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Neotomismo e Serviço Social

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Aula 4:
Neotomismo e Serviço Social 
Vimos que o serviço social nasce no seio do trabalho social da Igreja católica, que, na virada do século XIX para o XX, busca enfrentar a questão social, agravada pelo desenvolvimento do capital.
Vimos também que esse enfrentamento tem como princípio e objetivo final o trabalho apostólico dos leigos fiéis. 
Toda a prática assistencial foi, portanto, no período que vai de fins do século XIX até 1960 (no Brasil), um trabalho religioso.
Sendo assim, é evidente que a noção de caridade deveria estar no centro dessa prática. 
E nós vimos que a noção paulina de caridade teve importância crucial na teologia de Tomás de Aquino.
Não por acaso, assim, será o pensamento de Tomás que estará na base do trabalho social da Igreja. 
Contudo, a maneira como Tomás de Aquino influencia esse trabalho e, no bojo deste, o serviço social, é indireta: ela se faz pelo neotomismo.
O neotomismo, claro, já é uma releitura de Tomás de Aquino. 
Por isso mesmo, quando se trata das relações entre neotomismo e serviço social, não aparece com ênfase o tema da caridade, que nessa época já é meio démodé nos círculos intelectualizados. 
Não aparece, fique claro, nas teorias: 
nas práticas, podemos supor, com boa margem de acerto, que a caridade tomista era certamente evocada como base ideológica dos trabalhos assistenciais da Igreja. 
Duas noções, duas ideias, são destacadas, no neoteomismo. São dois princípios: 
o da dignidade da pessoa humana; 
o do bem comum. 
É esse neotomismo, calcado nesses dois princípios, que será ensinado nas escolas de serviço social a partir de 1936.
Nos séculos XVII e XVIII, o ensino do tomismo está em baixa. 
No XIX começa a ser retomado nas universidades. 
Mas quem dá o impulso maior – se seguirmos as palavras de Aguiar – será de novo Leão XIII, em sua encíclica Æterni Patris.
Nesta encíclica aparece claramente a noção de “ordem e progresso”, transcrita na expressão “tradição e progresso”. 
Fica claro, também, segundo um historiador citado por Aguiar, que o pano de fundo desse restabelecimento do tomismo era uma luta entre formas de pensar diante da modernidade [p. 57] (ou p. 40). 
A Université Catholique de Louvain será o epicentro intelectual da restauração do tomismo, chefiada pelo Cardeal Mercier. 
A intenção era formar sob o novo tomismo não só padres mas também pessoas influentes ocupando postos de comando.
Aguiar destaca alguns aspectos do pensamento tomista: 
1) a “visão de pessoa humana”; 
2) alguns “conceitos de sociedade e bem comum”; 
3) “questão ética”. 
Destas três noções, a primeira é a mais importante.
Não é por acaso que a noção de pessoa está em relevo, aqui. 
Tomás foi o grande teólogo cristão a tentar oferecer uma explicação aceitável para o mistério da Trindade: 
ele afirmava que a natureza divina é una, indivisa; mas as pessoas são três (Pai, Filho e Espírito Santo). 
Três pessoas, mas uma só: coeternas e incriadas. 
O Pai não é criado, nem gerado; 
o Filho não é criado, mas é gerado; 
o Espírito Santo também não é criado, nem gerado, mas é procedente... E por aí vai.
Tomás até poderia evocar Aristóteles para dizer que o Ser se diz de várias maneiras, mas isso seria uma “apropriação indébita”... 
O que importa para nós é que pessoa é uma noção metafísica em Tomás.
Significa dizer que a pessoa é o que distingue um ente. 
No caso da pessoa humana, é fácil entender qual é esse elemento distintivo: 
é a sua união entre um corpo e uma alma, duas substâncias realmente distintas, que, juntas, formam o homem.
A união entre o corpo e a alma distingue o humano tanto das “inteligências separadas” – os anjos – quanto dos seres naturais orgânicos e inorgânicos.
Tomás, ademais, fará uma distinção entre intelligentia (anjos) e intellectus (humanos).
A união da alma com o corpo torna o corpo humano o mais perfeito entre todos os corpos do universo (que é o conjunto das coisas criadas). 
Isso porque, na ordem da criação, a alma vem logo após os anjos; em seguida, os corpos; logo... 
No homem, a perfeição da “inteligência” se manifesta na racionalidade. 
O homem é um corpo racional, e é isso o que distingue a pessoa humana. Pela razão, o homem é consciência de si, vontade, e liberdade. 
Liberdade implica moralidade, pois a liberdade para escolher isto ou aquilo implica responsabilidade pela escolha efetuada. 
E isso significa que a pessoa humana pode não cumprir o seu fim último, que é conhecer e unir-se a Deus.
Desse desvio de percurso nascerão todos os problemas de ordem moral (pecado, mal etc.). 
Mas, realizando-o completamente, a pessoa cumpre o seu fim último e por isso realiza o progresso social, já que o homem é um “animal social”.
Quer dizer, o homem só vive entre outros, na multitudo, em coletividade. 
A pessoa do homem é um “ser social”, que como tal deve buscar antes de tudo a perfeição do coletivo. 
O coletivo, aqui, está (e deve estar) acima do indivíduo.
Isso significa que o bem comum está acima do bem individual – para realizar este, é preciso realizar aquele primeiro. 
Sociedade, para Tomás, não é outra coisa senão a união de homem com vistas a realização de alguma coisa que é comum a todos. 
Essa coisa comum é o “bem-estar da sociedade”, desde que esse possa ser partilhado por todos. (Compreendemos, então, a oposição da Igreja ao liberalismo). Só há comunidade se há partilha do bem comum. 
Mas o que é que garante e preserva essa comunidade? Lex aeterna, lex divina, lex humana, lex naturalis. 
A lei eterna é o plano racional de Deus ao criar o universo e todas as criaturas. Não podemos conhecê-la completamente, mas dela participamos. 
A lei divina é a lei revelada aos homens, na Bíblia. A lei natural é aquela presente no corpo humano e em outros; e como ela é necessariamente racional (já que feita pelo Criador inteligente), dela deriva a lei humana – o “direito positivo” do Estado.
O Estado, portanto, sendo fruto da lei natural também presente no homem, é algo natural (e não histórico), como afirmava Aristóteles. E em todo Estado há autoridade – do contrário a lei humana não é respeitada e a desordem se instala.
Ocorre, porém, que lex naturalis e lex humana se subordinam à sua fonte primeira, Deus; portanto, subordinam-se tanto à lex divina como à lex aeterna (a esta sobretudo). 
Logo, a autoridade que há em todo Estado deriva de Deus. E quem é o representante direto de Deus na Terra? A Santa Madre Igreja. 
Portanto, o Estado deve subordinar-se à autoridade da Igreja. 
Ora, a Igreja é uma instância que representa uma “ordem divina” e, portanto, “eterna”. 
Assim, não são os homens que devem decidir mudar ou transformar a sociedade, e sim os mandatários de Deus. 
Nessa perspectiva, toda aspiração à transformação (por exemplo, na forma da revolução) fica bloqueada. Eis por que o serviço social, em seus inícios, foi antes de tudo reformista, negando-se a si qualquer aspiração à transformação social (p. 43).
A partir de 1920, haverá uma instituição católica que buscará fazer uma espécie de “ciência social” da Igreja: a “União Internacional de Estudos Sociais”.
Na verdade, essa instituição foi criada especificamente para oferecer as bases teóricas da prática assistencial católica.
A União foi fundada em Malinas, na Bélgica, e será inicialmente presidida pelo Cardeal Mercier. 
Este elaborará um documento, contendo o “catecismo” da intervenção social e política da Igreja. Trata-se do ´”Código de Malinas”.
O principal neste código, além das afirmações baseadas em Tomás, é a afirmação de que economia e moral não se separam.
Logo, a Igreja deve ser “fiscalizadora” da economia, já que é ela a guardiã da moral. 
Segundo o autor, o neotomismo irá exercer sua influência sobre a assistência social católica também através desse código.
Em seguida, o autor trata do neotomismo especificamente no Brasil. 
Claro que quando falamos da transmissão do neotomismo estamos falando dos espaços onde isso era possível: nos centros e núcleo de estudos, mas sobretudo nas faculdades.
As escolas de serviço social no Rio e em São Paulo, tendo recebido influências
da mesma fonte – o catolicismo – seguiram caminhos muito parecidos. 
A diferença é que, em São Paulo, houve a Faculdade Livre de Filosofia e Letras do Largo de São Bento.
Dela sairão professores e alunos que irão para as escolas de Serviço Social. 
Outra diferença é que São Paulo receberá o neotomismo quase que de sua fonte original: a Bégica. 
No Rio, o neotomismo entra no serviço social mais ligado a instituições católicas locais, e o autor fala da presença dos jesuítas nesta história. E o importante é que lá o movimento da AC estará ligado diretamente ao nascimento da PUC. 
Na seqüência o autor trata especificamente de alguns neotomistas no Brasil. É interessante a trajetória e o papel de Van Acker, que se define como um restaurador da filosofia aristotélico-tomista. 
Ele virá inicialmente para a Faculdade de Filosofia do Largo de São Bento e posteriormente irá para a Escola de Serviço Social. Vocês podem imaginar a influência de suas palestras, à época (p. ex., a de 1941, intitulada “As bases do serviço social”).
Outro nome importante, em São Paulo, será o de Alexandre Correia, primeiro tradutor da Suma Teológica no Brasil. Formado em São Paulo e na Bélgica. Note-se que ambos pretendem pôr o tomismo em diálogo com a contemporaneidade...
Entre Rio e São Paulo, destaca-se o nome do padre Roberto Sabóia de Medeiros. Era conhecido como o “Apóstolo da Ação Social” católica. Aguiar destaca a presença de Sabóia tanto no universo acadêmico quanto no campo prático. Aliás, o depoimento dele é ilustrativo: nele aparece a proposta de Sabóia para acabar com a “briga de classe” (p. 48). 
Especificamente no Rio, há o Pe. Leonel Franca. Segundo o autor e os autores que ele cita, teria sido Franca o grande divulgador do tomismo no Brasil. 
Era considerado uma grande figura intelectual nos meios universitários católicos. 
Há outros dois padres citados entre os neotomistas brasileiros. 
O importante é que em todos eles a recuperação do tomismo se faz sob a sombra daquele que talvez seja o maior dos neotomistas no século XX: o cristão francês Jacques Maritain (1882-1973). 
A maior importância de Maritain foi a de ter influenciado uma parte da intelectualidade a voltar-se para o campo religioso. 
Uma parte da intelectualidade, inspirado nele, tentará conciliar universo intelectual e universo religioso.
Claro que sempre se pode supor que essa parte dos intelectuais era a que já estava predisposta à “conversão” religiosa. 
É essa predisposição que explica que suas obras, até meados da década de 30, tenham sido aceitas passivamente, sem discussões.
A principal obra de Maritain, no que concerne à Ação Católica e seus atos políticos e sociais, é o Humanismo integral, de 1936. 
Aí se oferecem certas fundamentações filosóficas para o trabalho social e defende-se uma nova relação entre a Igreja e o povo, no lugar das tentativas de relação entre Igreja e Estado. 
Maritain será o grande inspirador dos partidos democratas-cristãos (“Ê, Ê, Eimael, o democrata...”) em toda a América Latina. 
O humanismo de Maritain, claro, opõe-se ao humanismo burguês dos liberais da época. 
Lembremos que o Humanismo integral é uma obra cristã dirigida aos cristãos. 
Basicamente, o cerne da obra está em defender um novo papel histórico e político dos cristãos (p. 53-54). 
Uma das ideias de o Humanismo integral que irá influenciar os católicos, sobretudo aqueles desejosos de um conceito ou teoria que inspirasse sua ação social, será a noção de Ideal histórico. 
Para Maritain, toda época histórica tende a um ideal realizável, embora não necessariamente realizado na prática. 
Ideal, aqui, não seria simplesmente um modelo ideal fictício de sociedade que os homens anseiam ou tendem a desejar.
O Ideal de Maritain se opõe, portanto, às utopias. 
Tratar-se-ia de um ideal histórico completo que seria, não um “ser de razão”, mas uma essência que, embora sendo ideal, seria contudo realizável 
aliás, Maritain, aqui, identifica uma noção utópica com um “ser de razão”; p. 54). 
O Ideal histórico é uma tendência a um certo grau de perfeição social, inscrito na ordem social vigente como uma de suas possibilidades. 
Maritain não é tão utópico: ele sabe que o ideal de cristandade é apenas uma das possibilidades de perfeição social. 
Para ele, porém, era a principal, a que deveria se concretizar; a melhor, a mais perfeita. 
Pois o clima histórico que ele identificava, em sua época, era o clima cristão. 
Portanto, o ideal de uma nova cristandade seria justamente aquele que se deveria buscar e concretizar. 
O objetivo é claro: no lugar de uma “civilização ocidental” ou “moderna”, Maritain propõe uma “nova civilização cristã”. 
Essa nova cristandade, é preciso notar, seria eminentemente leiga: a conversão pregada por Maritain é cristã, mas não necessariamente confessional. 
É interessante a visão religiosa de Maritain sobre a relação homem-sociedade.
É uma visão em que transparece a presença de Agostinho e de Tomás de Aquino.
Isso fica claro na ideia de que a existência – individual e social – comporta três dimensões: a comunitária, a personalista e a peregrinal.
A dimensão comunitária enfatiza que o bem comum – seja ele de ordem material, espiritual ou moral - está acima do bem do indivíduo. 
Mas há algo próprio do indivíduo que está acima até mesmo do bem comum, do bem coletivo, social...
Trata-se daquilo que é próprio da pessoa. 
Lembremos que a pessoa é um ente metafísico. 
Portanto, o fim último da pessoa não se confunde com bens e valores temporais. 
Sabemos qual é esse fim último: a união com Deus etc.
Mas por isso mesmo, a vida na terra e em sociedade não é mais do que uma peregrinação. 
Uma passagem, uma caminhada rumo a algo superior. 
No entanto, Maritain afirma que isso não deve impedir os homens de fazer da terra um lugar viável de se viver. 
Pelo contrário: o lócus da via deve ser o melhor possível, justamente para facilitar a peregrinação. 
O que Maritain propõe, portanto, é uma espécie de “ascetismo intramundano” weberiano, mas de caráter mais social e coletivo.
O Ideal histórico de uma nova cristandade, em Maritain, é certamente inspirado no ideal de cristandade da Idade Média. 
Ele sabe e admite isso. Mas como a época é outra, ele recupera a noção de analogia de Tomás de Aquino, fazendo um outro uso dela.
Tomás, por sua vez, havia tirado a ideia de analogia de Aristóteles. 
Nos gregos antigos, a analogia tem um sentido matemático de proporção: 
a analogia exprime uma relação proporcional pela qual se pode igualar desiguais. 
Em Tomás, a analogia perde o sentido de proporção em favor da ideia de semelhança.
E é por isso que Maritain falará de analogia como “similitude [Tomás] de proporções [Aristóteles e os gregos].

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