta que lançamos a você, caro(a)
leitor(a). Caso precise de algum tempo para elaborar sua resposta, fique à vonta-
de, enquanto abrimos as cortinas para um dos conceitos centrais na antropologia:
culturacultura. Certamente, a interrogação no início deste parágrafo lhe remeteu ao co-
nhecimento adquirido sobre livros, música erudita, artes plásticas etc., que distin-
gue as pessoas cultas daquelas “sem cultura”. Este é um pensamento corriqueiro
no senso comum, ao qual Roberto DaMatta se refere no início do texto supracita-
do. Diferente do sentido quer circula no senso comum, no sentido antropológico,
cultura é um conceito fundamental que permite interpretar a vida em sociedade.
 Assima define DaMatta (1981, p.02): “a maneira de viver total de gru-
po, sociedade, país ou pessoa. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um
mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo
pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas”. Ou seja, a
cultura está sempre mediando as nossas ações, prescrevendo a maneira como de-
 vemos nos comportar em sociedade, balizando nossas atitudes e valores.
Em menção à importância que o conceito de cultura assume para a dis-
ciplina, Adam Kuper (2002) cita Robert Lowie (representante da Antropologia
Cultural Americana). Em 1917, Lowie estabelece uma relação entre as discipli-
nas e os assuntos aos quais elas se dedicam. Deste modo, afirma que, para a
antropologia, a cultura é o assunto. Assim como para a psicologia, o assunto é a
consciência; a vida para a biologia e a eletricidade, um ramo da física (KUPER,
2002, p. 09). Para reforçar a importância do conceito para a nossa disciplina,
podemos também evocar outro antropólogo norte-americano, Clifford Geertz
(1980). Este afirma que os antropólogos sempre estudaram a cultura, “mesmo
quando não sabiam exatamente o que exprimir por este termo” (p. 22). Mas, an-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos26
tes de passar à utilização do conceito no sentido antropológico, vamos ver como
se desenvolveu a palavra e como ela adquiriu o significado que hoje comporta.
 Antes de chegar ao conceito de cultura, a própria palavra – e, lógico,
seus significados – evoluiu, transformou-se. Tal evolução ocorreu através da
língua francesa, durante o Iluminismo e se difundiu para outras línguas, a exem-
plo do inglês e do alemão. Tendo sua srcem no latim, a partir de 1700, ela já
aparece no vocabulário francês, significando cuidado dispensado ao campo ou
ao gado. À medida que o tempo passa, ela vai assumindo outros sentidos, como
cultura de uma faculdade (no sentindo de capacidade, competência), cultivo
das artes ou letras, perdendo gradualmente os seus complementos e passando
a ser utilizada como a “educação do espírito” (CUCHE, 1999). Posteriormente,
chega-se a algo próximo do que os evolucionistas (sociais/culturais) pensaram
como cultura: estado daquele que possui erudição. Por fim, o Dicionário da Aca-
demia Francesa de Letras estigmatiza a palavra ao utilizá-la na assertiva “espí-
rito natural e sem cultura”, explicitando a oposição repetidamente tematizada
pela antropologia em épocas futuras: natureza X cultura.
Já para a perspectiva iluminista, cultura assume o caráter distintivo
da espécie humana, a soma dos saberes agregados e transmitidos pela huma-
nidade ao longo de sua história. Você verá, então, como esta ideia de cultura
está próxima daquela defendido pela antropologia, que se delineia nos moldes
evolucionistas. É durante o Iluminismo, também, que o homem e a razão são
tomados como o objeto de reflexão. Isso facilita a criação de disciplinas como a
 Antropologia e a Sociologia, no século XIX, visto que neste momento se pensa
na unidade do homem, quer dizer, a humanidade é uma só. A antropologia, por
exemplo, vai tomar como questão norteadora como se pode pensar na diver-
sidade (de costumes) diante desta unidade (da espécie humana). Este é o fio
da meada para puxar o conceito de cultura. Vamos juntos desembaraçar este
novelo cultural?
É a partir da busca pela explicação da diversidade de comportamentos,
de costumes (sabendo que a humanidade é uma só) que surge o conceito de cul-
tura, com seu sentido descritivo. Isto é, não havia a preocupação em dizer o que
deveria ser cultura (normatizando), como o faziam os filósofos, mas em descre-
 ver como ela se apresentava nas sociedades humanas. Ressalve-se que, embora
o desenvolvimento da palavra cultura tenha ocorrido no contexto francês, no
sentido antropológico, o primeiro conceito que repercute na disciplina surge na
 
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Inglaterra e o seu autor foi Edward Tylor (1832-1917), em A Ciência da Cultura
(publicado srcinalmente em 1871), texto incluído no livro Cultura Primitiva.
Neste escrito, o autor pretende atestar a cientificidade que sustentava a Antro-
pologia, ao justificar o método comparativo a teoria evolucionista e ao elaborar
o clássico conceito de cultura:
Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido
etnográico, é aquele todo complexo que inclui conhecimen-
to, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras ca-
pacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de
membro da sociedade. Tylor apud (CASTRO, 2005, p. 69).
Embora tenha o mérito de ser a definição que é acolhida pela comu-
nidade antropológica, ela vem marcada pelo berço evolucionista. O que quero
afirmar com isso? Pretendo chamar a sua atenção para o fato de que cultura,
neste caso, é sinônimo de civilização e as únicas sociedades que estavam no
estágio civilizatório eram as sociedades ocidentais, segundo os evolucionistas
(e Tylor, lembre-se, era um deles!). Logo, apenas as sociedades ocidentais eram
possuidoras de cultura. Perceba, então, que o conceito de cultura tyloriano era
hierárquico (visto que apenas a sociedade europeia era civilizada), e só depois
 vai sendo relativizado e pluralizado por outros autores. Por outro lado, além de
propor um conceito descritivo de cultura, Tylor acentua o seu caráter coletivo
ao pensá-la enquanto atributo de indivíduos que vivem em sociedade e a des-
naturaliza ao concebê-la como algo adquirido. Ou seja, cultura não é algocultura não é algo
inato, é algo que se aprendeinato, é algo que se aprende. Deste modo, começamos a enveredar por um
caminho que nos interessa explorar: como a cultura se apresenta tão diversa-
mente. Antes, porém, vamos a quem começa a alargar a perspectiva cultural na
antropologia e a desvendar tal diversidade sob outro prisma.
O responsável por este movimento de relativização e por atribuir plu-
ralidade ao conceito é Franz Boas (1858-1942). Lembra do quadro que compara
as propostas evolucionistas e culturalistas? Dando mais uma olhada, vai ficar
claro o avanço de Boas em relação aos evolucionistas no que diz respeito à cul-
tura. Boas se pronuncia a partir dos Estados Unidos (reitero que ele era alemão,
mas passou a morar naquele país) quando este percebe que todas as sociedades
possuem cultura e que cada uma delas se desenvolve nas suas particularida-
des, independentes umas das outras. Mais: um mesmo evento ou traço cultural
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos28
pode ter srcem diferente e se desenvolver e sentidos também diversos, não
no mesmo sentido (unilinear) como propunham os evolucionistas. Aliás, é nos
Estados Unidos que o conceito de cultura é melhor recepcionado e aprofundado
teoricamente, em parte devido ao fato de ser uma nação pluriétnica, um país de
imigrantes.
Como mencionei acima, Franz Boas problematizou a questão cultural,
reconhecendo que toda sociedade possui cultura e que as particularidades des-
ta devem ser estudadas detalhadamente. Isto lhe rendeu o “título” de “pai do
culturalismo norte-americano”. Se Boas deu o primeiro impulso para a ala-
 vancada dos estudos culturais, foram seus discípulos que se empenharam em
melhor desenvolver este campo de estudo. Deste modo, a partir de 1930, com o
interesse de ressaltar o vínculo entre o indivíduo e sua cultura, como os sujeitos
incorporam e vivem sua cultura,configura-se dentro da antropologia americana
o que se chamou de “Escola Cultura e Personalidade”. Entre os adeptos desta
relação entre personalidade e cultura, havia alguns autores ressaltando a influ-
ência da cultura sobre o indivíduo e outros, dedicando-se a estudar a reação dos
indivíduos à sua cultura, tendo como suporte a Psicologia e a Psicanálise para
se concentrar na questãoda personalidade. São representantes desta perspecti-
 va Ruth Benedict (1887-1948) e Margaret Mead (1901-1978), ambas alunas do
Boas. Assim como estas discípulas do antropólogo alemão, outros também en-
 veredaram por caminhos específicos para estudar a cultura, formando a Escola
Cultura e Ambiente (Julien Steward) e Cultura e Linguagem (Edward Sapir).
 Visto que estamos pensando cultura em solo norte-americano, podemos
trazer à baila novamente outra sistematização para o estudo da cultura, que se
tornou tão clássico quanto a definição proposta por Tylor, pois repercutiu sobre-
maneira na antropologia. Trata-se da definição de cultura proposta pelo norte-
-americano Clifford Geertz (1926-2006), expoente da antropologia interpretativa:
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de signiicados que ele mesmo teceu, assumo
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do signiicado. É justa-
mente uma explicação que eu procuro, ao construir expres-
sões sociais enigmáticas na sua superície. (Geertz, 2008, p.04).
 
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Para Geertz, o que está na superfície, explícito é como se fosse a pon-
ta do iceberg , então, é preciso um mergulho profundo para compreender toda
a engrenagem por trás dos códigos explicitados pelos sujeitos. Ao propor tal
conceito e a ele dedicar uma série de artigos, Geertz pretende reduzi-lo ao que
ele chama de “dimensão justa”, um conceito mais limitado e especializado que
o de Tylor – que para ele muito mais confunde do que esclarece – asseguran-
do a sua utilidade nas análises antropológicas. Está claro como os autores vão
se dedicando ao estudo da cultura e como vão ajustando o conceito à medida
que conhecem mais o universo estudado, trazendo contribuições que alargam
os horizontes antropológicos? Sigamos, então, na exploração deste terreno, não
esquecendo que ele foi revolvido e adubado por estes autores que discutimos até
aqui e continua a ser fertilizado por vários outros.
Muito embora haja esta dedicação ao estudo da cultura e alguns auto-
res se empenhem em conceitua-la, não há um consenso a respeito do mesmo. O
importante é observar a diversidade que as sociedades expressam. Assim sendo,
tendo exposto o desenvolvimento do conceito e explicitando as principais defi-
nições, voltemos às ideias do Roberto DaMatta que apontamos no início des-
te capítulo, quando lançamos a pergunta ao leitor e aqui reiteramos: você tem
cultura? (Segunda chance para amadurecer suas ideias a respeito da cultura!).
Passemos à análise da diferença que a cultura assume para o senso comum e
para a Antropologia.
É recorrente, nos usos do senso comum, relacionar cultura a erudição,
educação, sofisticação, separando as pessoas em grupos conforme o maior nível
de cultura observado. DaMatta (1981) observa que isso acontece também com
o conceito de personalidade. Afirma-se que alguém tem personalidade, levan-
do-nos a entender que outrem não a tem. É chegada a hora de desfazer este
equívoco, inicialmente à luz das ideias do antropólogo supramencionado, já que
iniciamos este capítulo com os exemplos que ele utiliza. Iniciemos esclarecendo
que assim como não existe indivíduos sem personalidade – o que ocorre é que
alguns têm a personalidade mais forte que a de outros – não existe indivíduos
sem cultura. Todos nós, humanos, pertencemos a alguma cultura. Sim, o ho-
mem depende do seu aparato biológico, precisa satisfazer necessidades fisioló-
gicas – alimentação, sono, respiração, atividade sexual – que são comuns a toda
a humanidade. Mas a maneira de atender a estas necessidades é sempre a mes-
ma em todos os lugares, em todas as sociedades humanas? Não! Como vamos
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos30
satisfazê-las varia de uma cultura para outra. Ou seja, há um número limitado
de funções e uma grande variação na maneira de atendê-las. Assim sendo, o ser
humano é predominantemente cultural, como apontou Alfred Kroeber (1876-
1960). Ele observou que através da cultura, o homem se distanciou do mundo
animal e é um ser que superou suas limitações orgânicas, preconizando, pois, a
oposição entre o orgânico (biológico) e o cultural.
É apoiado em Kroeber, que Roque Laraia (1996) ressalta que o homem
faz parte do reino animal, passou por um processo seletivo, sendo capaz de su-
perar diferentes condições climáticas, possuindo um equipamento físico muito
pobre. Ao contrário dos outros animais, seu aparato biológico não passou por
grandes transformações para se adaptar ou superar as diversidades do ambien-
te físico. As modificações que lhe possibilitaram sobreviver a adversidades fo-
ram, sobretudo, externas, foram modificações no ambiente que habita.
Se carecer de um exemplo que torne esta questão das diferenças cultu-
rais mais palatável, podemos voltar àquele histórico encontro dos europeus com
os nativos das américas que mencionamos no tópico anterior. Aquele espanto
que dá espaço ao discurso sobre “o outro” (marcado por adjetivos pejorativos,
inferiorizando aqueles que não cobriam as vergonhas, que não falavam a mes-
ma língua, que não possuíam armas de fogo, etc) foi um espanto causado pelo
choque culturalchoque cultural, pelo encontro de culturas diferentes, a do europeu e a dos
ameríndios. Já neste momento, fica claro que as diferenças culturais existem.
 Apesar das diferenças facilmente identificáveis, são seres pertencentes à mes-
ma espécie, mas a maneira de se colocar no mundo e de interagir com ele, nos
mais diversos aspectos, resulta na diversidade que observamos e, que por vezes,
assusta. Vimos, na seção anterior, como este encontro com a diferença pode ser
marcado negativamente quando a percebemos como ameaça à nossa própria
identidade, fazendo emergir o etnocentrismo. Etnocentrismo este que pode se
desdobrar em violência (e não apenas violência física). Deve-se enfatizar que o
etnocentrismo não foi uma prerrogativa apenas dos europeus, que se depara-
ram com um povo diferente. Esta visão de mundo que percebe a diferença como
ameaça, inferiorizando-a, pode se manifestar aqui mesmo onde eu estou e aí
onde você se encontra. Basta que não tenhamos o cuidado de relativizar, de per-
ceber que o que há diferente é maneira de enxergar o mundo e de atender aos
seus apelos. Dito isto, vamos olhar para a diversidade um pouco mais de perto...
Não é preciso ir tão longe no tempo e/ou no espaço. Já ouvimos repe-
 
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tidamente que o Brasil é o país da diversidade. Esta diversidade pode ser vista
nas diferentes paisagens, na geografia que se modifica de estado para estado, nas
diferenças climáticas, mas é uma diversidade que se manifesta, sobretudo, nos
costumes, nos hábitos de cada região, ao longo de toda a extensão territorial. Não
é difícil fazer uma associação entre alguns estados e seus costumes: a Bahia daaxé
music , do acarajé, dos cultos afro-brasileiros; o Rio Grande do Sul do chimarrão,
do churrasco, do vanerão; Rio de Janeiro, terra do samba, da feijoada, da malan-
dragem etc. Nestes casos, estamos falando de cultura. É a cultura que está sempre
imprimindo sua marca, sempre intermediando as ações, os modos de sentir, pen-
sar e interagir com o nosso entorno e diferenciando cada sociedade.
 Acarajé, prato típico da Bahia
 Vanerão, dança típica do Rio
Grande do Sul
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos32
Esta diversidade apontada nos exemplos acima pode ser ampliada, se
pensarmos nos diferentespaíses e continentes do mapa ou restringida, se pen-
sarmos nos grupos que coexistem em cada uma destas culturas. As diferenças
que fervilham a nossa volta, desde tempos idos, representam a diversidade cul-
tural. É para ela que se voltam os holofotes antropológicos desde os primeiros
tempos da antropologia quando foi preciso estabelecer objeto de estudo, teoria
e método próprios. A ela se dedicaram os antropólogos mesmo sem ter um con-
ceito de cultura estabelecido, sem precisar defini-la.
Como explicar que uma mesma humanidade apresente tantos e tão dis-
tintos comportamentos? Antes de evidenciar a resposta, vamos pensar sobre o
que nãonão determina esta diversidade: o ambiente geográfico e a biologia. As dife-
renças de comportamento entre homens não podem ser explicadas pelas diver-
sidades somatológicas (relativas ao corpo humano) ou mesológicas (relativas ao
meio ambiente), afirma Roque Laraia (1996). Ele aponta para a mobilização que
houve na década de 1950, quando antropólogos e outros especialistas se reuniram
no encontro proporcionado pela UNESCO e redigiram um documento relatando
que dados científicos não confirmavam a teoria de que as diferenças genéticas he-
reditárias constituiriam um fator de importância primordial para explicar a cau-
sa das diferenças entre culturas. Da mesma maneira, antropólogos como Franz
Boas, Alfred Kroeber e Leslie White teceram críticas a geógrafos que propalaram
a ideia de que o ambiente geográfico define a diversidade cultural.
Devemos ter clareza de que fatores biológicos e/ou geográficos podem
influenciarinfluenciar os comportamentos, mas nãodeterminam.determinam. Podemos utilizar os
exemplos dados por Laraia para ilustrar tal afirmação. No que diz respeito ao bio-
lógico, pensemos no dimorfismo sexual. Anatômica e fisiologicamente homens e
mulheres são diferentes. Porém, não são essas diferenças que determinam os seus
comportamentos e sim a educação que lhes é dispensada. Conforme a sociedade
em que vivem, diferentes papeis são atribuídos a homens e mulheres. Há socieda-
des indígenas em que as mulheres não se recolhem após o parto, este papel cabe
ao homem (couvade ); em outras, os homens realizam o trabalho que requer mais
força, restando às mulheres as tarefas relativas aos filhos e à alimentação; alguns
rituais são proibidos às mulheres e outros preferencialmente desempenhados por
elas. Pode ser extensa esta lista com os diferentes papeis sociais desenvolvidos por
homens e mulheres. Reflita um pouco você mesmo sobre as diferenças que per-
cebe sobre os comportamentos relativos a homens e mulheres na sua sociedade!
 
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No que diz respeito ao aspecto geográfico, Laraia lembra dos lapões e
esquimós. Ambos habitam regiões geográficas semelhantes (frias), mas se pro-
 jetam no mundo de maneiras diferenciadas e os tipos de habitações por eles
construídas, assim como a maneira de obter o alimento, são exemplos disso.
Não significa, porém, que a antropologia, ao estudar a cultura, está des-
cartando os dados biológicos ou geográficos, ela só está empenhada em mostrar
que a diversidade de comportamentos não pode ser explicada pelos dados bio-
lógicos, genéticos ou climáticos, topográficos etc., como sugeriam os defensores
dos determinismos biológico e geográfico. Podemos pensar que o biológico im-
pulsiona em algum sentido a cultura, mas não determina os comportamentos,
Iglus,
habitações
típicas dos
esquimós
Exemplo de habitação em
região de frio extremo,
diferente daquelas
construídas por esquimós
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos34
muito menos a diversidade destes. Volto a afirmar, todos nós temos necessida-
des fisiológicas, já que todos somos também um corpo biológico. Porém, o uso
que fazemos deste corpo, a maneira como atendemos a estas necessidades, varia
de sociedade para sociedade. Tomemos como objeto de reflexão umas das nos-
sas necessidades básicas: a alimentação. Precisamos de energia para respirar,
andar, correr, desempenhar nossas atividades cotidianas, e para tanto nos ali-
mentamos. Porém, o que comemos, a que horas, com quem, de que maneira, é a
nossa cultura que vai nos “dizer”. Não nos dedicamos a temperar especialmente
um peru, assá-lo e comê-lo numa segunda-feira, por exemplo. Assim como não
costumamos comer feijão com arroz numa ceia de natal. Para ir além, lembre-se
que os japoneses dispensam talheres (utilizados pelas sociedades ocidentais) e
comem com hashi (e nós aqui fazemos malabarismos para conseguir pinçar al-
gum alimento com as tais varinhas!), que os franceses comem escargot (um tipo
especial de caramujo) e que em algumas culturas as pessoas comem sentadas no
chão, levando a comida à boca com as mãos.
No Marrocos, dispensam-se
talheres ou instrumentos
similares, utilizam as mãos para
levar os alimentos à boca
Comida japonesa e o hashi,
utilizado pelos japoneses para
pegar a comida
 
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 Voltando nossos olhares para a sociedade na qual vivemos (ocidental,
 brasileira) também seremos capazes de perceber a variação cultural através da
alimentação, principalmente no que diz respeito ao que se come e quais os ho-
rários para comer determinados alimentos. Quem já não ouviu alguém no nor-
deste afirmar que “é pesado” comer feijão à noite, enquanto alguém que vem
da região sudeste estranha comer cuscuz com carne de bode no café da manhã?
O que estaria, então, por trás da diversidade cultural já que não é a
 biologia ou a geografia? A esta altura você já sabe a resposta... CULTURA! A
capacidade que o homem possui para se adaptar a diferentes situações, sua ca-ca-
pacidade de aprenderpacidade de aprender, de simbolizar,simbolizar, a plasticidadeplasticidade que lhe é peculiar,
características exclusivas da humanidade e que lhe torna o único ser capaz de
produzir cultura. Você pode nascer na França, ser educado naquela cultura e
ainda assim mudar para outro país e se adaptar a uma nova cultura; aprender
um novo idioma, outras etiquetas, adaptar o paladar a novos sabores etc. Então,
em qualquer parte do mundo, onde houver ser humano, haverá cultura!
Como exemplifica DaMatta (2010), observando uma sociedade de
formigas é possível constatar o seu funcionamento e sua ação modificando o
ambiente. No entanto, não há nada distinguindo um formigueiro de outro, o
ambiente é sempre modificado da mesma maneira. Há uma sociedade, uma co-
letividade, uma totalidade de indivíduos ordenada, há divisão de trabalho, mas
não há cultura. Não há cultura porque não existe uma tradição conscientemente
elaborada que passe de geração a geração, que permita individualizar, tornar
singular uma dada comunidade em relação a outras (DaMatta, op. cit). Para
que haja cultura é preciso que haja tradiçãotradição e para que isto ocorra, é preciso
consciência das regrasregras que vivenciamos. Dito de outra maneira, nós apren-
demos que não podemos nos comportar de determinada forma porque nos foi
ensinado, de acordo com a cultura a qual nós pertencemos, o que é permitido
ou não. Sendo o homem o único a modificar o ambiente de forma consciente,
ele é o único que produz regras que limitam ou indicam o modo de fazê-lo. É
pertinente ressaltar, no entanto, que não são regras que estão enunciadas expli-
citamente em algum livro ou manual. Não há placas listando o que pode ou não
ser feito em cada cultura ou como devemos nos comportar quando comparti-
lhamos de hábitos comuns à nossa sociedade. Nós aprendemos a nossa cultura
no convívio com os nossos semelhantes, reproduzindo o idioma que nossos pais
falam, comendoo que eles nos ensinam a comer, gostando do que eles e aqueles
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos36
que nos cercam nos ensinam a gostar (para além das preferências individuais).
 Assim sendo, você sabe que não lhe é permitido casar com sua mãe ou com sua
irmã, por exemplo. Sabe que não deve ir a um restaurante e pegar a comida com
as mãos (pensando na nossa sociedade, brasileira) ou como se comportar numa
missa e em outros rituais religiosos.
 A partir do que foi exposto acima, fica fácil chegar à conclusão de que a
cultura é característica exclusiva das sociedades humanas, visto que o homem é
o único que possui consciência. Mais que isso, o homem é o único capaz de sim-
 bolizar, de comunicar através da fala. Como único portador desta capacidade,
ele é também o único a poder aprender e transmitir as regras culturais aos seus
descendentes.
 Você pode pensar: um macaco é capaz de executar algumas atividades
tal qual um ser humano! Sim, em alguma medida, sim. Porém, o macaco não
é capaz de se comunicar através da fala, não simboliza, logo, ele não produz
cultura. Vamos a um exemplo! Clifford Geertz (1980) relata que um casal de
primatólogos (como o próprio nome sugere, são especialistas em macacos) em-
preendeu a árdua tarefa de criar um chimpanzé como um irmão adotivo de sua
filha, dispensando a mesma atenção e educação aos dois. Embora tenha apren-
dido várias coisas que não imaginaríamos para um chimpanzé, tais como abrir
latas com abridor, manusear pistola de água etc., o animal não aprendeu a falar.
Neste momento acabaram-se as semelhanças de comportamentos. A menina,
claro, continuou a se desenvolver e a aprender, enquanto o chimpanzé não dei-
xou de ser chimpanzé, apesar da influência e dos cuidados que os humanos lhes
dispensaram. Mais que isso, o chimpanzé não seria capaz de ensinar tudo o que
aprendeu a outros da sua espécie. O que houve no caso do chimpanzé pode ser
chamado de condicionamento, não aprendizado.
 As regras sociais mencionadas pelo Roberto DaMatta, embora caracte-
rizem uma dada cultura, não precisam ser e não são estáticas, pois a cultura éa cultura é
dinâmicadinâmica, permitindo, portanto, que estas regras sejam atualizadas. Somada
à plasticidade que o homem possui, à capacidade de mudança e adaptação, as
regras se reconfiguram conforme as necessidades da sociedade, reelaborando
ao mesmo tempo a própria cultura. Para que fixemos melhor a dinamicidade
da cultura, pensemos nos comportamentos femininos na sociedade ocidental,
 já que cada sociedade define os papéis que serão desempenhados por homens
e mulheres. Durante muito tempo, às mulheres foi interdito o espaço público
 
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como ambiente para desempenhar atividades laborais ou para outros tipos de
atividades que não fossem de interesse da família e do lar. Assim como não
eram bem vistas as mulheres que vestissem determinadas roupas, que fumas-
sem em público ou sentassem em uma mesa de bar desacompanhadas. Alguns
comportamentos continuam não sendo tolerados por indivíduos isoladamente,
mas se olharmos pelo prisma da cultura, há, de fato, uma mudança instaurada.
 As mulheres podem trabalhar e ser remuneradas por este trabalho; as roupas
que vestem já não são as mesmas, podem escolher em que momento terão fi-
lhos (graças ao advento de métodos contraceptivos como a pílula) ou se querem
tê-los e podem, inclusive, escolher com quem casar! E toda esta mudança não
quer dizer que elas deixaram de ser mulheres...
Considerando o que foi até aqui exposto sobre a importância do concei-
to de cultura – a cultura como explicação para a diversidade de comportamen-
tos, suas características, como a antropologia se dedica a conhecer a diversidade
cultural e a importância do referido conceito para que ocorra o desenvolvimento
da própria disciplina –, percebe-se que ela, a cultura, serve não apenas para
aqueles que querem se dedicar à Antropologia. Através da consciência da di-
 versidade cultural, de que todo sistema cultural tem sua própria lógica, apren-
demos (ou deveríamos) a respeitar outros modos de vida. Dedicando-nos a co-
nhecer os códigos culturais operantes na cultura do outro, podemos interagir de
maneira mais tranquila.
 A interação com um universo diferente do nosso é sempre desafiadora.
Perceba como é comum uma certa insegurança durante uma viagem a outra ci-
dade ou país, quando nos afastamos das nossas referências. O afastamento dos
nossos costumes permite que olhemos nós e, sobretudo, para o outro com um
olhar mais brando, pelo menos com maior empenho em enxergar o que há de
diferente e como funcionam mundos distintos. Basta imaginar uma viagem tu-
rística, em como ela desperta a sua curiosidade sobre a música do lugar visitado,
a culinária, os sotaques, os hábitos que caracterizam determinado lugar e seu
povo. Transferir para as nossas relações pessoais ou profissionais esse interesse
pelo “outro” pode ser igualmente interessante e fértil.
Nas páginas seguintes veremos as interfaces da cultura numa mesma
sociedade, como elas nos intimam a exercitar um olhar crítico sobre o diferente,
pois se concretizam em temas nem sempre fáceis de digerir como sexualidade,
gênero e religião. Quantas vezes já não nos encontramos “discutindo” sobre es-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos38
tas questões que se configuram de múltiplas maneiras: o beijo entre um casal
de gays na novela; o ministro que não considera os cultos afro-brasileiros como
religião, a travesti que é agredida no ônibus ou na rua etc. Se não é fácil lidar
com o sabor de uma iguaria com a qual o nosso paladar não está acostumado,
o que dizer de questões que mexem com as emoções e com os valores que nos
foram transmitidos, tradicionalmente pela nossa cultura?
Independente do campo de atuação profissional, estamos sempre su-
 jeitos a lidar com uma cultura diferente da nossa. Porém, se direcionarmos a
questão da diversidade para o âmbito das profissões, saberemos que uma inter-
 venção antropológica pode não só facilitar a comunicação entre dois universos
como também uma possível intervenção. Imagine um nutricionista que precisa
prescrever uma dieta para seu paciente. Ele pode elencar uma série de alimen-
tos proibidos e outros tantos que devem integrar sua refeição. Será que este nu-
tricionista terá o mesmo êxito que aquele que conhece a realidade do paciente,
inclusive o que está ao seu alcance ou não no que diz respeito às práticas alimen-
tares? A substituição dos alimentos que devem ser evitados pode ser indicada de
acordo com as possibilidades culturais do sujeito.
Esta dificuldade de interlocução com culturas diferentes já esteve pre-
sente no interior da própria antropologia quando esta resolveu se dedicar ao es-
tudo do outro e, sobretudo quando passou a olhar para o outro de perto, a partir
do trabalho de campo. Os antropólogos que se dedicaram a tentar explicar as
diferenças, desde os primórdios, não estiveram isentos ao etnocentrismo. Basta
recapitular a perspectiva evolucionista para ilustrar tal afirmação. A tentativa
de explicar a diferenças entre as sociedades além-mar e a sociedade europeia se
 baseou ainda numa perspectiva etnocêntrica, visto que as sociedades encontra-
das foram “admitidas” na humanidade, no entanto, pertencendo a uma forma
inferior da mesma, pois apenas as sociedades europeias estavam no ápice da
escala evolutiva proposta pelos adeptos desta perspectiva. Não se pode esquecer
também que se tratava de uma antropologia de gabinete, logo, boa parte dos
evolucionistas não conhecia os “nativos” face-to-face , só os “conhecia” através
dos relatos de terceiros. Imaginemos como foi o encontro dos antropólogos com
os nativos de “carne e osso”... Afastar o etnocentrismo daAntropologia também
não foi tarefa fácil. A seguir, apresentaremos os primeiros movimentos da An-
tropologia, no sentido de conhecer as sociedades que saem dos discursos de via-
 jantes e se configuram diante dos olhos curiosos dos antropólogos quando estes
 
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passam a explorar novos horizontes, buscando entender o ponto de vista dos
nativos. Antes disso, porém, coloco de novo a questão que iniciou esta seção,
considerando que agora você tem subsídios para respondê-la: você tem cultura?
Tente transmitir esta interrogação a outras pessoas e veja em que medida estas
compreendem a cultura tal como você, a partir de agora...
1.3 A pesquisa antropológica (etnografia): colocar-1.3 A pesquisa antropológica (etnografia): colocar-
se no lugar do “outro”se no lugar do “outro”
Como vimos no primeiro tópico, à medida que a Antropologia se desen-
 volve, alguns “ajustes” vão sendo realizados tanto nas teorias quanto no método
por ela utilizado. O trabalho de campotrabalho de campo etnográfico foi, sem dúvida, um gran-
de avanço dentro da disciplina. Você recorda que os primeiros trabalhos antro-
pológicos foram baseados nos relatos de terceiros (comerciantes, missionários,
 viajantes etc.) e as críticas que foram direcionadas aos evolucionistas ,entre ou-
tras coisas, pela fragilidade dos dados com os quais trabalhavam? Pois bem, esta
ausência de dados confiáveis vai ser abolida no momento que os antropólogos,
por um ou outro motivo, vão ao encontro dos nativos, coletando dados in loco ,
sem intermediários (exceto nas ocasiões em que são necessários os intérpretes
para traduzir o idioma não conhecido e para apresentar o pesquisador aos na-
tivos). Fica evidente que este tipo de pesquisa se diferencia daquela praticada
pelos evolucionistas, por exemplo, que ficou conhecida como “antropologia de
gabinete”. Coube ao funcionalista Bronislaw Malinowski (1884-1942) o papel de
“pai do trabalho de campo antropológico”, embora Franz Boas (1858-1942) já
tivesse experimentado estar diante de outra cultura, movido pelo interesse nos
esquimós e Morgan, atraído desde jovem pelos costumes iroqueses tenha ido
 visitá-los. É preciso que alguns pontos sejam esclarecidos, então. Pronto para
mais uma imersão nas águas da antropologia?
É verdade que Boas foi a campo, esteve entre os nativos, mas há di-
ferenças entre esta sua incursão na sociedade esquimó e o trabalho elaborado
por Malinowski. O primeiro estava preocupado em fazer uma coleta de dados
direta, mas não havia uma preocupação com o método. Seu interesse inicial era
obter informações sobre a distribuição e a mobilidade dos esquimós, sobre suas
migrações (lembre-se da sua formação na geografia). Tanto que como resulta-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos40
do desta pesquisa foram divulgados inicialmente os dados geográficos e apenas
três anos depois os dados considerados etnográficos.
Como coloca Celso Castro (2010, p.10): “Boas parece ter permanecido
entre os esquimós muito mais como um observador do que como um pesqui-
sador participante, no sentido que essa expressão assumiria na antropologia
pós-Malinowski”. De acordo com Castro (op.cit.), o principal papel de Boas na
antropologia cultural americana não foi como formalizador de teoria, mas o pa-
pel de crítico das teorias vigentes, como o evolucionismo e o racismo. Embora
Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) tenha sido publicado anos depois
da ida de Boas a campo, a perspectiva antropológica e o cuidado na coleta de da-
dos são as principais diferenças que colocam Malinowski como “pai do trabalho
etnográfico”, ainda que cronologicamente venha depois de Boas. Malinowski
tornou célebre o método de pesquisa cuja principal característica era a imersão
total na cultura do “outro” e cujo sucesso dependia da capacidade do antropólo-
go de “vestir a pele de outrém”, pensar e agir como o faziam os “selvagens”, ca-
racterizando o que mais tarde Clifford Geertz denominaria antropólogo semica-
maleão, “um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo”
(GEERTZ, 2009, p.85). Para o referido autor, a publicação do diário de campo
do próprio Malinowski teria jogado por terra esta imagem do antropólogo tão
 bem situado e adaptado à cultura nativa.
No momento em que Malinowski, com o seu olhar funcionalista per-
cebe que, para entender a cultura do outro é necessário conhecê-lo de perto,
inaugura um novo e importante tempo para a Antropologia. Além do “rompi-
mento” com a história – lembre-se de que a análise funcionalista se atém ao
momento presente, sem se preocupar com o passado ou o futuro da sociedade
estudada, ou seja, defendia uma perspectiva sincrônica – Malinowski instaura
um método que será característico da Antropologia, a observação partici-observação partici-
pantepante. Segundo o referido autor, para entender a cultura do outro é necessário
que você viva tal qual os nativos da sociedade estudada vivem, experimentando
todos os aspectos da sua cultura, colocando-se no lugar do outro. Assim, inicia
a sua clássica etnografia:
Imagine o leitor, que de repente desembarca sozinho numa
praia tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu
material, enquanto a lancha ou a pequena baleeira que o trou-
xe navega até desaparecer de vista. Uma vez que se instalou
 
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na vizinhança de um homem branco, comerciante ou missio-
nário, não tem nada a fazer senão começar imediatamente
o seu trabalho etnográico [...]. (MALINOWSKI, 1976, p.19)
 Você consegue se imaginar como proposto pelo Malinowski? Consegue
imaginar uma situação de isolamento numa comunidade diferente da sua cultura
de srcem, preparando-se para viver a cultura do outro com o qual tem contato pela
primeira vez? Talvez seja importante este exercício para dimensionar a importância
do que sugere o autor referido para a Antropologia e também para refletir sobre
como é estar no lugar do outro, mesmo que o outro seja alguém que mora no seu
 bairro, mas lhe parece exótico. Pois bem, continuemos com a nossa jornada...
Quando desembarca nas Ilhas Trobriand (Nova Guiné), e relata o afas-
tamento do barco que o levou até lá, ele se refere também ao afastamento da sua
cultura, à entrega a um novo modo de vida. Esta não foi uma tarefa fácil (que
o diga o diário de campodiário de campo20 publicado postumamente pela sua viúva!), pois
não se consegue se desvencilhar de todos os seus gostos, costumes, de toda a
sua cultura e assimilar a cultura do outro, como num passe de mágica. Lembra
Geertz (2009, p.86) que Malinowski dizia “coisas bastante desagradáveis sobre
os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente desagradáveis para ex-
pressar esses comentários”. Para tornar esta experiência mais próxima de você,
imagine-se viajando para outro país, a França, por exemplo. Apesar do glamour
que caracteriza a “cidade luz”, ao chegar lá, além do impacto visual e do clima
diferente (especialmente se for inverno), o segundo estranhamento diz respei-
to ao idioma. É preciso algum tempo para familiarizar os ouvidos e eliminar o
sotaque até compreender e ser compreendido através de uma língua que não é
a sua. No entanto, aprender a língua ainda não é suficiente para viver como os
franceses, pois a cultura vai além do idioma. Os hábitos alimentares, o que pode
ser dito em público, como dizer, as saudações etc. Todo este universo contribui
para o “espanto” diante de uma cultura diferente. O que dizer, então, do contato
de Malinowski com os nativos trobriandeses?
20 Durante o período em que está imerso em suaspesquisas, além de tomar notas dos
aspectos que julga importante para compreender a sociedade do outro, o antropólogo seutiliza de um “diário de campo” no qual pode descrever sua experiência pessoal durante o
período de trabalho de campo. Após a morte de Malinowski sua esposa tornou públicas as
anotações do antropólogo (Um Diário no Sentido Estrito do Termo ; Editora Record, 1997),
causando grande celeuma por expor suas angústias, o desconforto diante dos nativos e
suas impressões “menos nobres”, digamos assim.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos42
Em que pesem as dificuldades do pesquisador tão bem reveladas em
seu diário, o resultado do que foi produzido pavimentou um novo caminho para
a Antropologia. Afirma Eunice Durham que Malinowski alterou radicalmente a
prática etnográfica
[...] passando a viver afastado do convívio de outros homens
brancos e aprendendo a língua nativa, tarefa para a qual, aliás, era
extremamente dotado. Desse modo, embora não dispensando o
uso de informantes, substitui-o em grande parte pela observaçãodireta, que só é possível através da convivência diária, da capaci-
dade de entender o que está sendo dito e de participar das con-
versas e acontecimentos da vida da aldeia. (DURHAM, 1976, XIII)
 
Devemos lembrar que até então a prática antropológica se baseava em
dados secundários, sem que houvesse envolvimento com os sujeitos investiga-
dos ou sistematização de um método que permitisse atingir os objetos iniciais
da pesquisa de forma mais acurada. O outro estava tão distante culturalmente
quanto geograficamente e os tipos de pesquisas realizadas não possibilitavam
uma aproximação mais detalhada e precisa. Ao apontar para a importância da
observação participante, Malinowski a toma como imprescindível para a com-
preensão das sociedades estudadas. Ele entende que os tipos de pesquisas re-
alizadas até então – exemplifica com pesquisas quantitativas – fornecem uma
espécie de “esqueleto” da sociedade investigada. Tal esqueleto precisa de “carne
e sangue” a fim de que se obtenha uma percepção adequada da realidade e isto
 viria da observação participante, que possibilita o testemunho de fatos cotidia-
nos e representativos da sociedade ou grupo em questão. Não esquecendo que
estamos falando de uma abordagem funcionalista, ele critica as pesquisas de
outrora que apenas descreviam traços culturais. Para Malinowski, não importa
constatar a existência de determinado evento, fenômeno ou traço cultural, é
preciso saber a função que desempenha para a sociedade na qual ele se encon-
tra, daí a importância da observação participante.
 A proposta de observação participante do Malinowski, tem a ver com
o que ele denomina “magia do etnógrafo”, que consiste em seguir as regras do
 bom senso somada aos princípios científicos. Assim poderíamos resumir o queo autor propõe na realização do trabalho de campo como princípios metodoló-
gicos a seguir: 1.1. Estabelecer objetivos; 2.2. Ter boas condições de trabalho (viver
entre os “nativos” sem depender dos brancos); 3.3. Utilizar métodos especiais de
 
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coleta, manipulação e registro de evidências. Ressalte-se, no entanto, que o fato
de estabelecer objetivos não significa que ele não possa mudar de ponto de vista
ou incluir algo que não estava programado no início da pesquisa. Assim como ir
ao campo inspirado por resultados de estudos científicos não equivale a ir fazer
pesquisa sobrecarregado por ideias pré-concebidas. Afinal, diz o “pai do traba-
lho de campo” que devemos moldar as teorias aos fatos, questionando se eles
são relevantes ou não para a sua teoria. Logo, o etnógrafo é um caçador ativo e
atento dos fatos etnográficos!
Como havíamos adiantado em outros momentos do texto, o movimen-
to de constituição da Antropologia, de suas teorias e seus métodos é feito por
ganhos e perdas, por avanços, retrocessos, propostas e contestações. Este mo-
 vimento não se dá de forma linear e bem arranjado, porém tentamos “arrumar”
a casa para que o leitor possa ser bem recebido. Sendo assim, passemos àquele
que vai ser um dos principais críticos ao tipo de trabalho de campo sustentado
por Bronislaw Malinowski. Já havíamos assinalado nas linhas anteriores que
Clifford Geertz não concorda totalmente com o que propõe o polonês funcio-
nalista, não acredita que é possível perceber o mundo como o nativo o percebe,
ainda que viva como ele. Geertz reconhece que traduzir para o leitor o que se
passa na cultura do outro é algo realmente desafiador, mas uma tarefa
[...] um pouco menos misteriosa que se colocar ‘embaixo da pele
do outro’. O truque é não se deixar envolver por nenhum tipo
de empatia espiritual interna com seus informantes. Como qual-
quer um de nós, eles também preferem considerar suas almas
como suas, e, de qualquer maneira, não vão estar muito interes-
sados nesse tipo de exercício. O que é importante é descobrir
que diabos eles acham que estão fazendo. (GEERTZ, 2009, p. 88)
 As criticas de Geertz são dirigidas principalmente a esta impossibilida-
de de se colocar inteiramente no lugar do nativo, de viver e pensar como eles,
pois o antropólogo, segundo afirma o próprio Geertz (Op. Cit.), não é capaz de
perceber o que seus informantes percebem. Ao mesmo tempo em que tece as
críticas ao modelo malinowskiano de fazer pesquisa, ele propõe uma nova ma-
neira de trabalho etnográfico. Lembra que o Geertz defendeu uma antropologiainterpretativa? Nesta perspectiva a cultura deve ser lida e interpretada como
um texto de segunda mão, pois o acesso ao texto srcinal só os nativos possuem.
Sendo assim, cabe ao antropólogo interpretarinterpretar os fatos que observa na cultura
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos44
alheia. Vejamos um exemplo utilizado pelo do próprio Geertz (inspirado em
Gilbert Ryle), a diferença entre o ato de piscar como algo involuntário (tique
nervoso) e uma piscadela (ato conspiratório, pensado):
[...] a diferença entre um tique nervoso e uma piscade-
la é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade
de ver o primeiro tomado pela segunda. O piscador está se
comunicando e, de fato, comunicando de uma forma pre-
cisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em par-ticular, (3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de
acordo com um código socialmente estabelecido e (5) sem o
conhecimento dos demais companheiros. (GEERTZ, 1989, p. 5)
O autor supracitado chama a atenção para o fato de que no segundo
caso trata-se de algo pensado, a pálpebra é contraída de propósito, transmitindo
um código, logo há um sinal de cultura, há algo que deve ser “decifrado”. Conse-
gue compreender a distinção?
 A preocupação em estabelecer um aparato teórico-metodológico pró-
prio para a Antropologia já se delineia quando a mesma estabelece um objeto de
estudo que tem como essência o estudo do homem “primitivo”, ou “selvagem”,
ou “primevo”, conforme anuncia Kuper (1978). Também François Laplanti-
ne (2004, p.13) caracteriza o conhecimento antropológico emergindo com “aobservação rigorosa, por impregnação lenta e contínua, de grupos humanos
minúsculos com os quais mantemos uma relação pessoal”. Porém, o olhar an-
tropológico acaba indo além destes tipos de sociedade, projetando o fazer etno-
gráfico em diferentes direções.
Se nos seus primórdios, os olhos da Antropologia estiveram voltados
para os costumes “exóticos”, para as sociedades distantes de “nós” geográfica
e culturalmente, chega um determinado momento em que a nossa própria so-
ciedade torna-se objeto de estudo. Neste momento, já que não há o distancia-
mento geográfico e os antropólogos estão analisando a própria cultura, existem
também desafios. Já afirmava Roberto DaMatta (1978) que “fazer antropologia
é transformaro exótico em familiar e o familiar em exótico”. Vimos quão árduo
foi o processo de construção do pensamento antropológico e o desafio de des- bravar culturas até então desconhecidas, as chamadas “sociedades primitivas”
e transformar todas aquelas diferenças encontradas em algo familiar, compre-
ensível. Quando direcionamos um olhar antropológico para a nossa sociedade,
não é um processo menos desafiador e problemático. Transformar o familiar
 
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em exótico requer alguns cuidados e artifícios também. Já não há um idioma a
aprender (embora existam expressões ou gírias características de determinados
grupos que precisam ser “traduzidas”), por exemplo, mas um distanciamento
que permita encarar hábitos tão próximos de nós como passíveis de serem estu-
dados, descobrir no meio do nosso universo cultural questões que podem e de-
 vem ser pensadas antropologicamente, tornam-se também obstáculos a serem
superados.
Qualquer que seja o grupo ou sociedade estudada, o antropólogo que
pretende construir um trabalho etnográfico deve estar sempre com os senti-
dos treinados, especialmente, dois deles: visão e audição. Retomo Laplantine
(2004, p.15) para enfatizar a experiência etnográfica como “atividade percepti-
 va baseada no despertar do olhar, na surpresa provocada pela visão, buscando
observar atentamente tudo que encontramos, até mesmo os comportamentos
que parecem insignificantes (anódinos)”. Este tipo de observação (etnográfica)
deve incluir as expressões corporais, os hábitos alimentares, os silêncios, enfim,
todos os detalhes que pareceriam desnecessários ao observador não iniciado na
antropologia. Nesse sentido, o referido autor estabelece uma importante distin-
ção entre ver e olhar. No primeiro caso, podemos falar de recepção de imagem
através de um contato imediato. No caso da percepção etnográfica, há um olhar
questionador buscando significados, o que leva Laplantine (2014, p.18) a afir-
mar que etnografia é mais olhar que visão, “é a capacidade de olhar bem e olhar
tudo, distinguindo e discernindo o que se encontra mobilizado”.
Perceba que além da diferença entre ver e olhar, há que se ter consci-
ência de que o olhar do pesquisador que vai a campo na Antropologia é treina-
do pela sua imersão na disciplina, pelo corpo teórico que ele utiliza, de acordo
com sua formação acadêmica. Porém, apenas o olhar não é suficiente para com-
preender uma determinada realidade e construir um trabalho antropológico
consistente. Roberto Cardoso de Oliveira (1988) afirma que a domesticação do
olhar para a pesquisa de campo deve se somar o “ouvir”, também condicionado
pela teoria antropológica. Segundo Cardoso de Oliveira (op. cit.), olhar e ouvir
são como muletas utilizadas pelo pesquisador para que ele possa caminhar na
estrada do conhecimento. Para compreender outros aspectos não captáveis pelo
olhar, devemos ouvir o que os “nativos” têm para nos dizer, temos que ouvir o
sentido que eles atribuem a tudo que compõe seu universo, estabelecendo um
diálogo com ele. Este diálogo inclui as conversas informais, as entrevistas (gra-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos46
 vadas ou não) e/ou questionários. Assim procedendo estamos preenchendo o
tal esqueleto malinowskiano com carne e sangue! Mas ele só terá vida quando
passarmos para a “terceira etapa” do trabalho etnográfico: escrever.
No momento da escrita estaremos articulando os dados (obtidos pelo
“olhar” e pelo “ouvir”) com o arsenal teórico que vai direcionar a construção do
texto, assim como influenciou a coleta dos dados. Está claro, então, que a descri-
ção etnográfica é marcada, desde o início, pelo contexto no qual ela é construída
e pelo posicionamento do antropólogo (sob o ponto de vista teórico e pelo lugar
que ele ocupa na sua sociedade e na sociedade do outro). Ao escrever uma etno-
grafia estamos ordenando, classificando, tentando explicar uma determinada
realidade observada. Trata-se de uma descrição na qual o pesquisador está colo-
cando suas impressões, controlando informações, ordenando-as conforme sua
percepção e seus objetivos. Deste modo, Laplantine (2004) adverte que é uma
ilusão achar que aquilo que colocamos no papel é uma cópia fiel da realidade,
pois, como acabamos de afirmar, há um ponto de vista ali implicado (e não é só
o ponto de vista do “nativo”), uma escolha, uma perspectiva que se apresenta
entre tantas possíveis. O que temos, em suma, é a representação da realidade
estudada.
Tendo definido as preocupações que cercam a execução de um trabalho
de campo, no sentido antropológico, e como este vai assumindo características
que lhe são peculiares, através da contribuição de diferentes autores, e ainda
as fases de realização do mesmo, gostaria de chamar a atenção para um aspec-
to fundamental para o êxito deste tipo de empreitada: a aceitação (ou não) do
antropólogo na sociedade que pretende estudar. Não havendo empatia entre o
pesquisador e os pesquisados outras duas possibilidades de reação são igual-
mente problemáticas, visto que impossibilitam o desempenho da pesquisa: a in-
diferença ou a rejeição. Como exemplo do primeiro caso, utilizarei a experiência
de Clifford Geertz e Hildred (sua esposa e também antropóloga) na investigação
sobre a briga de galos em Bali. Nada traduz melhor tal experiência que as pró-
prias palavras do autor:
Em princípios de abril de 1958, minha mulher e eu chega-mos a uma aldeia balinesa, atacados de malária e muito aba-
lados, e nessa aldeia pretendíamos estudar como antropólo-
gos. Um lugar pequeno, com cerca de quinhentos habitantes
e relativamente afastado, a aldeia constituía seu próprio
mundo. Nós éramos invasores, proissionais é verdade, mas
 
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os aldeões nos trataram como parece que só os balineses tra-
tam as pessoas que não fazem parte de sua vida e que, no en-
tanto, os assediam: como se nós não estivéssemos lá. Para
eles, e até certo ponto para nós mesmos, éramos não-pes-
soas, espectros, criaturas invisíveis. (GEERTZ, 1989, p. 278)
Diferentemente do que experimentara em outros lugares da Indonésia
e no Marrocos, o antropólogo não foi o centro das atenções! A invisibilidade, a
falta de interação impossibilita o acesso ao mundo do outro de maneira satis-
fatória, impossibilita o “ouvir” e, sobretudo, a participação na sua cultura. Na
impossibilidade de mudar de objeto de estudo (lembrando que antes de ir a
campo há todo um investimento na elaboração de um projeto de pesquisa), cabe
ao antropólogo reverter esta falta de inserção no campo de alguma maneira.
No caso do Geertz, acima relatado, a aceitação ocorreu por uma confluência de
acaso e perspicácia. Enquanto assistiam a uma briga de galos, assim como boa
parte dos aldeões em Bali, chegou um caminhão da polícia e instaurou-se uma
correria para a fuga. Geertz e sua esposa se envolveram no tumulto e
Na metade do caminho, mais ou menos, outro fugitivo en-
trou subitamente num galpão — seu próprio, soubemos de-
pois — e nós, nada vendo à nossa frente, a não ser campos
de arroz, um campo aberto e um vulcão muito alto, seguimo--lo. Quando nós três chegamos ao pátio interno, sua mu-
lher, que provavelmente já estava a par desses acontecimen-
tos, apareceu com uma mesinha, uma toalha de mesa, três
cadeiras e três chávenas de chá, e todos nós, sem qualquer
comunicação explícita, nos sentamos, começamos a beber
o chá e procuramos recompor-nos. (GEERTZ, 1989, p. 281).
Quando um policial chegou para abordá-los, o nativo saiu em defesa
do casal, explicando detalhadamente não só quem eram os dois, mas deonde
 vinham e o que ali faziam. Após tal evento, o casal não só deixou a invisibilidade
como passou a centro das atenções para os balineses, já que havia decidido fugir
 junto com eles quando poderiam se explicar à polícia sem grandes problemas.
Não preciso dizer que a partir de então o trabalho foi desenvolvido sem a ame-
aça da indiferença.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos48
Nos casos em que impera a antipatia – não a empatia ou apatia – por
parte dos sujeitos investigados, tem-se também uma situação complicada e difí-
cil de reverter, cabendo ao pesquisador encontrar interstícios através dos quais
possa ter acesso ao mundo do outro. A falta de colaboração por parte dos sujei-
tos investigados é algo que traz muitas dores de cabeça aos antropólogos, como
experimentou Geertz em Bali e Evans-Pritchard entre os Nuer . Neste último
caso, o autor manifesta as dificuldades enfrentadas durante sua estada no seio
daquele povo. Ele relata que chegou a um momento da convivência entre os
nativos em que os recebia em sua barraca, compartilhava do tabaco (fumando
Nativo de Bali exibindo o galo
antes da briga
Briga de
galos em Bali
 
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 juntos), havia brincadeiras, conversas informais. Por outro lado, não era recebi-
do nos abrigos deles e nem conseguia obter informações sobre assuntos sérios.
Representativo da não contribuição do nativo é a tentativa de diálogo entre ele
e Cuol, quando a cada pergunta feita pelo antropólogo, a resposta é outra per-
gunta, impossibilitando o acesso à informação desejada e finalizando o ensaio
de conversa com um pedido de tabaco.
Longe das “sociedades simples” e dentro da nossa, também experien-
ciamos percalços, especialmente se estamos lidando com grupos que não são
 bem vistos pelos demais indivíduos de dada sociedade – os chamados outsiders
ou desviantes –, a exemplo das prostitutas, dos michês, dos adeptos de jogos,
dos gays e lésbicas. Geralmente a intermediação de alguém que seja bem vindo
ao grupo estudado facilita muito a inserção no “campo”, mas não garante a eli-
minação da tensão que permeia o trabalho, considerando que é preciso romper
ou atenuar a possibilidade de ser visto como uma ameaça ou como alguém que
pode trazer problemas. Quero dizer que algumas vezes podemos ser vistos com
desconfiança e isto pode minar o trabalho do antropólogo.
Quando estivemos demonstrando como o antropólogo atua na inves-
tigação da cultura do outro, tínhamos como objetivo não apenas mostrar que
ele não age como um curioso do senso comum interessado em conhecer outro
universo para classificar ou mesmo julgar o outro. Somado ao método e à teoria
que o subsidia para ir fazer o seu trabalho de campo, o antropólogo leva também
as premissas que estão contidas no código de éticacódigo de ética21. Mais que isso, ele vai a
campo com o interesse de mostrar a importância de “olhar” e “ouvir” a cultura
do outro, esteja ele num país do outro lado do oceano ou no bairro vizinho ao
nosso, já que no momento atual a antropologia não precisa necessariamente
de um deslocamento geográfico para encontrar as diferenças. Elas estão o tem-
po todo em nossa volta incitando as nossas reflexões: as famílias homoparen-
tais, os rituais ou grupos religiosos, as festas populares, os skatistas, são alguns
exemplos do que pode ser construído antropologicamente como objeto de estu-
do. Eventos recentes como os “rolezinhos” ou práticas discriminatórias que têm
como pressuposto o conceito de “raça” são exemplos de fenômenos sobre os
quais os antropólogos podem se debruçar de modo a produzir um conhecimen-
to qualitativo e favorecer as possíveis intervenções quando for o caso.
21 No Brasil seguimos o código de ética proposto pelas Associação Brasileira de Antropo-
logia (ABA). Disponível em: <http://www.abant.org.br/?code=3.1>
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos50
Evoco François Laplantine (2004, p.14) para lembrar o que de algum
modo vínhamos indicando desde as primeiras páginas deste livro: “O conhe-
cimento antropológico da nossa cultura passa obrigatoriamente pelo conheci-
mento das outras culturas e nos conduz especialmente a reconhecer que somos
uma cultura possível entre tantas, mas não a única”. Deste modo a antropologia,
assim como a sociologia, pode facilitar o entendimento do contexto onde atuam
os diferentes profissionais. A intervenção de qualquer conhecimento nos modos
de agir e pensar dos indivíduos devem levar em consideração o contexto cultural
dos sujeitos, de maneira a ter um acesso efetivo ao seu universo e intervir de
maneira eficiente. Assim sendo, todo o esforço antropológico tem valido a pena
ao apontar para estas possibilidades todo o tempo, ainda que nos primórdios
tenhamos caminhado um tanto tropegamente.
Se você conseguiu chegar até aqui mesmo após navegar por águas nun-
ca dantes navegadas, nós o felicitamos. Mas também não poderia deixar de lan-
çar mais algumas questões: você percebeu que nos altos e baixos da maré, no
 balanço deste mar antropológico, o trabalho de campo nos aproxima do outro
nos permitindo enxergar as diferenças sob um ângulo que possibilita o enrique-
cimento do fazer antropológico? Percebe em que medida a etnografia contribui
para o entendimento da realidade humana e a contribuição dos principais au-
tores para os ajustes necessários à prática da observação participante? Mesmo
quando os antropólogos se voltam para sua própria sociedade é a etnografia que
fornece os meios necessários para a compreensão dos diversos modos de vida.
Como afirma Oscar Saez (2013, p.42-43):
A etnograia é uma operação mais complexa, muito mais com-
plexa, que na sua observação participante, nas suas entrevistas
ou no diálogo entre o antropólogo e o nativo leva embutidas
as teorias, as hipóteses, as interpretações. Todo (sic) que há de
mais essencial na Antropologia está no momento da pesquisa
etnográica, e não espera a se manifestar até o momento em que
o antropólogo se esconda a analisar suas notas e seus diários.
Espero, então, que tenha ficado evidente o quanto a antropologia ga-
nhou ao se colocar próximo ao outro ou no lugar do outro, através da prática et-
nográfica e apesar das críticas dirigidas a ela. Não gostaria de tentar etnografar
algo que chama a tua atenção? Que tal o exercício?
 
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1.4 1.4 Contribuições Contribuições da da Antropologia Antropologia no no BrasilBrasil
 Até aqui abrimos juntos várias portas do interior da Antropologia e
conseguimos espreitar como ela se construiu e como se sustenta a partir das
contribuições de países como Inglaterra e Estados Unidos. Que tal conhecer
agora como a Antropologia se pinta de verde e amarelo? Vamos saber como a
 Antropologia aporta em terras brasileiras e como é tomada para analisar uma
realidade com sotaque peculiar desde a sua formação? O “Brasil lindo e triguei-
ro” do João Gilberto, além de samba e pandeiro também tem Antropologia! A
esta altura você já é quase um antropólogo, tão familiarizado que deve estar com
as propostas antropológicas. Retomemos o fôlego e a caminhada....
Roberto Cardoso de Oliveira (1984) estabelece uma gênese da chamada
 Antropologia Brasileira, marcada pela definição de seu objeto de estudo que eram
os negros, os índios e os brancos, por duas tradições que se estabelecem tanto
na academia quanto no mundo profissional que lhe é exterior: Etnologia Indí-
gena e Antropologia da Sociedade Nacional. Como todo começo é sempre difícil
e um trançar de pernas que dificulta a caminhada, Cardoso de Oliveira se refere
ao períodoinicial da Antropologia no Brasil, entre as décadas de 1920 a 1930,
como sendo o “período heroico”, um período em que tanto a profissão quanto
o campo antropológico não estavam institucionalizados nestas terras. Tal perío-
do tem como desbravadores desta seara Curt Nimuendajú (Etnologia indígena)
e Gilberto Freyre (Antropologia da Sociedade Nacional). O primeiro viveu entre
1883 e 1945 e se chamava, na verdade, Kurt Unkel22. Alemão de srcem, tem uma
trajetória incomum se comparado aos que transitam e fazem a Antropologia, vis-
to que não tinha formação acadêmica, não era professor em nenhuma instituição
e não se filiava a nenhuma tradição teórica. Apesar dessas características, se so-
 bressaia na Antropologia pelos diversos trabalhos de campo realizados e por focar
seus estudos, justamente nas características mais marcantes das sociedades indí-
genas (MELATTI, 1985). Gilberto Freyre, por sua vez, já é seu conhecido, e sua
contribuição para uma Antropologia Brasileira está explicitada em "Casa Grande
& Senzala" (já aqui mencionado) e "Sobrados e Mocambos".
22 Tornou-se Nimuendajú (aquele que faz a sua própria casa) após um ritual de batismo
realizado pelos índios Apapokuva-Guarani. Daí abrasileirou o Kurt srcinal e passou a as-
sinar como Curt Nimuendajú-Unkel.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos52
 A segunda fase da Antropologia no Brasil delimitada por Cardoso de
Oliveira (1984) ocorre entre as décadas de 1940 e 1950, configurando o que ele
chama de período carismático e elege como expoentes Florestan Fernandes e
Darcy Ribeiro, autores fundamentais para a consolidação do campo antropo-
lógico no Brasil. O terceiro período, burocrático, inicia-se em meados dos anos
1960 e vai até a década de 1980, tendo como marco para a expansão dos estudos
antropológicos no Brasil, a implementação dos primeiros cursos de mestrado
em Antropologia.
Nestas décadas em que a Antropologia se firma no Brasil estabelecendo
relações, digamos, de parentesco com a Antropologia feita em outros países, acaba
assumindo características próprias porque o próprio contexto exige, devido aos ob-
 jetos de estudo aqui delimitados e às tradições teóricas às quais se filiam os antro-
pólogos em formação. Sim, os autores mencionados por Cardoso de Oliveira supra-
mencionados são responsáveis por solidificar o campo de atuação dos antropólogos
e formam suas linhagens, se assim posso colocar. Mas aqui gostaria de dedicar o
espaço a três antropólogos, que através de sua obra, permitem o acesso à Antropo-
logia do Brasil. Seja bem vindo à Antropologia em verde e amarelo!
 Agora que conhecemos um pouco da trajetória percorrida pela Antro-
pologia para o estudo da diversidade cultural, alguns de seus principais con-
ceitos e a contribuição metodológica dessa ciência que estimula a mudança do
olhar, as diferentes culturas, vamos conhecer algumas interpretações sobre a
sociedade brasileira, através de três pensadores: Gilberto Freyre, Sérgio Buar-
que de Holanda e Roberto DaMatta. Cabe, entretanto esclarecer que a escolha
por esses pensadores foi arbitrária dentre tantos antropólogosantropólogos que prestaram
seu esforço para pensar a cultura brasileira.
Embora a teoria de Gilberto Freyre tenha, por muitas vezes, sido consi-
derada conservadora, por explorar as relações de harmonia entre índios, escra-
 vos e colonizadores, não podemos negar a grande contribuição de ruptura com
as interpretações anteriores de Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira
 Viana que foram influenciados pela noção de superioridade/inferioridade do
pensamento positivista. Freyre se dedicou principalmente em descrever a con-
tribuição que cada etnia ofereceu na composição do povo brasileiro.
Casa Grande e Senzala foi publicado pela primeira vez em 1933 e faz
parte da trilogia que, juntamente com “Sobrados e Mocambos (1936) e “Ordem e
Progresso” (1958), buscam descrever a formação da sociedade brasileira, a partir
 
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das relações subjetivas e do cotidiano. Para Freyre, a abolição da escravatura e a
proclamação da República pouco teria mudado a respeito do modelo agrário e pa-
triarcal. O escravo tinha sido substituído pelo boia-fria, a senzala pelo mocambo
e o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista que surgira.
Para compreender a relação entre o poder a as relações privadas esta-
 belece uma relação entre os espaços da casa grande, modelo patriarcal que no
período colonial exerce forte poder, e a senzala, lugar da reclusão dos negros
escravizados, mas ao mesmo tempo em que se reestruturam traços culturais
como religiosidade e hábitos alimentares, reinventados pela diversidade cultu-
ral africana e das possibilidades limitadas.
Gilberto Freyre foi buscar nos diários dos senhores de engenho e na
 vida pessoal de seus próprios antepassados a história do homem brasileiro. As
plantações de cana em Pernambuco eram o cenário das relações íntimas e do
cruzamento das três raças: índios, africanos e portugueses. Valeu-se também
dos registros dos pensadores da época da colônia e também buscou estudar o
cotidiano e a cultura dos índios e dos negros, submetidos à colonização.
Em sua análise da colonização portuguesa do Brasil, observou que a so-
ciedade se baseou no modelo agrário e escravocrata, utilizando-se,inicialmente,
do trabalho indígena e, mais tarde, do negro, formando um povo “híbrido”. A mis-
cigenação, para ele, teria sido a forma como os portugueses compensaram a busca
de ocupação territorial tão extensa, em meio ao pouco contingente de lusitanos
que ali chegavam. É necessário lembrar que a maior parte dos portugueses que
aportavam no Brasil eram homens que encontraram nas mulheres índias e ne-
gras, a melhor forma de povoamento. “Atraídos pelas possibilidades de uma vida
livre”, afirma Freyre (1996, p.21), “inteiramente solta, no meio de muita mulher
nua, aqui se estabeleceram por gosto ou vontade própria muitos europeus”. Por
conta disto, os índios foram submetidos ao cativeiro, à prostituição e à degrada-
ção dessa cultura, em detrimento do domínio dos interesses europeus.
Segundo Gilberto Freyre, a sociedade se forma em meio a um processo
que conjuga desigualdades na condição dos negros e índios que se misturam ao
mandonismo do branco ,no interior da casa-grande, constituindo um modelo
único das relações sociais e culturais. As relações de poder, a vida doméstica e
sexual, os negócios e a religiosidade misturavam-se para a formação do Brasil.
Percebeu no trabalho árduo do negro na plantação da cana-de-açúcar a base
para o fortalecimento da casa-grande. Na casa-grande se concentrava todos as
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos54
instituições sociais existentes naquela época: a família, que fundamenta o pa-
triarcalismo; a economia e a política, que definiam os rumos da produção, das
relações com a escravidão e da exportação; a religiosidade, através do catolicis-
mo reforçado pelas capelas e pela freqüência das autoridades religiosas nesse
espaço; fundamentando, dessa maneira, a colonização portuguesa no Brasil.
 Assim sendo, não só índios e negros tiveram que se adaptar às novas
condições determinadas pela colonização (como se submeter ao catolicismo e a
língua portuguesa), mas também os próprios portugueses tiveram que mudar
seus hábitos alimentares, passando também a sofrer influência das etnias mar-
ginalizadas. A respeito disso, afirma Gilberto Freyre, que a dieta dos portugue-
ses, baseada no uso do leite, ovos e carne, ficou comprometida na colônia, pois
só apareciam em datas especiais, festas e comemorações.
Somado a isso, Gilberto Freyre afirmava que o português apresentava
uma capacidade de se misturar facilmente com outras raças, uma vez que estes
 vinham sem família,sozinhos. Diante desse contexto, o contato humano, exis-
tencialmente necessário, contribuía para a reprodução, primeiro com as índias
e, depois, com as negras, escravas de um povo que nascia. Sem esquecer que,
para os interesses da colonização, era preciso povoar o território.
 A casa-grande conta também com a colaboração da Igreja Católica no
empreendimento de difundir a fé cristã e propagar valores que levam os índios
a vestir roupas e abandonar a vida na floresta, enquanto o senhor de engenho
tentava escravizá-los. Os homens índios eram usados no trabalho extrativista e na
guerra contra outros exploradores e as mulheres indígenas na reprodução e for-
mação da família. Numa situação ou noutra, o resultado foi o extermínio de várias
comunidades indígenas ou a ocupação do interior do Brasil pelos índios fugidos.
Para ele, em todas as colonizações ocorridas naquele período, foi na sociedade
 brasileira onde aconteceu a maior troca de valores culturais, embora tivesse tam-
 bém provocado o desequilíbrio das relações do índio com o seu meio ambiente.
 A relação do português com a índia resultou nos mamelucos que atua-
 vam como bandeirantes na exploração das novas terras. O mameluco e o índio
se caracterizavam pelo traço cultural do nomandismo, sendo portanto, de pouca
utilidade para a produção agrícola da cana de açúcar.
Os portugueses, por sua vez, haviam contribuído na formação da so-
ciedade brasileira através da implantação da produção da cana de açúcar que
aprenderam com os mouros no período da ocupação da Península Ibérica. Esse
 
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fato, segundo Gilberto Freyre, determinou a relação entre as etnias formadoras
da sociedade brasileira, entre homens e mulheres, do senhor e dos índios, da
igreja e dos seus fiéis.
Por muito tempo os índios foram submetidos à catequização cristã que
modificava sua forma de vida e negava suas crenças na natureza. Contudo, nem
a Igreja e nem o senhor de engenho conseguiram enquadrar o índio no siste-
ma de colonização, uma vez que distante do seu habitat natural, o índio não se
adaptava como escravo, adoecendo ou morrendo com facilidade. Na tentativa
de solucionar os problemas na produção açucareira, os senhores passam a im-
portar negros oferecidos pelo tráfico negreiros.
 Aos poucos as escravas negras foram ocupando o lugar das índias tanto
na cozinha como na reprodução da população brasileira. Na agricultura, a pre-
sença do negro elevava a produção de açúcar e o preço do produto no mercado
internacional. Gilberto Freyre afirmou que entre os africanos que vinham para
o Brasil, eram os negros muçulmanos, de cultura superior não só a dos índios
como também a da maioria de colonos brancos, que aqui chegavam e viviam
quase sem nenhuma instrução.
Considerava os negros vindos das áreas de cultura africana mais adian-
tada um elemento ativo, criador na colonização do Brasil, degradados apenas
pela condição de escravos. Para ele, o negro escravo e a cana-de-açúcar fun-
damentavam a colonização aristocrática, que se repetia, posteriormente, nos
ciclos do ouro e do café, em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. Nessa
sociedade, valores culturais e sociais se misturam entre negros e brancos, cons-
tituindo o caráter exclusivo do brasileiro.
Descrevia o senhor de engenho como um homem extremamente pode-
roso e rico, que passava a maior parte do tempo deitado na rede, enquanto o ne-
gro sedimentava a sua riqueza com seu trabalho e sangue. A relação de mando-
nismo que submetia o negro ao trabalho escravo, passava a ser transmitida aos
negros recém chegados, pelos negros que já viviam aqui. Estes também haviam
contribuído na colonização, através da reprodução de escravos ao mesmo tem-
po em que serviam a experiências sexuais dos filhos dos senhores de engenho. A
mulher escrava transitava entre a senzala e a casa-grande, estreitando a relação
entre negros e colonizadores. Sofriam desde o assédio dos desejos sexuais dos
homens, até os mais variados castigos das mulheres enciumadas.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos56
Entre as mulheres brancas, o costume do casamento cedo já faziam
destas, mães e donas de casa aos dezoito anos. Além dos desgastes provocados
pelos partos sucessivos, a vida reclusa faziam das sinhás mulheres amarguradas
e pouco atraentes. Por outro lado, as negras já se relacionavam com os brancos
desde os primeiros dias de vida. A ama de leite ensinava as primeiras palavras
num português errado, as cantigas e as brincadeiras, etc. Posteriormente, os
iniciava nas experiências sexuais, negada às moças brancas, a quem o sexo só
serviria à procriação, sacramentada pelo casamento.
Em sua obra “Raízes do Brasil”, escrito em 1936, Sérgio Buarque de
Holanda mostra a formação da sociedade brasileira como resultado da relação
entre várias culturas. Portanto, sua interpretação inicia pela formação dos pa-
íses Ibéricos, que segundo ele, faziam fronteiras entre a Europa com o mundo,
através do mar, o que explicava um certo distanciamento dos traços culturais
“europeizados” em relação a outros países. Portugal apresentava uma organiza-
ção flexível, dada a relação de igualdade entre os homens, em contraposição ao
modelo hierárquico do feudalismo.
Essa forma de organização, chamada por Sérgio Buarque de “menta-
lidade moderna”, reproduziu-se também na formação da sociedade brasileira.
Ela também explicaria o sucesso dos portugueses para as missões de conquistas
no Novo Mundo. Neste novo empreendimento, afirma ele, surgem dois tipos de
homens: o aventureiro, que se lança ao novo ambiente, novos povos e desafios;
e o trabalhador, capaz de explorar a terra com as técnicas aprendidas no contato
com os povos asiáticos.
Com objetivo de exploração da nova terra, a escravidão do negro teria
sido a forma de produção, considerando a resistência dos índios brasileiros a
esse sistema. O português vinha para a colônia buscar riqueza sem muito traba-
lho, além disso, eles preferiam a vida aventureira ao trabalho agrícola. A escolha
do trabalho do negro também se dava pelo conhecimento que os portugueses
tinham da escravidão africana.
Outro elemento que favoreceu a colonização teria sido a língua por-
tuguesa, que segundo ele, teria facilitado a comunicação entre índios, portu-
gueses e negros. Somado a isto, a Igreja Católica havia contribuído também na
integração dessas etnias, resultando numa mestiçagem que forma a sociedade
 brasileira.
 
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Considerando que a estrutura da sociedade colonial era rural e a con-
centração do poder nas mãos dos senhores rurais, definiu-se a abolição da escra-
 vatura como um grande marco na nossa história. A partir desse marco, aponta
o desenvolvimento urbano, com a construção das estradas de ferro, superando,
dessa maneira, o tráfico negreiro. Entretanto, afirma ele, muitos senhores rurais
foram contra o fim da escravidão. Identifica esse período marcado por muitos
conflitos entre as visões do mundo tradicional e moderna. A industrialização e o
comércio não tinham a estrutura necessária ao desenvolvimento dessas ativida-
des, enquanto a atividade no engenho ainda sustentava o modelo de segurança
nos negócios para época.
Neste sentido, o Estado é apropriado pela família, os homens públicos
são formados pelas relações pessoais do universo doméstico, baseado nos laços
sentimentais e familiares.
Segundo ele, essa prática se reproduz na atualidade: o desejo de alcan-
çar prestígio e riqueza sem esforço. Enxergar na esfera pública o caminho para
esse desejo, sem o compromisso com a sociedade.Disso, resultou as dificulda-
des de uma cidadania, construída de cima para baixo, com pouca participação
do povo e a formação de uma intelectualidade que defendia sempre a perma-
nência das estruturas conservadoras. Isso porque afirma a necessidade das re-
 voluções que partam do povo, como necessidade de mudança do quadro social,
a exemplo da abolição da escravatura. Entretanto, essa cordialidade presente
no exercício do poder, põe-se como um obstáculo para as mudanças, uma vez
que o modelo colonial encontra-se arraigado no cotidiano das relações públicas
e privadas. Daí a importância de compreender o processo de formação da socie-
dade brasileira e suas consequências na conjuntura política, econômica e social.
Por fim, nosso último antropólogo o niteroiense Roberto Da Matta
(1936). DaMatta teve suas primeiras incursões etnográficas entre os índios Ga-
 viões (Maranhão) e Apinayé (Tocantins). Mas foi, principalmente, os estudos
das manifestações culturais nos espaços urbanos que seu trabalho ficou mais
conhecido. Os estudos sobre o carnaval, a morte, a mulher, o jogo do bicho,
o futebol, a cidadania e o jeito de ser do brasileiro rendeu trabalhos sobre um
Brasil complexo. O que tinha em comum entre essas diferentes temáticas era a
compreensão da relação entre indivíduo e pessoa e entre os espaços do público
e do privado. De um modo geral, percebeu que culturalmente temos uma rela-
ção peculiar com o Estado, que oscila entre o exercício da cidadania ,enquanto
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos58
cidadãos com direitos iguais, e a noção de pessoa que usa da influência ou das
relações de favores.
Em “Carnavais, malandros e heróis”, publicado em 1971, procurou ana-
lisar o ethos cultural dos brasileiros por meio da habitual frase “você sabe com
quem está falando?” Tal frase se referia principalmente as formas de exercício
do poder pelos políticos que sucumbiam o princípio da cidadania e faziam o uso
da coisa pública em seu próprio favor. Com efeito, outras autoridades reprodu-
ziam uma prática do “jeitinho brasileiro” e da malandragem, com as pequenas
corrupções como sonegação de impostos, apadrinhamento e favoritismo.
O carnaval também reproduziria essa relação entre indivíduo e socie-
dade, nos quatro dias de festa e que se estendem cada vez mais aos dias que
antecedem e às chamadas ressacas. A corrupção não é uma prática exclusiva dos
políticos, mas se tornou um costume compartilhado por outros atores sociais
e das mais variadas formas como estacionar em lugar proibido, furar fila, usar
da influência para conseguir uma consulta ou atendimento em uma repartição
publica. Para DaMatta, o Brasil é formado por contradições e complexidades
nas relações entre os indivíduos e destes com o Estado, de modo a perceber
que parece existir uma confusão entre o que é do domínio público e do domínio
privado.
Muitos são os estudos que tentam explicar a identidade da sociedade
 brasileira, levando em consideração o caleidoscópio cultural da sua formação.
Nesse sentido, as ideias dos pensadores contemporâneos tentam compreender
o dilema brasileiro, estabelecendo uma relação entre o nacional e as práticas co-
tidianas. Delas também resultam a forma como as políticas públicas são cons-
truídas e praticadas.
Resta-nos saber como se articula o Estado brasileiro, através de suas
políticas públicas e o acesso a estas pela o povo. Percorremos ao longo do nosso
curso, pela formação de uma sociedade inicialmente interessada no desenvolvi-
mento da metrópole portuguesa e o surgimento de uma elite brasileira, despro-
 vida de consciência social, nos tempos do imperialismo e das repúblicas, forjada
em uma democracia. Vimos,ainda, que as bases dessa república exerciam o po-
der com base no favoritismo de poucos e das relações clientelistas, excluindo do
pacto de desenvolvimento social, as classes trabalhadoras e marginais.
 
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Todo esse distanciamento entre poder, direitos sociais e as classes
marginalizadas produziriam, segundo Roberto DaMatta, a cultura do “jeitinho
 brasileiro", que conjuga a formalidade das leis (o que torna o Brasil um país de-
mocrático republicano) com as estratégias para beneficiamento das elites, ora
pelo apego destas a uma atitude autoritária, conforme sugere a expressão “você
sabe com quem está falando?”, ora pelas relações de aproximação e familiarida-
de, com objetivo de solucionar problemas do cotidiano.
O primeiro se refere àquela atitude em que eu reforço minha autori-
dade, respaldada nos títulos acadêmicos, nos status profissionais ou na identi-
ficação com o sobrenome de família importante para justificar a contravenção.
Como por exemplo, dificultar a aplicação da lei pela autoridade competente
porque o indivíduo alerta sobre seu conhecimento e relação próxima com pesso-
as que exercem algum poder na sociedade. O segundo reporta-se as estratégias
de trânsito social, através das relações pessoais, para aqueles que sofrem com a
precariedade dos serviços públicos. Como exemplo desse último, podemos citar
os casos em que o indivíduo estabelece uma relação de aproximação (pertence-
rem a mesma região ou cidade, conhecerem uma pessoa em comum, comparti-
lharem da mesma religião ou time de futebol, etc.) para ter o serviço agilizado.
 A distância entre a formalidade da lei e as práticas cotidianas marcam,
desde o princípio, as diversas formas do Estado brasileiro. Tal distanciamen-
to, resultado da estrutura desigual das classes sociais brasileiras, pode explicar
porque nem sempre a lei é aplicada igualitariamente para todos brasileiros. A
respeito disso, temos como exemplo a atenuação das penas para pessoas in-
fluentes, enquanto os presidiários incham a carceragem pela morosidade da lei,
na revisão das penas e execução dos processos.
Por fim, a Antropologia brasileira construiu suas próprias interpretações
sobre a cultura do povo brasileiro que dão pistas para compreender nossa forma
de pensar e agir no mundo, como fruto da formação híbrida, da condição de colo-
nizados e dos desdobramentos políticos e culturais na contemporaneidade.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos60
INDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTARINDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR
• • Hans Hans Staden.Staden. Direção e roteiro: Luiz Alberto Pereira, 1999. 92
min, color.
Para fixar melhor o que foi apresentado até aqui,sugiro o filme cujo
título é o nome de um viajante alemão que aportou em terras brasileiras e foi
capturado pelos tupinambás (tribo indígena conhecida pela prática da antro-
pofagia). Através do filme, você pode entender como se dá o encontro com a
diferença, o que pode resultar do encontro entre dois universos totalmente dife-
rentes. Pense no que aprendeu sobre etnocentrismo, relativização e alteridade!
• MAUSS, Marcel. As Técnicas Corporais. In: Sociologia e Antro-Sociologia e Antro-
pologiapologia. São Paulo: CosacNaify, 2003.
Sugiro leitura do texto acima para pensar a atuação da cultura sobre os
corpos, ou o homem total (biológico, social e cultural), conforme propõe Marcel
Mauss. Neste texto, o autor demonstra como até mesmo a maneira de andar é
condicionada pela cultura, assim como nadar, repousar etc.
• EVANS-PRITCHARD, E.E. Apêndice. In: Bruxaria, oráculos eBruxaria, oráculos e
magia entre os Azandemagia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
(p. 243-255).
Para conhecer um pouco mais sobre o trabalho de campo antropológi-
co, indico a leitura do texto acima, no qual o autor relata algumas de suas expe-
riências durante a execução do trabalho de campo e, ao mesmo tempo, lança as
premissas que julga adequadas para o êxito neste tipo de empreitada.
• PEIRANO, Mariza. A A Antropologia Antropologia como como Ciência CiênciaSocial Social nono
BrasilBrasil. Etnográfica, v. IV (2), p. 219-232, 2000.
Neste artigo, da Mariza Peirano você obtém outras informações sobre
a trajetória da Antropologia brasileira.
 
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RESUMO DO TEMARESUMO DO TEMA
Na primeira seção, você pôde entender como o encontro com a diferença foi impor-
tante para que a Antropologia se configurasse. A partir deste encontro, surgiram
noções – alteridade, etnocentrismo, relativismo – que se tornaram elementares
para a análise antropológica e surgiram as primeiras tentativas de explicação para
as diferenças encontradas nas sociedades extra europeias. Destas tentativas de ex-
plicação, surgiram as primeiras reflexões propriamente antropológicas, elaborando
teorias e formando as chamadas “Escolas Antropológicas”, sendo a primeira delas
o evolucionismo social/cultural, posteriormente contestado por outros autores, fa-
zendo girar a roda da Antropologia rumo a explicações mais consistentes.
Em “A Cultura como Lente para Enxergar o Mundo”, você foi apresentado a um
conceito que se tornou fundamental para a Antropologia: o conceito de cultura.
Qual foi a primeira definição, como ele é desenvolvido, os diferentes autores que
se apropriam dele e como a cultura está atuando no nosso entorno. Nesse sentido,
há uma distinção entre o que é natural e o que é cultural na nossa sociedade. Além
disso, foi explicado como e porque só as sociedades humanas produzem cultura.
Em seguida, o passeio antropológico seguiu os rumos do trabalho de campo,
conforme desempenhado na Antropologia, tendo como precursor o antropólogo
polonês B. Malinowski. A partir deste autor, que propõe o método da obser-
 vação participante, outros autores se inspiraram a tratar do tema, apontando
contribuições e limites da proposta malinowskiana e lapidando esta importante
fase do trabalho antropológico, que é a coleta de dados in loco .
O último assunto abordado foi a Antropologia desenvolvida no Brasil. Você
pôde conhecer como nasceu a Antropologia Brasileira, seus principais temas de
estudo e como ela se expandiu para além da etnologia indígena que foi uma das
suas principais linhas de pesquisa. Os autores responsáveis por formar a Antro-
pologia Brasileira se inspiraram nas ideias que vinham de outros países, mas
dando uma identidade nacional ao aplicar as teorias e métodos propostos por
autores que se tornaram clássicos. Deste modo, os antropólogos que formaram
a antropologia no Brasil, tornaram-se também clássicos.
 
02Tema
CULTURAS
CONTEMPÔRANEAS
 Ao longo deste conteúdo, veremos a
contribuição do conceito de cultura para o es-
tudo das diferentes expressões culturais. Assim
sendo, através da cultura podemos refletir so-
 bre racismo, preconceito e discriminação, per-
cebendo-os como construções históricas e que,
portanto, assumem tonalidades distintas con-
forme o contexto em que estão inseridos. Deste
modo, veremos que é necessário entender como
são elaboradas e sustentadas estas noções para
então pensarmos nos antídotos antropológicos
para reverter ou atenuar seus efeitos sobre a so-
ciedade na qual estão atuando.
 A Antropologia permite, também, uma
análise das sociedades contemporâneas, fazendo
recortes de aspectos que são estratégicos para
pensar estas sociedades como um todo. É o que
 você irá perceber nas seções dedicadas a temati-
zar o estudo da cultura na sociedade contempo-
rânea por meio das relações de gênero e da se-
xualidade, das crenças religiosas e das diferentes
configurações familiares. Finalmente, você terá
acesso ao mundo do consumo através das lentes
antropológicas, observando como é produzido o
estímulo ao consumo e os desdobramentos deste
que repercute também sobre o meio ambiente.
Então, vamos consumir um pouco mais de An-
tropologia?
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos64
2.1 Nós e os 2.1 Nós e os outros: raça, etnia e multiculturalismooutros: raça, etnia e multiculturalismo
Experimentamos a diversidade cultural no Brasil através dos cinco
sentidos: os sabores das comidas, os cheiros exalados pela flora, as diferentes
paisagens, os vários ritmos musicais e pelas texturas produzidas com os diferen-
tes elementos da natureza aqui encontrados. Pode-se dizer que tal diversidade
é reflexo do que está na nossa srcem: a mistura. À diversidade encontrada na
geografia, na fauna e na flora, somou-se os costumes dos europeus que aqui
aportaram e se misturaram com os índios, assim como os costumes dos negros
africanos. Essa mistura é retratada por Mário de Andrade, nos idos dos anos
modernistas, através do herói nacional sem nenhum caráter, o “preto retinto
e filho do medo da noite”, o Macunaíma. Ao narrar o banho de Macunaíma e
seus dois irmãos numa água encantada – que deixou o primeiro branco louro
dos olhos azuis, um de seus irmãos da cor do bronze e o outro tendo conseguido
apenas molhar as palmas mãos e os pés deixou-as vermelhas, mantendo o resto
do corpo negro – Mário de Andrade remete ao cruzamento do branco, do índio e
do negro como “matéria-prima” para a formação da população brasileira. Quer
seja pela ótica do romance modernista ou pela história do Brasil, o fato é que a
mistura das “raças” repercutiu em diferentes aspectos da sociedade brasileira.
Podemos nos lambuzar com uma boa feijoada, nos fartar de comer tapio-
ca, balançar numa rede, balançar os quadris dançando um samba, um forró ou o
que chamamos deaxé music . Podemos nos gabar de uma arquitetura que remete
à Europa, assim como de vestimentas que lá buscaram inspiração. Por trás deste
“mosaico cultural”, porém, existem questões que nos trazem importantes lembran-
ças e reflexões sobre o papel desta mistura para o Brasil. Uma das mais fecundas
diz respeito à questão racial e ao modo como lidamos com ela, seja no aspecto das
relações afetivas, legislativas, sociais, no âmbito do público ou do privado. Se pode-
mos pensar a mistura como algo positivo e até exaltá-la como uma marca do povo
 brasileiro, ela concorre também para ambiguidades que acabam despencando para
algo problemático ou mesmo negativo, como no caso do racismo.
Conforme coloca Lilia Schwarcz (2009), a ambiguidade que rege as re-
lações raciais brasileiras pode ser ilustrada por um discurso que enfatiza uma
sociabilidade social ímpar em oposição a dados estatísticos, que apontam para a
segregação racial em diversos espaços e aspectos da sociedade. Ou seja, não há
lei estabelecendo segregação racial, porém reside na sociedade brasileira:
 
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Um racismo dissimulado, silencioso, por vezes cordial, na feliz
expressão do historiador Sérgio Buarque de Holanda; que esca-
pa ao espaço oicial, mas ganha os espaços mais cotidianos ou
reina gloriosa na ideologia do senso comum: discurso tão pode-
roso como o cientíico ou o religioso. (SCHWARCZ, 2009, p.72)
Diante desta dissimulação, podemos exaltar a miscigenação que nos
proporcionou a incorporação de traços culturais de outros povos, mas nas re-
lações cotidianas olhamos com desconfiança para o sujeito de pele escura que
senta ao nosso lado dentro do ônibus, não observamos a predominância de co-
legas brancos na faculdade ou preferimos que alguém da nossa família case com
fulano(a) que não é tão simpático(a), mas é branco(a), a casar com beltrano(a)
que é bem legal, mas é negro(a). Percebe como lidamos com dois pesos e duas
medidas?
Se olharmos através da historia do Brasil, perceberemos como se cons-
truiu esta ideia de democracia racial e de racismo baseados em saberes médicos,
interesses políticos, e na necessidade de construção de um nacionalismo. Nesteprocesso, oscilamos entre o pessimismo ante à miscigenação e o olhar positivo
sobre a mesma. Exemplo de visão negativa sobre a mestiçagem associando-a à
degeneração: o chamado “darwinismo racial” que condenava a amalgamação de
grupos étnicos (sobre este assunto, veja o quadro abaixo) tão diferentes, confor-me coloca Schwarcz (2009, p.84):
Esse tipo de modelo considerava cada raça como essen-
cial, ou seja, portadora de características intrínsecas, com
capacidades e comportamentos especíicos. E o país re-
presentava, nesse momento, um verdadeiro laborató-
rio de raças. Ainal, era recorrentemente descrito pelos
viajantes do século 19 como uma imensa nação mestiça.
 Vários autores e artistas defendem e representam esta ideia que seria
reforçada pelos homens de sciencia, termo utilizado por Schwarcz para deno-
minar os intelectuais que eram uma mistura de cientistas, políticos, pesquisa-
dores e literatos.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos66
SOBRE OS GRUPOS ÉTNICOSSOBRE OS GRUPOS ÉTNICOS
Para a Antropologia tanto quanto o conceito de raça, a definição de grupos étni-
cos tem sido utilizada nas suas análise Antropológica. Assim sendo, determinadas popu-
lações que compartilham de algumas características comuns, denominam-se grupo étni-
co. Deste modo, havendo uma comunidade compartilhando características semelhantes,
quer do ponto de vista geográfico, étnico ou religioso, podemos afirmar que estamos dian-
te de um grupo étnico. Ciganos e índios, por exemplo, formam grupos étnicos.
 Aqui, podemos tomar como referência para pensar a questão da etni-
cidade, o antropólogo alemão Fredrik Barth, visto que ao criticar o conceito de
grupo étnico, então em voga, ele sinaliza como pensar a etnicidade. Segundo Barth
(1998), a expressão grupo étnico é geralmente entendida na literatura antropoló-
gica como uma população que possui os seguintes atributos:
1. Em grande medida se autoperpetua do ponto de vista biológico;
2. Compartilha valores culturais fundamentais. realizados de
modo patentemente unitário em determinadas formas culturais;
3. Constitui um campo de comunicação e interação;
4. Tem um conjunto de membros que se identificam e são identificados
por outros. Como constituindo uma categoria que pode ser distingui-da de outras categorias da mesma ordem. (Barth, 1998, p.189.)
 A crítica que o referido autor lança vai no sentido de mostrar que se trata de
uma definição típico-ideal cujo conteúdo não se afasta muito da proposição tradicio-
nal de que uma raça possui uma cultura, que esta possui uma língua e que deste modo
se tem uma sociedade como sinônimo de unidade, que rejeita ou discrimina as de-
mais. Feita tal ressalva, Barth propõe que as análises antropológicas sejam norteadas
pelo que ele chama defronteiras étnicas , pois são elas que definem o grupo (trata-se,
pois, de um tipo de organização social), não o conteúdo cultural que elas delimitam:
As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa atenção
são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter con-
trapartida territorial. Se um grupo mantém sua identidade quan-
do seus membros interagem com outros, disso decorre a exis-tência de critérios para determinação do pertencimento, assim
como as maneiras de assinalar este pertencimento ou exclusão.
Os grupos étnicos não são apenas ou necessariamente baseados
na ocupação de territórios exclusivos; e as diferentes maneiras,
através das quais eles são mantidos, não só as formas de recru-
tamento deinitivo como também os modos de expressão e va-
lidação contínuas devem ser analisadas. (Barth, Op. Cit., p. 195)
 
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Os critérios aos quais ele se refere são os chamados sinais diacríticos,
aspectos que o próprio grupo (seus atores), elege como significativas para deli-
mitar as fronteiras entre ele e os “outros”. Deste modo, o que define um grupo
étnico não está nas mãos do observador, mas do próprio grupo, dos seus crité-
rios de pertencimento por ele utilizado, segundo o autor.
Passando para o contexto do século XX, especificamente para os anos1930, quando há uma preocupação em formar símbolos da identidade brasileira,
podemos ilustrar a perspectiva otimista da mestiçagem, cujo representante é o per-
nambucano Gilberto Freyre. Em Casa-grande & Senzala (lançado em 1933), Freyre
Ilustração de Cícero Dias para o livro de Freyre (Casa-grande & Senzala), retratando o espaço onde ocorre a
mistura referida pelo autor
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos68
enfatiza a convivência entre as três raças como símbolo da identidade brasileira
e, ao mesmo tempo, tematiza a sexualidade brasileira,que representava esta ideia
de mistura não problemática ao retratar o aspecto privado da miscigenação. Neste
ponto, os encontros sexuais entre as negras e os senhores dos quais elas tem filhos
são percebidos como expressão de uma mestiçagem bem feita e srcinal, cujo resul-
tado era uma cultura homogênea apesar de baseada em três raças.
Esta visão panorâmica e breve sobre a mestiçagem no Brasil aqui repre-
sentada visa situar o leitor sobre a importância deste discurso para pensarmos logo
mais a questão do multiculturalismo. Esta percepção da mistura é o que permite
afirmar – ainda hoje – que o Brasil é o país da “democracia racial” (o discurso da de-
mocracia racial coloca o Brasil como sendo um país desprovido de preconceito ra-
cial), opondo-se ao tipo de modelo existente em outros países que têm como marca
a segregação racial bem delimitada (inclusive judicialmente), cabendo aos negros
lugares específicos. Em sociedades onde há este tipo de segregação não há a gradu-
ação de cor existente nas terras brasílicas que permite embranquecer ou enegrecer
os sujeitos, dependendo de quem é o observador e do objetivo deste olhar. No caso
 brasileiro, a nossa percepção de quão negro é o indivíduo baseia-se nas caracterís-
ticas fenotípicas deste (tipo do cabelo, coloração da pele), enquanto para os norte-
-americanos descender de uma família negra é o suficiente para também ser negro,
ainda que não herde as características físicas. Esta oposição é utilizada por Oracy
Nogueira na década de 1950 ao definir preconceito de marca (Brasil) e preconceito
de srcem (Estados Unidos). No caso do preconceito de srcem, também conhecida
como regra “gota de sangue” (one drop rule ), basta um bisavô negro para o indiví-
duo pertencer à “raça negra”, reiterando uma visão essencialista.
 
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O mito da democracia racial ou o “racismo à brasileira” – como o deno-
mina Roberto DaMatta e é o título do texto da Lilia Schwarcz acima apresentado
– construiu-se e se sustenta numa perspectiva que acabou por mascarar um
preconceito de raça e invisibiliza questões que emergem imbuídas de caracte-
rísticas que nem sempre identificamos como racismo de fato, atenuando, in-
clusive, sua gravidade. Para enfatizar quão problemática pode ser esta questão,
podemos abordá-la comparando ao racismo que caracteriza os Estados Unidos.
Tanto o racismo “à brasileira” quanto o racismo americano foram e são alvo
de diversos estudos, inclusive aqueles de cunho antropológico que buscaram
desconstruir a ideia de raça. Acredito que a esta altura já tenha o(a) prezado(a)
aluno(a) percebido que a Antropologia não se utiliza dos pressupostos biológi-
cos para explicar os comportamentos (e raça, como será posto logo mais é um
dos conceitos que se apoia na biologia)!
Se os Estados Unidos um dia foram colônias e a população nativa (indí-
gena) foi dizimada, se lá chegaram negros africanos para compor a mão-de-obra
escrava nos campos de algodão, poderíamos pensar que há muita semelhan-ça com a história do Brasil sob o ponto de vista populacional, principalmente.
Ocorre, no entanto, que os personagens desta história são semelhantes, mas a
atuação e o cenário são bem diferentes! Há miscigenação lá, como há aqui, mas
a maneira de lidar com ela influência de maneira bem diferenciada no plano
político-social. Para Peter Fry (2001), há que se pensar, sobretudo, que existe
uma diferença essencial a ser considerada no caso dos dois países ao quais nos
referimos acima: o tipo de dominação ao qual estiveram submetidos. No pri-
meiro caso, a Inglaterra, devido ao poder do qual desfrutava enquanto potência
mundial, não estava preocupada em conquistar os habitantes das suas colônias.
Já Portugal, que não dispunha de tal estabilidade e poder, dominou casando
com as negras (por falta de mulheres) e usando de subterfúgios para compensar
impossibilidade de impor sua cultura. Que tipo de subterfúgio? Não impôs sua
cultura – já que precisava se aliar à população local – transformou a cultura dos
“nativos” em cultura nacional (Fry, 2001, p.46). Deve-se ressaltar, porém, que
ainda hoje existem aspectos da colonização a que foram submetidos os norte-
-americanos caracterizando o país: presença de populações nativas naquele ter-
ritório, grupos de atuação religiosa entre os primeiros que lá chegaram para
colonizar, elites políticas e econômicas com estrutura anglo-saxônica, povoa-
mento do país através da imigração. Todas estas características interferem nos
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos70
modos de percepção da diferença, quer racial ou cultural, assim como ocorre no
caso brasileiro.
Embora o tipo de preconceito seja experienciado de maneira distinta,
a noção de raça é construída sobre um lastro comum: um conjunto de caracte-
rísticas biológicas que define os comportamentos dos indivíduos, naturalizando
sua inferioridade. Tal perspectiva será combatida na seara da Antropologia por
autores como Franz Boas e Claude Lévi-Strauss, que abrem caminho para que
outros antropólogos ampliem suas perspectivas. EmRaça e Progresso (publicado
em 1931, está inserido na coletânea lançada por Celso Castro em 2004, Antropo- 
logia Cultural ) Boas, que tinha migrado para os Estados Unidos e testemunhou o
problema racial naquele país, ao observar o plantation, dedicou-se a desconstruir
a ideia de que a inferioridade do negro estava condicionada pela sua raça. Para
o mencionado autor, era necessário separar aspectos biológico/psicológicos das
implicações sociais e econômicas. A explicação para a inferioridade do negro de-
 veria ser buscada na motivação social, não na configuração corporal.
No que diz respeito à mistura racial, Boas afirma que, se baseando nas
características anatômicas e condições de saúde de populações misturadas, não
parece haver razão alguma para supor resultados desfavoráveis nas gerações
descendentes desta mistura, e se dedica a exemplificar que tipo de fatores po-
dem influenciar os resultados para chegar à afirmação de que a diferença está
no ambiente social, as condições sociais são a grande influência para os com-
portamentos distintos. O ambiente cultural é o mais importante fator para de-
terminar os resultados dos testes de inteligência que pretendem demonstrar a
superioridade ou inferioridade de uma raça. Segundo a perspectiva boasiana,
todos pertencemos a tipos diferentes de cenários aos quais aprendemos a nos
adaptar, nossas reações são determinadas por estas adaptações. Isto só pode ser
detectado por um conhecimento minucioso das condições de vida dos sujeitos.
 A ruptura que Boas propunha entre comportamentos e traços genéti-
cos é reiterada por um cientista que não está propriamente associado à Antro-
pologia, mas que defende algo que vem a apoiar o viés antropológico. Para o
geneticista italiano Guido Barbujani (2007), geneticamente somos todos iguais,
todos pertencentes à raça humana. Se os genes determinam nosso aspecto fí-
sico – isto explica porque nos parecemos com os nossos genitores – existem
outras variáveis que atuam sobre estas características de modo a diferenciar os
indivíduos:
 
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[...] nós temos dietas, exercícios ísicos e também muitos outros
fatores que são parte de nosso ambiente, não de nosso genoma.
Como resultado, uma vez mais, diferenças ísicas são freqüente-
mente (sic) grandes entre membros da mesma população (com-
pare Prince e Ella Fitzgerald), e são geralmente pequenas entre
as médias de populações diferentes. (BARBUJANI12, s/d, s/p)
 Embora Barbujani não seja antropólogo, o que ele afirma corro-
 bora e dá sustentação ao que já vem sendo proclamado nos circuitos antropo-lógicos: raça, assim como o ambiente, não determina comportamentos. Assim
sendo, não faria sentido defender que haja uma raça superior a outra, se pensar-
mos como Barbujani, que não há diferentes raças quando falamos de seres hu-
manos. Todas as populações, afirma o geneticista, estão misturadas, inclusive a
população europeia, como revelam estudos de DNA. Preocupado em enfrentar
as questões vigentes que alimentam o racismo em termos científicos rigorosos,
enfatiza o geneticista italiano:
A palavra raça não identiica nenhuma realidade biológi-
ca reconhecível no DNA de nossa espécie, e que portanto
não há nada de inevitável ou genético nas identidades étni-
cas e culturais , tais como as conhecemos hoje em dia. Sobre
isso, a ciência tem ideias bem claras. As raças, nós a inven-
tamos e nós a levamos a sério por séculos, mas já sabemos obastante para largar mão delas. (BARBUJANI, 2007, p.14)
Então, podemos afirmar que as manifestações de racismo que temos ob-
servado ao longo da nossa história decorrem de uma construção social que teve
como substrato um dado biológico. Que construção foi essa? A noção de raça.
Elegendo características biológicas como cor da pele, tamanho do crânio, configu-
ração corporal etc. criamos um parâmetro para classificar pessoas e grupos, mui-
tas vezes desconsiderando que somos parte de uma mesma humanidade. Você
pode pensar: se foram os cientistas que subsidiaram a construção da categoria
raça, como afirmar que eles não tinham razão? Uma das respostas possíveis: o co-
nhecimento sobre determinados assuntos em determinadas épocas, acaba sendo
influenciado pelo contexto político-social do qual fazem parte os autores ou cien-
tistas. Se em dado momento, eles obtiveram respaldo para as suas proposituras,
certamente, a sociedade da qual faziam parte colaborou para que isto ocorresse.
12 Entrevista disponível em: http://www.antropologia.com.br/entr/entr36_br.htm
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos72
Muda o contexto, mudam as ideias e elaborações teóricas. Sendo as-
sim, embora aceitemos que raça é uma construção social e há elementos sufi-
cientes para operar de modo a desconstrui-la, este ainda é um conceito utilizado
para demarcar posições e reivindicar direitos civis. Exemplo disso é o contexto
do multiculturalismo e a implementação de ações afirmativas. O que seriam es-
tas tais ações afirmativas? Respondo utilizando as palavras do historiador ame-
ricano George Andrews (1997, p.137): “Ação afirmativa indica uma intervenção
estatal para promover o aumento da presença negra – ou de outras minorias
étnicas - na educação, no emprego, e nas outras esferas da vida pública”.
Para promover tal aumento, preconiza-se a cor como indicativo relevan-
te para selecionar os candidatos a tais oportunidades. Assim sendo, segue o ca-
minho contrário ao que propõem certos discursos de combate à discriminação.
Enquanto há um coro de vozes afirmando que não se deve considerar raça ou
cor como parâmetro para classificar pessoas ou grupos, a ação afirmativa sugere
a continuação da cor como critério, porém num sentido diverso daquele histori-
camente utilizadoe não como critério absoluto. Exemplo de ação afirmativa, que
revela bem as divergências quanto ao assunto é a implementação de cotas raciais.
 Assim como outras ações afirmativas, esta sugere que pensemos como conciliar
diversos conceitos, de modo a obter a superação de desigualdades sociais histo-
ricamente inculcadas. E como é de racismo que estamos tratando... Vamos ao
multiculturalismo como pano de fundo para pensar em raça e ação afirmativa!
Como pudemos observar até agora, não se pode falar em cultura pura, ou
mesmo em raça. Camuflada ou explícita, a diferença se faz presente nas socieda-
des, tornando-as “caleidoscópios culturais”, formadas por grupos diferentes (nas
características físicas, nos questionamentos políticos, nas reivindicações). Se, esta
multiplicidade de características pode ser relacionada ao contexto de formação
das sociedades, temos agora adicionado mais um ingrediente que veio tornar este
caldeirão de diversidade um tanto mais complexo para ser pensado, a globali-
zação. Sendo assim, omulticulturalismomulticulturalismo é a representação da transformação
pela qual passa as sociedades contemporâneas (diriam alguns autores, pós-indus-
triais), incluindo uma contundente questão política aí envolvida.
Para Andrea Semprini (1999, p.09), o multiculturalismo é o sinal de
que há uma crise na modernidade, haja vista que são as categorias deste projeto
moderno que estão sendo questionadas, via reivindicações multiculturais e, ao
mesmo tempo, exigências de integrar o conceito de diferença neste mesmo pro-
 
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 jeto. De acordo com o referido autor, “ao colocar à modernidade a questão da
diferença, o multiculturalismo ultrapassa a especificidade de qualquer contexto
nacional e propõe um sério desafio de civilização às sociedades contemporâne-
as”. Tem-se, então, no multiculturalismo uma questão chave: a diferença deve
ser pensada como enriquecimento ou empobrecimento? Afirma Semprini que
as controvérsias multiculturalistas têm sido debatidas social e politicamente
nos últimos anos pelo movimento contra a segregação racial, que passou a rei-
 vindicar direitos civis a partir dos anos 1960, o que seria o ponto de partida para
o multiculturalismo. Com o fim da segregação teria, ao menos teoricamente, o
fim do racismo (lembrando que nos EUA havia lei formalizando o preconceito),
aumentando a base social, já que ocorreria a inclusão de indivíduos que foram
marginalizados até então.
Se até um determinado período, as diferenças coexistiram (não se amal-
gamaram, de fato), como pensá-las a partir do momento em que se reivindica o
direito de igualdade? Como manter a identidade étnica e/ou cultural quando se
“evoca” a homogeneização, ao clamar pelos mesmo direitos usufruídos pela maio-
ria? Não parece contraditório? Neste ponto, gostaria de utilizar a distinção que
 Andrea Semprini faz entre a interpretação política e a interpretação culturalista
do multiculturalismo: no primeiro caso (interpretação política), há reivindicações
de direitos sociais e políticos para uma minoria. Sob o ponto de vista culturalista
pretende-se um reconhecimento cultural e identitário, mas nenhum direito espe-
cial para o grupo. Talvez esta distinção permita-lhe pensar o porquê dos discursos
díspares a respeito da implementação de cotas raciais no Brasil (veja no quadro
abaixo um caso que ilustra a questão da ambiguidade da questão racial no Brasil
repercutindo no debate das cotas raciais), exemplo de políticas afirmativas que
 visam a reparar desigualdades sociais historicamente construídas.
 Você pode pensar: se os negros não são inferiores, por que conceder-lhes
cotas para ingressar no ensino superior? Ou pode achar que é o justo a ser feito
para reparar o erro histórico que colocou os negros numa posição de inferioridade,
privando-lhes do acesso às mesmas condições que a maioria branca. Para compre-
ender esta questão, basta voltar ao que coloca George Andrews (1997), acima.
Porém, não foi à toa que tematizamos racismo e miscigenação nos con-
textos brasileiro e norte-americano. Evoco Roberto DaMatta (1997) para nos fa-
zer refletir sobre o “problema”. Ao abordar o racismo à brasileira,relacionando
ao multiculturalismo e a ação afirmativa (pense aqui nas cotas raciais), DaMatta
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos74
afirma que dois aspectos precisam ser considerados: 1.1. existem fatos sociais
concretos que são a manifestação implícita do racismo e a dificuldade em dis-
cuti-lo. É como se tratássemos de um tabu. 2.2. Há uma inter-relação entre estes
fatos e os ideais políticos. Nesse sentido, DaMatta (1997, p.69) toca num ponto
que é um dos tendões de Aquiles do multiculturalismo: “a justa vontade de er-
radicar o preconceito, certamente, embaça a discussão de suas características
históricas e de sua organização sociológica ou cultural”. Para demonstrar tal
questão, o autor se remete a um episodio ocorrido em Cambridge quando fazia
seu doutorado em Havard, em fins da década de 1960 (lembre-se que esta foi a
década de efervescência dos movimentos por direitos políticos nos EUA).
Na ocasião, um grupo de estudantes brasileiros fora convidado pelo gover-
no americano para uma visita a centros culturais naquele país. Num dos salões de
Havard, dois negros americanos, ligados ao incipiente movimento negro, passaram
a falar sobre suas experiências que mudavam legislação, através de um movimento
pacífico e democrático bem organizado etc. Os brasileiros retrucaram dizendo que
aquelas transformações políticas não mudavam a estrutura efetivamente e que o foco
do problema continuava lá: a estrutura capitalista e a exploração do trabalho. Era
preciso, segundo os brasileiros, uma revolução que mudasse todo o sistema e então
atingir as relações raciais. A resposta dos dois americanos representa o "coração do
problema racial no Brasil": eles estavam trabalhando como podiam para mudar as
relações raciais no seu país, enquanto os brasileiros, que tanto cobram do sistema
americano e falavam em democracia racial, estavam em um grupo de 80, dos quais
apenas 7 ou 8 eram negros! É como se dissessem: cadê a democracia racial? O im-
passe não acaba por aí, pois ao final do debate, os brasileiros estavam se perguntando
quem eram os negros que os americanos haviam descoberto entre eles!
O episódio acima ilustra o que vínhamos tentando mostrar quan-
do tangenciamos a questão da miscigenação no Brasil e nos Estados Unidos
e que DaMatta explicita ao afirmar que o que está por trás deste debate é a
maneira diferenciada como as sociedades classificam suas variedades étnicas.
 A miscigenação tanto num caso como no outro existe. Como lidamos com ela?
Já oferecemos esta resposta em parágrafos anteriores, mas vale a pena dialogar
com DaMatta. No Brasil, privilegiamos o meio-termo, a ambiguidade. Há um
reconhecimento cultural e ideológico explícitos que se resume no “desiguais,
mas juntos” segundo o referido autor. No caso norte-americano, os mestiços
submergem como brancos e negros, reflexo da repulsa pela ambiguidade e do
 
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sistema classificatório compartimentalizado (recordando que lá vale a one drop
rule ! Uma gota de sangue negro na sua ascendência e você é negro.) o que resu-
me a situação em “diferentes, mas iguais”. O que está em jogo, segundo Roberto
DaMatta, não é negar a mestiçagem, mas perceber como cada sociedade lida
com ela. O que precisamos é reconhecer como opera cada sistema nas percep-
ções sociais para, então, instaurar oportunidades e igualdade para as minorias.
Na sociedade brasileira, a ambiguidade inibiu a segregação espacial e a
implementação da ideologiaracial no plano jurídico, mas também evitou a criação
de grupos contra as minorias a exemplo da ku kux klan, nos Estados Unidos. Aqui,
impera o reconhecimento social e simbólico do “intermediário”, levando a indeter-
minação étnica. Porém, de acordo com Damatta o reconhecimento da mestiçagem
levou à ideia de ausência de preconceito e à segregação de oportunidades. Este con-
texto não impede a ação afirmativa, a democracia ou a igualdade, mas deve-se con-
siderar que aqui opera um sistema gradativo, no qual as pessoas embranquecem ou
enegrecem de acordo com atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos. Deve-se
ter em conta ,também, segundo o autor, que assim como a “mulataria” não acabou
com o nosso preconceito, a ação afirmativa também não acabou com o racismo nos
Estado Unidos. Qual a saída, então? Para o autor em pauta, elaborar uma campa-
nha nacional enfatizando a discriminação que atua na nossa suposta democracia
racial e utilizá-la a favor de um comprometimento igualitário.
 Agora que está munido de um arsenal de teoria e
exemplos sobre racismo, preconceito e multicultu-
ralismo, você consegue se posicionar (a favor ou
contra) a respeito das cotas, por exemplo? Acha
que no Brasil, de fato não há racismo?
Imagem da máscara utilizada pelos
membros da ku kux klan, grupo racista
que atuou nos Estados Unidos, usando
de violência contra os negros libertos
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos76
2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e2.2 Olhar para as diferenças: sexualidade, gênero e
religiãoreligião
É possível que apesar de estarmos tratando, ao longo de várias páginas
sobre a diversidade cultural, sobre a questão das diferenças sob múltiplos as-
pectos, você não tenha se sentido impactado ou mesmo incomodado. No entan-
to, creio que a partir de agora, a indiferença ceda lugar a algumas inquietações
(caso elas ainda não tenham se manifestado), pelo menos. Não porque você seja
praticante de alguma religião que não a católica (aceita socialmente sem dis-
criminação) ou exerça sua sexualidade de maneira condenável pela sociedade
heteronormativa, por exemplo; mas porque estaremos lidando com temas que
estão muito mais próximos de nós, estaremos tocando nas diferenças que estão
lá naquelas sociedades longínquas geograficamente, mas estão também na nos-
sa faculdade, no nosso bairro, nas notícias da TV ou mesmo na nossa própria
família. São dimensões das cultura das quais não saímos incólumes e com as
quais estamos lidando cotidianamente.
Nascimento de Vênus, obra do pintor italiano Sandro Botticelli
 
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Sexualidade não é algo que diz respeito ao âmbito privado, apenas.
Não está circunscrita à vida íntima do indivíduo. Tudo o que diz respeito ao
corpo pode ser pensado pelo viés da biologia, mas pode e devedeve ser, sobretudo,
abordado pela Antropologia, pois o corpo é também uma construção cultural.
 A maneira como pensamos sobre o nosso corpo, o direcionamento que damos
às nossas paixões (no sentido sexual e passional), o que nos permitimos ou não
fazer sexualmente falando é mediado pela cultura. Tamanha é a importância da
sexualidade para a sociedade, que esta já foi abordada por diferentes discipli-
nas, algumas com o objetivo de conhecer para explicar, outras com o objetivo de
conhecer, de saber para classificar e controlar, como foi o caso da medicina, no
século XIX. Sexualidade é, pois, um tema que permite pensar diversos aspectos
da sociedade, pois permite a articulação com diversos temas que a permeiam. É
através dela que pensamos reprodução, casamento, família, gênero, parentesco
e todas as implicações que estes assuntos têm para toda sociedade. Vamos pas-
sear um pouco por estas paisagens antropológicas?
Em Antropologia, os primeiros que se dedicaram ao estudo das sexua-
lidades foram Bronislaw Malinowski (A Vida Sexual dos Selvagens) e Margaret
Mead (Sexo e TemperamentoSexo e Temperamento13). A partir das sociedades das ilhas do Pa-
cífico, Malinowski descreve a vida sexual dos selvagens,mostrando que o que
entendemos por sexual não tem o mesmo sentido para os nativos do Pacífico.
Deste modo, ao longo do texto vai estabelecendo comparações entre aqueles e a
sociedade da época e instigando reflexões sobre as relações sexuais e as relações
sociais entre homens e mulheres. Também Margaret Mead se aventurou pelas
águas deste tema e suas proposituras foram de grande importância para as fe-
ministas, pois já nos seus primeiros textos Mead propalava que as diferenças
entre homens e mulheres não poderiam ser explicadas pelo viés biológico, mas
por determinação da cultura. Em Sexo e Temperamento, ela demonstra tal afir-
mação, ao comparar três sociedades,nas quais os papeis sociais atribuídos a ho-
mens e mulheres não eram os mesmos, apesar de estarem em regiões próximas.
Desde,então, este campo de estudo foi bastante ampliado, assim como
o debate das questões a ele relativo, permitindo a abertura aos estudos antro-
pológicos sobre sexualidades. Veja que o termo está no plural pois, embora a
13 Mead publicou um livro anteriormente Adolescência, Sexo e Cultura em Samoa, mas
Sexo e Temperamento é tomado como referência para os estudos feministas e atinge um
amplo público extramuros antropológicos , tornando-se um best seller.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos78
sociedade busque normatizar as práticas relativas ao corpo, há sempre outras
maneiras de viver a sexualidade, ainda que sejam consideradas práticas margi-
nais. Além disso, a cultura (ela sempre!) de cada sociedade é que vai sancionar
ou interditar determinadas práticas. Deste modo, sendo a cultura plural e a se-
xualidade um dos aspectos da cultura, podemos também atribuir-lhe esta desi-
nência de número. Vejamos um tanto das questões entrelaçadas à sexualidade...
Se hoje podemos olhar para as bancas de revistas e ver nas suas capas
mulheres com corpos desnudos ou “receitas” de como chegar ao orgasmo em 10
passos é porque a intimidade passou por transformações que vieram também
de fora dos lares ou das alcovas. No que diz respeito à sexualidade feminina, o
movimento feminista e o advento da pílula anticoncepcional foram as forças
motrizes para que esta transformação pudesse ocorrer. A pílula permitiu des-
 vincular a maternidade do corpo das mulheres, evidenciando que a maternida-
de não é algo natural, facultando às mulheres a escolha de quando ter filhos ou
mesmo de não tê-los (ainda que a sociedade continue associando a maternidade
como característica determinante da feminilidade. Trocando em miúdos: para
ser mulher completa tem que ser mãe!). Com isso, pôde-se pensar que o corpo
da mulher também poderia ser fonte de prazer para a mesma, não só como um
receptáculo do prazer masculino e da fecundação. Se o uso da pílula foi liberado
e as mulheres tiveram acesso a ela e a outros caminhos que lhes permitiram a
emancipação na intimidade e no espaço público, isto ocorreu, em considerável
medida, graças aos movimentos feministas. Este também já é um outro assunto.
Mas já que estamos falando de mulheres e reprodução, cabe lembrar que outra
reivindicação da agenda feminista é o direito à interrupção voluntária da gesta-
ção, ou seja, direito ao aborto seguro.
Considerando que a mulher deve ter autonomia do seu corpo e o gran-
de número de mulheres que morrem em decorrência de abortos realizados de
forma precária, as feministas buscam a conquista de mais este direito para as
mulheres. Há, inclusive, uma discussão de classe social aí embutida, visto que
mulheres de médio e alto poder aquisitivo também se submetem a abortos, mas
em clínicas especializadas que, embora sejam clandestinas, possuem o suporte
adequado para tal prática.
 As práticas sexuais nos remetem também à associação entre corpos, se-
xualidadese saúde. Daí, eu convido o leitor a uma passagem pela década de 1980,
quando foi descoberto que havia uma doença letal de srcem desconhecida levan-
 
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do à morte um grande número de pessoas. Considerando que o maior número de
infectados eram os gays, a ela foi atribuído o nome de câncer gay. À medida que
os estudos avançam, descobre-se que não são apenas os gays que possuem tal do-
ença, ela era transmitida por um vírus que debilitava o sistema imunológico hu-
mano, tornando-o vulnerável a doenças (as chamadas “doenças oportunistas”).
Era então isolado o vírus da AIDS, transmissível não apenas pela via sexual, mas
também pelo sangue, de mãe para filho/a etc. O que tem isso a ver com sexualida-
de? Bom, com esta descoberta, passa-se a regular os comportamentos sexuais. O
grande pavor e as campanhas de ONG's e dos governos que espalharam a neces-
sidade de utilizar o preservativo como meio de evitar a contaminação com o vírus
que àquela época levava à morte em pouco tempo.
 As pessoas mudaram seus comportamentos sexuais em virtude de uma
questão que se tornou preocupação do Estado, devendo este intervir para o seu
controle e para a busca da cura. Fica claro, portanto, a interface pública que
assume a sexualidade. E este é só um exemplo. Podemos elencar o discurso mé-
dico que diz o que é ou não “natural” ou “adequado”, nos usos que fazemos dos
nossos corpos, a gravidez na adolescência, que permite pensar nos padrões de
comportamentos que mudam ao longo do tempo (lembra que a cultura é dinâ-
mica?) e na homofobia, como reflexo do etnocentrismo, do discurso médico do
século XIX que classificava as práticas homossexuais como doença.
Se aqui estamos tratando dos comportamentos relativos a homens e
mulheres, estamos tratando também de gênero.gênero. O conceito de gênero passou
por algumas modificações desde que foi enunciado pela primeira vez (é comum
no campo das ciências sociais isto ocorrer). O primeiro a formalizar um con-
ceito de gênero foi o psicanalista norte-americano Robert Stoller, em 1963, ao
tratar de identidade de gênero. Stoller pretendia com o conceito de identidade
de gênero fazer a distinção entre o que era natureza e o que era cultura atuando
sobre um sujeito. Assim sendo, podia-se falar de sexo como estando no domínio
da natureza (genes, hormônios) e gênero (psicologia, sociologia) estando no do-
mínio da cultura, ou seja, todo o aprendizado amealhado desde o nascimento.
Grosso modo, o que se tem é uma classificação dos indivíduos de acordo com
o aparato biológico (nascemos com a genitália de menino ou de menina). No
entanto, o conceito de gênero vem para dizer que ser homem ou ser mulher não
tem a ver com este aparato, mas com a maneira como aprendemos a ser um ou
outro, isto é, como a cultura nos ensina. Quando falamos de aprendizado cultu-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos80
ral, estamos afirmando também que aí está influenciando o contexto histórico,
o lugar e até mesmo a classe social. Embora as mulheres ocidentais pareçam
todas iguais, se observamos de perto, perceberemos que as mulheres da zona
urbana não se comportam da mesma maneira que aquelas da zona rural, assim
como na zona urbana as mulheres de classe média se projetam no mundo de
uma maneira que não corresponde àquelas de classe social diferente.
Então, quando tematizamos gênero, estamos afirmando que existe
uma distinção fisiológica sim, mas que ela não é determinante para pensar os
comportamentos em sociedade, que o sentido atribuído a esta diferença natu-
ral, varia de acordo com a cultura. Daí nos encontramos diante da identidade
de gênero. Nem sempre alguém que nasce com o sexo feminino se identifica
com aquele corpo, não se identifica com o aparato biológico. Outros casos que
exigem também reflexão são os dos indivíduos que nascem com órgãos sexuais
femininos e masculinos, que são os “intersexos” (outrora chamados hermafro-
ditas), devendo ser submetidos a intervenção cirúrgica e tratamento hormonal
e psicológico para se adequar ao sexo que lhe restou.
Os estudos de gênero passam a tomar corpo e ganhar importância po-
lítica através dos movimentos feministas dos anos 1970, que utilizavam a ideia
contida no conceito de gênero para desnaturalizar as desigualdades entre ho-
mens e mulheres. Se é na cultura que construímos homens e mulheres, pode-
mos descontruir também as desigualdades neste plano, que inclui o social. Daí
a abertura para reivindicar direitos iguais para homens e mulheres.
 As feministas impulsionam um movimento que pretende ampliar o lu-
gar da mulher para além das paredes do lar, já que ela não é apenas a matriz
reprodutora da família. Quando estabelece este movimento de emancipação fe-
minina fazem repensar também o lugar do homem na sociedade, propondo que
se repense as masculinidades, visto que ser homem e ser mulher se constrói
mutuamente.
Pensando por este viés da relação entre homens e mulheres, chegamos
a uma intersecção que algumas vezes ocorre de maneira violenta. E nem sempre
a violência é física ou explícita. As violências dirigidas às mulheres chegam à
força física, mas ocorrem também através da intimidação, da tortura psicoló-
gica, do assédio sexual, do cerceamento dos seus direitos e até mesmo quando
o marido exige ter relações sexuais com sua esposa, sem seu consentimento e
contrariando a sua vontade (o chamado estupro conjugal). Ainda que os núme-
 
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ros mostrem que a situação continua preocupante, as mulheres conseguiram
um reforço contra o problema da violência: a Lei Maria da Penha. Sancionada
em agosto de 2006 com o objetivo de coibir e punir a violência contra as mu-
lheres, a Lei n. 11.340/2006Lei n. 11.340/2006 recebeu o nome de Lei Maria da PenhaLei Maria da Penha como
uma forma de homenagear a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes,
 vítima da violência do seu então marido, que chegou a atirar contra a mesma,
deixando-a paraplégica.
De acordo com a referida lei, todo tipo de violência ocorrido no âmbito
doméstico ou no seio familiar de ser investigado por meio de inquérito policial
e acompanhado pelo Ministério Público. Além de definir o que é a violência do-
méstica e familiar contra a mulher, a lei acabou por modificar algumas questões
nos aspectos policial e judicial. No caso deste último, a alteração foi feita de
modo a permitir, por exemplo, a atuação do juiz no sentido de decretar a prisão
preventiva do agressor – nos casos de risco à integridade da mulher – e para
obrigá-lo a comparecer a programas de reeducação e recuperação.
Deve-se enfatizar que a Lei Maria da Penha classifica como violência
contra a mulher, não apenas a violência física, mas também violência psicoló-
gica, sexual, patrimonial e moral, independente, inclusive, da orientação sexual
da vítima. Há mais: caso a vítima seja portadora de deficiência, a pena do agres-
sor aumenta em um terço.
Para que você tenha ideia de quão importante é uma questão que para
alguns não passa de “problema doméstico”, a lei à qual nos referimos é resulta-
do de uma discussão que mobilizou várias ONG’s, a Secretaria Especial de Polí-
ticas para as Mulheres e o Governo Federal. A preocupação com a efetividade da
lei também mobiliza várias entidades articuladas com o Conselho Nacional de
Justiça, visando à popularização da mesma para permitir que as mulheres víti-
mas de violência tenham o devido acesso à justiça. Talvez você tenha percebido
como isto vem repercutindo, seja através das propagandas veiculadas nas mí-
dias; na piada que alguém dirige a um homem, advertindo em tom de anedota:
“cuidado com a Lei Maria da Penha!”; ou mesmo algumamulher do seu círculo
de amizade ou familiar que já teve que acionar a justiça para garantir a proteção
através da lei.
 As campanhas contra a violência doméstica esbarram, porém, numa
grande muralha que se junta ao medo de denunciar o agressor: o fator cultural.
Isto fica evidente naquele dito popular que é muito repetido calando possíveis
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos82
denúncias: “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!”. Este adágio
popular acaba por reduzir a violência contra a mulher a um problema da intimi-
dade do casal, circunscrito ao lar, quando na verdade não é. Não é à toa que o
Conselho Nacional de Justiça incentiva as campanhas com o objetivo de operar
o que denomina de mudança cultural, pois através dela pode se pensar na erra-
dicação da violência contra as mulheres. Ou seja, tá na hora de utilizar a colher
para jogar por terra a omissão diante da agressão, não acha?
 Ainda que a observância desta lei não esteja ocorrendo de maneira total-
mente eficaz é mais um horizonte que se abre para superar a desigualdade de gêneros.
Gostaria de sinalizar com este exemplo, como a interferência nos modos
de vida das mulheres repercute na vida dos homens também. Ao promulgar uma lei
deste tipo que visa à proteção das mulheres, exige-se que o homem modifique seu
comportamento, não apenas em relação a sua companheira (ou ex), mas nas rela-
ções com todas as mulheres. Ao ser punido, através de uma lei, os seus modos de
interação serão repensados e isto reflete também em outros âmbitos da vida social.
Muitas informações para se situar antropologicamente no mundo? Su-
giro uma pausa, uma água e que retome mais uma vez o fôlego para encarar
mais uma temática. Vamos falar sobre religião. Vejamos antropologicamente o
que foi feito a respeito do tema...
 Assim como sexualidade e gênero, uma das faces da cultura que é qua-
se sempre fonte de debates intensos e a partir da qual as intolerâncias (assim
como as crenças) se revelam das formas mais intensas e violentas é a religião.
Questionar a fé ou o deus do outro é algo recorrente, assim como as tentativas
de impor o seu próprio deus ou a sua crença. Voltando à época da antropologia
evolucionista, poderemos perceber quão antiga é a dificuldade em entender e
mais ainda em aceitar que cada culto, cada ritual, cada sistema simbólico tem a
sua lógica e atende às “necessidades” de quem os pratica. Ao lado do parentesco,
da economia e da política, a religião foi um dos temas mais explorados no cam-
po antropológico desde os seus primeiros tempos. Mas isto não quer dizer que
a percepção de religião tenha sido a mesma. Não. E talvez justamente por isso
tenha causado tanto estranhamento e tanta curiosidade aos que se aventuraram
a estudar os rituais mágico-religiosos.
 Assim como Lewis Morgan pensou no desenvolvimento unilinear das
sociedades humanas, a partir de uma escala evolutiva e dos períodos étnicos que
compreendiam, respectivamente, selvageria, barbárie e civilização, James Frazer
 
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(1854-1941), outro expoente desta corrente de pensamento, deteve-se a explicá-la
através do desenvolvimento do tipo de pensamento predominante nas socieda-
des, partindo da magia, passando pelo estágio intermediário que seria a religião, e
chegando ao ápice da escala, a ciência (presente apenas nas sociedades desenvol-
 vidas como as europeias). Em sua principal obra, O Ramo de Ouro (1890), Frazer
se detém a estudar a regra para a sucessão do sacerdócio no templo do bosque de
Nemi, entendendo que qualquer um poderia ser sacerdote e rei daquele bosque,
desde que arrancasse o ramo de ouro – planta sagrada – e, em seguida, matasse
o sacerdote. A leitura que o referido autor fazia era a de que o sacerdote represen-
tava o deus no bosque. Assim sendo, a morte do sacerdote significava a morte de
um deus. Deste modo, Frazer pretendia estabelecer uma conexão entre sacrifícios
de ideias e costumes selvagens com doutrinas da cristandade.
Outro tipo de abordagem antropológica no âmbito da religiosidade
 vem de Robert Hertz (1882-1915), colaborador da Sociologia Francesa que tem
como fundador e principal representante Émile Durkheim. Além de inspirar
seus discípulos e seguidores, Durkheim se dedicou intensamente ao estudo des-
te aspecto da sociedade, cuja expressão maior é o seu livro As Formas Elementa- 
res da Vida Religiosa (publicado em 1912). Hertz, um dos autores influenciados
pelos ensinamentos de Durkheim, preocupa-se em demonstrar a importância
da polaridade religiosa para pensar a sociedade como todo. A sistematização
desta ideia está demonstrada em A Proeminência da Mão Direita (1909), no
qual Hertz se detém a buscar uma explicação para o uso privilegiado que faze-
mos da mão direita, cabendo à esquerda o papel de apoio, de auxiliar: “Não é
porque seja fraca ou sem poder que a mão esquerda é desprezada: o contrário é
 verdade”, afirma Hertz (1908, p. 102). A distinção entre no uso das mãos seria,
segundo o autor, reflexo da polaridade religiosa, pois as representações coleti-
 vas tiveram suas srcens nas emoções e nas crenças religiosas.
No mundo religioso, segundo a leitura hertziana, a oposição sagrado
x profano assume grande importância, separando seres e coisas que têm poder
dos que não o tem. Assim sendo, as proibições e tabus mantêm esses elementos
separados e estes, por sua vez, gerenciam toda a vida social. Conclui Hertz que
se a polaridade sagrado (nobre) X profano (impuro) governa todo o universo,
o corpo do homem não poderia escapar, logo, o lado direito diz respeito ao que
é sagrado, nobre, masculino, forte, ativo. Por oposição, o lado esquerdo estaria
atrelado a tudo que é profano, feminino, comum, passivo.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos84
Seguindo o rastro daqueles antropólogos que nutriram interesse pelas
coisas sagradas e profanas, ou por maneiras de dominar a natureza, chegamos
a Edward Evans-Pritchard (1902-1973), um dos representantes da antropologia
social inglesa, que teve como precursores B. Malinowski e A. Radcliffe-Brown
(já conhecidos nossos). Contratado pelo governo britânico para estudar uma de
suas colônias, Evans-Pritchard desembarca entre os Azande, uma tribo locali-
zada na África Central. Ele vai além de autores que pretendiam estudar o que
lhes pareciam crenças religiosas irracionais e se dedica ao estudo da bruxaria
entre os azande. Na sua perspectiva – funcionalista –, a bruxaria é percebida
como força estabilizadora do sistema zande. Ela está presente em todas as ati-
 vidades daquela sociedade e é o fator explicativo da relação entre os homens e
os infortúnios, assim como um meio de reação aos eventos funestos. Segundo
Evans-Pritchard (2005, p.49), estas crenças compõem “um sistema de valores
que regula a conduta humana”. Para nós, coisas misteriosas não são explicadas
por leis naturais, são sobrenaturais. Entre ao Azande não há esta distinção en-
tre natural e sobrenatural, a bruxaria é um evento ordinário, normal. Estamos
lidando, pois, com classificações distintas das nossas.
O que esta em jogo quando falamos magia, e ousamos estender à reli-
gião, é o que Claude Lévi-Strauss (1908-2009) chama de eficácia simbólica. A
eficácia da magia implica na crença que a sustenta, assim como ocorre na reli-
gião, observados os devidos contextos. Três aspectos devem ser considerados no
que diz respeito à eficácia simbólica, de acordo com Lévi-Strauss (2008, p.194),
“a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas; a crença do doente que ele
cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do próprio feiticeiro; a confiança
e as exigências da opinião coletiva”.
Mas não ache que religião foi assunto abordado apenas pelos autores
clássicos da antropologia! Há diversos grupos de pesquisas e autoresque in-
dividualmente, se debruçam sobre os diferentes tipos de cultos religiosos, aos
diferentes sistemas de crenças, inclusive motivados pelas mudanças que vêm
ocorrendo no perfil da sociedade brasileira – predominantemente católica – no
que diz respeito à religião. Algumas pós-graduações no Brasil dispõem, inclusi-
 ve, de linhas de pesquisa dedicadas ao estudo de grupos religiosos. Não esqueça
que, também nesse sentido, a mistura se fez na formação do Brasil!
 
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Consagração da hóstia
na missa católica
Os orixás cultuados nos
terreiros de candomblé
Interior deInterior de
uma mesquitauma mesquitano Irãno Irã
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos86
 Apesar da mescla que se instaurou desde o início no Brasil, não esti-
 vemos isentos de conflitos religiosos – e em outras partes do mundo eles tam-
 bém se fizeram e fazem presentes – que até hoje se manifestam. Exemplo da
intolerância ou do preconceito que se instaura também no campo religioso foi
a notícia veiculada recentemente na mídia de que um juiz federal do Rio de Ja-
neiro emitiu uma sentença argumentando que cultos afro-brasileiros – também
chamados de religiões de matriz africana – como umbanda e candomblé não
são religião. Tratava-se de uma ação do Ministério Público Federal solicitando a
retirada de vídeos – no Youtube – de cultos evangélicos considerados ofensivos
ao candomblé e à umbanda, por apresentar intolerância e preconceito. Para o
 juiz, para ser considerada religião, uma crença tem que se basear em algum livro
(a bíblia, alcorão, torá), possuir estrutura hierárquica e culto a um só deus. Após
a repercussão da sua postura, que mobilizou a opinião pública e um recurso do
Ministério Público, o juiz Eugenio Araújo voltou atrás, modificando parte da
sentença, ao admitir que a umbanda e o candomblé são religiões, mas manteve
a negativa à solicitação de retirada dos vídeos.
Se ao pensarmos em religião estamos pensando em crença, fé, eficácia
simbólica, como,então, condenar alguém que cultua um deus que não é O Deus?
Como não aceitar que existem outras crenças tão eficazes quanto as nossas para
atender às nossas angústias e responder às nossas questões existenciais? Assim
como há pluralidade no exercício da nossa sexualidade ou na forma de conce-
 bermos o gênero, as práticas religiosas são também plurais, graças a Deus, a
Jah, a Oxalá, a Alá...
 Apesar da breve incursão em temas tão amplos e inquietantes (para
dizer o mínimo), espero que você tenha conseguido refletir sobre a importância
de pensá-los antropologicamente e como a Antropologia pode contribuir para a
análise e intervenções nessas áreas. Pronto para mais um capítulo?
 
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2.3. Diversidade familiar e parentesco2.3. Diversidade familiar e parentesco
É inegável a importância dos estudos sobre o parentesco para o de-
senvolvimento da Antropologia. Vários aspectos destes estudos fomentaram
debates enriquecedores para a disciplina, apesar do impacto que algumas pro-
posituras causaram. Família e parentesco, conceitos que constituem os “alicer-
ces históricos da Antropologia”, como coloca Claudia Fonseca (2010), após um
período à sombra de questões outras, passaram a incorporar as discussões an-
tropológicas, tendo como combustível as mudanças nas relações familiares que
testemunhamos há algumas décadas.
Talvez um dos melhores exemplos disso seja a chamada família patriar-
cal brasileira, a família que Gilberto Freyre tornou célebre e foi pintada como o
único quadro a ilustrar a história da família brasileira. A família patriarcal as-
sumiu um papel central em se tratando de família brasileira, ofuscando outros
tipos de arranjos familiares que se formavam e existiam, “apesar dele”. Definida
como um grupo extenso, formado pelo núcleo conjugal e a prole legítima, so-
mando agregados, parentes, afilhados e escravos, a família patriarcal tinha o pai
como o centro da autoridade, subjugando a esposa e os demais personagens que
a compunham. Eleita como modelo dominante, o que estava fora do seu jugo
era considerado uma massa amorfa que não poderia ser denominada família,
com isso excluindo os arranjos formados pelos artesãos, pequenos proprietá-
rios e funcionários da Coroa portuguesa, assim como outros personagens que
povoavam a colônia.
Mariza Corrêa (1994) propõe uma leitura crítica deste tipo de história,
relativizando a importância e o papel desta família, questionando a associação
mecânica feita por alguns autores entre o desenvolvimento econômico e social
de uma dada região e a percepção da família patriarcal como sendo a grande
responsável pela formação da sociedade brasileira, eleita como um modelo do-
minante. Com a tessitura de seus argumentos, Corrêa nos alerta para o fato de
que “a família patriarcal pode ter existido e seu papel ter sido extremamente
importante, apenas não existiu sozinha nem comandou do alto da varanda da
casa grande o processo total de formação da sociedade brasileira” (CORRÊA,
1994, p.27).
 A mencionada autora adverte que assim como houve a marginalização
prática de outras formas familiares através da família patriarcal, esta margina-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos88
lização vem também se instaurando no aspecto teórico, quando alguns autores
que fazem a história da família brasileira atribuem formas familiares alterna-
tivas à marginalidade. Este modo de pensar uma configuração familiar como
um tipo central, negando organizações diversas, é também utilizado quando se
trata da família nuclear, aquela formada por um homem, uma mulher e uma
prole restrita. Este tipo de estrutura familiar é apontada como o modelo por ex-
celência, resultado do processo de industrialização e urbanização, não deixando
espaço para que os demais arranjos familiares sejam reconhecidos ou percebi-
dos como outras possibilidades legítimas. Este olhar monolítico sobre a família
acaba por eclipsar a diversidade, tingindo com esta única cor o contexto social e
as relações de parentesco da sociedade brasileira na atualidade, que apresentam
uma multiplicidade de arranjos domésticos, contemplando diferentes formas
de relações.
Heloísa Almeida (2004) é uma das vozes da Antropologia que nos cha-
ma a pensar em outros elementos que são importantes para pensar a família,
afastando a ideia de que há uma crise familiar por não estarmos obedecendo a
um único padrão de família. Almeida indica elementos como geração e classe
para ilustrar possíveis fontes de diferença que afetam a construção dos arran-
 jos domésticos. Não se enquadrando no ideal normativo da família nuclear, os
arranjos domésticos populares são classificados como famílias desestruturadas,
responsabilizados de maneira mais incisiva pela chamada “crise da família”. A
possibilidade de diversidade é dominada pela ideia de desestruturação que ca-
racteriza a família “pobre e favelada”, como pensam alguns autores.
Esta maneira de abordar a família (idealizando um único modelo) é
o que favorece também a divulgação de uma suposta crise da mesma. Deste
modo, os casos de mulheres que assumem a chefia da casa, a coabitação de
 várias pessoas na mesma residência, seja como uma maneira de obter cuidados
– avós que cuidam de netos, filhos que cuidam dos pais – ou de superar a falta
de dinheiro para ter seu próprio lar, como exemplifica Heloísa Almeida (2004),
são configurações que atestam a pluralidade de arranjos familiares nas classes
populares, mas não exclusivamente nelas. Você certamente já se deparou com
algum desses tipos de arranjo que não estão de acordo com os padrões delimita-
dos pela sociedade como sendo o modelo “correto”de família!
 
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 As classes mais abastadas desejam, também, um modelo de família que
nem sempre corresponde à realidade. Os divórcios e separações que modificam
as camadas populares também se fazem presentes nos lares de classe média.
Com isso, as mães que administram um lar sem o pai são personagens presentes
nos domicílios das camadas médias da sociedade, assim como são recorrentes
os indivíduos que passaram recasamentos, formando as famílias recompos-famílias recompos-
tastas1414 ou abrigando diferentes gerações sob um mesmo teto (nos casos em que o
homem ou a mulher volta a morar com os pais, após o divórcio, levando consigo
um ou mais filhos, por exemplo). As condições de vida – tanto material quanto
social e afetiva – diferem, mas a flexibilidade da estrutura familiar é comparti-
lhada tanto pela classe média quanto pelas classes populares.
Está claro, então, que tanto a família patriarcal quanto a família nu-
clear, vista como sua substituta, são estereótipos de famílias sobres os quais os
holofotes incidem e deixam as demais organizações familiares à sombra, ali-
mentando uma visão negativa da família?
14 Famílias que são formadas por casais que trazem filhos de relações anteriores transfor-
mando um dos cônjuges ou ambos e padrastos e madrastas.
 A gravura acima é representativa de um modelo de família tradicional que tem sua srcem no casal composto
por um homem e uma mulher, o marido e os filhos.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos90
 Ao contrário de uma “crise” da família, devemos pensar, como sugere
Goldani (1993) nestes casos que fogem à regra, como o fortalecimento dos laços
familiares e de parentesco, visto que com o aumento da expectativa de vida “nós
 brasileiros, hoje, temos maiores chances de passarmos mais tempo como mem-
 bros de uma ou mais famílias, quer no papel de pai, mãe, filhos, esposos, avós,
etc.” (GOLDANI, 1993, p.71). Disto resulta a necessidade de exercermos vários
papéis ao mesmo tempo e a convivência de diferentes gerações, atuando no sen-
tido de uma reestruturação da família. Goldani sugere ainda, que as famílias
sejam percebidas não como estruturas fixas no tempo e sim como processos. É
o que também sugere Cristina Bruschini (1993), ao indicar que a família é uma
construção, não algo natural. Assim sendo, tem como característica a mutabi-
lidade.
Eis um ponto que deve ser explicitado. Assim como os outros temas
trabalhados até aqui, também a família é uma construção, não é algo natural,
embora muitas vezes tendamos a assim percebê-la. Pais, mães, filhos, sempre
existirão em diferentes sociedades, mas os parâmetros para designar quem é pai
ou mãe, por exemplo, variam de uma sociedade para outra. E esses parâmetros
nem sempre coincidem com os vínculos biológicos, como estamos acostumados
a pensar. Lembre-se, por exemplo, dos pais adotivos, para ajudar a quebrar esta
ideia de que família de constrói a partir de “laços de sangue” apenas.
 Voltando à família na sociedade brasileira, existem estudos que pode-
mos utilizar para ilustrar a pluralidade de percepções sobre a família e as inter-
pretações feitas sobre elas. Se elegermos o matrimônio (casamento) como foco
de análise, por exemplo, são vastas as possibilidades de leituras sobre a família.
Se em outras épocas o casamento era “arranjado” pelos pais dos noivos, como
uma maneira de manter ou conquistar patrimônio, hoje podemos falar em “livre
escolha” dos cônjuges. Se para haver casamento era necessário confirmar no
cartório e na igreja, hoje basta a coabitação (morar sob o mesmo teto) para se
considerar e ser considerado casado. O que quero que você entenda é que mu-
danças como estas, aparentemente sem importância, refletem na família e no
parentesco. Aliás, são “detalhes” como estes que são os responsáveis por estas
diferentes formas de família.
 Ao eleger um dos componentes da família para observação é possível
que se tenha a dimensão de flexibilidade que ela possui, transformando e sendo
transformada por mudanças internas que dialogam com as mudanças externas
 
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que são, digamos, sua moldura. Considerando que não se trata apenas de uma
questão privada e íntima, as famílias são produtoras e produtos de transforma-
ções econômicas, sociais e demográficas. Deste modo, as mudanças que ocor-
rem no mundo externo chamam os membros familiares a redefinir seus papéis.
 A reestruturação dos modos de produção, a participação da mulher no mercado
de trabalho, o aumento na expectativa de vida, queda na taxa de fecundida-
de são elementos que se articulam, configurando novos estilos de vida para os
quais a família não está blindada. Percebe como isto torna legítimo o estudo an-
tropológico da família, que não se trata de uma questão de foro íntimo somente?
Os personagens e seus papéis, outrora definidos clara e hierarquica-
mente, são revistos, à medida que as transformações no nível macro, isto é, na
sociedade, os levam a tomar outras posições. Veja-se como exemplo o papel da
mulher. Sua entrada no mercado de trabalho trouxe consequências que extra-
polaram a esfera doméstica, incidem sobre as relações trabalhistas, o aspecto
econômico etc. Constatando-se que o crescimento da atividade profissional fe-
minina não alterou a divisão dos papéis e que as atividades relacionadas ao lar
e aos filhos permaneciam sob a responsabilidade das mulheres, que se dividiam
entre a casa e o trabalho fora dela, novas questões foram postas. Passou-se a
perceber o binômio atividade feminina/vida familiar como uma questão social.
Os olhares se voltaram para a mudança que ocorre no espaço conjugal,
tendo em vista que é o comportamento feminino que transforma acentuada-
mente a maneira de viver a conjugalidade. Mas, como foi colocado anteriormen-
te, esta mudança não se restringe à esfera privada. Uma análise da interação
familiar é legítima e possível porque “a atividade profissional das mulheres que
são mães interpela a sociedade, seja a nível das empresas e das administrações
de saúde, seja a nível da escola e da habitação” (SEGALEN, 1999, p.243-244). A
mencionada autora lembra que o trabalho da mulher não é algo recente, mas o
que o distingue na sociedade contemporânea é que em outras épocas não havia
incompatibilidades entre tarefas domésticas e maternas com as atividades pro-
dutivas, como ocorria na sociedade agrária. Apesar de existir um equilíbrio en-
tre homem e mulher, a autoridade, que é fundamental, está nas mãos do homem
tanto no público quanto no privado, que é sua reprodução. Nesta sociedade, há
complementaridade do trabalho do homem e da mulher, que produz uma con-
tinuidade das relações na casa e na aldeia. Muda-se o contexto, porém, a po-
sição da mulher permanece como mola propulsora e termômetro de mudanças
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos92
nas esferas pública e privada. O aumento do grau de instrução, acesso à con-
tracepção, reconhecimento do estupro e do assédio sexual etc. são fatores que
deslocam a posição da mulher e que reflete na família como um todo.
Outro elemento que deve ser considerado é a presença do Estado nas
relações familiares. Para intervir nestas relações, ele conta com a assistência de
peritos e autoridades morais personificados em médicos e psicólogos, que passam
a oferecer subsídios para construir discursos e políticas que interferem sobrema-
neira na conjugalidade e nas relações parentais, visto que lhe permite controlar as
famílias através da criança15, que até certo período da história era ignorada.
O que as diferenças na composição de diversos arranjos familiares reve-
lam, volto a chamar a suaatenção, não é o fim da família ou sua desestabilização,
mas transformações possíveis, desde que se tenha claro que “‘família’, longe de
ser uma unidade natural, representa o agregado de diversas relações, é perpas-
sada por diversas forças institucionais e envolve a participação mais ou menos
íntima de diferentes personagens” (FONSECA, 2008, p.773). Seria preciso tirar
a família da singularidade e da estática para atribuir-lhe o “S” que a sua dinami-
cidade e diversidade atestam, fugindo à ortopedia a que foi lançada por teorias e
ideologias que privilegiavam um modelo hegemônico – tal como a família patriar-
cal ou nuclear – escondendo outras possibilidades existentes e resistentes.
Em meio à diversidade e transformações que questionam ou reelabo-
ram os papéis desenvolvidos na unidade familiar está a parentalidade a redefi-
nir as trajetórias familiares. Segundo Claude Martin (2004), se tomarmos famí-
lia nuclear como referência de legitimidade, as noções vigentes de parentesco,
maternidade e paternidade, os papéis de pai e mãe parecem ser suficientes, mas
com as transformações das estruturas familiares, diz o autor, esta família bipa-
rental simples é interrogada por todos os lados e novos atores tomam seu lugar
no contexto familiar, podendo ser conduzidos a desempenhar outros papéis na
socialização das crianças, enquanto que aqueles, outrora legítimos e instituídos,
podem ver seu papel desaparecer. Ou seja, a uma complexidade de trajetórias
familiares correspondem papeis também complexos. Vejamos do que se trata...
O recasamento já havia sido experimentado em outro período e com
isso a possibilidade de um pai ou uma mãe substituta (padrastos e madrastas)
se instaurou. A mortalidade, uma causa natural, construía viúvos e por deman-
15 Todos esses cuidados e direitos voltados para a criança que presenciamos atualmente,
não ocorre em todos os momentos da historia.
 
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das várias, permitia-se que outro indivíduo substituísse o papel parental do
falecido ou falecida, embora uma aura pejorativa acompanhasse estas figuras
(vide os contos de fadas que retratam a madrasta má e o padrasto como prin-
cipal agressor e violentador de crianças). O divórcio recorrente não cria então
uma novidade, se consideramos o recasamento. Entretanto, se conjugarmos a
expectativa de vida, a vontade do indivíduo e o modelo genealógico de filiação, o
resultado é diferente. A viuvez de um dos cônjuges era frequente, devido às altas
taxas de mortalidade, e um fato a ser suportado, algo que independia da vontade
dos casais. A chegada de outra pessoa para exercer o papel parental satisfazia
a uma demanda criada social e, muitas vezes, economicamente. À medida que
a expectativa de vida aumenta, a tendência é que os casais passem mais tempo
 juntos, sem que o estado civil de viúvo ou viúva seja experimentado facilmente.
Por outro lado, com o surgimento do divórcio o rompimento do vínculo conju-
gal aparece como uma possibilidade de escolha. Os motivos para a ruptura não
são legitimados apenas por falha de um dos cônjuges, mas por necessidades
outras, que tem a ver muitas vezes com a realização pessoal (ou a ausência dela
no âmbito matrimonial) ou consenso quanto ao fim da harmonia no seio con-
 jugal. Tem-se, pois, a separação entre o casal conjugal e o casal parental. Per-
mitimo-nos eximir da questão da guarda dos filhos, maiores índices de homens
ou mulheres que ficam com eles, os dados que comprovam ou descartam tais
índices etc., visto que nosso interesse é chegar à entrada de outras pessoas que
 vão desenvolver o papel parental (de pai ou de mãe, ou alguém que vai cuidar
das crianças, sem necessariamente, ser o pai ou a mãe), assumindo-o mais ou
menos intensamente, sem que isto signifique, necessariamente, a ausência de
um dos genitores (pai ou mãe biológico). Ou seja, na configuração de situações
em que a pluriparentalidadepluriparentalidade1616 é a palavra de ordem.
Embora o padrasto e a madrasta não gozem de estatuto jurídico que
lhes atribui direitos e deveres relacionados aos “filhos do divórcio”, eles com-
partilham o cotidiano com os pais biológicos, que são reconhecidos jurídica e
socialmente. Tal situação remete mais de perto à questão da pluriparentalidade
em uma sociedade que molda suas relações a partir de uma modelo de filiação
genealógico. Tal modelo preconiza a ideia de que o indivíduo é gerado por dois
outros indivíduos de uma geração ascendente e de sexos diferentes, que são
16 Grosso modo, a palavra designa uma situação em que há mais de uma pessoa responsá-
vel por desempenhar o papel de pai e/ou de mãe.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos94
seu pai e sua mãe, e tem como norma a exclusividade, isto é, a posição de filho
é dada por apenas um homem e uma mulher. Ao mesmo tempo em que podem
ocorrer conflitos de diferentes ordens – conjugais, emocionais, psicológicos –
esta situação de pluriparentalidade não se configura nos planos jurídico e social,
se considerarmos que os padrastos e as madrastas não têm vínculos jurídicos ou
 biológicos com os/as filhos/as dos seus cônjuges. Assim sendo, não ocupam a
posição de pais ou mães adicionais, “apenas” substituem aqueles ou aquelas que
estão ausentes na nova arquitetura familiar que se construiu cotidianamente.
Dentro do movimento de transformações das estruturas familiares há
outro arranjo familiar que interroga fortemente a biparentalidade, abalando
consideravelmente os pressupostos expressos no modelo genealógico de que
falamos acima, e que privilegiam, não apenas a exclusividade da filiação, mas
também o par heterossexual: são as famílias constituídas por casais de gays e
casais de lésbicas, as chamadas famílias homoparentais.
 As famílias formadas por casais homossexuais ilustram a dinâmica na
qual o parentesco está imerso, cujo movimento, segundo as épocas e os lugares,
permite elaborar o que é permitido ou não, obedecendo aos parâmetros de cada
cultura, (re)ordenando a trindade do parentesco: aliança, filiação, residência.
No contexto atual, as famílias homoparentais se configuram como exemplo do
que é interdito, visto que não pode corresponder à montagem fundada no as-
pecto natural que necessita de um pai e uma mãe, escapando ao tal princípio
genealógico. Na contramão do que indica e deseja a norma heterossexual, a fa-
mília homoparental vem adquirindo visibilidade ao longo das últimas décadas.
Independente dos meios utilizados para ser constituída, ela rompe com o mode-
lo de família pai - mãe - criança, questiona a ligação entre sexualidade, família,
casamento e filiação. Mais ainda: a diferença sexual não é mais considerada
como uma diferença constitutiva ou incontornável da reprodução.
 A morte da cantora Cássia Eller, em 2001, já havia despertado a aten-
ção para as famílias construídas por mães lésbicas, considerando que na oca-
sião, a opinião pública questionava se a companheira da cantora tinha o direito
de ficar com a guarda da criança – filho biológico da cantora – ou esta deveria
ficar sob os cuidados do pai de Cássia. Anos depois, em São Paulo, um casal tor-
nava pública a dupla maternidade de gêmeos concebidos através de reprodução
assistida. O caso foi bastante divulgado pela mídia impressa e televisionada (o
parto foi inclusive veiculado em programa da Rede Globo). Adriana e Munira
 
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tinham pouco tempo juntas e quando decidiram ter filhos através de sêmen de
doador anônimo, descobriram que uma endometriose que já tinha tirado o ová-
rio direito de Adriana, comprometera também o esquerdo, impossibilitando a
produção de óvulos.
 Assim sendo, sua parceira, Munira,doou os óvulos que seriam fecun-
dados com sêmen cujas características genéticas buscavam a semelhança física
com Adriana, que vivenciou os nove meses de gestação de um casal de gêmeos.
Com o nascimento dos bebês (um menino e uma menina), passaram às questões
 burocráticas para reconhecer juridicamente as duas mães. Após ter o pedido
de dupla maternidade negado por cinco vezes, as duas finalmente conseguiram
registrar as crianças com o nome das duas, mediante os esforços da advogada
Maria Berenice Dias, especialista em direito homoafetivo.
Estes dois casos citados são exemplos da visibilidade que as famílias ho-
moparentais vêm adquirindo ao longo dos anos, assim como os demais arranjos
familiares que foram ofuscados, ora pela família patriarcal, ora pela família nucle-
ar heterossexual. São exemplos também de que, apesar dos entraves biológicos e
 jurídicos, embora não sejam reconhecidas social e juridicamente, são famílias que
existem e que interpelam a sociedade a reconhecer sua existência.
 A despeito de leis que assegurem os vínculos entre os indivíduos que
compõem famílias homoparentais, estas organizações familiares têm sido cada
 vez mais notadas. Antes de tratar deste ponto, exatamente, gostaríamos de de-
dicar algumas linhas à formação dos casais que são ponto de partida para estas
famílias e a busca por reconhecimento jurídico e político como tais. Neste ponto,
 você pode articular gênero e sexualidade, já que foram debatidos anteriormen-
te. Esta discussão sobre famílias e casais gays pode ilustrar como a Antropologia
se coloca neste campo.
Tomemos como representativo do debate e luta por reconhecimento
legal, a discussão do PACS (Pacto Civil de Solidariedade), na França. Tal discus-
são deu mostras de que a conjugalidade homossexual não é um dado recente e
que há um forte movimento no sentido de institucionalizar a relação existente,
a fim de assegurar direitos e deveres aos cônjuges. Esta discussão sacudiu não
só as estruturas do mundo hétero como também os segmentos gays e lésbicos.
Entre estes últimos, alguns defendiam que a união legitimada pelo PACS era
um passo dado no sentido de sucumbir à ordem imposta pela norma heterosse-
xual (que valoriza a família nuclear), que oprimiu gays e lésbicas durante anos,
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos96
em contraposição aos que percebem este tipo casamento como uma maneira de
subverter a ordem patriarcal, ressignificar amor, família, sexualidade e até mes-
mo poder (Castro, 2007). Outro ponto que se analisa é o receio de que a permis-
são do casamento a gays e lésbicas favoreça uma estigmatização daqueles que
não desejam viver uma parceria estável, criando “uma distinção entre ‘gays de
primeira’ (casados) e ‘gays de segunda’ (não casados e acusados de promiscui-
dade)”, como sugere Vale de Almeida (2007, p.159). Neste sentido, estaríamos
diante de uma “dádiva ambivalente”, como sugere Butler (2003, p. 226).
O fato é que antes e durante (e até mesmo se um dia chegarmos a um
consenso, depois) o debate sobre conjugalidade homoerótica, casais de gays e
lésbicas se formam todos os dias, em todas as partes, e isto ficou visível com a
emergência do modelo individualista moderno e com o advento da AIDS, quan-
do se buscou a conjugalidade como forma de se proteger da epidemia e buscar
amparo legal devido às perdas de companheiros vítimas da doença (GROSSI,
2003). Assim, tais sujeitos continuam investindo neste tipo de união ,com ou
sem o amparo de leis, arcando com as consequências que o preconceito instau-
ra, experimentando os dissabores de atuar fora do script heterossexual. Se eles
são capazes de viver e compartilhar alegrias e problemas semelhantes aos casais
heterossexuais, ao mesmo tempo têm que lidar com obstáculos advindos “do
preconceito da sociedade e dos efeitos particulares da socialização de papel de
gênero em indivíduos homossexuais” (Mc Goldrick [1989] 1995 apud Nunan,
2007, p. 48). Reside aí uma das peculiaridades a ser considerada, por exemplo,
ao se pretender explorar a maternidade lésbica.
O debate brasileiro ganhou notoriedade a partir do Projeto de Lei 1151/95,
proposto pela então deputada federal Marta Suplicy, que visa instituir a parceria
civil entre pessoas do mesmo sexo. O referido Projeto de Lei foi debatido no âmbi-
to legislativo, gerando propostas de alterações, assim como propostas de vetos. Os
impasses, preconceitos e tensões nele imbricados, estenderam-se à sociedade mais
ampla, que então impediu a votação do projeto. Mas eis que em 2011, o Superior
Tribunal de Justiça aprovou a união entre pessoas do mesmo sexo.
Pela decisão do Supremo, os homossexuais passaram a ter reconhecido
o direito de receber pensão alimentícia, em caso de separação; declaração con-
 junta de Imposto de Renda; ter acesso à herança de seu/sua companheiro/a.
em caso de morte; podem ser incluídos como dependentes nos planos de saúde
e poderão transformar a união em casamento. Ou seja, os casais homoafetivos
 
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passam a ter quase os mesmos direitos que são concedidos aos casais heterosse-
xuais, sendo que as questões sobre filiação não foram tematizadas. A decisão do
Supremo dizia respeito ao pleito de um casal de gaúchas que viviam em união
estável e não cria regra para casos semelhantes. No entanto, abriu precedentes
para que situações semelhantes fossem julgadas de acordo com esta decisão.
E novos horizontes continuam a se abrir, a senadora Marta Suplicy
teve aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do
Senado, o projeto de lei do Senado 612/2011, que altera os artigos 1.723 e 1.726
do Código Civil, para reconhecer como entidade familiar a união estável entre
pessoas do mesmo sexo e a conversão desta união em casamento. Deste modo,
haveria a adequação do Código Civil à decisão do Supremo Tribunal Federal.
Outro passo dado nesse sentido foi a aprovação, em 2013, pelo Conselho Nacio-
nal de Justiça, de uma resolução que obriga os cartórios do Brasil a celebrar o
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Embora a legalização da união de pessoas de orientação homossexual
seja um grande avanço no reconhecimento de direitos a uma população extre-
mamente marginalizada, ela só foi possível porque ficou de fora da discussão o
direito de filiação a estes casais, assim como no debate sobre o PACS na França.
Isto não quer dizer, porém, que estes não consigam constituir famílias com fi-
lhos. Existem estratégias elaboradas pelo casal que os permitem ser pais e mães,
ainda que não obtenham automaticamente o reconhecimento jurídico de sua
condição.
 As maneiras de conceber filhos através de uma díade homossexual são
escolhidas de acordo com as trajetórias individuais e conjugais dos sujeitos e
suas possibilidades materiais. Mas há pelo menos quatro maneiras: recomposi-
ção familiar – um dos cônjuges tem filhos em relações heterossexuais anterio-
res e eles passam a morar com o casal homossexual; coparentalidade – casais
de gays e lésbicas entram em acordo para juntos conquistar a condição de pais
e mães; adoção; reprodução assistida - uma das parceiras doa o óvulo a ser fe-
cundado por sêmen de doador anônimo (veja o caso de Adriana e Munira, por
exemplo), ou um dos parceiros doa um sêmen para fertilizar um óvulo de do-
adora de óvulo e/ou útero, já que é necessário uma mulher para gestar o bebê.
Trata-se de um procedimento custoso, cujo preço varia conforme a técnica em-
pregada para a concepção, o que dificulta esta escolha, apesar dela representar
a possibilidade de ter um filho biológico.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos98
Espero que você não tenha ficado atordoado com tantas informações
sobre algo que lhe era tão familiar. Ou não foram tantas novidades assim, pois
 você já tinhareparado nesta diversidade familiar que nos circunda. Ou ainda:
não foi novidade porque você mesmo faz parte de uma família que não se en-
caixa tão perfeitamente naqueles modelos construídos pela nossa sociedade...
Seja lá qual for a opção, o fato é que os diferentes arranjos familiares estão a nos
rodear e isto não significa, fique claro, o fim da família, mas a sua reelaboração
que é nutrida por mudanças que ocorrem fora dos lares também.
2.4 Cultura do consumo e meio 2.4 Cultura do consumo e meio ambienteambiente
 
 Vimos no decorrer de nossa viagem sobre a abordagem antropológica
como a cultura é construída socialmente e como varia conforme a sociedade, a
dinâmica dos diversos grupos e no transcorrer do tempo. Vimos também que
são frutos da espontaneidade do cotidiano e do fazer humano e que podem,
a depender da regularidade e reprodução pelos indivíduos, transformar-se em
padrão cultural. Assim, temos o que é considerado a tradição de um povo ou
grupo ou o que convencionamos dizer “estar na moda”. Em especial no modelo
de sociedade em que vivemos, caracterizada pela diversidade cultural seja re-
gional, religiosa, áreas profissionais, estilos de vida, etc., concorrem, ao mesmo
tempo, com uma tendência à massificação dos comportamentos imposta pela
sociedade do consumo. Aliás, a base da formação socioeconômica capitalista
está centrada na produção em massa por meio das tecnologias cada vez mais
avançadas e da necessidade de escoamento dessa produção pelo consumo. Ima-
gine que o advento da acumulação da produção pela tecnologia provocou o mer-
cado de produtos e serviços a estimular o consumo para além das necessidades
 básicas e essenciais, como comer ou se proteger do frio. Para muitas pessoas,
não basta comer um sanduíche ou vestir um agasalho. É necessário que o san-
duiche esteja acompanhado de brindes e outros complementos que fazem parte
de um “combo”. Assim como o agasalho precisa ter aquela cor ou marca que vão
atribuir-lhe um status para além da necessidade de proteção. O produto consu-
mido possui o que Marx chamou de fetiche da mercadoria, ou seja, o encanta-
mento ou a aparência que a mercadoria confere a quem a possui.
 
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O desenvolvimento tecnológico é inevitável, uma vez que, pelo trabalho
o homem transforma a natureza e a busca pela melhoria da vida através das tec-
nologias é contínua. Associada à característica produtiva do sistema capitalista
de aquecimento da produção cria-se e intensifica-se a cultura do consumo. Con-
sumimos além das necessidades básicas, ao mesmo tempo em que temos um
mercado extremamente sedutor para o consumo. Muitas vezes a nossa identida-
de esta fortemente associada pelo nosso padrão de consumo, como percebemos
a noção de bem-estar associado aos bens materiais que conseguimos adquirir.
Faz parte da nossa cultura o “ter” prevalecer sobre o “ser”. O consumo se limita
apenas a saciar as necessidades imediatas. A dinâmica do consumo envolve as
formas de produção e a circulação desigual da produção.
Combinando a Revolução Industrial do século XVIII com a economia
de mercado – uma economia baseada no consumo de bens – e, por conseguinte,
de uma sociedade de consumo que emerge a partir da segunda metade do século
XIX, com o impulso dado pelas revistas e cartazes, surge a chamada indústria
cultural. É, pois, por meio das modificações trazidas pela industrialização que
se desenvolve uma cultura de massa e uma indústria cultural. Os mesmos prin-
cípios vigentes na economia industrial são aplicados na indústria cultural e na
cultura de massa. Neste contexto, a cultura é produzida em série – por meio da
indústria – perdendo seu poder contestatório, seu poder crítico, para ser consu-
mida como qualquer outra coisa produzida pela indústria.
Este cenário e seus desdobramentos são objeto de estudo da chamada
Escola de FrankfurtEscola de Frankfurt, fundada como Instituto de Pesquisa Social, em 1923,
por Carl Grünberg, inicialmente pensado para fazer um levantamento das lutas
do movimento operário alemão.
Em 1929, assume o controle do Instituto o filósofo Max Horkheimer,
passando a investigar a modernidade e os problemas sociais dela decorrentes,
formulando o que se chamou de teoria crítica da sociedade. Devido à ascensão
de Hitler ao poder, o Instituto – boa parte dos seus pensadores era de judeus –
migrou para os Estados Unidos17, só se restabelecendo em Frankfurt em 1953.
 A chamada “Escola de Frankfurt” teve como principais e primeiros expoentes
pensadores inicialmente inspirados no marxismo como Max Horkheimer, The-
odor Adorno e Herbert Marcuse, além de Jürgen Habermas e Walter Banjamim.
17 Em 1940, Walter Benjamim comete o suicídio enquanto atravessava os Pirineus, temen-
do que os nazistas o capturassem.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos100
Este último autor, através do seu texto, A Obra de Arte na Era de sua Reprodu- 
tibilidade Técnica (1951) analisa as alterações que o cinema e a fotografia, por
exemplo, têm provocado, repercutindo na produção da cultura. Para o referido
autor, a reprodutibilidade técnica ofertada por estas novas técnicas de produção
artística, levaria à perda da aura – “uma figura singular, composta de elementos
espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto
que ela esteja”, conforme define Benjamim – da obra de arte. Dito de outra ma-
neira, a obra de arte perderia sua autenticidade devido à sua produção serial.
Como coloca Araújo (2010, p.123),
São superados o conceito e a prática idealista da cultura, nos
quais esta é colocada em uma esfera superior, apartada da
realidade material e desfrutável, apenas, de forma indivi-
dual e subjetiva pelo sujeito, emergindo, em seu lugar, o con-
ceito e a prática materialista da cultura, nos quais esta se
torna uma construção humana e histórica, possível de ser
desfrutada, apropriada e produzida por qualquer pessoa.
O poder da Indústria Cultural é aumentado e consolidado, produzindo
 verdadeiramente uma sociedade de consumo com o advento dos meios de co-
municação, especialmente a TV, meio de comunicação de massa, por excelên-
cia. A expressão “Indústria Cultural” foi utilizada pela primeira vez por Adorno
e Horkheimer no livro Dialética do Esclarecimento (neste ponto deve ser con-
siderado o contato dos autores com a sociedade norte-americana). Para esses
autores, a partir do momento em que as obras de arte foram assimiladas pelo
mundo comercial, como mais uma mercadoria, elas perderam sua autonomia e
seu poder contestatório. Assim sendo, a indústria cultural era percebida como
instrumento de alienação, de dominação.
Norteada pela produção em série, impossibilitando a criação particular
do artista, a Indústria Cultural está interessada no lucro a ser obtido, padroni-
zando a criação e os objetos de arte. Esta padronização, por seu turno, levaria
a uma uniformização das consciências. A teoria crítica proposta pelos frankfur-
tianos é direcionada à sociedade moderna, concentrando-se em alguns aspectos
específicos. Critica-se: a arte produzida na sociedade capitalista, o consumo, a
cultura de massa, a indústria cultural, a coisificação do homem, o cinema pro-
duzido em Hollywood, os conceitos estéticos vigentes e a alienação.
 
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Os autores tecem suas críticas a partir da relação que se estabelece en-
tre cultura e mercadoria. Daí Adorno pretende explorar essa conversão da cul-
tura enquanto valor de uso ao valor de troca, conversão esta operada pela indús-
tria cultural. Walter Benjamim, por sua vez, acreditava e defendia a ideia de que
o cinema favorecia um outro tipo de arte revolucionáriaque abalaria o conceito
 vigente de obra de arte. Da discussão acerca da indústria cultural, surge o termo
“cultura de massa”, que, segundo Ortiz (1985), tem caráter essencialmente ide-
ológico. Assim explica o mencionado autor:
A noção pressupunha que as massas possuiriam uma cultu-
ra própria que simplesmente estaria sendo veiculada pelos
meios de comunicação: as empresas culturais seriam instân-
cias neutras que reletiriam democraticamente o gosto popu-
lar existente. A ideia de indústria cultural refuta esta pretensa
neutralidade dos meios de comunicação e vem reforçar a di-
mensão que a cultura é algo fabricado. Ela agrega os elemen-
tos heterogêneos dispersos na sociedade, mas vai integrá-los a
partir do alto, dando ao produto inal uma nova qualidade. Onde
a sociologia americana via o consumidor como sujeito do pro-
cesso, a Escola o vê como o objeto das grandes empresas. Os
indivíduos seriam manipulados para se conformar ao papel de
consumidores no mercado de bens culturais. (ORTIZ, 1985, s/p)
Mas a que tipo de cultura se referem os que estão no contexto de Frank-
furt? Certamente não tem a ver com cultura no sentido antropológico. Os filó-
sofos da Escola de Frankfurt estão se referindo a cultura no sentido da tradição
alemã, de kultur , arte, filosofia, literatura e música, elementos que seriam indi-
cadores do espírito de uma sociedade.
Sendo assim, como pensar em Indústria Cultural e cultura de massa?
Os chamados meios de comunicação de massa (hoje podemos pensar na TV
como o principal e o mais poderoso) foram e são essenciais para a difusão deste
tipo de cultura. Podemos apontar para o início da indústria cultural como sen-
do o período marcado pelo processo de massificação das mídias, a impressão
do primeiros jornais e dos folhetins, que ofereciam uma arte fácil de digerir
atingindo um amplo público. Mas, para a consolidação deste processo, afirma
Coelho (1993, p.06), foram necessários outros elementos: “O teatro de revista
(como forma simplificada e massificada do teatro), a opereta (idem em relação à
ópera), o cartaz (massificação da pintura) e assim por diante — o que situaria o
aparecimento da cultura de massa na segunda metade do século XIX europeu”.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos102
Ou seja, está claro que isto só ocorre após a Revolução Industrial. Continuando
na esteira do Teixeira Coelho (Op. cit.):
Nesse quadro, também a cultura — feita em série, indus-
trialmente, para o grande número — passa a ser vista não
como instrumento de livre expressão, crítica e conheci-
mento, mas como produto trocável por dinheiro e que deve
ser consumido como se consome qualquer outra coisa.
É produto feito de acordo com as normas gerais em vigor: produ-
to padronizado, como uma espécie de kit para montar, um tipo de
pré-confecção feito para atender necessidades e gostos médios
de um público que não tem tempo de questionar o que consome.
Uma cultura perecível, como qualquer peça de vestuário. Uma
cultura que não vale mais como algo a ser usado pelo indivíduo
ou grupo que a produziu e que funciona, quase exclusivamente,
como valor de troca (por dinheiro) para quem a produz. (p. 12)
 A discussão que tem início na teoria crítica da Escola de Frank-
furt e que chama a atenção para a massificação que embaça ou exaure mesmo a
consciência dos sujeitos, tornando-os alienados, não ficou obsoleta, num certo
sentido.
Exemplo da mercantilização da
arte. Um dos mais famosos quadros de
Leonardo da Vinci tornou-se acessível
aos mais diversos públicos e finalidades.
Foto da obra de arte Monalisa, de Leonardo da Vin-
ci, 1503
 
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Com a crescente expansão das mídias, principalmente a internet, a
tendência é cada vez mais consumir sem refletir. Consomem-se produtos que
não tem a identidade de quem o produziu, assim como não visa individualizar
o sujeito que a consome. Assim, podemos assistir ao grande espetáculo que se
tornou a sociedade que alimenta e é alimentada pelas tendências lançadas pela
economia de mercado. Para que haja a adesão a este tipo de prática, no entanto,
há que se fazer instaurar um processo de significação, estabelecendo uma re-
lação de reciprocidade entre coisas e pessoas, um processo de socialização que
permita o ato do consumo. Tal papel é plena e satisfatoriamente desempenhado
– na sociedade contemporânea – pelos meios de comunicação em massa e pelo
marketing, que vão construir uma atmosfera favorável à experiência do con-
sumo, pois se trata de um sistema simbólico operando. Assim Everardo Rocha
(2000, p.24) explicita o papel das mídias para tornar possível tal experiência:
[...] o sistema simbólico formado pelos meios de comunicação
de massa organiza o comportamento do consumidor - e o ato
mesmo de consumo aí subjacente – que se realiza, antes de qual-
quer coisa, por que todos acessamos coletivamente os signiica-
dos. São as mensagens orquestradas por forças como marketing,
propaganda, embalagem, etc. que liberam a dimensão coletiva
que classiica produtos e serviços. Ao tornar público, o signii-
cado atribuído ao mundo da produção, disponibilizando um en-quadramento cultural e simbólico que o sustenta, este sistema
realiza a circulação de valores e a socialização para o consumo.
 
O autor supracitado adverte que as nossas escolhas não são guiadas
por desejos, instintos ou necessidades, mas são conduzidas por códigos cultu-
rais que permeiam as relações sociais estabelecendo identificação entre pesso-
as, grupos e serviços.
Espaços e apelos ao consumoEspaços e apelos ao consumo
Dentro dessa lógica, além da publicidade e dos meios de comunicação
são criados também espaços que favorecem ao consumo, como o exemplo dos
shoppings centers . Criados por volta da década de 40, os shoppings centers são
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos104
espaços que reúnem uma grande quantidade de lojas que oferecem serviços e
produtos variados, além de agregar em sua estrutura, espaços de socialização e
lazer. Incluem,ainda, nessa estrutura, a segurança de quem transita por esses
espaços, garantida por equipamentos de controle.
O Brasil foi agraciado com o primeiro shopping center em 1966, mas a
configuração de uma indústria de shopping centers só começa a se desenhar a
partir da década de 1970, ganhando visibilidade e atraindo a atenção de investi-
dores durante a década de 1980 (GARREFA, 2008). Devido a uma confluência
de fatores, sobretudo socioeconômicos, Fernando Garrefa (Op. Cit) divide a his-
toria destes “templos de consumo” no Brasil em quatro fases assim caracteriza-
das: 1966 – 1980 – período que se inicia com o investimento de empresas do
ramo imobiliário não especializadas e shoppings, e termina com o surgimento
de grupos especializados neste tipo de empreendimento; 1980 – 1994 – o brasi-
leiro passa a aceitar o formato shopping center e grupos familiares concentram
atenção e investimentos na construção de shoppings que se expandem a partir
da capital paulista, havendo também ampliação dos prédios já existentes; 1980
– 1994 – emerge o modelo enterteinment center, conjugando no mesmo espaço
serviços, lazer e entretenimento. Há também o aumento do consumo tal qual
nos Estados Unidos. O alto de índice de consumo se desdobra em conceitos
de efemeridade e descartabilidade, característicos da sociedade de consumo até
hoje. O último período delimitado por Garrefa inicia em 2006 e é caracterizado
pelo investimento de capital estrangeiro neste setor e pela expansão do número
de estabelecimentos.
 
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No final da década de 1980 Frúgoli Jr. (2008) desempenhou sua pesqui-
sa em trêsshoppings centers na cidade de São Paulo, abordando-os , não apenas
como espaço de consumo, mas também de sociabilidade e lazer. O referido autor
evidencia que apesar da visão superficial que fazia parecer este tipo de estabele-
cimento voltado para as elites, o que se verificava na década de 1980 era um mo-
 vimento de massificação pensado estrategicamente para arrebanhar um público
maior, através de localizações bem planejadas,marketing e da própria arquitetu-
ra dos prédios, que já se distanciavam doglamour das grandes galerias francesas
que inspiraram os shoppings . Não é à toa que quando pensamos em consumo,
quase que automaticamente visualizamos um grande espaço climatizado, com lu-
zes, sons e aromas que nos faz esquecer as horas e o mundo externo, pois tudo é
estrategicamente pensado para atrair consumidores. Trata-se, na verdade, de um
mundo construído artificialmente que parece nos proteger da vida real onde o que
é de carne e osso, de concreto e de asfalto, não é tão atraente.
Na sociedade de consumo, como já deve ter ficado evidente para você,
não se consome algo por uma necessidade imediata. Na verdade, se há uma ne-
cessidade, é uma necessidade de consumir criada pelo sistema capitalista e a valo-
Shopping Center: espaço de consumo,
sociabilidades e lazer
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos106
rização deste ato. No espaço dos shoppings, pode-se atender a esta necessidade de
comprar, mas ele vai além de um conjunto de lojas, de um lugar onde se adquire
 bens e serviços. Conforme coloca Valquíria Padilha (2007, p.34):
Os shopping centers são símbolos de uma sociedade que va-
loriza o espetáculo do consumo de bens materiais e do lazer-
-mercadoria e que, além disso, oferece a uma parcela da
população o direito a esse consumo e a esse lazer, enquan-
to exclui dessa possibilidade a maioria da população. As-sim, esses centros comerciais coniguram-se como espaços
de lazer alienado, reduzindo a identidade social ao universo
do consumo, tanto dos que freqüentam tais espaços quan-
to dos que não os frequenta, mas desejariam frequentá-los.
 Assim sendo, Padilha (op. Cit) concebe o shopping como referência
para pensar a sociedade do consumo e do lazer. Ela vai além ao afirmar que a
 valorização deste espaço se deve também a ausência de políticas públicas que
concebam o lazer como um direito social, daí a privatização do lazer e a restrição
deste aos que dispõem do capital para obtê-lo.
 A indústria produz uma variedade de produtos e serviços que chegará
ao consumidor por meio do mercado. No caso da sociedade contemporânea,
os shoppings criam todas as condições favoráveis para o consumo a ponto de
tornar-se também, fonte de lazer. Mesmo para quem é avesso a esse espaço,
sente-se obrigado a visitar se quiser assistir a um filme, por exemplo, porque,
estrategicamente os cinemas saíram dos centros da cidade para ocupar o espaço
do shopping que traz, a reboque, consumo de comidas, roupas, livros e outros
serviços.
Interessante também é perceber o caráter transformador do capitalis-
mo, capaz de se apropriar de expressões da contracultura e torná-las mercadoria
para acumulação do capital. Vamos tomar dois exemplos de contracultura para
compreender essa dinâmica. Uma delas é a contracultura hippie dos anos 60, que
defendia as comunidades coletivas, um estilo de vida voltado à natureza, brincan-
do com o jeans , um dos ícones da industrialização, que foi colorido e bordado.
Outra contracultura que subverte o consumismo capitalista são os punks que, nos
anos 70, embora não existindo um consenso ideológico, defendiam o comporta-
mento do “faça você mesmo”, estilizando roupas com cortes e desbotamentos e
uma estética bem peculiar e transgressora. Na passagem do século XX para XXI,
o mercado capitalista se apropriou da estética das duas contraculturas e as trans-
 
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formou em mercadoria para o consumo por diferentes grupos, que muitas vezes
desconhecem os princípios e ideologias defendidas pelas culturashippie e punk .
 A circulação de pessoas e mercadorias, ocasionadas pela globalização, gerou
uma ampliação, uma infinidade de referenciais simbólicas para o uso das mercado-
rias, gerando o que Giddens (1991) chama de “desencaixe” da cultura de srcem ou
dos sistemas sociais. Os símbolos criados num dado contexto já não tem o mesmo
significado e passa, agora, a ser tratado como uma mercadoria para quem o possui.
Consumo e impacto ambientalConsumo e impacto ambiental
No mesmo caminho temos o movimento ambientalista que combate os
efeitos da acumulação do capital na degradação ambiental. De uma lado, obser-
 va-se alguns grupos que procuram criar um estilo de vida baseado na busca pelo
Moda Hippie Chic e Punk. A industrialização de roupas e assessórios destinados ao mercado consumidor
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos108
equilíbrio com o ecossistema a exemplo das ecovilas.ecovilas. São experiências de vida
coletiva em que um grupo de pessoas constroem casas em um terreno coletivo
e desenvolvem tecnologias de baixo impacto ambiental, associado ao aprovei-
tamento dos recursos. Sendo assim, a sustentabilidade acontece por meio da
produção de alimentos orgânicos para consumo pelos membros da comunida-
de, reaproveitamento dos dejetos para produção de energia e fertilizantes na
produção agrícola.
 Aproveitando o movimento de respeito à natureza, o mercado imobi-
liário tem explorado a construção de empreendimentos ancorados no valor da
sustentabilidade, muitas vezes em espaços destinados a preservação ambiental.
Condomínios que possuem sistema de coleta de água da chuva, reaproveita-
mento das águas que descem pelos ralos, energia solar etc., transformado em
mercadoria destinada à população que dispõe do capital para consumir esse
conceito de moradia.
Intensificam-se também pacotes de serviços formatados e que incre-
mentam o consumo: casamentos, formaturas, aniversários, etc, com fotos ar-
tísticas, música e outras atrações que envolvem uma quantia considerável de
Ecovilas: moradias com maiorEcovilas: moradias com maior
aproveitamento dos recursos naturais e deaproveitamento dos recursos naturais e de
menor impacto ambientalmenor impacto ambiental
 
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dinheiro. Mais uma vez, prevalece o “ter” sobre o “ser”. As consequências dessa
cultura do consumo são muitas, como o desmatamento e ocupação desordenada
de espaços de preservação ambiental. Outro fator que pode contribui é a violên-
cia urbana, é a desigualdade entre o acesso ao consumo pelas classes sociais.
Observamos também um desenvolvimento frenético de tecnologias
que mudam a cada ano ou mesmo em poucos meses. Compramos celulares que
apresentam muitas funções, além da utilidade inicial que seria realizar ligações.
Quem diria também que carros seguissem tendência de moda quando o assunto
é cor e modelo?
 As mudanças frequentes nos modelos, peças e assessórios das tecnolo-
gias, associado ao consumo excessivo resulta no descarte do lixo, em especial o
tecnológico, no meio ambiente. A dinâmica da produção capitalista, com vistas
ao mercado consumidor sobrevive, como vimos, da circulação da mercadoria
em grande escala. Com as crises econômicas sofridas pelo capital, em especial a
depressão norteamericano ,em 1929, levantou-se o debate em torno de buscar
estratégias para aumentar o consumo, desenvolvendo o fenômeno na década
seguinte que ficou conhecido como obsolescência programadaobsolescência programada.
 A obsolescência programada leva ao estimulo ao consumo excessivo e cria problemas ambientais de descartes
do lixo eletrônico
 
FundamentosAntropológicos e Sociológicos110
Segundo essa estratégia de produção, a indústria produz tecnologias
com curto tempo de duração para garantir a circulação de novos produtos. São
casos dos eletrônicos ou eletrodomésticos que não dispõem de peças de reposi-
ção ou são altos os custos do conserto, sendo muitas vezes mais em conta des-
cartar o quebrado e comprar um novo. De olho também num consumidor aten-
to e embevecido pelas novidades, são criados modelos, formas, cores e funções
diversificadas, ao mesmo tempo em que intensifica as estratégias de vendas.
Com efeito, as pessoas acumulam bens materiais que já não fazem mais uso.
O fato é que a intensidade de produtos que logo caem em desuso cria
um problema de descarte com graves consequências no meio ambiente. Além
da falta de espaço para a quantidade de lixo produzido, ainda existe o risco de
contaminação do solo e mananciais pela radioatividade emitida pelas baterias e
outros componentes químicos. Daí você pode perguntar: o que a Antropologia
tem a ver com isso? A resposta vai em dois sentidos, e aqui utilizarei as palavras
de Foladori &Taks, (2004, p.323):
Seu papel é desmistiicar os preconceitos sobre a relação das
sociedades com seus ambientes naturais — preconceitos tais
como os mitos da existência de um vínculo harmonioso en-
tre sociedade e natureza, nos tempos pré-industriais, o da
tecnologia moderna como causa última da crise ecológica,
ou o do papel sacrossanto da ciência como guia em direção
à sustentabilidade. A segunda área é metodológica, e con-
cerne à questão de como abordar os problemas ambientais
de modo a caminhar rumo a sociedades mais sustentáveis.
Um dos mitos as ser desconstruído pela Antropologia diz respeito à
ideia de que as sociedades “primitivas” viviam em harmonia com o ambiente
e que o desequilíbrio ambiental do qual desfrutamos é produto das sociedades
complexas, pós-industriais. Os autores supramencionados se baseiam em da-
dos de diferentes áreas de conhecimento para cogitar que sociedades de “tec-
nologias simples” e antigas tiveram participação na devastação de flora e fauna,
muito antes que as indústrias lançassem seus resíduos nos ares e nas águas, não
havendo, pois, nenhuma sociedade “ecologicamente inocente”. Há uma série de
exemplos, segundo Foladori & Taks, (2004), permitindo afirmar que os danos
ambientais de populações antigas foram tão impactantes quanto os são os das
sociedades contemporâneas.
 
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Pensando no aspecto metodológico, com o qual a Antropologia pode
contribuir ao abordar a questão do meio ambiente, “diz respeito à forma de
considerar a cultura, aos diferentes papéis que os setores e classes sociais têm
na produção dessa cultura e, portanto, das práticas e concepções referentes ao
meio natural” (Op. cit, p.334). Entendendo a cultura como um “processo em
formação” e resultado de “interesses contraditórios e de participação desigual”,
estes autores acreditam que uma Antropologia Ecológica Moderna pode contri-
 buir não apenas para as discussões sobre a problemática ambiental, mas tam-
 bém para a orientação e implementação de políticas públicas. Lembre-se que
a Antropologia está interessada nas diferenças apresentadas por vários grupos
sociais. Deste modo, o conhecimento por ela produzido permite obter detalhes
acerca dos grupos com o seu entorno com as práticas simbólicas que regem as
relações entre aqueles e o meio ambiente. Finalizaremos esta reflexão com as
palavras de Foladori & Taks (2004, p.342),
 
É necessário reconhecer que, segundo sua posição na distri-
buição da riqueza social, na ocupação do espaço construído e
nas decisões políticas, os grupos e classes sociais respondem
de maneiras diferentes tanto aos impactos internos quan-
to àqueles provenientes da natureza externa - por exem-
plo, eventos extremos que podem culminar em desastres.
Trocando em miúdos, também no que diz respeito aos problemas am-
 bientais, a Antropologia pode contribuir, seja relativizando a imagem das socie-
dades que transformam (e transformaram) o seu entorno, de modo a produzir
efeitos graves que têm desdobramentos nocivos para diferentes esferas da sua
 vida, ou como produtora de um conhecimento específico que pode subsidiar
políticas públicas de modo a minimizar tais efeitos a partir de intervenções que
atinjam os códigos culturais atuantes nas sociedades, de modo a conseguir mu-
danças nas práticas relativas ao meio ambiente, a relação com a natureza e ao
consumo. Nesse sentido, a natureza não é vista como algo externo, mas como
um entorno que inspira dinâmicas particulares que tem mão dupla, ou seja, o
modo de interferir na natureza é formatado pelos códigos culturais vigentes e os
impactos desta atuação repercutem na vida social. 
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos112
INDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTARINDICAÇÃO DE LEITURA COMPLEMENTAR
• O romance modernista de: ANDRADE, Mario. Macunaíma. Rio de
Janeiro: Agir, 2008.
É uma boa leitura para pensar duas questões: a presença do negro na
literatura brasileira e a mistura entre as três “raças” que dão srcem à população
 brasileira, articulando com o perfil que esta mistura delineia.
• Minha Vida em Cor de Rosa. Direção: Alain Berliner. França/Bélgi-
ca/ Reino Unido, 1997. 88 min.
Sugerimos, para pensar gênero, este filme, que conta a história de um menino
que se veste de menina e a repercussão disso para a família e a comunidade onde vive.
• A Excêntrica Família de Antônia. Roteiro e direção: Marleen Gor-
ris. Bélgica / Holanda / Inglaterra, 1995. 102 min. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch? v=7wexPzXy7eU>. Acesso em:
03 de mai. 2014.
Já que tratamos das diferentes configurações familiares, o filme suge-
rido é um exemplo de como uma família pode se formar, sem necessariamente
ter sua srcem no casal heterossexual, unido pelo casamento cujos frutos são
os filhos. O filme ilustra como uma família pode ser formada de uma maneira
diferente, conjugando outros vínculos que não apenas o biológico.
• FOLADORI, Guillermo & TAKS, Javier. Um olhar antropoló-
gico sobre a questão ambiental. Mana, Rio de Janeiro, v. 10, n.
2, Out. 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132004000200004&lng=e
n&nrm=iso >. Acesso em: 10/06/2014
 Através do artigo acima você terá acesso a outras informações sobre a
abordagem das questões ambientais, sustentabilidade e a crise ecológica sob a
perspectiva antropológica.
 
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RESUMO DO TEMARESUMO DO TEMA
Os estudos sobre a cultura contemporânea compreendem a desnaturalização
dos comportamentos por meio das diversas formas que a cultura opera. Vimos
que nosso comportamento é definidos pelos aspectos biológicos, variando pela
forma como cada cultura enxerga o mundo e constrói a vida cotidiana. Neste
sentido, vimos como o preconceito em relação às diferenças se constrói, toman-
do como base critérios raciais, de gênero e culturais. O multiculturalismo, ao
mesmo tempo em que difunde a valorização das diversidades étnica e cultural,
posiciona-se politicamente no sentido de combater ações racistas que separam
indivíduos por seus traços biológicos, sendo que estes não determinam compor-
tamento social.
 A diversidade também é visível na relação entre homens e mulheres, por meio
das construções culturais que atribuem papeis femininos e masculinos, ao mes-
mo tempo em que observamos a flexibilidade desses papeis na atualidade. Tam-
 bém foi possível perceber a diversidade da sexualidade que redefine práticas
sexuais para além da procriação e do padrão heterossexual.
Nas relações familiares,também foi possível observar novas configurações de
parentesco que redefinem papéis sociais entre os membros que a compõem.
Por fim, vimos também como a cultura do consumo, estimulada pela sociedade
industrial e pela produção massificada, constrói espaços e estilos de vida que
leva ao consumo para além das necessidades imediatas e os efeitos disto no
meio ambiente.
 
SOCIOLOGIA
Parte 02
 
03Tema
Olá! Estamos iniciando o estudo dos
fundamentos da Sociologia considerando os fa-
tos que favoreceram o seu surgimento, significa-
do e a sua função.
Nós sabemos que tem respostas para
explicar fatos do nosso cotidiano, porém nem to-
das essas respostas têm explicações lógicas da re-
alidade. Não cabe a você, aluno, agora como um
universitário, explicar a sua realidade a partir do
senso comum, como uma pessoa sem estudos.
Salienta-se que aqui você irá perceber
que a importância dessa área de conhecimento
está na possibilidade de compreender a sociedade
em transformação, de modo que possamos me-
lhor nos situar dentro dela, através de informa-
ções confiáveis e não apenas no senso comum, no
conhecimento ralo, não sistematizado e cheio de
preconceitos e desinformação que chega até nós
através dos meios de comunicação ou pelas ruas,
a todo o momento, induzindo-nos a reproduzir
informações vagas sem nenhuma cientificidade.
Para tanto, será abordado, neste tema,
o surgimento e a atualidade da Sociologia, como
uma área das Ciências Sociais voltada para os es-
tudos da sociedade e do indivíduo, na tentativa
de conhecer alguns temas importantes para esse
fim, como a questão das desigualdades, da classe
social e dos desafios do mundo globalizado.
E aí? Vamos começar?
Bons estudos!
INDIVÍDUO,
TRABALHO E
SOCIEDADE
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos116
3.1 Sociologia: surgimento e atualidade3.1 Sociologia: surgimento e atualidade
Iniciamos a discussão acerca da Sociologia com os seguintes questio-
namentos:
Por que o estudo da sociedade?Por que o estudo da sociedade?
E que sociedade é esta que estamos falando?E que sociedade é esta que estamos falando? 
Uma breve resposta para perguntas tão complexas partem da neces-
sidade de compreender um mundo em constante transformação. Vivemos ao
mesmo tempo conflitos entre países que passam por uma crise econômica; pre-
paração dos atletas para os jogos olímpicos ou para as copas mundiais; desen-
 volvimento de pesquisas genéticas para maior controle de doenças congênitas;
redefinição de padrões estéticos, como o uso da tatuagem ou das técnicas de
cirurgia plástica; explosão de novos estilos musicais; campanhas políticas para
escolha de novos presidentes e desenvolvimento de combustíveis com menor
impacto ambiental.
Essas e outras transformações causam direta ou indiretamente impac-
tos em nossa vida. Já percebeu como as pessoas têm escolhido se comunicar por
meio de wathsapp ou do facebook mesmo estando na presença de um grupo que
resolve se encontrar em um restaurante para comer pizza? Já atentou para o
fato da violência urbana ter influenciado na arquitetura das casas, com seus mu-
ros altos ou no crescimento das moradias na forma de condomínios fechados?
Percebeu quantas formas diferentes de constituição da família estão presentes
hoje? Também como são variadas as formas de expressar a crença religiosa?
Ou como estamos buscando cada vez mais formação para nos preparar para o
mercado de trabalho, com cursos de línguas ou especializações? Pois bem, esses
são exemplos de como a sociedade faz parte da nossa vida íntima, das nossas
relações de amizade e de trabalho.
 A Sociologia, enquanto ciência, procura compreender a correlação en-
tre os fatos para explicar comportamentos, crenças, valores e as tecnologias que
desenvolvemos para atender as nossas necessidades básicas e existenciais. En-
tendendo o comportamento das pessoas como algo socialmente composto.
 A necessidade da constituição de uma ciência da sociedade se justifica pelo
próprio contexto histórico do século XIX, numa época de profundas transformações.
 
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E mais uma vez perguntamos: que sociedade é esta que esta-E mais uma vez perguntamos: que sociedade é esta que esta-
mos falando?mos falando?
Estamos falando da sociedade moderna, industrial, urbana e capita-
lista em construção no século XVIII. A sociedade moderna foi um projeto do
IluminismoIluminismo1818 do século XVII comprometido em romper com o modelo feudal
que já vinha se transformando nos séculos anteriores.
No campo da economia, profundas mudanças foram ocasionadas com
o processo de industrialização na zona urbana no lugar da produção agrícola e
artesanal.
Lembra-se da Revolução IndustrialRevolução Industrial, muito estudado na escola, es-
pecificamente, na matéria de história? Então, essa revolução modificou radical-
mente a forma de produção, com vistas ao aumento significativo da produção
para atender ao mercado que se intensifica nesse período. No lugar das fer-
ramentas e dos trabalhos manuais são construídas máquinas que aceleram a
produção. As potentes máquinas à vapor da época logo passam a ser a ordem
da produção que a economia capitalista desejava: a busca do lucro por meio da
grande produção.
Na área rural, por outro lado, o trabalho estava ficando cada vez mais
escasso, levando a um intenso processo migratório para as cidades (êxodo ru-
ral). Entretanto, o mercado de trabalho não comportava a massa de trabalhado-
res que chegavam às cidades, causando muitos problemas sociais. A produção
em grande escala, a concentração de pessoas diferentes morando nas cidades
e a falta de estrutura como moradia, trabalho e saneamento como também a
péssima qualidade de trabalho gerou uma série de problemas sociais, como de-
semprego, doenças e conflitos sociais, levando muitos pensadores da época a se
dedicarem a explicar esses acontecimentos.
No campo da política, não poderia ser diferente. Muitas mudanças
ocorreram também neste âmbito. O abuso de autoridade dos monarcas em toda
18 Movimento cultural e filosófico que idealizou, entre outras coisas, uma sociedade com basenos princípios da razão em contraposição ao teocentrismo (a vida natural e social regida
pela vontade divina) da sociedade feudal. Com efeito, na vida política e econômica, o Ilu-
minismo defendeu ,respectivamente, a formação do Estado de direitos e a economia regida
por princípios racionais da oferta e procura. São alguns dos seus principais pensadores
John Locke (1632 - 1704), Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778),
Adam Smith (1723-1790) e Immanuel Kant (1724-1804).
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos118
Europa estava sendo questionado e os ideais do LiberalismoLiberalismo1919 ganham força
nos principais países.
O descontentamento com o regime monárquico e a influencia das ideias
iluministas de democracia e igualdade de direitos levou o povo a se manifestar
em defesa por melhores condições de vida, eclodindo em revoltas nos Estados
Unidos (1775-1783) e na França (1789). Em especial podemos citar a Revolução
Francesa que aconteceu motivada pelo fim da monarquia absolutista, pelo dis-
tanciamento da Igreja Católica das decisões políticas e também, devido a luta
pela criação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789.
 Veja quanta transformação que a sociedade sofreu com essas duas
grandes revoluções: a Industrial e a Francesa. Mas, não para por aí. Além das
mudanças ocorridas no âmbito econômico e político também aconteceu uma
transformação do pensamento dos indivíduos com o surgimento e com a con-
solidação das ciências, o desenvolvimento das universidades (espaços de cons-
trução do saber), o fortalecimento das explicações racionais e dosavanços
tecnológicos. Como exemplo podemos citar a obra do biólogo Charles Darwin
(1809-1882) sobre “A Evolução das espécies” (1859), livro este que causou gran-
de impacto no pensamento da sociedade moderna, ao defender a teoria de que a
srcem do ser humano seria algo decorrente das leis naturais, contrapondo-se,
pela primeira vez, à ideia teológica de srcem divina. Aliás, caros alunos, esse é
um ponto essencial no pensamento que se solidifica nesse período e resulta do
pensamento racional e crítico que tem sua srcem no Renascentismo.
No campo do pensamento social, essa obra, citada acima, influenciou pro-
fundamente a filosofiaPositivistaPositivista2020 que antecederia o surgimento da Sociologia.
Segundo Aron (2013), as próprias transformações ocorridas na Europa
no século XIX foram explicadas por Augusto Comte (1798-1857) pela lei dos
Três EstadosTrês Estados que justificava o processo evolutivo do pensamento humano em:
19 Ideologia desenvolvida pelos pensadores Iluministas do século XVII e que sustenta a so-
ciedade capitalista baseada em alguns princípios fundamentais para a compreensão da so-
ciedade: liberdade de expres são (política e econômica); igualdade de direitos; individu ali-
dade; democracia e direito a propriedade privada.
20 O Positivismo criado pelo filósofo francês Augusto Comte teve um papel fundamental nas
práticas do Imperialismo cultural do século XIX, ao defender o estado positivo como grau
mais elevado de civilidade já atingido pelas sociedades humanas. Imbuída na crença de dois
movimentos fundamentais – ordem (das regras sociais) e progresso (avanço tecnológico)-
justificou um arrojado processo de colonização ou influência em outros países, com base no
modelo europeu, industrial, liberal e urbano.
 
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teológicoteológico (período em que os fenômenos sociais e naturais são explicados pela
 vontade divina); metafísicometafísico (pensamento que se opõe as explicações teológi-
cas, mas não explicam a razão dos fenômenos) e positivopositivo (estágio vigente no
século XIX em que a humanidade busca explicações pelo crivo da ciência e, por-
tanto, da racionalidade).
Diante desse contexto, a constituição do pensamento social e da So-
ciologia, no século XIX, estão apoiados na tentativa de explicação de que seria
possível o mesmo rigor racional para análise do comportamento social, tal como
ocorria nas ciências naturais e exatas. Esse foi o caminho percorrido pelo Posi-
tivismo de Augusto Comte que atribuiu à ciência o pensamento que orientaria a
 vida social na emergente sociedade industrial.
Mas foi o francês Émile Durkheim (1858-1917) o primeiro a constituir
a Sociologia como ciência definindo um objeto de estudo e uma metodologia,
elementos fundamentais para um conhecimento ser considerado científico.
Durkheim definiu os fatos sociaisfatos sociais como objeto de estudo da Sociologia, que
seria todo o comportamento humano e toda ação social, construído socialmente
e que é imposto socialmente.
Para fugir do senso comum e da racionalidade exigida pelo conheci-
mento científico Durkheim afirmou ser possível a objetividade da Sociologia
pelas três características dos fatos sociais: a exterioridade, a generalidadea exterioridade, a generalidade
e a coercitividadee a coercitividade.
 Vamos,então, entender cada um desses elementos? Vamos,então, entender cada um desses elementos?
• Segundo esse autor os fatos sociais são exterioresexteriores ao indivíduo
porque quando nascemos na sociedade já existem leis e normas de
comportamentos. Na medida em que crescemos vamos aprenden-
do a viver em sociedade por meio da socialização e da educação que
compartilhamos, com a família, com a comunidade, na escola, no
trabalho e em todas as outras trocas de experiências que comparti-
lhamos ao longo da nossa vida;
• A generalidadegeneralidade dos fatos sociais refere-se aos valores, informa-
ções e comportamentos que se repetem na maioria dos comporta-
mentos dos indivíduos, como por exemplo, falar a mesma língua ou
compartilhar da mesma crença religiosa;
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos120
• Por fim, a coercitividadecoercitividade que se refere ao fato de fazemos aquilo
que a sociedade determina, ou seja, a sociedade tem um poder de
moldar nosso comportamento independente da nossa vontade. Um
exemplo disso é a questão do voto, em nosso país, ainda é obrigató-
rio, mesmo indo contra a vontade de alguns.
Com essa caracterização do objeto de estudo, Durkheim firmou a ca-
pacidade de um estudo do comportamento social, como um método capaz de se
distanciar dos preconceitos e julgamentos do senso comum, conferindo a Socio-
logia o status de ciência.
Condomínio fechado: um exemplo de fato socialCondomínio fechado: um exemplo de fato social
 
 Você já percebeu como está aumentando a construção dos condomínios
fechados como forma de moradia? Com forte investimento do setor imobiliário
nesse modelo de moradia e apelo publicitário que remete a ideia de vida feliz,
os condomínios fechados são vendidos como alternativa à violência urbana e
a promessa de tranquilidade e conforto. Esse modo de moradia pode ser visto
como um exemplo de fato social. Começamos pela generalização da oferta de
moradia no estilo de condomínios fechados, que se não são exclusivas, consti-
tuem-se como uma tendência da construção imobiliária. Também as estruturas
das casas (condomínio horizontal) ou dos prédios (condomínio vertical) já são
formatadas, independente da vontade dos futuros moradores. Os espaços cole-
tivos e de lazer demarcam os espaços de socialização dos moradores, bem como
as normas de convivência tais como: identificação na entrada do condomínio,
horários de funcionamento dos espaços coletivos, tolerância para o volume do
 
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som, lugares de destinação do lixo, etc. Enfim, a moradia em condomínios fe-
chados tende a generalizar um tipo de habitação. Sua existência é exterior a
escolha dos indivíduos e exerce uma coerção no comportamento dos indivíduos
que compartilham desse mesmo espaço.
Então, caro aluno, até agora traçamos o caminho do surgimento da So-
ciologia e da definição do objeto de investigação, mas agora vamos conhecer al-
gumas concepções de pensadores que contribuíram para análise da sociedade da
sua época, em especial, osclássicosclássicos2121 da Sociologia: o francês Émile Durkheim
(1854-1917) e os alemães Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920).
No entanto, antes de começar a conhecê-los é importante dizer que o grande
desafio dos primeiros sociólogos foi o de compreender as transformações que ocor-
riam na passagem do século XVIII para o século XIX, principalmente em relação aos
efeitos da industrialização e da urbanização da vida social. Ou de como se relacionava
os indivíduos com a sociedade, ou seja, indivíduo e a coletividade. Também é interes-
sante perceber que, embora fossem contemporâneos do mesmo contexto histórico e
social, Durkheim, Marx e Weber tinham um olhar totalmente diferente um do outro
sobre a sociedade industrial capitalista, como veremos a seguir.
Émile Durkheim e a constituição da SociologiaÉmile Durkheim e a constituição da Sociologia
Émile Durkheim (1854-1917) foi responsável pela criação da primeira
Escola Francesa de Sociologia. Em seus trabalhos estudou sobre religião, edu-
cação, instituições sociais e o suicídio. Em todas suas obras buscou explicar a
presença da vida social regida por leis próprias, criadas pelos homens e que
 volta a eles em forma das normas e padrões de comportamento.
O ponto fundamental dopensamento de Durkheim era entender as
transformações sociais por meio da compreensão dos laços que marcam a rela-
ção entre os indivíduos. Para isso, identificou dois tipos de laços que ele chamou
de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica.
 A solidariedade mecânicasolidariedade mecânica são as relações sociais em sociedades
tradicionais onde todos compartilham dos mesmos valores e comportamentos.
21 Entende-se por clássicos pensadores que são reconhecidos como fundamentais para a análise
sociológica e que servem de base para as explicações de fenômenos da nossa atualidade.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos122
Neste tipo de sociedade não existe separação entre relações familiares e o tra-
 balho, uma vez que todos trabalham juntos. A divisão do trabalho estaria deter-
minada pelas diferenças entre sexo e idade. Como consequência, os indivíduos
compartilham do que Durkheim chamou de uma consciência coletiva,consciência coletiva, ou
seja, compartilham os mesmos valores, as mesmas ideias, as mesmas crenças e
comportamentos (DURKHEIM, 1995).
 Ao passo que na solidarie- solidarie-
dade orgânica,dade orgânica, próprio das socie-
dades industriais, as relações sociais
acontecem entre pessoas de culturas
diferentes, que compartilham de va-
lores diferentes e que exercem traba-
lhos diferentes que exige uma inter-
dependência. A sociedade industrial,
formada como vimos de indivíduos
oriundos de diferentes localidades,
reproduziria uma consciência co-consciência co-
letivaletiva por decorrência da individua-
lização, causada, entre outros fatores,
pela separação da família do trabalho.
Ou seja, na sociedade industrial, as famílias já não mais trabalham juntas, cada
um dos seus membros exerce uma tarefa em ambientes de trabalho diferentes.
Sendo assim, os indivíduos passariam a ter maior contato com indivíduos de va-
lores e comportamentos diferentes do que os compartilhados com sua família.
 
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 Ainda segundo Durkheim (1995), não existe sociedade sem regras e de
um modo geral seguimos o que a sociedade determina. O mecanismo de con-
servação e proteção da sociedade seria determinado por uma moral socialmente
compartilhada. Mas, não é a moral no sentido valorativo, mas do conjunto de
regras sociais que orientam o comportamento dos indivíduos.
Por isso, Durkheim vai dar uma atenção ao papel da educação como o
condutor responsável pela transmissão de valores e formação do individuo para
 viver em sociedade. Neste sentido, a concepção da educação não se restringe
somente a educação formal escolar, mas aquela que acompanha a vida do indi-
 víduo desde a hora em que ele nasce até a sua morte. Entendia, ainda que, viver
em sociedade significa aprender os códigos, reconhecer regras de condutas e
tudo que se relaciona ao trânsito social. Por isso mesmo percebia que a educa-
ção é histórica, ou seja, varia conforme a sociedade (espaço) e o tempo histórico.
Em um contexto de grande diversidade de pessoas convivendo juntas e
agindo conforme sua vontade, a grande preocupação observada por Durkheim
seria a manutenção da ordem social. Isso porque os problemas sociais existen-
tes no século XIX, como desemprego e violência urbana eram vistos como um
problema dos indivíduos que não conseguiam se adaptar às regras.
Mas, vale aqui uma pergunta: o que acontece quando os indi-Mas, vale aqui uma pergunta: o que acontece quando os indi-
 víduos não conseguem se adaptar às normas sociais? víduos não conseguem se adaptar às normas sociais? 
 As ações isoladas dos indivíduos que não se adaptavam as normas so-
ciais são penalizadas pelas instituições de controle social, como no caso das pri-
sões ou a exclusão social pela conversão social. Neste caso, o que pune as falhas
na conduta dos indivíduos é o direito repressivodireito repressivo presente na consciência co-
letiva compartilhada por todos. Entretanto, quando um conjunto de indivíduos
se rebela contra os padrões sociais põe em cheque a autoridade das instituições
sociais e, por consequência, a harmonia social.
O estado de desarmonia social leva a um fenômeno que Durkheim cha-
mou de anomiaanomia2222 e estaria mais propenso de acontecer quando prevalece a
22 Durkheim entende o conceito de anomia como comportamentos desviantes das normas vigentes.
Tal desvio esta relacionado à crise das normas e regras sociais , na qual a disfunção da sociedade,
na garantia de condições sociais, geram situações de anomia como a mendicância, por exemplo,
uma vez que o indivíduo, dado a determinadas circunstâncias, não consegue se adaptar a ordem
social como conviver com a família, receber um salário pelo trabalho, possuir uma moradia, etc.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos124
consciência individual, no qual os indivíduos agem conforme seus próprios inte-
resses ao invés dos interesses coletivos. Sendo assim, os conflitos e a situação de
miséria presente no cenário europeu do século XIX, causadas pelo desemprego
e pelas falta de estrutura no trabalho nas cidades, era visto como um problema
de falta de adaptação dos indivíduos as estruturas sociais.
Neste caso, as falhas de conduta deveriam ser reestabelecidas por meio
do direito restitutivo pelo qual o contrato jurídico passa a orientar as condutas
e a cooperação entre os indivíduos. Para retomar a harmonia social perturbada
pelo estado anômico das consciências individuais só por meio de uma moral que
reestabeleça a cooperação coletiva e, mais uma vez, aparece o papel da educação
na transmissão de valores sociais.
Karl Marx e as relações sociais de Karl Marx e as relações sociais de produçãoprodução
 Vimos a ideia de sociedade pelos olhos de Èmile Durkheim. E como
seria a concepção de sociedade em Karl MarxKarl Marx2323?
Primeiro, é importante anteciparmos que Marx (ARON, 2013) tinha
uma visão bem diferente da sociedade industrial daquela desenvolvida por
Durkheim e porque não dizer contraditória.
Para Marx, o ponto de partida para compreensão da sociedade são as
relações sociais de produçãorelações sociais de produção, que separa os indivíduos em classes sociais.
O que determina a posição social do indivíduo numa classe ou noutra é possuir
ou não os meios da produção e o capital, separando-os em proprietários ou capi-
talistas dos trabalhadores assalariados ou proletariados. Segundo ele, o sistema
capitalista se caracteriza pela exploração do trabalho pelo fato do trabalhador
não receber o suficiente e justo pelo tempo e esforço do trabalho realizado – aa
mais-valiamais-valia. Seria a mais-valia o lucro produzido pelo trabalho, que não perten-
cendo ao trabalhador, concentrar-se-ia nas mãos do capitalista.
Na sociedade industrial, que criou o trabalho assalariado, intensificou-
-se a concentração de riqueza nas mãos dos proprietários dos meios de produ-
23 O alemão Karl Marx (1818-1883) desenvolveu estudos sobre a sociedade, a política e a eco-nomia. Seu pensamento influenciou várias áreas do conhecimento por suas analises sobre
o sistema capitalista que julgou como injusto por promover a desigualdade entre as classes
sociais. Além disso, contribui para a organização política dos sindicatos e a consolidação do
ideário socialista. Seu pensamento revolucionário ganhou força por meio da teoria do Mate-
rialismo Histórico que explica as mudanças tecnológicas, econômicas e sociais ocorridas ao
longo da história da humanidade atra vés das lutas entre as classes sociais.
 
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ção, restando ao trabalhador apenas a venda da força de trabalho. Marx (apud
Sell, 2002) defendiaque as bases do desenvolvimento econômico capitalista da
sua época assentavam em duas grandes contradições:duas grandes contradições: 
1. O princípio da liberdade do indivíduo (por meio do trabalho assala-
riado) estava associado ao poder de consumo do trabalhador;
2. O acúmulo da riqueza produzida (pela exploração do trabalho),
seja na produção de mercadoria ou de serviços, não pertencia a tra-
 balhador que realizou o trabalho, mas ao proprietário dos meios de
produção. Com efeito, a grande promessa da democracia e da liber-
dade do indivíduo de construir sua própria riqueza pelo trabalho
encontra barreiras, já que a lógica do capital não é o de distribuir
igualitariamente a riqueza produzida, mas o consumo por meio do
poder do salário do trabalhador.
Para explicar a condição dos indivíduos que se submetem a exploração do
trabalho, Marx desenvolveu o conceito dealienaçãoalienação. A crença na superação do tra-
 balho servil pela liberdade do trabalho assalariado impedia que o trabalhador usu-
fruísse dos frutos do seu próprio trabalho. Sendo assim, por mais que o trabalhador
realize um trabalho, considerando o tempo e o esforço utilizado para a produção de
algo, o resultado final do seu trabalho, ou seja, o produto, não lhe pertence. Assim, o
trabalhador é alienado por não lhe pertencer o resultado final da sua produção.
Outra importante concepção de alienação em Marx é a alienação po-alienação po-
lítica.lítica. Nesse conceito, ele tece críticas ao princípio da democracia capitalista
que cria a ideia de que somos livres para escolher nossos representantes e ide-
ologias. O sistema político reproduz os valores da ideologia liberal que sustenta
o capitalismo e que pertence aos interesses da classe dominante. As institui-
ções sociais como Igreja, escola, mídia, por exemplo, seriam responsáveis em
transmitir a ideologia da classe dominante como se pertencesse a realidade das
demais classes sociais.
É aqui que consideramos o ponto contraditório entre Durkheim e
Marx. Diferente da concepção de Durkheim de que os problemas sociais da épo-
ca eram srcinados pelo aumento da consciência individual e das dificuldades
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos126
de adaptação do indivíduo ao padrão social, Marx atribuía à estrutura econô-
mica e política capitalista que promove a exploração do trabalho a causa das
desigualdades sociais entre ricos e pobres.
Com vistas a solucionar os problemas sociais gerados pela contradição
do capitalismo, Marx retomou um ideal de organização da sociedade baseada
na promoção da igualdade social – o socialismo.o socialismo. E não via outra forma de
diminuir as desigualdades sociais se não fosse por uma mudança estrutural no
modelo econômico e político no qual todos os indivíduos viveriam da mesma
forma e usufruindo igualmente da riqueza produzida.
Marx idealizou, através dos seus estudos sobre o modelo de socie-
dade capitalista, a sociedade comunista,sociedade comunista, na qual o nível de consciência
de igualdade compartilhada pelos indivíduos descartaria a necessidade do
Estado controlando o comportamento dos indivíduos. Entretanto, seria ne-
cessária uma sociedade de transição entre o Capitalismo e o Comunismo,
dado o alto grau de individualização e interesse das classes dominantes que
seria o modelo socialista.
Entendendo as sociedades capitalista, socialista e comunistaEntendendo as sociedades capitalista, socialista e comunista
Marx entendia que as sociedades passavam por processos de mudan-
ças impulsionados pela luta de classes. Em sua crítica à sociedade capitalista e
na ideia de superação das desigualdades projetou a seguinte sequência:
CAPITALISMO → SOCIALISMO → COMUNISMO
• CAPITALISMO:• CAPITALISMO: produção em grande escala, economia de livre
mercado, Estado com pouco controle das atividades econômicas, plu-
ripartidarismo, sociedade dividida em classes sociais (burgueses e
proletariado) que vivem em condições desiguais, propriedade privada.
• SOCIALISMO:• SOCIALISMO: Estado forte que controla todas as atividades eco-
nômicas e políticas,, possui um único partido (Socialista/Comunis-
ta) controlado pela classe trabalhadora (ditadura do proletariado).
• COMUNISMO:• COMUNISMO:Fim do Estado e das classes sociais, igualdade social.
 
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Para Marx, como a classe dominante não tem interesse em se desfazer
da riqueza acumulada, a transição da sociedade capitalista para a sociedade so-
cialista aconteceria por meio darevolução do proletariado,revolução do proletariado,ou seja, pela or-
ganização política dos trabalhadores.. Com efeito, seu pensamento além de desen-
 volver um minucioso e sistemático estudo sobre o sistema capitalista, influenciou
a mobilização das lutas operárias no século XIX por melhorias nas condições de
trabalho e as experiências de regimes socialistas ao longo do século XX.
Como exemplo, podemos citar a Revolução RussaRevolução Russa2424 em 1917 que foi
inspirada no ideário comunista/socialista resultando na tomada do poder das
mãos do czar Nicolau II, culminando na criação da União da República Soviéti-
ca (URSS), primeiro país que adotou o regime socialista.
Também podemos destacar a Revolução CubanaRevolução Cubana2525, que destituiu do
poder o ditador Fulgêncio Batista, em 1959, por cometer crimes de corrupção e
 violência. Nos dois casos, os regimes socialistas vão se opor ao sistema capita-
lista, implementando um conjunto de políticas sociais e econômicas com vistas
à universalização da saúde, educação, moradia, etc, na sociedade.
Dessa maneira, é possível perceber que o pensamento de Karl Marx,
não só desenvolveu um estudo sistemático da forma como se organizava poli-
ticamente, economicamente e socialmente a sociedade capitalista criando uma
teoria crítica que a define como injusta e desigual, como, também, lançou as
 bases para uma ação que levasse a uma mudança nas condições de vida dos tra-
 balhadores e que até hoje inspira movimentos sociais que se posicionam contra
as disparidades sociais geradas pela exploração do trabalho, como, por exem-
plo, o sindicato.
 Pertence a Marx (em parceria com Friedrich Engels) a célebre frase
que conclama a organização da classe trabalhadora e que encerra sua obra “Ma-
nifesto, do partido comunista” de 1847: “Proletários de todos os países, uni- 
-vos!” (MARX; ENGELS, 2006, p.3).
24 Os bolcheviques grupo interno do Partido Operário Social-Democrata Russo, liderado por
Lênin, defendiam que o poder do regime czarino deveria ser tomado pela revolução do
proletariado.
25 Tendo como principais líderes Che Guevara e os irmãos Raúl Castro e Fidel Castro, a Rev-
olução Cubana foi influenciada pela experiência Russa e difundiam os ideias socialistas de
Karl Marx.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos128
WWeber e a eber e a ação social dos ação social dos indivíduosindivíduos
Para finalizar mais uma definição de sociedade, vamos conhecer as
ideias do também alemão Max Weber (1864-1920) que desenvolveu estudos na
área de Economia, Religião, Direito e Burocracia. Em especial, procurou estu-
dar o processo de racionalização da vida social desenvolvida na sociedade ca-
pitalista. Essa racionalização se referia, em especial, a formas burocráticas de
planejamento do social, político e econômico que a Sociedade Industrial Capi-
talista promoveu.
Seu conhecimento em História rendeu o desenvolvimento de uma So-So-
ciologia compreensivaciologia compreensiva que estuda como as ações sociais se modificam de
acordo com o tempo e a sociedade. Para entender a diversidade das ações so-
ciais desenvolveu um método do tipo ideal, que pressupõe tendência de com-
portamentos em cada época ou sociedade. Nas palavras de Weber:
Obtém-se um tipoideal mediante a acentuação unilateral de um ou vá-
rios pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quantida-
de de fenômenos isolados dados, difusos e discretos, que se pode dar
em maior ou menor número ou mesmo falar por completo, e que se
 
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ordenam, segundo pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim
de se formar um quadro homogêneo de pensamento (WEBER, 1991,
p.106).
Diferente da visão de Durkheim, para qual a sociedade se impõe à von-
tade dos indivíduos e da concepção de Karl Marx de que a sociedade capitalista
coloca em condições de desigualdade social trabalhadores explorados e capi-
talistas que usufruem da riqueza produzida, Weber enxerga a sociedade comouma teia de relações ou para ser mais preciso de ações sociaisações sociais que ligam os
indivíduos entre si e estes com a sociedade.
Para ele, os indivíduos não são simples marionetes que seguem a socie-
dade nem tampouco são limitados a determinação do poder econômico. Os con-
flitos presentes no século XIX eram visto por Weber como característicos das
tensões dos diferentes interesses econômicos, mas não eram determinantes.
Também estavam presentes outros interesses: políticos, religiosos, jurídicos,
etc. Esses interesses que ele chamou de esferasesferas se relacionam entre si, embora
cada uma apresente sua autonomia, de modo que a sociedade não se limita a
uma imposição sobre os homens (seja pelas instituições ou pela economia), mas
se constitui numa dinâmica rede de relações.
Para Weber, a relação indivíduo e sociedade é explicada pela ideia deque os indivíduos agem racionalmente na sociedade, ou seja, que sua ação é
sempre pensada na medida em que interage com outro indivíduo. Assim, Weber
acreditava na intencionalidade das relações. Para isso, desenvolveu a tipologia
da ação social, na qual identificou quatro tiposquatro tipos:
• • Ação Ação racional racional com com relação relação à à tradição tradição -- que é a ação orientada
pelos hábitos, costumes e crenças compartilhadas em um determi-
nado grupo, como por exemplo, o indivíduo que escolhe a pessoa
que vai se casar por influência da família;
• • Ação Ação racional racional com com relação relação a a um um valorvalor - que é quando o indi-
 víduo age com base em uma crença ou defende a honra, a exemplo
dos casos heroicos como se arriscar a própria vida para salvar umdesconhecido que caiu no rio;
• • Ação Ação racional racional com com relação relação a a um um objetivoobjetivo - em que o indiví-
duo age com base numa lógica que procura atingir um fim, como o
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos130
estudante que investe no curso superior para ingressar no mercado
de trabalho;
• • Ação Ação afetiva afetiva e e emocionalemocional - em que a ação é regida pelo humor
ou estado de consciência do indivíduo, como no caso dos xinga-
mentos entre torcedores durante uma partida de futebol.
É importante afirmar que a expressão “tipo ideal” não significa o tipo
idealizado ou mais valorizado da ação social e sim, como tendência, como ex-
pressão social que mais se destaca em determinada sociedade (SELL, 2002).
Tomemos a relação de poder para exemplificar a metodologia do tipotipo
idealideal usada por Weber que identificou três tipos de dominação26. Sendo assim,
identificou os tipos ideais:
• • Dominação Dominação tradicional,tradicional, como no caso dos monarcas que impri-
miam a autoridade pela legitimidade do poder conferida a realeza e
transmitida pela hereditariedade. Aqui representado per Dom Pe-
dro II (1825-1891), último Imperador do Brasil entre 1831 e 1889;
• • Dominação Dominação carismática,carismática, a exemplo de Mahatma Gandhi (1969-
1948) que liderou uma mobilização social pela independência da
Índia da colonização inglesa, por meio do seu carisma e espírito
pacifista;
• • Dominação Dominação legal,legal, no qual o poder legítimo é exercido por um
representante eleito pelo voto, como o exemplo do presidente do
Uruguai José Mujica (Pepe Mujica) eleito pelo povo em 2009.
 Aliás, se percebermos nossas ações, elas são muitas vezes motivadas
pelo conjunto de todos esses tipos. Tomemos o exemplo da busca pelo diplo- busca pelo diplo-
ma de curso superiorma de curso superior. Eu procurei ingressar no curso superior e adquirir o
diploma porque o mercado de trabalho exige e também sei que com ele poderei
galgar um melhor emprego e melhor salário (ação racional com relação a um
objetivo). Mas também procurei porque a sociedade valoriza e atribui status a
quem possui um diploma de curso superior (ação racional com relação a um va-
lor). E por fim, busquei o curso superior porque meus irmãos possuem diploma
e meus pais me incentivam (ação racional com relação à tradição).
26 Dominação é a relação que existe entre os indivíduos na condição de mando e obediência.
 
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O fato é que Weber identificou na sociedade moderna um processo de
racionalização que impera a ação dos indivíduos voltados para as atividades do
trabalho, da política e da cultura. Nesse contexto, o homem passa por um “desen-
cantamento do mundo” quando as explicações divinas e interferências da religião
no campo da política e da economia dão lugar a formas mais racionais de práticas
sociais. No campo da política, a racionalização se estabelece com a constituição
do Estado moderno democrático, pactuado entre cidadão e o Estado.
 A dominação ou exercício do poder não acontece mais pela tradição do
monarca ou pelo carisma de um líder, mas pela legitimidade do direito do poder
conferido ao representante do povo, escolhido por meio do voto. No campo da
economia as relações de trabalho, as formas da produção não são orientadas à
revelia dos imperadores, clérigos ou monarcas, mas são planejadas por admi-
nistrações jurídicas e burocráticas.
Caros alunos, como vimos, a Sociologia não apresenta uma única for-
ma de enxergar os acontecimentos da sociedade. A falta de consenso entre os
autores representa a complexidade que é própria da vida social. Suas análises,
aqui apresentadas de uma forma bem limitada, são igualmente importantes
para compreensão de muitos fenômenos que vivemos na atualidade e que ire-
mos discutir ao longo do livro.
 Assim como Durkheim, Marx e Weber viveram em uma época de gran-
des transformações, estamos também, na contemporaneidade, em profundas
mudanças estimuladas pelas transformações tecnológicas que interferem não
só em nossa vida privada, mas também em nossas relações com o mundo que
nos cerca.
Nos próximos conteúdos, conheceremos outros autores que analisa-
ram fenômenos sociais que fazem parte da sociedade atual e que sofreram in-
fluência dessas teorias de base. Antes de iniciar o próximo conteúdo, entretanto,
devemos ficar atentos a duas questões: a importância de conhecer a sociedade
contemporânea, por meio dos desdobramentos da sociedade moderna,sociedade moderna, e re-
conhecer a importância interpretativa dos clássicos da Sociologiaimportância interpretativa dos clássicos da Sociologia para
as análises dos processos sociais estudados atualmente. Mais do que isso, caro
aluno, independentemente da área de formação que escolheu, é importante re-
conhecer a importância das interpretações da Sociologia sobre os fatos sociais,
de forma à desnaturalizar crenças e de práticas do cotidiano e contribuir para a
formação do senso crítico e de cidadania.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos132
3.2 Indivíduo e Sociedade3.2 Indivíduo e Sociedade
 Ao estudar os clássicos da sociologia, no conteúdo anterior, dá paranotar que tanto Durkheim, como Karl Marx e Max Weber tinham, ao construir
suas teorias, a intenção de explicar a sociedade a partir das transformações so-
fridas, principalmente pelos efeitos da Revolução Industrial e suas consequên-
cias. Para tal, necessária foi a reflexão não só dessa sociedade, mas daqueles que
a compõem: os indivíduos.
 Assim, a discussão “indivíduo e sociedade”, que ora trazemos para
 você, vai nos levar a fazer uma série de reflexões sobre a importância do in-
divíduo na construção da sociedade e da influência da sociedade na formação
do indivíduo. Dessa forma, é importante compreender como, ao longo da his-
tória, o indivíduo tem se relacionado com a sociedade e como a percebe. Por
outro lado, também é importante considerar as mudanças sociais e sua influ-
ência sobre o indivíduo.
Sabendo que a sociedade é histórica, e a história muda, é lógico pensar
que essa sociedade também segue o ritmo, ou seja, também se modifica. Ainda,
na mesma lógica, sabemos que a sociedade é formada pelos indivíduos, então,
não é difícil notar que os indivíduos não estarão inertes a essas mudanças, se-
guindo o fato de também estarem nesse processo de transformação, pois socie-
dade e indivíduo estão em constante processo de relação.
Mas, para começarmos a entender a relação existente entre sociedade
e indivíduo temos que, primeiramente, saber responder a essa questão: como se
dá o processo de constituição do homem na sociedade?
Essa é uma pergunta que vários teóricos têm se feito e que impulsiona
 vastos estudos e hipóteses, pois a relação indivíduo/sociedade é uma questão
sociológica fundamental e indica a complexa relação existente entre sujeito e a
estrutura social.
Para aprofundar essa discussão, é importante compreendermos como
a Sociologia vem avançando nesses estudos. Neste sentido, podemos demarcar
os seguintes momentos:
• • Período Período pré-moderno,pré-moderno, referente à Idade Média, na qual impe-
rava o regime feudal e absolutista (Europa do século XVI). Nessa
época, os dogmas religiosos serviam como explicação para os fenô-
 
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menos sociais e suas justificativas eram calcadas nas explicações
de quem detinha o poder e o conhecimento. Neste momento his-
tórico, a fé e a superstição imperavam, direcionando o comporta-
mento dos indivíduos que se submetiam ao autoritarismo da reale-
za absolutista e ao poder do clero, sem questionar suas liberdades
individuais e seus direitos. Nesse sentido, o indivíduo não seNesse sentido, o indivíduo não se
apresentava como sujeito de sua própria história e eramapresentava como sujeito de sua própria história e eram
regidos pelos dogmasregidos pelos dogmas2727 religiosos. religiosos.
• • Período Período da da ModernidadeModernidade é marcado por grandes transforma-
ções em diversas áreas. O capitalismo, o iluminismo e a ilustração
revolucionam a forma de ver e viver a sociedade. Neste período, a
teocracia (em que imperava as leis religiosas, na forma de governo,
 bem como nos assuntos cívicos), assim como o absolutismo real,
são questionados e substituídos pelas explicações científicas eexplicações científicas e
pela racionalidade crítica do indivíduo.pela racionalidade crítica do indivíduo.
• • Período Período Pós Pós ModernoModerno defendido por alguns teóricos. Reconhe-
ce o indivíduo como “descentrado”, cuja identidade não encontra
mais centralidade no Estado-nação. Neste caso, não há frontei-não há frontei-
ras entre o indivíduo e a sociedade ou, se existem, essasras entre o indivíduo e a sociedade ou, se existem, essas
demarcações são imperceptíveis e flexíveis.demarcações são imperceptíveis e flexíveis.
Como você pode perceber, na concepção moderna, aparece a figura do
sujeito, isto é, o indivíduo assume uma posição ativa, que o leva a fazer vários
questionamentos sobre a sua relação com a sociedade em contraposição a pos-
tura anterior (Idade Média), de total submissão do sujeito aos fenômenos so-
ciais, marcados por explicações de caráter religioso.
Em nossa discussão, vamos nos ater às concepções da modernidade,
debatendo as ideias da Sociologia Moderna, que confere importância ao indi-
 víduo e a sociedade. Melhor dizendo, vamos considerar as relações sociais de-
finidas pelo sexo, religião, nacionalidade, idade, entre outros elementos, que
contribuem para a constituição tanto do sujeito quanto da sociedade, afinal, de
27 Dogmas aqui é expresso como verdades absolutas e não questionáveis. Os dogmas religi-
osos davam explicações aos mais variados fatos da realidade na sociedade. O indivíduo que
questionasse e/ou não seguissem os dogmas instituídos pela igreja, era m presos e julgados
pela Santa Inquisição e se culpados a pena variava sendo a de maior grau a morte na guilho-
tina ou na fogueira.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos134
acordo com Bourdieu (1997), o “real é relacional”, ou seja, a realidade depende
do modo como a interpretamos, do modo como os indivíduos se relacionam
entre si e com a estrutura.
 As indagações sobre a relação indivíduo e sociedade sempre intri-
garam aqueles que se predispuseram a refletir sobre o homem e a coletivi-
dade – objeto da Sociologia. Por conta disso, surgem perspectivas teóricas
como o Estruturalismo, que ressalta o papel da sociedade na sua relação
com o indivíduo e a Filosofia do Sujeito, cuja primazia é o indivíduo sobre a
sociedade. Para Bourdieu (1992), o Estruturalismo reduz o indivíduo a um
mero suporte da estrutura, ou seja, sociedade, e na Filosofia do Sujeito, o
indivíduo centra-se nele mesmo – razão, consciência e ação não são influen-
ciados pela sociedade.
Mas então, qual o nível de influência da sociedade sobre oMas então, qual o nível de influência da sociedade sobre o
indivíduo? Ou, até onde o indivíduo indivíduo? Ou, até onde o indivíduo pode interferir na sociedade?pode interferir na sociedade?
Para responder essa pergunta é importante trazer de volta os três clás-
sicos da Sociologia. Você poderá lembrar como também saber mais como eles
pensavam ser a sociedade.
Para Durkheim (1854-1917), a sociedade impõe valores e regras que
ditam formas de comportamento, portanto, há uma prevalência da sociedade
sobre o indivíduo, já que ela compõe um conjunto de normas que existem para
além da vontade do indivíduo, isto é, de modo exterior ao indivíduo, morali-
zando e coagindo o seu comportamento, um exemplo disso é a qualificação
profissional. Quando mais nos qualificamos mais oportunidade de trabalho
surgem, então, é necessário nos qualificarmos sempre para que possamos
competir no mercado de trabalho. Essa necessidade se transforma em uma
imposição, que não é criada por nós, e sim pela sociedade capitalista que tem
como uma das suas características o crescimento da competitividade no âm-
 bito do trabalho.
Nesta mesma linha de raciocínio, Marx (1818-1883) acreditava que
o modo de organização do homem para produzir, ou seja, o modo de pro-
dução capitalista era determinante nas relações sociais modernas. Assim,
os indivíduos organizados em classes sociais desenvolvem uma relação de
conflito, configurando, dessa forma, a sociedade como um espaço de antago-
 
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nismo. Para Marx (1997, p. 21) ,“ os homens fazem sua própria história, mas
não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e
sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas
 pelo passado ”.
 Apesar desse entendimento, muitas críticas são feitas ao pensamento
marxista, por considerar suas ideias deterministas ou economicistas,ou seja,
para esse autor, a economia é demasiadamente considerada como determinante
da vida social. Dessa forma, pensava que todos os problemas sociais têm expli-
cações voltadas para a questão econômica.
Já Max Weber (1864-1920), em suas análises, compreendia que a so-
ciedade não está acima dos indivíduos, mas é (a sociedade) fruto das ações so-
ciais dos indivíduos que se relacionam de forma recíproca.
De toda forma, considerando as contribuições desses teóricos e de
outros mais atuais, o que podemos analisar é que a vida em sociedade com-
preende um conjunto de relações que os indivíduos constroem ao longo da
sua vida. Viver em sociedade significa compartilhar com outros indivíduos as
informações necessárias à sua sobrevivência, à sua existência em sociedade.
Isso porque os valores, as regras de conduta, o significado das coisas foram
criados pelo homem ao longo do tempo e têm por finalidade atribuir sentido à
sua existência e àquilo que o cerca. Aprendemos esses códigos e informações,
no momento em que interagimos com outros seres humanos, na família, na
rua, no trabalho, na escola.
 Esse aprendizado é o que chamamos de socialização.socialização. Ela acontece
no cotidiano da vida do indivíduo, afinal, estamos o tempo todo aprendendo ou
ensinando a alguém conhecimentos que auxiliam o nosso transito social. Para
isso, não dependemos exclusivamente da escola.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos136
Portanto, caro aluno, viver em sociedade significa compartilhar valores,
conhecimentos e informações que permitem o sujeito compreender os códigos
sociais; isso porque, conforme observou Durkheim, mesmo que eu pense dife-
rente da sociedade, meu comportamento é guiado pela generalidade dos com-
portamentos, de modo que se eu me distancio ou transgrido regras, sou punido
pela lei ou pelas convenções sociais. Aliás, a individualização é considerada uma
das características da sociedade moderna e contemporânea, dada as condições
de diminuição dos contatos e também pela intensificação dos mesmos de forma
mediada, através da tecnologia. O fato é que as instituições como escola, trabalho,
família, grupos sociais, dentre outros, procuram, pela socialização, mediar as re-
lações entre os indivíduos e as exigências de relações com a sociedade.
O conjunto dos comportamentos reproduzidos por muitos indivíduos
é conhecido como padrão culturalpadrão cultural, que é legitimado e reconhecido social-
mente. Esses padrões de comportamento separam os indivíduos em diversas
categorias como idade, sexo, classe social, status , etc. Se você estivesse andando
no shopping encontrasse uma senhora de mais ou menos 65 anos de minissaia,
 você iria estranhar? Apesar de entender que as pessoas são livres para vestirem
o que quiserem e o que acham ficar bem, com certeza a primeira vista causa
estranheza, porque são os padrões culturais que informam o comportamento
adequado, não importando que seja para um jovem de 18 anos ou o que esperar
do comportamento de uma avó em relação aos seus netos.
Embora não sendo fixo e imutável, os padrões de comportamento ten-
dem a servir como referenciais de conduta, transmitidos pelas instituições so-
ciais e aprendidos pelo indivíduo no processo de socialização.
Nesta perspectiva, para Giddens e Bourdieu (1930-2002), a realida-
de social é um sistema simbólico ordenado (crenças, normas) , que coagem,
forçam, constrangem a ação e as oportunidades de vida dos indivíduos; estas
operam de forma implícita, definido as disposições e as atuações destes.
 Ambos os autores comungam da ideia de estruturação da realida-estruturação da realida-
de socialde social, isto é, há um ambiente coletivo relativamente estável (cenários de
ação para Giddens e condições objetivas da realidade durável para Bourdieu)
que coage os indivíduos, mas que não se constitui numa jaula de ferro, ou seja,
numa condição imutável.
Pierre Bourdieu, em suas obras, busca entender o indivíduo numa re-
lação interativa com o meio que lhe influencia, ou seja, sua investigação sobre o
 
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agente28 considera as suas experiências e a sua história. O sujeito é atravessado,
perpassado por uma cadeia de experiências, relacionadas aos diferentes campos
da realidade, cujos maiores destaques são as dimensões econômica e cultural.
Nesta abordagem fica patente que o indivíduo sofre influência da reali-
dade social a que pertence, e que, na maioria das vezes, é reproduzida de forma
inconsciente, sem perder de vista, no entanto, a capacidade geradora do sujeito.
Com essa reflexão, o autor desenvolve o conceito de habitus habitus como uma dispo-
sição duradoura, criada pelo meio em que foi adquirido e que define a ação do
indivíduo, mas é passível de mudanças. É uma disposição estruturadaestruturada pela
coletividade/sociedade, mas também é estruturanteestruturante, já que também reflete a
subjetividade do indivíduo (BOURDIEU, 1992).
O habitus habitus é como um princípio de disposições adquiridas, assimiladas
pela experiência, portanto, variáveis segundo o lugar e o momento e ajustáveisajustáveis 
a uma infinidade de situações possíveis; ele tem um caráter imprevisívelimprevisível, que
possibilita o indivíduo criar estratégias (considerada como “[...] orientação da
 prática, que não é nem consciente e calculada, nem mecanicamente determina- 
da [...]”) (BOURDIEU, 2004, p. 36) de acordo com sua conveniência.
Os campos de atuação profissional são pródigos em exemplos de ha- ha- 
bitus.bitus. Pessoas que compartilham um mesmo ofício tendem a possuir valores
semelhantes, estão submetidas às mesmas normativas de conduta profissional
e partilham o acesso ao mesmo tipo conhecimento, ainda que cada indivíduo
se especialize ou interprete as informações de maneira particular. Ou seja, os
profissionais estruturam e são estruturados pela profissão que escolhem e, as-
sim, inserem-se em um universo com regras, valores particulares. Magistrados
e médicos são os exemplos mais conhecidos em nossa sociedade.
Mas, você pode estar se perguntando: por que Bourdieu en-Mas, você pode estar se perguntando: por que Bourdieu en-
fatiza mais as dimensões econômica e cultural como infatiza mais as dimensões econômica e cultural como influenciadorasfluenciadoras
do comportamento dos indivíduos?do comportamento dos indivíduos?
Na Sociologia a educação, é tratada em seu sentido amplo, pois é per-
cebida como o instrumento mais importante de socialização e que, de fato, per-
mite que aprendamos a viver em sociedade. Conforme Durkheim, os indivíduos
28 Bourdieu utiliza o termo agente em substituição ao termo indivíduo ou sujeito, indicando
uma posição ativa deste.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos138
nascem destituídos de qualquer informação e é pelo processo de socialização
que ele se tornará um ser social. Pierre Boudieu chama de capital culturalcapital cultural o
conjunto de informações e conhecimentos adquiridos pelo indivíduo na educa-
ção familiar, escolar e comunitária. Esse capital cultural é importante para o su-
cesso do indivíduo na educação escolar, no mercado de trabalho e na vida como
um todo, uma vez que ele agrega informações do cotidiano e do conhecimento
formal, transmitido pela escola.
 A condição em que o indivíduo vive, a família a qual pertence e a esco-
la que frequenta vão diferenciar o capital que o indivíduo vai agregar ao longo
do tempo. Dessa forma, se este sujeito pertence a uma classe menos favoreci-
da economicamente, se tem uma família com baixa instrução e se vive em um
ambiente com pouco acesso a cultura e lazer, ele estará em clara desvantagem
competitiva em relação a outros indivíduos mais favorecidos. Entretanto, não
se pode afirmar que essas condições não são passíveis desuperação e/ou trans-
formação.
Outra questão importante são as condições econômicas e sociais dife-
rentes. Isso acontece porque nossa estrutura societal, o modelo econômico não
distribui de forma igualitária o acesso à educação, moradia, saúde, trabalho,
dentre outros aspectos da vida coletiva. Com efeito, observamos que enquanto
uma parcela bem pequena dos indivíduos usufrue desses benefícios, a grande
maioria tem acesso precário, ou mesmo inexistente.
Nosso modelo econômico defende a propriedade privada e a livre con-
corrência, o que efetivamente faz com que o Estado tenha pouco controle so-
 bre grande parte da riqueza produzida que fica concentrada nas mãos de pou-
cos. Além disso, a riqueza é também resultado da exploração do trabalho, que
produz a chamada mais-valia,mais-valia, que é o lucro auferido pelo dono dos meios de
produção que paga apenas um salário para o trabalhador. Este, por sua vez,
possui apenas sua mão de obra para oferecer como mercadoria e, a partir dela,
sobreviver de seu salário. Consequentemente, trabalhadores não partilham os
lucros auferidos com a venda dos produtos que eles mesmos fabricam. Essa ló-
gica alimenta a concentração da riqueza nas mãos dos donos do capital, que se
tornam cada vez mais ricos. Essa situação define grande parte das experiências
que influenciarão o indivíduo na sociedade moderna.
Por conseguinte, podemos considerar que Bourdieu não descarta a in-
fluência do indivíduo sobre a sociedade, mas a condiciona aos recursos mate-
 
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riais e simbólicos que o mesmo possui e/ou experimenta. Para Bourdieu, a ação
do indivíduo é mais inconsciente: o habitus pode, em maior ou menor grau, mo-
dificar as regras dependendo da posição do indivíduo na sociedade. O poder é
limitado aos recursos externos e internos do indivíduo e neste caso, se sobressai
o caráter anímico (inconsciente reproduzido) do sujeito. (BOURDIEU, 1992).
 Apresentado o entendimento de Bourdieu sobre indivíduo e sociedade,
traremos agora para você, as ideias de Anthony Giddens sobre a ação reflexiva.
 A capac A capacidade de idade de ação reflação reflexiva do Indivíduo na exiva do Indivíduo na SociedSociedadeade
 Anthony Giddens é um teórico da atualidade cuja obra é claramente
influenciada pela percepção do mundo como sendo dinâmico e globalizado, que
apresenta contradições e, sobretudo, rupturas com os paradigmas e as certezas.
 A obra de Giddens traz a tona uma das discussões mais atuais das Ciências So-
ciais: o descentramento ou fragmentação do sujeito na chamada modernidade
tardia (alguns autores usam o termo pós-modernidade).
Buscando fugir de rótulos, o autor tenta explicar os fenômenos sociais
da atualidade considerando a aceleração da sociedade por conta dos novos mo-
dos de produção, da tecnologia e das novas formas de relacionamento entre os
indivíduos. A “alta-modernidade” ou a “modernidade tardia” coloca o agente 29 
frente a uma encruzilhada: a difícil manutenção da “unidade” frente à crescente
fragmentação da identidade.
Giddens causa polêmica com sua obra. Alguns dos seus conceitos são
questionados e seu posicionamento e, em consequência, sua teoria, em rela-
ção às mudanças na sociedade, causa incertezas quanto à real compreensão do
autor sobre ambiente social. No entanto, é inquestionável a contribuição e o
avanço teórico do autor no que diz respeito aos sistemas binários, mais especifi-
camente, à contraposição entre indivíduo e sociedade, que informa muito sobre
o mundo contemporâneo.
Segundo o autor, a ênfase que é dada à sociedade, em detrimento ao
indivíduo30 não consegue descrever satisfatoriamente a ação humana, pois en-
fatiza a primazia do todo social sobre o individual. Sob outro ponto de vista Gid-
29 O autor também utiliza essa terminologia em substituição a palavra indivíduo.
30 Teoria identificada como estruturalismo, como já indicamos acima.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos140
dens afirma que as ações cotidianas de um indivíduo podem produzir consequ-
ências globais, principalmente a depender da posição que ele ocupa. O inverso
também é verdadeiro: a ordem global interfere sobre a vida do indivíduo.
Desta forma, o autor demarca sua posição em relação à natureza rela-
cional entre indivíduo e estrutura social. Assim, os indivíduos (sujeitos ativos)
e suas ações determinam seu próprio destino e seu presente (GIDDENS, 1999).
Neste sentido, a ênfase de sua análise recai sobre os contextos31 que
indicam as regras que devem ser seguidas pelo indivíduo. “Os contextos for-
mam ‘cenários’ de ação cujas qualidades os indivíduos costumam recorrer para
orientar o que fazem e o que dizem uns aos outros” (GIDDENS, 1999, p. 309).
 A contextualidade da ação facilita o entendimento do que os indivíduos envol-
 vidos dizem e fazem. São cenários de ação e interação que estruturam a vida
social e dão significação as práticas sociais.
O ambiente externo, para Giddens, afeta a construção do corpo e da au-
to-identidade. O modo como o indivíduo se percebe no mundo tem a ver com os
problemas existenciais de seu tempo, de sua sociedade, de sua realidade. Para
o autor, não há como não sofrer a influência do ambiente externo, que incide
sobre a construção do “eu,” através de um processo reflexivo: reflexividade da
aceitação (passividade) e da negação (reação), numa luta constante contra as
influências externas (GIDDENS, 2002).
Neste movimento, o autor identifica que a diversidade de ambientes
pode gerar um sujeito fragmentado (ou descentrado como chamam os pós-es-
truturalistas e os pós-modernos) ou ainda, em certas circunstâncias, promovem
a integração do eu (unificação da identidade individual).
Caro aluno, para facilitar melhor a sua compreensão, é bom esclarecer
que a teoria de Giddens explicita, portanto, a importância do ambiente externo
para o sujeito que depende deste para se formar, assim, como para compre-
ender o indivíduo, é necessário entender a sua ação no ambiente em que está
inserido. Na perspectiva do autor, a sociedade tem papel coercitivo, já que pos-
sui regras e meios institucionais para coibir e orientar a ação individual, mas
também é passível de transformação pela ação do indivíduo (GIDDENS, 1999),
o que significa afirmar que a sociedade é estruturante e também estruturada por
esses indivíduos. Como exemplo dessa afirmação, podemos observar a questão
da política. A política de um país é que vai dar a forma administrativa a socie-
31 Situações diferentes com características próprias e composições diferentes.
 
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dade, no entanto, diante de um contexto democrático, nós é quem escolhemos
nossos gestores. Então, veja que ao mesmo tempo em que a política estrutura
uma sociedade, nós somos responsáveis por estruturar essa política, indicando
de forma participativa e responsável nossos governantes através do voto. Você
 já pensou na sua participação política como cidadão e da sua responsabilidade
como eleitor? Reflita mais sobre essa questão.
No que se refere à oposição entre tradição e modernidade são apon-
tadas, na obra de Giddens, as mudanças históricas nos sistemas sociais, suas
organizações e seus reflexos sobre o indivíduo, a saber: o descentramento ou
fragmentação da identidade, os dilemas existenciais, as patologias e a questão
da segurança.
 A tradição tem papel importante, já que pode ser considerada um meio
organizador da memória coletiva. Ela se materializa na sociedade de modo ativo
e interpretativo. Assim, a tradição, segundo Giddens (1997), é uma verdade;
uma eficácia causal, antíteseda indagação racional, visto que ligada a memó-
ria é responsável pelas experiências do cotidiano, pelas práticas que organizam
o futuro. Os rituais (casamento, funerais, batizados, etc); são um exemplo de
como a tradição se manifesta de maneira prática na sociedade.
Este processo, no entanto, não cristaliza o passado, não torna a tra-
dição intocável ou imutável, muito pelo contrário, pois o passado, tendo como
 base o presente, é reconstruído parcialmente de forma individual, mas funda-
mentalmente de forma social e coletiva (GIDDENS, 1997). Se o tradicional é
parâmetro para as ações cotidianas, as mudanças do mundo moderno são in-
tensas e atingem cada vez mais não só as bases da atividade individual e da
constituição do eu (GIDDENS, 2002), mas atingem também a tradição através
do modo como reinterpretamos o passado. Nos contextos pós-tradicionais, ou
modernos, não há outra escolha senão decidir como ser e como agir (GIDDENS,
1997) e isso também implica um posicionamento no que diz respeito à tradição.
Giddens refere-se à alta modernidade como um período de alta tensão,
de transição e como um prenúncio de transformações estruturais em contra-
posição a “calculabilidade” que expressa ambientes socialmente estáveis e crô-
nicos (GIDDENS, 2002). Na modernidade – por ser aberta – não se consegue
fazer previsões sobre si mesmo e sobre o ambiente. A modernidade leva a incal-
cubilidade, ou seja, não é possível calcular o risco, devido à complexidade dos
cenários, ainda que se saiba o que está ocorrendo.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos142
Com base na análise do ambiente externo e de suas transformações
(tradicional e alta-modernidade), Giddens trata da natureza relacional do indi-
 víduo com o meio e com o outro. Para o autor, "as partes só podem ser defini-
das nos termos do outro” (GIDDENS, 1999, p. 288). Isso implica dizer que as
significações que formam uma totalidade se dão no jogo interno das diferenças,
assim como ocorre na construção da alteridade.
 A significação é construída pela interseção da produção de significan-
tes com objetos e eventos do mundo (ambiente), enfocados e organizados pelo
indivíduo (reflexividade), ou seja: o significado das coisas só é percebido se con-
textualizado e percebido como ação de um indivíduo consciente. A relação com
o outro é considerada o ambiente-chave para se construir o projeto reflexivo do
eu, pois permite e requer a autocompreensão e organização subjetiva contínua
do mundo.
Dito isso, admite-se que o indivíduo é produto das relações sociais32,
mas não só. É também produtor. É a ação que faz do sujeito agente. A ação re-
mete ao conceito de agência que faz referência a uma ação intencionada – que
difere de uma resposta reativa. Logo, agência é a capacidade para realizar algo,
ou seja, é mais que intenção, é o poder de intervir no curso dos acontecimentos
(GIDDENS, 2003).
Para chegar a esta compreensão, Giddens diferencia a ação composta
por uma consciência prática: esse tipo de ação está presente nas atividades cor-
riqueiras, cotidianas e inconscientes, ou seja, a consciência prática compreende
ações não premeditadas em contraposição a racionalização, que controla e mo-
nitora a ação e possibilita uma consciência discursiva (GIDDENS, 1999).
 A reação racional do indivíduo frente às mudanças que põem em che-
que seu cotidiano, a sua segurança, se configura estímulos que produzem uma
ação reflexiva. No intuito de preservar a auto-identidade o indivíduo relaciona
e/ou reorganiza, exclui ou reinterpreta o conhecimento que seja potencialmen-
te perturbador (dissonância) para se proteger (casulo protetor). É uma reação
seletiva às diversas fontes de informação que perturbam a rotina do indivíduo
e o força a repensar as maneiras estruturadas de lidar com as tensões. O indiví-
32 Você percebe a semelhança da teoria de Giddens com algumas ideias defendidas por Max
Weber (1864-1920)? Pois, bem, se você voltar ao conteúdo anterior lembrará que a teoria
de Weber está voltada as ações dos indivíduos e a teia das relações que se estabelecem entre
os indivíduos é o que marca a relação destes com a sociedade. Para esse autor, toda relação
estabelecida não se dá a toa e sim estimuladas por uma intenção.
 
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duo perde as referências em cenários de risco e de perda eminente do controle
(GIDDENS, 2002).
Esta é a reflexividade da organização dos problemas, em outras pala-
 vras, o resultado da ação é reflexo da condução do problema vivido pelo agente.
 A reação do indivíduo, tais como sentimentos de ansiedade e medo, mediante
as incertezas do mundo moderno podem variar de intensidade a depender da
forma como ele percebe e programa sua vida nos contextos mais restritos de sua
ação. Assim, o envolvimento, ou melhor, o enfrentamento mediante mudanças
no estilo de vida possibilita contornar as alterações do mundo. Estas mudanças
reordenam a autoidentidade.
Neste itinerário, o autor identifica em sua obra Identidade e Moder-Identidade e Moder-
nidadenidade (2002), as tribulações do eu, isto é as aflições que o indivíduo enfrenta
nos processos de adaptação e conformismo, de forma intensa e complexa. No
entanto, o autor esclarece que este processo compõe possibilidades de ação e
não oposições recíprocas. Para ele, a ação reflexiva amplia o quadro de possibili-
dades de comportamentos e de reações. As reações – unificação/fragmentação,
impotência/apropriação, autoridade/incerteza, experiências personalizadas/
experiências mercantilizadas - diferem numa busca de construção da autoiden-
tidade e podem gerar patologias ou projetos futuros.
Observa-se, assim, que o agente tende a se mobilizar diante de si-
tuações desconfortáveis que não lhe dão prazer e, inversamente, nas rela-
ções prazerosas, que ele chama de relações puras - já que são geradas pela
confiança e intimidade; o agente tende a conservar, enquanto lhe trouxer
retribuições psíquicas.
Sendo assim, podemos considerar que Giddens, ao tratar da reflexivi-
dade, refere-se a uma capacidade inerente à ação humana acionada na busca
de um resultado pensado, projetado. Neste caso, o indivíduo é, antes de tudo, o
ator capaz de pensar as propriedades estruturais e de agir conscientemente. O
indivíduo, neste caso, exerce uma influência (organiza, reinterpreta, exclui) so-
 bre os problemas impostos pela sociedade, o que não quer dizer que os indivídu-
os não sejam produtos das relações sociais e que tenha uma consciência prática.
 A ação reflexiva responde as motivações e estímulos de forma racional,
reflexiva, como alternativas concretas de reconstrução da vida cotidiana. Desta
forma, o indivíduo tem possibilidades e limites que são captados de forma refle-
xiva favorecendo-o a fazer opções.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos144
Indivíduo e sociedade na construção da Indivíduo e sociedade na construção da identidadeidentidade
Não podemos negligenciar a complexidade que envolve o tema a res-
peito da identidade, posto que o indivíduo como um ser social é partícipe da
dialética da sociedade em uma realidade social heterogênea, fragmentada e di-
 versificada (BERGER, 1985). Assim:
Essa participação transforma os indivíduos em atores sociais coletivos.
Identidade é um fenômeno que emerge da dialética entre o indivíduo e
sociedade. Sendo formada por processos sociais, uma vez cristalizada
é mantida, modificada ou, mesmo, remodelada pelas relações sociais.
Os processos sociais envolvidos na formação e manutenção da identi-
dade são determinados pela estrutura social (1985, p. 43-44).
Compreende-se, portanto, que a identidade está estritamente rela-
cionada a um contexto histórico da existência do indivíduo, que a constrói
a partir da cultura e dos valoresdos diferentes grupos sociais que compõem
a sociedade. Há de se observar que sendo contextualizada historicamente, a
identidade sofre a ação do tempo e do espaço, conjunções naturais de trans-
formação, estando organicamente ligada a sociedade que por sua vez é asso-
ciada aos atores sociais coletivos e a complexidade da força dos grupos sociais
existentes que os envolvem.
Os vários grupos sociais, formados pelos atores sociais que compõem
a sociedade mais ampla, vivem de formas diversas e pensam em termos de di-
ferenças e contrastes. Por conseguinte, o que fica explícito é a atribuição da
identidade como um processo construído que, ao mesmo tempo, é individual e
coletivo, o que implica considerar o fato de que não apenas o indivíduo, como
um ator social coletivo, passa por transformações históricas extrínsecas, mas,
também, mudanças intrínsecas como: visões de mundo, ideologias e valores.
Todos nós somos suscetíveis às mudanças a partir do contexto e do
determinado tempo em que nos encontramos. Muitas situações do nosso coti-
diano, que antes eram rejeitadas por nós, hoje somos mais acessíveis a elas e o
contrário também ocorre como, por exemplo, a questão do cigarro. Você lem-
 bra que algum tempo atrás o ato de fumar era sinônimo de glamour? Os jovens
da época que não aderiam a esse ato eram classificados como “caretas” e muitos
compactuavam com essa ideia. Mesmo quem não era adepto, não se importava
 
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com quem fumava a sua volta. Os meios de comunicação levavam essa informa-
ção através das propagandas de apologia ao cigarro, difundindo o ato de fumar,
não como um vício comprometedor da saúde, mas sim como uma atitude que
era comum e legitimada.
Diferente dos tempos atuais, em que o conceito de meio ambiente e
saúde aliado ao de qualidade de vida transmite que o ato de fumar perdeu o seu
encanto sendo até mesmo intolerado. Vimos, então, que a nossa consciência e,
consequentemente, a nossa identidade, modifica-se através da transformação
das relações sociais, do tempo e do espaço, assim podemos afirmar que a iden-
tidade é histórica, relacional e mutável.
Dessa forma, é importante afirmar que o individuo como ator/sujeito
coletivo e social constrói, desconstrói e reconstrói sua identidade a depender
das novas necessidades sociais e subjetivas, sem que ele se cristalize num espa-
ço-tempo anacrônico. Podemos dizer, portanto, que o individuo é constituído
não só de uma única, mas de várias identidades. Hall denomina esse processo
de “concepções mutantes do sujeito humano”. Admite não a destruição, mas o
deslocamento da identidade através de várias rupturas nas estruturas da socie-
dade no decorrer da história; o indivíduo é, dessa forma:
[...] contextualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’ formada
e transformada continuamente em relação às formas pelas quais so-
mos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos ro-
deiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assu-
me identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que
não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente (HALL, 2001, p.13).
O autor defende, ainda, a ideia que essas variações mais constantes
de identidade que ocorrem na sociedade contemporânea passa pela chamada
“crise de identidade”. Sustenta a teoria que as identidades, que por muito tempo
se viam solidificadas, estão em declínio no mundo moderno, emergindo novas
identidades que caracterizam o indivíduo ou uma cultura.
Há certa dificuldade de compreensão sobre a noção de multiplicidade
de identidades, e esta reside no fato de que nas sociedades modernas há um
desprendimento do sujeito para com as questões tradicionais que serviam de
referência para conceitualizá-lo no tempo e no espaço, possibilitando que se
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos146
enquadre em categorias socialmente construídas. Mas, na medida em que surge
uma multiplicidade de significações e representações culturais, o indivíduo aca-
 ba por internalizar diferentes identidades, resultado de um complexo processo
de subjetivação, podendo adaptar-se, mais ou menos, a cada uma, de acordo
com suas necessidades.
Podemos ilustrar essa discussão falando sobre a mulher na contem-
poraneidade. Ao estudar a mulher e seu processo de desenvolvimento, acredi-
tamos no salto político e social que este gênero vem alcançando a cada época
graças as lutas travadas pelo Movimento Feminista. Em pensar que em tempos
atrás a mulher tinha somente a função de ser dona de casa e cuidadora de seus
filhos e marido que a sustentava, e nem o maior direito político ela tinha: o de
 votar e ser votada. A mulher na contemporaneidade se emancipa, não desen-
 volve apenas o papel de dona de casa e sim de provedora do lar. Importante
observar que não só houve mudanças de papéis e sim, também, de significados
que representam a mulher na sociedade.
 Você percebeu a diferença de papéis e identidade? Você percebeu a diferença de papéis e identidade?
 A multiplicidade de identidades não deverá ser confundida com o que
chamamos de papéis. Castells (2010, p. 23) define bem cada termo quando diz
que, em geral, as “identidades organizam significados, enquanto papéis organi-
zam funções”.
Concluindo esse conteúdo é interessante salientar que: seja a partir dos
autores clássicos, seja através dos sociólogos contemporâneos, o que notamos
é que quando debatem sobre a relação indivíduo e sociedade, a percepção dos
autores estão voltadas para as experiências pessoais que não se limitam às cons-
ciências individuais, mas devem ser interpretadas como parte da experiência
social de nossa época.
 Agora que você, caro aluno, tem a noção dos fundamentos da Sociolo-
gia, interessante entrar em algumas questões presentes na realidade da socie-
dade em que vivemos e como a Sociologia explica essas questões. Assim, nos
dois próximos capítulos vamos refletir sobre a questão de classe e desigualdades
no contexto da globalização. Vamos lá?
 
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3.3 Classe e desigualdade3.3 Classe e desigualdade
 Você já ouviu falar em desigualdade social? Basta observar a sua volta
que seus sinais estão em todos os lugares e podem ser percebido pelas condições
econômicas refletidas no tipo desigual de roupa, carro, moradia como também,
no acesso às políticas públicas como a saúde, a educação, o lazer ou nos bens
culturais.
É fato que os recursos materiais determinam muita coisa em nossas vi-
das e isso faz com que o estudo das desigualdades sociais se destaque como um
dos temas mais desafiantes da Sociologia, devido a sua visibilidade em função
da facilidade de acesso aos meios de comunicação que expõe a pobreza como
uma realidade marcante, constituindo-se como um dos principais problemas
da atualidade.
 A importância do tema faz emergir alguns questionamentos no qual a
Sociologia inclina-se para compreender, como: por que as desigualdades sociais
existem? Como explicar a existência de indivíduos ou grupos de indivíduos que
estão separados de acordo com a distribuição desigual de renda? O que faz com
que alguns indivíduos pertençam a uma camada e não a outra da estratificação
social? Por que naturalizamos a distribuição desigual de bens, poder e prestígio
que estão presentes na sociedade?
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos148
Não podemos responder esses questionamentos nos baseando em expli-
cações do senso comum, do tipo: “As desigualdades existem porque uns ganham
mais que outros, pois uns trabalhammais que outros”, “Ah, porque Deus quis as-
sim”, “Por que uns estudam e outros não querem estudar”, ou ainda, “As desigual-
dades sociais existem porque uns são pobres e outros são ricos”. Observem que são
respostas superficiais que apenas mostram o que nossos olhos alcançam, sem uma
 visão crítica e consciente da realidade e, assim, não atinge a raiz do problema.
 A questão é: como podemos combater realmente um problema se não
o conhecemos profundamente?
 Você conhece alguma pessoa que apresentou certo tipo de doença e que
foi curada apenas com uma noção superficialmente da doença? Claro que não!
Para que haja a cura, a doença teve ser diagnosticada e para tal necessário se faz
uma investigação profunda que aponte o conceito da doença, a forma, as causas,
o tratamento e, além disso, a sua prevenção.
Entende-se que o interesse e a dedicação em conhecer a fundo um mal
que pode nos sucumbir deveria ser o mesmo voltado para os problemas sociais
que, se diga de passagem, também nos desalenta aos poucos, como por exem-
plo, a questão das desigualdades sociais ou o que ela acarreta na vida dos indi-
 víduos em sociedade.
 A falta de oportunidade expressa na pobreza, na fome e na miséria em
que vive uma parcela expressiva da população, não só no Brasil, mas em outros
países, têm suas raízes na desigualdade social devido a diversas questões, entre
elas podemos destacar:
• a forma de como um país foi colonizado;
• dívidas externas;
• a acumulação de capital nas mãos de poucos;
• a discriminação étnica e racial.
 Ainda, associado a tudo isso, está o mau gerenciamento político (DIAS,
2005).
Dessa forma, fica claro que não podemos deixar na superficialidade a
compreensão da desigualdade social, que de uma maneira significativa, é um
problema intrigante pela contradição que permeia a sua condição, ao observar-
mos que a sociedade contemporânea, mesmo avançada tecnologicamente, com
 
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o sistema econômico mundial, quase predominantemente capitalista, alcançan-
do grandes avanços no processo de produção de alimentos, ainda é inapta a
superar este persistente obstáculo na grande parte do mundo.
O Brasil, por exemplo, vive essa contradição. Segundo notícias desta-
cadas em 29 de julho de 2013, no site33 do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD):
O Brasil registrou um salto de 47,8% no Índice de Desenvolvimento
Humano Municipal (IDHM) do país entre 1991 e 2010, um avanço con-
sistente puxado pela melhora acentuada dos municípios menos desen-
volvidos nas três dimensões, acompanhadas pelo índice: longevidade,
educação e renda. Os dados são do Atlas do Desenvolvimento Humano
Brasil 2013 (Desenvolvimento Local – IDHM – Atlas Brasil, 2013).
Para aqueles que não têm conhecimento mais aprofundado sobre o
tema, ao ler essa informação acima pode ter a impressão que o Brasil é um dos
países mais desiguais do mundo por ser um país pobre economicamente. Será
que isso é verdade? Vejamos algumas informações a respeito.
 A notícia34 destacada no jornal ‘O Estadão’ de 06 de março de 2010
aponta que o Brasil se caracteriza no cenário internacional como “o primeiro
lugar no ranking de exportação em vários produtos agrícolas – açúcar, carne bo-
 vina, carne de frango, café, suco de laranja, tabaco e álcool. Também é vice-líder
em soja e milho e está na quarta posição na carne suína”. O que coloca esse país
como o terceiro maior exportador agrícola do mundo perdendo somente para os
EUA e União Europeia (LANDIM, 2010).
Com essa informação, você ainda tem como continuar a pensar que o
Brasil é um país pobre?
Claro que não. A conclusão que chegamos é que ao afirmar que um
país tem um alto índice de desigualdade social não quer dizer que o país é pobre
economicamente. No caso do Brasil é, ao contrario, quando mais se desenvolve
economicamente amplia, ainda mais, as desigualdades sociais devido à concen-
tração de renda nas mãos de poucos.
33 Disponível em: www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=3752. Acesso em: 06 de jun de 2014.
34 LANDIM. Brasil já é o terceiro maior exportador agrícola do mundo. 2010. Disponível em:
http://www.estadao.com .br/noticias/economia,brasil-ja-e-o-ter ceiro-maior-exportador a-
gricola-do-mundo,520500,0.htm. Acesso em: 06 de jun. de 2014.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos150
 Você está percebendo que falar sobre desigualdade não é tão fácil as-
sim é uma questão complexa que exige uma bagagem teórica, mas a sociologia
pode auxiliar na sua compreensão.
 Veja um exemplo dessa complexidade: observamos que de um ponto de
 vista histórico, as sociedades são formadas por indivíduos com inúmeras diferen-
ças, certo? É claramente visível toda essa diversidade, é só olharmos a nossa volta.
Então, podemos entender que é difícil de acreditar em igualdade, uma vez que é
impossível termos uma sociedade composta por membros exatamente iguais.
 Apesar de compreendermos que as desigualdades existem e sempre
existirão, pois parece inevitável que as desigualdades sociais sejam eliminadas,
pelo contrário continuarão a surgir, a crescer e a se perpetuar enquanto o merca-
do continuar a desempenhar um papel central na produção e distribuição de bens
e serviços; há as reivindicações propostas pelos movimentos sociais pela garantia
da igualdade de direitos, de oportunidades que sustentam o discurso de que todos
deveriam ter igual possibilidade de alcançar os vários benefícios e privilégios dis-
ponibilizados pela sociedade, não havendo qualquer tipo de barreira social, como
o impedimento do acesso de pessoas de determinado sexo, raça, etnia ou religião,
ou seja, igualdade pelos direito constitucionais aplicados sem distinção.
Então, percebe o quão complexo é a questão da desigualdade?
Partindo desse breve delineamento sobre a desigualdade social, pros-
seguiremos a aprofundar mais sobre o tema à luz de teorias sociológicas partin-
do de alguns conceitos básicos, como: estrutura e estratificação social, classe e;
mobilidade social.
Estrutura e Estratificação SocialEstrutura e Estratificação Social
 A estrutura social nada mais é do que a forma de como está organizada
a sociedade em seu contexto social, econômico, político e cultural que juntos
determinam e caracterizam uma sociedade. Como faz parte de uma conjuntura,
“[...], a estrutura social não é estática, mas dinâmica, pois as relações sociais en-
tre os indivíduos e grupos se alteram, renovando a vida social constantemente”
(LAKATOS, 1986, p.161).
E o que vai caracterizar essa estrutura é a sua estratificação, ou seja, a
forma de como os indivíduos e/ou grupos são diferenciados em posições (sta-
tus) ou camadas sociais.
 
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Os sociólogos usam o conceito de estratificação social para descrever
a hierarquia de posições ou camadas sociais de indivíduos ou grupos existentes
em todas as sociedades, explicitando as desigualdades a partir dos “estratos”
que cada individuo e/ou grupo ocupam. Geralmente, associamos o termo es-
tratificação social a recursos ou posse, porém é importante salientar que a sua
definição envolve outros atributos, como gênero, idade, religião, entre outros.
 Assim, a estratificação pode ser definida simplesmente como desigualdades es-
truturadas entre diferentes grupos de pessoas que não possuem a mesma posi-
ção e os mesmos privilégios, com os mais privilegiados no topo e os menos favo-
recidos na base, o que apenas confirma a inexistência de sociedades igualitárias.
 A estratificação social é histórica, ou seja, modifica-se através do tem-
po. Dessa forma, as primeirassociedades existentes chamadas primitivas eram
nômades e a forma de subsistência baseava-se na caça e na coleta de frutos.
Nesta época, quase inexistia a estratificação, visto que havia pouca produção
de riquezas e, consequentemente, poucos recursos a serem divididos. Contudo,
há com o tempo uma mudança significativa quando a agricultura começa a se
desenvolver e com ela a importância da propriedade privada.
Com o desenvolvimento da agricultura, eleva-se a quantidade de riqueza,
uma vez que a terra torna-se um instrumento essencial para a produção e, devido
a essa importância, os povos ,que antes eram nômades, começam a vincular-se a
um território, dando início a propriedade privada e as disputas pelo melhor lugar
para produzir. Como resultado, tem-se o aumento na estratificação que define as di-
ferentes posições que os indivíduos ocupam na sociedade: aqueles que estão no topo
- dono de uma propriedade privada quem planta mais; e aqueles que estão na base -
os que plantam menos, quem não planta, quem não tem uma propriedade ou aqueles
que trabalham para os que possuem uma propriedade privada. (GIDDENS, 2012).
Nas sociedades industriais e pós-industriais, os seus membros identifi-
cam altos níveis de consumo com sucesso profissional/social e felicidade pessoal,
escolhendo o consumo como objetivo de vida em busca de status. Status “é a loca-
lização do indivíduo na hierarquia social, de acordo com a sua participação na dis-
tribuição desigual da riqueza, do prestígio e do poder” (VILA NOVA, 2012, p.128).
Nessas sociedades, a estratificação social é mais transparente, pois os
recursos para acompanhar o consumo são distribuídos de forma desigual e, as-
sim, também desigual será como os indivíduos empregarão suas rendas dis-
poníveis para satisfazer necessidades reais (transporte, alimentação, moradia,
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos152
remédio, roupas, etc) e efêmeras (roupas de grife, carro do ano, tecnologia de
ponta, etc). Só um número menor de pessoas terá as suas necessidades reais e
efêmeras correspondidas, outras só as reais e, ainda, aquelas em que ambas as
necessidades não fazem parte da sua realidade.
 Verifica-se que em toda a histó-
ria das sociedades existe um tipo de estra-
tificação social como uma representação
da desigualdade social presentes nas so-
ciedades onde as pessoas, em grupo, são
divididas em estratos sociais, seja como
resultado de riqueza econômica, ou poder
político e religioso, seja em relação à fun-
ção que se cumpre na sociedade.
 A divisão ou estratificação so-
cial pode assumir formas diferentes em
sociedades diversas. Podemos distinguir
04 sistemas básicos de estratificação:
escravidão, casta, estamento e classe.
 A escravatura é um tipo de desi-
gualdade extrema, na qual as pessoas são
tratadas como objeto de posse de outras, sendo consideradas como uma propriedade.
Esta forma de estratificação pode variar conforme a sociedade. Aqui no Brasil, por
exemplo, os escravos eram privados de todos os direitos apenas restando o dever de
servir aos seus ‘donos’ sobre constantes supervisão e punições (VILA NOVA, 2012).
Desde o século XVIII, muitas pessoas passaram a considerar a escravi-
dão uma condição desumana e moralmente errada. E a partir de quando a liber-
dade foi garantida aos escravos no continente americano, há cerca de um século
atrás, a escravatura começa a reduzir gradativamente, porém, ainda hoje, algu-
mas notícias são expostas e documentam que pessoas são levadas à força e manti-
das contra a sua vontade em cativeiro para trabalhos forçados sem remuneração.
 Veja essa notícia35 que saiu no G1 do dia 27/04/2014 “Trabalhado-“Trabalhado-
res em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia.res em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia.
35 ALVES. Trabalhadores em situação análoga à escravidão são libertados pela polícia. Homens
trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-humanas. 2014. Disponível em: www.
G1nortefluminense.com. Acesso em: 04 de jun. de 2014.
 
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Homens trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-hu-Homens trabalhavam sem receber e viviam em condições sub-hu-
manas”manas”. Podemos perceber, que este fato é apenas um em tantos outros noti-
ciados na mídia que vai desde trabalhadores rurais e urbanos escravizados para
trabalhos forçados à mulheres que são sequestradas e mantidas como escravas
na prática do sexo. Embora não tenhamos mais senzalas nem correntes, a es-
cravidão contemporânea ainda traz condições de total submissão e subumanas
através da coerção física, ameaças de morte, castigos, dívidas que impedem o
livre exercício do ir e vir, jornadas de trabalho que ultrapassam às 12 horas por
dia, situação precária dos alojamentos, alimentação e condição de trabalho, en-
fim, é o ato de arrebatar a liberdade do outro.
Segundo dados alarmantes do Ministério do Trabalho (2013), de 1995 a
2013, 46.478 trabalhadores foram libertados no Brasil nessas circunstâncias. É bom
salientar que, mesmo atualmente, a escravidão sendo ilegal em todos os países repre-
sentando uma violação aos Direitos Humanos, ainda persiste, não só no Brasil, mas
em outros países como, Haiti, África, Reino Unido, Irlanda, Índia, China, etc.
O sistema de castas, por sua vez, é um sistema de estratificação social
fechado (sem possibilidade de mobilidade social ou de mistura entre eles, es-
tabelecendo casamento dentro da mesma casta), no qual a posição social do
indivíduo é determinada, geralmente, para toda a vida. Assim, as sociedades
divididas em castas podem ser consideradas um tipo especial de sociedade de
classe, na qual a posição é atribuída ao nascer, ou seja, as desigualdades estão
no fator hereditário sustentados em diferenciações como religião, raça ou etnia,
cultura, ocupação, etc.
Como exemplo, podemos citar a índia, um país asiático considerado o
segundo país mais populoso do mundo com uma estimativa de 1,21 bilhão de
habitantes (estimativa 2010) tem a maior parte da população inserida na crença
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos154
religiosa do hinduísmo, fato que influencia intimamente na sua organização so-
cial que está baseada no sistema de castas à mais de dois mil anos. No entanto,
salienta-se que:
Na realidade, embora a Índia tradicional seja o exemplo mais evidente
desse tipo de estratificação, outros exemplos podem ser encontrados,
mesmo nas sociedades do presente. Onde quer que existam indivíduos
localizados hereditariamente no sistema de posições sociais de modo atransmitir aos seus descendentes a mesma localização, aí encontramos
castas (VILA NOVA, 2012, p. 158).
No hinduísmo, há uma lenda que na formação do mundo as pessoas
nasceram de um corpo de um deus – Brahma (um das principais divindades
desta religião), sendo que as partes que compõe esse corpo é que deram vida as
pessoas. Assim, a zona do corpo de onde surgiram é o que vai classificar e de-
terminar os níveis de pureza e impureza como também os valores desiguais. O
sistema de castas reflete-se nesta lenda onde cada estrato social será diferencia-
do a partir dos distintos níveis de pureza e valor o que vai garantir que algumas
castas sejam superiores a outras.
Dessa forma, na sociedade indiana existem quatro castas:
• Brâmanes – composta pelos sacerdotes, filósofos e professores;
• Xátrias – formada pelos guerreiros e governantes;
• Vaixás – constituída pelos comerciantes e agricultores; e
• Sudras – composta de artesãos, operários e camponeses.
Dentre essas castas também estão os chamados de dalits que são con-
siderados aqueles que estão debaixo dos pés de Brahma que seriam os descen-
dentes daqueles que teriam violado o sistema de castas, tornando-se intocáveispor sua impureza, o que faz com que pessoas que estão associadas as outras
castas superiores evitem tocá-los.
Os dalits, considerados seres inferiores e impuros desprezados como
humanos são responsáveis por exercerem atividades menos valorizadas na so-
ciedade como, por exemplo, remover dejetos humanos. Eles sofrem restrições
extremas e são excluídos do convívio de outras pessoas que estão em castas su-
periores, como não poder rezar no mesmo templo e não podem beber da mesma
 
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fonte de água, pois poderiam contaminar com suas impurezas a água e conse-
quentemente, contaminar as outras castas. Sobrevivem através dos restos de
comida, roupas, e utensílios adquiridos catados nos lixos.
Os intocáveis (dalits) são os membros mais desfavorecidos que partici-
pam da organização social da Índia refletindo, dessa maneira, uma hierarquiza-
ção econômica e política dessa sociedade.
Podemos de uma forma geral, reunir duas principais características do
sistema de castas:
1) As castas, ou estratos, passam de pai para filho, portanto, é hereditário,
como também, vitalício. Quem nasce em uma casta será desta casta até
o fim dos seus dias. Assim, quem nasce brâmane, morrerá brâmanes;
2) Não existe mobilidade social nesse sistema, sendo o casamento entre
diferentes castas proibido. Dessa forma, há exigência da ‘pureza’ da
casta assegurada pelas regras de endogamia (casamento dentro do
próprio grupo social).
 Apesar do sistema de castas ter sua proibição legal desde 1950 continua a
existir mesclado ao sistema de classe devido ao processo de urbanização e industriali-
zação crescentes nos países ocidentais. Porém, a tradição milenar das castas persiste
a todo esse processo do capitalismo e globalização das sociedades contemporâneas.
Outro tipo de estratificação social é o ‘estamento’ (ou status), típico das
sociedades aristocráticas, como, por exemplo, a Europa durante a Idade Média
que possuía como o modo de organização social e político o feudalismo, que re-
presentou durante séculos na sociedade europeia uma sociedade de estamentos.
Na sociedade feudal, os indivíduos eram diferenciados a partir da sua
titulação de nobreza e tinham privilégios e obrigações distintos dos deveres e
direitos dos servos e camponeses porque a desigualdade, além de existir de fato,
era transformada em direito.
O sistema de estamento apresentava algumas características peculia-
res entre elas:
1) O prestígio tem um maior peso que a riqueza, pois é obtido heredita-
riamente, isto quer dizer que a riqueza por si só não confere prestígio
e sim a nobreza;
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos156
2) A localização do indivíduo na hierarquia social é não somente uma
realidade econômica de fato, mas, principalmente de direito. Assim,
o nobre é considerado de um estado maior não por possuir riqueza e
sim por ter nascido nobre.
Essa última característica significa que cada pessoa tinha de executar
as tarefas próprias de sua ocupação, sendo que os direitos e os deveres distri-
 buídos aos membros de cada estamento são definidos por lei. Dessa forma, um
indivíduo não poderia sair do seu estamento, visto que este era regido por nor-
mas que definiam a posição do indivíduo dentro da sociedade, bem como seus
privilégios e suas obrigações.
O estamento era dividido em estados: o da nobreza – formava o mais
alto estamento e seus membros exerciam atividade econômica. O segundo es-
tado – o clero – dispunha de certos privilégios em matéria de imposto e gozava
de direitos. O terceiro estado era constituído do resto ou chamados plebeus que
eram servos, camponeses livres, mercadores e artesãos, portanto, todo aquele
que não era nobre nem sacerdote era deste estado. Uma sociedade de estamen-
tos apresentava muita semelhança com as castas, porém se diferenciava destas
por não ser tão fechada, ou seja, a mobilidade social, de forma bem difícil, pode-
ria existir seja por mérito extraordinário (conquista de terras, de riqueza), por
casamento, ou por funções religiosas.
O Feudalismo tem seu declínio com a ascensão da burguesia, uma cate-
goria social que se dedicava às atividades comerciais e financeiras desenvolvidas
nas cidades. Com o declínio do feudalismo, consequentemente, há a decadência
da organização estamental da sociedade europeia.
 A ascensão da burguesia se dá no final da Idade Média quando come-
çou a ter consciência da sua força econômica na sociedade. No entanto, é bom
lembrar que a riqueza não era garantia de um estado maior e sim o título nobre.
Porém, na tentativa de mudar esse quadro, a burguesia insatisfeita aproveita a
desarticulação política da nobreza e promove 1789, a Revolução Francesa. Uma
das consequências dessa revolução foi a extinção da diferenciação legal dos in-
divíduos através da proclamação da igualdade dos cidadãos perante a lei. As-
sim, a burguesia consegue valer seus interesses e se afirmar politicamente.
 Além da ascensão da burguesia, outros marcos contribuíram para a fi-
nalização do Feudalismo:
 
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• A forma de riqueza passa de imobiliária (terras) a mobiliária (di-
nheiro);
• As terras cultivadas tornam-se esgotadas, sem recursos técnicos
para recuperá-las;
• Limites técnicos para a mineração da prata – travando fortemente
o curso do dinheiro;
• A peste negra – dizimou cerca de ¼ da população europeia;
• Revolução Burguesa (fim do poder absoluto) – Início do sistema
capitalista
Com o declínio do sistema de estratificação de estamento, nasce a so-
ciedade de classes.
Muitas vezes empregamos o termo ‘classe’ para definir uma forma de
comportamento ou categoria profissional, como: “Ela é uma pessoa de classe”,
ou “A classe dos médicos se manifestou na reunião com a prefeitura”. No entan-
to, na Sociologia o termo ‘classe’ é utilizado para indicar a hierarquização e/ou
categoria social de certos grupos na estrutura da sociedade capitalista.
Diferentemente das castas e dos estamentos, o sistema em classe é
composto por grupos sociais não definidos por questões hereditárias ou religio-
sas, nem por leis ou privilégios especiais, reportando-se apenas a uma dimensão
estritamente econômica.
O sistema de classe difere em muitos aspectos da escravidão, castas ou
estamentos. Segundo o sociólogo Anthony Giddens (2012), 04 (quatro) carac-
terísticas identificam o sistema de classe diferenciando-a das outras estratifica-
ções sociais:
1) O sistema de classe é fluido, Ou seja, ao contrário de outros tipos de
estratificação social, as classes não se estabelecem a partir da religião
ou por questões legais. Não existindo restrições para o casamento
entre pessoas de classes diferentes. Na realidade, as fronteiras entre
uma classe e outra não são claros;
2) As posições nas classes é algo conquistada. O que Giddens (2012)
quer dizer é que a classe onde um indivíduo está situado não é he-
reditária, assim, não é simplesmente definida no nascimento como
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos158
 verificamos no sistema de castas e estamento. Este fato significa que
os indivíduos podem ter livre acesso a qualquer camada social, ou
seja, a mobilidade social é muito comum do que nos outros tipos. No
entanto, na prática, as possibilidades reais de ascensão social não
são as mesmas para todas as pessoas devido as desigualdades sociais
presentes em toda a sociedade. O que Giddens quer dizer aqui é a
possibilidade de mobilidade presente nesse modo de estratificação.
É importante compreender mobilidade social como a mudança que os in-
divíduos fazem de uma posiçãosocial (status) para outra, possibilitando a uns a
ascensão e levando outros a descer na hierarquia social. Assim, a mobilidade social
poderá ser ascendente (ex: uma pessoa pobre que ganha na loteria e melhora de
 vida) ou descendente (ex: um empresário que perde suas ações na bolsa de valo-
res). A possibilidade dessa mudança varia de sociedade para sociedade a depender
do tipo de sistema de estratificação social. Temos as sociedades fechadas onde não
existe ou são muito reduzidas as chances de mobilidade social como o sistema de
escravidão, de castas e o estamento. E as sociedades abertas, é o caso das socie-
dades estratificadas em classe onde há uma maior possibilidade de mudança de
posição social. No entanto, sabemos que mesmo as sociedades tidas abertas não
são tão abertas assim, pois por maiores que sejam as possibilidades de mobilidade
social ascendente oferecida aos indivíduos em uma sociedade, a mudança de posi-
ção social não depende só dos indivíduos e sim das oportunidades que, diga-se de
passagem, não são iguais para todos. Aqui no Brasil temos um ótimo exemplo de
mobilidade social a partir da história de vida de Luiz Inácio da Silva – o Lula, filho
de um casal de agricultores analfabetos que viviam a fome, a miséria na zona rural
de Garanhus (PE) e de sindicalista tornou-se o 35º Presidente do Brasil.
3) A classe tem base econômica. O sistema de classe tem uma proprie-
dade importante que é depender de diferenças econômicas entre os
indivíduos, o que ressalta as desigualdades em relação à posse de
recursos materiais e financeiros. Quer dizer que os fatores econô-
micos vão determinar a posição que o indivíduo ocupa no sistema
de classe, o que difere, por exemplo, do sistema de castas onde os
fatores econômicos não são um fator determinante para ocupar uma
posição superior na estratificação social, mas o prestígio hereditário.
 
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4) O sistema de classe é em grande escala e impessoal. Diferenciando
de outros sistemas de estratificação social, o sistema de classe atua
por meio de relações impessoais e de grande escala como, por exem-
plo, as desigualdades de salário e condições de trabalho. Em com-
paração com outros sistemas, as desigualdades são definidas pelas
relações pessoais de dever e obrigação como o sistema de escravos
(relação instituída entre os escravos e os senhores).
Karl Marx (1818-1883) se dedicou a investigação das sociedades mo-
dernas baseadas em classes, na tentativa de compreender como elas funciona-
 vam, chegando a conclusão que as sociedades industriais eram fundamentadas
em relações econômicas capitalistas. Marx foi o primeiro a utilizar o termo ‘clas-
se social’ com frequência em seus estudos, na tentativa de explicar a natureza
das mudanças que transformaram radicalmente as tradicionais estruturas so-
ciais da Europa no final do século XVIII com na transição entre o Feudalismo e
a Sociedade Industrial (capitalista). Para esse autor:
[...] as classes são expressão do modo de produzir da sociedade, no
sentido de que o próprio modo de produção se define pelas relações
que intermedeiam entre as classes sociais, e tais relações dependemda relação das classes com os instrumentos de produção. Numa socie-
dade em que o modo de produção capitalista domina, sem contrastes,
em estado puro, as classes se reduzirão fundamentalmente em duas:
a burguesia, composta pelos proprietários dos meios de produção, e
o proletariado, composto por aqueles que não dispondo dos meios de
produção tem de vender ao mercado sua força de trabalho (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p.171).
Dessa maneira, Marx define classe em termos da relação de agrupamen-
tos individuais com os meios de produção em que a dominação econômica está
totalmente atrelada à dominação política. Enfatiza a existência de duas classes
antagônicas que vivem em eterno conflito (burguesia e proletariado), salientando
a relação de exploração e opressão existente nas sociedades capitalistas.É importante dizer que, não podemos reduzir toda a diversidade exis-
tente nas sociedades apenas as duas principais classes sociais indicadas por
Karl Marx, que fundamentam as sociedades capitalistas. A forma como as clas-
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos160
ses se estruturam determinam o surgimento de outras várias fragmentações de
classes, bem como de classes médias ou intermediárias que estão na fronteira
que separam os capitalistas dos trabalhadores, ou seja, referem-se aqueles que
ocupam uma posição na pirâmide social acima da pobreza e abaixo da riqueza.
Salienta-se que não é uma tarefa fácil identificar com precisão a classe
social a qual o indivíduo pertence. É necessário analisar historicamente cada
sociedade para perceber como as classes se formam no processo de produção
da estrutura social sem perder de vista as questões que envolvem o processo
de produção como propriedade, renda, consumo, profissão e poder. Categorias
que definem como as diferentes classes se situam na estratificação social e como
também se expressam as desigualdades nas sociedades modernas.
Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) ao estudar a socie-
dade construíram percepções diferentes no que diz respeito à questão da estra-
tificação social, mesmo partindo de um ponto em comum: que a sociedade se
caracterizava por conflitos, pelo poder e por recursos. Porém, Marx colocava
o conceito de classe e as questões econômicas no centro de todos os conflitos
sociais. Já Weber, percebia esses conflitos não como uma simples questão de
classe ou por causa somente do fator econômico, mas algo atrelado também
à questão do poder (status) e do privilegio. Assim, para Weber a questão eco-
nômica não define totalmente a posição de uma pessoa dentro do sistema de
estratificação.
 Além das classes sociais e dos grupos de status, Max weber distinguia
um terceiro tipo de estratificação social, com base no poder político. Do ponto
de vista político, a diferenciação se dá pela distribuição do poder entre grupos
e partidos e também no interior destes. ‘Partido político’, do ponto de vista de
 Weber, é uma associação cuja adesão é voluntária e que visa assegurar o poder a
um grupo de dirigentes, a fim de obter vantagens materiais para seus membros
(Dias, 2010).
Entende-se que Weber chama a atenção pelo fato de que não importa
o tipo de estratificação (estamento, classes, partidos), o que todos tem em co-
mum é que seja na participação, na distribuição da riqueza quanto a participa-
ção na distribuição do prestígio tudo leva a um fator único – o poder, ou seja, a
possibilidade de impor aos outros a própria vontade.
Por fim, entendemos a desigualdade social como parte da estrutura das
sociedades e sua construção social é histórica em diferentes períodos. Salienta-
 
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-se que essa estrutura é representada pela estratificação social como forma pela
qual as sociedades estabelecem seus critérios de hierarquia e, quando existem,
os critérios e possibilidades de mobilidade social.
3.4 Desafios do mundo globalizado3.4 Desafios do mundo globalizado
Para terminar o tema, vamos nos debruçar sobre o estudo da globaliza-
ção que nos anos de 1990 começou a ser uma das expressões mais faladas e di-
fundidas. Por certo você também já ouviu em conversas informais, na televisão,
em sala de aula que a globalização é uma consequência do mundo moderno e a
causa de todos os problemas nele existente. Convido você a apreciar a formação
do significado mais preciso desse fenômeno presente em nosso cotidiano.
 Para começar, podemos entender a globalizaçãocomo o processo do
aumento fundamental das relações econômicas entre os países do mundo, a
partir do final da década de 1980. No entanto, essa compreensão é insatisfató-
ria, no momento em que notamos que a globalização envolve outros indicativos
presentes em diversas dimensões. Vários autores tem essa compreensão, entre
eles, o sociólogo Giddens (2000, p. 23) que afirma: “[...] globalização não é um
processo singular, mas um conjunto complexo de processos. E que estes operam
de uma maneira contraditória ou antagônica”. Assim, a união dos fatores políti-
cos, sociais, culturais e econômicos cria a globalização contemporânea.
 Você Já sabe que a globalização atinge as diferentes esferas que com-
põem a sociedade, o que falta entender é como cada esfera é atingida.
Na economiaNa economia, há o processo de reprodução ampliada do capital inte-
grada à economia mundial, o que determina um aumento dos fluxos financei-
ros, dos investimentos estrangeiros nos países e do comércio mundial. A glo-
 balização não só intensifica o movimento do capital como também a força de
trabalho. Segundo Ianni (1996, p.22),
O modo que o capitalismo se globaliza, articulando e rearticulando as
mais diversas formas de organização técnica da produção, envolve am-
pla transformação na esfera do trabalho, no modo pelo qual o trabalhoentra na organização social da vida do indivíduo, família, grupo e clas-
se, em todo o mundo.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos162
 A questão do desenvolvimento da informática e da automação também
foi um fator fundamental para a constituição da globalização, uma vez que não
se trata apenas de um desenvolvimento tecnológico, mas sim de uma transfor-
mação na organização dos processos produtivos industriais, pela maneira que
se tornou mais ágil, integrado, centralizado e planejado. Consequentemente,
além de trazer um ritmo mais acelerado na economia e o aumento dos fluxos
financeiros traz também novas formas de relação de trabalho, como exemplo,
podemos indicar o processo de terceirização36.
 A globalização afeta a economia também pela questão espacial. A di-
mensão espacial do desenvolvimento tornou-se algo crucial devido ao crescen-
te ritmo e facilidade dos fluxos de capitais. Cabe mencionar que alguns países
são lugares interessantes para o capital, enquanto outros não possuem esse di-
namismo, a exemplo disso temos a China e a Índia que se transformaram em
locais altamente lucrativos por apresentarem um maior contingente de mão-
-de-obra barata como também por se destacarem como um continente com um
alto nível populacional, maior do que outros países, capaz de se transformar em
um potencial mercado consumidor. Sem falar que a abertura comercial desses
países facilita a entrada e a saída de capitais, o que pode ocorrer tanto nos ramos
industriais como no capital financeiro (DIAS, 2010).
Na políticaNa política, compreende-se que a globalização demonstra que os
países não estão isolados nem os seus problemas, existindo direitos, deveres e
condições socioeconômicas de ordem global. Assim, necessário se faz a criação
de alguns mecanismos com o objetivo de regular de forma global a chamada
política internacional. Dessa forma, surge uma nova forma de governabilidade
do território através de instituições e organizações internacionais como o Fundo
Monetário Internacional (FMI), Organização das Nações Unidas (ONU) e Orga-
nização Mundial do Comércio (OMC).
Segundo Dias (2010), um dos aspectos mais relevantes disso é a cria-
ção de instâncias para a construção de consensos mundiais em torno de Di-
reitos Humanos, dos Direitos da Criança, a criação de tribunais internacionais
36 Segundo o relatório técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estu-
dos Socioeconômicos) – ‘O processo de Terceirização e seus efeitos sobre os trabalhadores
no Brasil’ (2007; p.05): terceirização é o “processo pelo qual uma empresa deixa de executar
uma ou mais atividades realizadas por trabalhadores diretamente contratados e as trans-
fere para outra empresa”. Este fato é muito comum em instituições públicas e privadas que
terceirizam o trabalho de serviços gerais como: limpeza, jardineiro, cozinheira etc.
 
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de guerra, deliberações a respeito da preservação ambiental e da regulação das
relações de trabalho.
Os efeitos da globalização no âmbito político também se dão pela dis-
puta entre as nações para expandir seu poder, desenvolver suas riquezas e o po-
derio militar. Na realidade, a globalização tem sido tanto resultado de conflitos,
guerras e invasões quanto de cooperação e concordância entre grupos sociais e
sociedades.
No âmbito da culturaNo âmbito da cultura, a globalização pode ser abordada de várias
maneiras não existindo consenso, seja no que diz respeito às identidades cul-
turais relacionadas com o território seja pela discussão da homogeneização ou
intensificação das diferenças sociais e culturais. Alguns autores entendem que a
globalização é um fenômeno que homogeneizou a cultura e suas explicações são
geradas a partir da criação da Indústria Cultural e da Cultura de Massa.
De certa forma, observamos que as diferentes sociedades existentes no
mundo seguem, contagiadas, por uma oferta de produtos culturais disponíveis
globalmente como alimentação, música, ideias, moda, etc. Um exemplo disso
é a rede de fast-food McDonald´s e a Coca-cola que são marcas globalizadas
conhecidas por todo o mundo.
 A indústria da moda ilustra bem essa noção do conflito entre a diversi-
dade e a homogeneização. Um exemplo disso é o caso de um acessório que apa-
rece sendo utilizado por uma atriz ou cantora internacional. Imediatamente, o
acessório utilizado pela atriz se torna tão popular que será fabricado massifica-
mente e posto no mercado, seja em uma boutique ou em tabuleiros de vendedo-
res ambulantes. O importante é que em poucos dias muitas pessoas estarão ad-
quirindo e utilizando o tal acessório usado pela atriz no intuito de acompanhar
a moda proposta, o que a faz sentir-se parte de um grupo de pessoas descoladas.
 Apesar desse exemplo, é muito prematuro dizer que a globalização pro-
 vocará a extinção de culturas tradicionais substituindo-as por valores culturais
novos e globais. Mesmo porque não é difícil notar quando olhamos a nossa volta
que cada indivíduo possui peculiaridades distintas e que seria impossível pa-
dronizar todos em um só modelo.
Quando relacionamos a questão cultural com a globalização é impor-
tante fazer a distinção desse fenômeno com o conceito de mundialização que,
apesar de aparentemente parecer a mesma coisa, possuem conotações diferen-
tes. Para Ortiz (1994), a globalização seria um termo utilizado para referir-se
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos164
aos aspectos econômicos das novas formas de integração. A noção de mundia-
lização está relacionada aos aspectos culturais, os quais conteriam especifici-
dades que impediriam a homogeneização, a exemplo disso está a música que,
mesmo fazendo parte de uma cultura de massa, ainda a sua apreciação se dá de
forma subjetiva.
No socialNo social, pode-se afirmar que a globalização aumentou os fluxos de
pessoas, de imigrantes que se deslocam em razão de melhores condições de tra-
 balho ou que fogem de calamidades ou guerras. Entretanto, é preciso perceber
que as distintas dimensões da globalização não são simétricas, isto é, os fluxos
econômicos (comerciais e financeiros) e culturais (valores e hábitos) são muito
mais intensos e velozes que a circulação de pessoas, que encontram muitas res-
trições para cruzarem fronteiras (DIAS, 2010).
 As mudanças sociais que ocorrem diante da globalização podem ser
definidas como a transformação, ao logo do tempo, das instituições,da econo-
mia, da política e da cultura de uma sociedade. Mas, não podemos deixar de
destacar as mudanças nas relações sociais, sabendo que essas relações definem
as relações entre os indivíduos e estes com a sociedade.
No mundo do trabalho e do consumo, por exemplo, dá para ver essas
mudança, já que influenciam as relações sociais propriamente ditas, alterando
comportamentos, atitudes, visão de mundo, valores e formas de convívio entre
pessoas e grupos sociais, em escala local e global, especialmente a partir do uso
da tecnologia nos lares dos usuários junto com a televisão e o celular, que possi-
 bilita estar em conexão 24 horas por dia.
 Você percebe que, ao mesmo tempo em que a tecnologia tem o poder
de unir as pessoas que se encontram distantes ao mesmo tempo, separa das pes-
soas que estão por perto? Esse fato não é difícil de observar basta olhar a nossa
 volta que logo encontraremos, em restaurante, bares ou em uma roda de ami-
gos, as pessoas em grupos unidas, porém distantes, com olhares fixos em seus
aparelhos celulares. Isso, você, como aluno, sabe que é muito comum acontecer
em salas de aula onde o momento de traçar uma relação com o professor/cole-
gas de turmas e aprendizagem é trocado por redes sociais. É importante deixar-
mos claro que não há nada contra as redes sociais, mas como tudo há de ter um
tempo para elas que não seja em momentos em que a socialização presencial se
torna importante para o desenvolvimento humano.
Mesmo diante de toda essa explanação, que revela a globalização em
 vários âmbitos que compõem a sociedade, conceituar esse fenômeno é algo difí-
 
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cil porque não há um conceito único e amplamente aceito. Por exemplo, alguns
autores conceituam globalização como o processo de intensificação das relações
que se travam no âmbito econômico em escala mundial.
Na realidade, as obras de Karl Marx já expressavam o aumento desse fluxo
de comércio e, consequentemente, das relações envolvidas nesse processo entre os
países desde o século XV. Então, esses autores não trazem nenhuma inovação no
conceito de globalização, uma vez que, já vem ocorrendo há um longo período da
história humana e certamente não se restringe ao mundo contemporâneo.
Mas, o que há de novidade é o ritmo e a intensificação dessas relações que se
tornam presentes nas diversas dimensões existentes (cultura, ambiente, social, políti-
ca, etc) como já visto anteriormente. Destacam-se também os aparatos institucionais
que surgem com o objetivo de gerir e regular esse processo. Para ilustrar, podemos
citar a questão da tecnologia da comunicação e da informação que rompe com o tem-
po e o espaço, tornando-se algo global e que precisa de instituições como as empresas
de telecomunicação (Tim, Vivo, Maxtel, etc) e as televisivas (SBT, Record, Globo, etc)
para administrar e regular essas atividades. Mas, além disso, tem toda uma legislação
que mantem as regras para a utilização e expansão desses recursos.
Sentimos na pele essa intensificação da tecnologia quando utilizamos
as redes virtuais ou e-mails para entrarmos em contatos com entes queridos que
não estão próximos de nós.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos166
 Antes de toda essa tecnologia, que possibilita a comunicação mais rá-
pida, tínhamos a carta e o telefone fixo para esse fim. A carta levava, a depender
da localidade onde a pessoa se encontrava, dias e até mesmo meses para chegar
ao seu destino. O telefone fixo era um aparelho que quando se encontrava em
um domicílio, certamente estava associado a classe alta da sociedade, pois nem
todos possuíam condições financeiras para tê-lo. Porém, para atingir a popu-
lação, independente da classe social, havia os telefones fixos em vias públicas
(orelhão). Esse instrumento também não facilitava o processo de comunicação
devido a quantidade de fichas necessárias para tal fim.
Dá para perceber o desconforto e a dificuldades de um tempo não mui-
to distante (final do século XX) no que diz respeito à comunicação, mas o desen-
 volvimento da tecnologia favoreceu toda uma sociedade, visto que, a tecnologia
facilita a compreensão do:
• • O O tempotempo – já que hoje, a qualquer hora e em pouquíssimo tempo,
podemos entrar em contato com alguém que esteja do outro lado
do mundo e;
• • O O espaçoespaço – a tecnologia rompe com a ideia de espaço, no mo-
mento em que não precisamos nos deslocar para conseguir o que
queremos, por exemplo, compras pela internet.
Observem que o desenvolvimento das tecnologias das comunicações e
da informação aumentou a velocidade e o alcance das interações entre as pes-
soas por todo o mundo, aprofundando e acelerando processos de globalização,
pois cada vez mais pessoas estão se interconectando por meio dessas tecnolo-
gias e estão fazendo em locais que antes eram isolados ou poucos servidos pelas
comunicações tradicionais.
Observem: duas pessoas localizadas em lados opostos do planeta, no Brasil
e na China, por exemplo, não apenas podem conversar em tempo real, como também
enviar documentos e imagens um ao outro com a ajuda da tecnologia do satélite.
Em relação à funcionalidade e os efeitos da globalização surgem deba-
tes no meio científico com concepções divergentes que estão divididos em duas
argumentações: uma trata como um fenômeno natural e benéfico a sociedade e
a outra com uma visão pessimista da realidade.
 A primeira argumentação, muito defendida pelo teórico canadense da
 
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comunicação Herbert Marshall Mcluhan (1911-1980), afirmava que a globali-
zação é um efeito produzido pela história da humanidade e que a sua srcem
e estabelecimento é algo natural e benefíco por gerar a ideia de que é possível
reduzir o mundo a uma única aldeia global. Para Marshall, essa aldeia produ-
ziria tecnologia como um instrumento necessário a romper com o tempo e o
espaço, através da difusão instantânea, das informações para toda a população
como também das viagens mais rápidas encurtando significamente as distân-
cias. Com o tempo e as distâncias reduzidas, haveria uma maior mobilidade que
possibilitaria o desenvolvimento do mercado global na perspectiva de formar
uma identidade universal e, assim, uma cidadania global (COSTA, 2010).
Já Milton Santos (1926-2001), crítico ferrenho da globalização e logi-
camente crítico da percepção otimista de Marshall, não acreditava nos efeitos
 benéficos, naturais e homogeneizantes da globalização. Por entender que,
[...] os indivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno,
cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na di-
versidade dos lugares. Na realidade, a globalização agrava a heteroge-
neidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutural (SANTOS,
2010, p.143).
Nesta citação, este autor, faz menção à heterogeneidade referindo-se às
crescentes diferenças que o processo de globalização traz, como a intensificação
das disparidades regionais, a acentuação das desigualdades sociais e a centra-
lização de riqueza, embora seja fato a globalização atingir a todos e modificar a
 vida cotidiana nos mais distintos espaços geográficos e sociais.
Dessa forma, para Milton Santos, os argumentos utilizados por Mar-
shall para enaltecer a globalização não possui fundamento. No que diz respeito
à velocidade da difusão das informações para todos, Santos (2010) acreditava
que a mídia produz diversas notícias que, no entanto, nem sempre se traduz em
informação, como por exemplo, revistas de fofoca sobre artistas que traz notí-
cia, mas não informação.
É certo e unânime admitirque a concentração de riqueza tem aumen-
tado no mundo atual, gerando novos tipos de desigualdades. O acesso à infor-
mática se destaca como sendo um desses tipos. E assim, o conhecimento passa
a ser incorporado por uma minoria, que cada vez mais detém um maior controle
dos processos de riqueza global.
 
Fundamentos Antropológicos e Sociológicos168
Sobre a mobilidade que diminui as distâncias e favorece o desenvolvimen-
to do mercado global, Santos (2010) rebate argumentando que nem todos tem aces-
so a essa mobilidade por não possuírem condições financeiras para deslocar-se de
um Estado para outro como também falta recursos para se inserir em um mercado,
que cada vez mais demarca as diferenças entre as classes sociais, tornando mais vi-
sível as desigualdades sociais e, consequentemente, a exclusão social. Esses efeitos
colaterais da globalização tão forma aos movimentos antiglobalização, opositores
desse fenômeno muito presente durante os últimos anos durante as reuniões dos
 blocos econômicos e organizações reguladoras da economia global.
O sociólogo britânico Anthony Giddens foi um dos primeiro teóricos a
discutir, sociologicamente, sobre a globalização e os seus efeitos nas relações
sociais, contribuindo com estudos teóricos sobre a vida moderna, a reflexivida-
de, a sociedade de risco, o declínio da tradição e as relações de confiança. Em
seu livro As consequências da modernidade , Giddens apresenta a ideia de que:
[...] a forma globalizante da modernidade é marcada por poucas incer-
tezas, novos riscos e mudanças na confiança das pessoas nos outros
indivíduos e instituições sociais. Em um mundo de rápidas mudanças,
as formas tradicionais de confiança se dissolvem. Nossa confiança nas
pessoas costumava a se basear em comunidades locais, mas, nas socie-
dades mais globalizadas, nossas vidas são influenciadas por pessoas
que jamais conhecemos ou encontramos que podem viver em outro
lado do mundo relação a nós.
Esses relacionamentos interpessoais significam que somos forçados a
“confiar” ou ter confiança em “sistemas abstratos”, como agências en-
carregadas da produção de alimentos e da regulação em ambiental ou
sistemas bancários internacionais. Dessa forma a confiança e o risco
estão intimamente ligados. A confiança nas autoridades é necessária
se quisermos confrontar os riscos que nos rodeiam e reagir a eles de
um modo efetivo. Porém, esse tipo de confiança não costuma se dar
habitualmente, mas é tema de reflexão e reavaliação” (GIDDENS, 2012,
p. 112).
Dessa forma, para Giddens (2012), contrariando alguns teóricos que
dizem ser a globalização algo sem novidade, uma vez em que as trocas econô-
micas, políticas e sociais sempre existiram ao logo da história da humanidade,
esse fenômeno que atinge a contemporaneidade é novo pelo fato de seus efeitos
 
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serem sentidos em toda a parte e não sendo privilégio de alguns como o fato de
provocar incertezas, riscos e mudanças na relação de confiança das pessoas.
 Alguns anos atrás era mais fácil mudar de emprego caso não nos adaptás-
semos às atividades que nos eram propostas, principalmente se você tivesse uma
 boa qualificação profissional, poderia rejeitar um e logo estaria em outro emprego.
 Hoje, essa atitude seria perigosa, pois a qualificação profissional está
mais acessível para todos (ou quase todos) através de programas governamen-
tais (PRONATEC, EAD, PROUNI, FIES, etc) e que provocam estímulos aos jo-
 vens à qualificação profissional cada vez melhor. O resultado é o crescimento de
pessoas qualificadas e o aumento da competitividade no mercado de trabalho.
Este exemplo é uma representação do que Giddens aponta quando se refere às
incertezas e os novos riscos. Hoje mesmo gostando pouco da atividade que exer-
cemos em certo emprego vem o medo e a incerteza de sermos absorvido pelo
mercado de trabalho, caso pedíssemos demissão. A decisão não será fácil de ser
tomada, visto a pergunta que fica no ar: “Será que eu vou correr esse risco?”
Outra questão trazida por Giddens (2012) sobre os efeitos da globaliza-
ção é a mudança na relação de confiança entre as pessoas. Esta perda de confia-
 bilidade entre as pessoas é atingida devido ao processo crescente da violência.
 Vivemos um momento em que a violência está na roda de conversa em
todos os lugares e, por sua recorrência constante, já pode ser considerada um fenô-
meno que atualmente tem sido a que exige uma maior investida por atenção espe-
cial seja pela população, pelos representantes políticos ou pelos cientistas sociais.
Não é novidade dizer que a violência sempre acompanhou o curso da
civilização e da história da humanidade, mas com a velocidade com que as in-
formações são produzidas a presença na contemporaneidade desse fenômeno
pode dar a impressão de que ela se tornou um fenômeno natural. Na realidade,
essa sensação de naturalidade é devido aos meios de comunicação que trans-
formam a violência em uma mercadoria midiática com programas diários37 que
tem audiência com a exploração e a banalização desse fenômeno muito comum
nas sociedades.
37 O programa “Cidade Alerta” da emissora RECORD mostr a diariamente notícias jornalísti-
cas sobre a violência urbana e crimes registrando, quase diariamente, um índice de audiên-
cia que varia entr e 10 e 12 pontos ocupando a vice-lider ança do IBOPE (Instituto Brasile iro
de Opinião Pública e Estatística) como o programa mais assistido pela população brasileir a,
atrás apenas da emissora Globo (http://noticias.r7.com/c idade-alerta/)
 
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É aí onde entra a questão de
Giddens. Diante dessa banalização da
 violência presentes em todos os lu-
gares, em suas diferentes formas tem
como se sentir seguro? Dar para con-
fiar em todo mundo? Claro que não!
O sentimento de ‘não con-
fiança’ associa-se com o sentimento
do medo estabelecendo o que a socio-
logia denomina de ‘Cultura do Me-Cultura do Me-
do’do’3838. Sendo essa cultura responsável
por adquirir outros costumes como gradear, colocar filmadoras, portões, cercas
elétricas nas nossas residências. O simples fato de trocarmos os grandes centros
da cidade pelo shopping center como alternativa de aproveitar o comércio ou a
grande procura por casas em condomínios fechados onde o lazer se restringe ao
espaço reservados aos condôminos, são alguns exemplos de costumes adquiridos
como consequência da violência da vida moderna.
 A violência tem muitas formas de manifestações. A violência física, por
exemplo, se caracteriza pelos tipos de agressão (socos, pontapés, tapas), mas tam-
 bém existe a violência simbólica e psicológicas que geralmente está presente nas
relações de poder entre dominantes e dominados, ou relações interpessoais e afe-
tivas.
O importante a perceber é que conforme as formas de violência ficam
mais evidentes, mais são construídas estratégias de proteção contra elas através
de normas, regras e leis estabelecidas.
Um exemplo disso é a lei Maria da Penha que foi formulada, devido o
crescente número não só de assassinato, mas de violência de forma geral que
 vem vitimando muitas mulheres. Segundo o Mapa da Violência de 2013 cons-
truído pelo Instituto Sangari em abril de 2013:
38 Segundo o livro: Sociologia em Movimento (2013) construído por diversos autores, a Cultu-
ra do Medo representa o resultado cultural desagregador que ocorre quando um sentimento
difundido de perigoso se reproduz na sociedade, diminuindo o grau de coesão entre os in-
divíduos e facilitando estratégias de dominação autoritárias, que se valem do processo de
isolamento e alienação social. Na atualidade, a cultura do medo está fortemente associada à
criminalidade urbana e aos valores do senso comum associados a

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