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CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 4 FASCÍCULO Tadeu Feitosa LEITURA E Cultura Gratuito! 50 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE QUANDO O NADA DÁ LUGAR AO ALGO Uma das coisas que mais impressionam os estudiosos é por que os seres huma- nos são tão iguais quanto à constituição física e tão diferentes quanto aos modos de se comportarem. Você discorda? Pois veja: todos eles pensam, sonham, choram e riem. Até aí nenhuma novidade, não é? Pois bem, são iguais na forma, mas com- pletamente diferentes quanto aos sonhos, às sensações, aos comportamentos, aos valores, aos sentimentos e sentidos. E sa- bem por quê? Porque os seres humanos são diferentes em cultura. Neste fascículo vamos fazer uma via- gem sobre essa coisa chamada cultura. Vamos saber por que criamos, atualiza- mos e reformulamos nossas culturas; o motivo de darmos sentidos e significações aos nossos cotidianos e tradições; as mui- tas formas de representarmos o mundo à nossa volta, a vida e os infinitos sentidos que damos a isso. Após transitarmos pelo universo fantás- tico e infinito da cultura, vamos perceber que ela cria para nós um grande livro em branco, que preenchemos de gestos, vo- zes, sons, letras, palavras, frases e sentidos vários, todos diversos, diferentes quanto às simbologias que inventamos para en- tender o mundo e nos entender dentro dele. Sim, o mundo é um livro em perma- nente escritura, gestualidade, sonoridade. No mundo escrevemos e inscrevemos o oral, o verbal (e também o não verbal) e o visual. Nós codificamos o mundo pelos sinais, pelos signos comunicantes. Logo, o mundo é um livro que precisa ser lido, en- tendido, decodificado, comunicado, infor- mado, noticiado. Este módulo, portanto, demonstrará que é na cultura e pela cultura que nós inventamos o mundo, que nós o escreve- mos, o construímos simbolicamente. Ora, se inventamos o mundo pela cultura, é claro que é por ela e com os olhos dessa cultura, que lemos o mundo e seus misté- rios. Assim, além de a leitura ser um con- dicionamento cultural, a cultura também é uma leitura, uma interpretação, um pro- cesso de entendimento. Em outras palavras, aqui, relacionare- mos leitura e cultura, a fim de ampliar- mos o nosso entendimento sobre o que vem a ser colocar o “algo” onde antes im- perava o “nada”. Vixe, quem disse que complicou? Calma aí... Vamos ler o mundo da cultura? E se você ainda não se inscreveu em nosso curso, ainda pode fazê-lo. E se está inscrito e está gostando, não deixe de com- partilhar com seus colegas e amigos: ava.fdr.org.br CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 51 1. MAS, AFINAL, O QUE É CULTURA? Essa pergunta atravessa o mundo e inquietou muitas gerações com as respostas pouco ou nada precisas sobre a cultura humana. Tanto os cientistas como as pessoas em geral sempre se preocuparam em entender o porquê de nossas ações, valores, regras, músicas, crenças, mitos, modos de falar, de andar, de vestir, de preparar os ali- mentos e tantas outras coisas são tão diferentes de pessoa para pes- soa e de lugar para lugar. Os primeiros cientistas a se ocu- parem mais especificamente da tarefa de entender isso foram os an- tropólogos. Claro que outros, antes deles, também se preocuparam com isso: os filósofos, por exemplo. Como a ciência mais adiantada da época, e mais próxima dos estudos humanos, era a Biologia, os primeiros antro- pólogos tomaram de empréstimo desta ciência a Teoria da Evolu- ção como modelo de explicação, cometendo o primeiro e definiti- vo equívoco, pois que ela serviria para seres vivos e suas formas milenares de mudança, de evo- lução das espécies. Mas será que esse modelo seria útil para explicar coisas que não são biológicas, como a arte de pensar, de criar, de inventar, como fazem os humanos? A resposta é NÃO! Contudo, foi assim que desenharam os primeiros mode- los de cultura humana. Então, ao pensar a cultura na perspectiva de um processo de evolução, tornou-se necessário julgar ser um grupo cultural ou uma cultura supe- rior (ou mais evoluída) à outra. Se pudés- semos desenhar, era como se uma “escada” imaginária fosse erguida e seus degraus separando em “altura” as culturas “maio- res” das “menores”. Sem outros paradigmas para serem usados, na época, durante mui- to tempo esse modelo foi aceito, mesmo que equivocado. A cultura, entendida como um processo de evolução, “degraus a serem atingidos”, era a mesma coisa que dizer que as cultu- ras se dividiam entre culturas inferiores e culturas superiores. E aí o problema maior: quem poderia, em nome de tantas culturas diferentes, de tantas gentes e po- vos diversos definir, sem cair em erro, o grau das culturas alheias? Mais do que depressa, países como a França, Alemanha e Inglater- ra chamaram para si essa tarefa ingrata de classificar essas culturas, a partir do olhar das suas e de seus interesses, é claro. A história é bem longa, mas para resu- mir, inventaram o conceito de civilização e também o de cultura. As três nações não se entenderam muito bem quanto a uma con- ceituação mais clara. E sabe por que isso aconteceu? Ora, porque mesmo elas eram absolutamente diferentes em suas cul- turas, em seus entendimentos de mundo, em representarem suas vidas e seus mun- dos, a partir de seus pontos de vista. EURECA! Agora eu entendi: se as três na- ções eram diferentes em cultura, fica claro que todas as outras nações, todos os outros povos, todas as outras gentes, as diversas etnias, como elas três, também têm as suas próprias culturas, um “jeito de ser e fazer distinto”, e nenhuma é inferior ou superior à outra. Todas constroem o algo para pôr no lugar do nada. 52 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE A Teoria da Evolução tem como principal articulador o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), autor de Origem das Espécies, obra que revolucionou o mundo da ciência e, pelo que vemos, da cultura tam- bém. Ela defende que as espécies atuais descendem de outras espécies que sofreram modificações ao longo do tempo, transmitindo novas carac- terísticas aos seus descendentes. PARA ALÉM DO TEXTO Você já parou para pensar na cultura ou culturas que há nos espaços em que você habita? De que modo a cultura está presente na mediação da leitura? PUXANDO PROSA Assim, o que vale não é a colocação de cada cultura num degrau acima ou abaixo, mas o que é comum a todas as culturas: o ato ou efeito de dar sentidos às coisas dos seus mundos particulares. Ao escrever este fascículo, me lembro de uma situação interessante. No final de um semestre em que eu ministrei uma aula sobre cultura, era a última e nós já estáva- mos nos despedindo, uma aluna saltou da cadeira e atirou-me sem dó: “Professor, a disciplina foi massa! Mas eu preciso que o senhor resuma objetivamente: para o se- nhor, o que é mesmo a cultura?” CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 53 Quase engasgado, ruborizado e achan- do que aquele semestre não tinha valido de nada para aquela aluna nem para mim, olhei para baixo e algum ser soberano me deu uma resposta pronta, que eu jamais teria concebido: “A cultura é o processo através do qual o homem inventou o algo onde antes imperava o nada.” Os alunos, com toda a sua ju- ventude, responderam com uma vaia absolutamente cultural, com o sotaque e dicção da moleca- gem cearense. Estão percebendo o grau de cultura local daquela vaia? É uma vaia com sotaque. Ou seja, a representação de vaia dada pelo cearense e bem dife- rente da vaia “tradicional”. Isso é cultura. Não a vaia, apenas, mas, principalmente o modo como essa vaia e todas as coisas são construí- das, inventadas, criadas,transmiti- das, memorizadas com as marcas de uma cultura específica. Assim como o bayanihan filipino (costume de carregar uma casa de um local para outro), o Mai- Nene na Indonésia (cerimônia de limpeza de corpos, desenterrando mortos), a Ashura (autoflagelação) entre os muçulmanos xii- tas, entre outros. A vaia do Cearense: Desde o século XIX, por meio de narrativas ficcionais, relatos orais e mesmo por meio de revistas e jornais, a irreverência e o comportamento rebelde do cearense vêm sendo gestados simbolicamente sob o epíteto de “Ceará-Moleque”. Entre os elementos mais tradicionais encontrados, fala-se da singularidade da vaia do cearense, que inclusive teve a ousadia de, em 1942, vaiar o próprio Sol. Há diversos livros memorialísticos que apresentam verdadeiros tratados sobre o tema, apresentando vaias específicas para cada momento. No seu estado, você conhece algum elemento, costume ou comportamento típico que seja, como a vaia cearense, destacado? CURIOSIDADE 54 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 2. ENTRE NÃO CONHECER, CRIAR E SABER: O ALGO NO LUGAR NO NADA Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Carlos Drummond de Andrade O nada é não saber, não conhecer, não entender, não sinalizar. São exemplos de nada: o desconhecimento, a desinforma- ção, a falta de memória. Onde existe um vácuo, uma vacância, um “mistério” a ser revelado, entendido, decodificado. O nada é instável ao ser humano. Deixa-o insegu- ro, sem norte, sem indicação do que fazer e para onde ir. Isso causa uma adversidade e impulsiona o ser humano a saber, a in- ventar, a criar. É aí que entra a capacidade inventiva do ser humano. Instável, ele vai lá e inven- ta, cria, faz acontecer. E de onde vem essa força inventiva? Ora, da sua espetacular habilidade de pensar, imaginar; da sua ca- pacidade perceptiva, intelectiva, cognitiva. É a cultura que nomeia o mundo e suas coisas. CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 55 Nomear é criar sentidos culturais para as coisas do mundo. Logo, isso não é próprio apenas das cul- turas “superiores” ou “inferiores” (que nem existem). É próprio de todas as culturas. Não há diferenças entre quem cria mais ou menos, porque a criação é uma condição de todos os humanos. Assim, a cultura (ou o “algo” do qual falei anteriormente) é uma espécie de processo de “nomeação”. E existem infinitas formas de nomear, você sabia? • Pelo gesto: a mímica, os sinais do corpo, do olhar, do andar, das ex- pressões corporais, faciais etc. • Pela voz: os grunhidos (perceba o exemplo do choro dos bebês), cânti- cos, falas, declamações, cantorias etc. • Pela palavra: escrita, anunciada, noticiada, cantada, publicizada, dis- cursada, etc. • Pelos signos não verbais: a roupa e a moda; a religião e seus rituais; o vestuário e suas significações e sen- tidos; a maquiagem e suas represen- tações; a culinária e a história dos povos, nações e etnias etc. A cultura é o processo de criação desse “algo”: a invenção, a inventividade, a criação simbólica, o sentido criado pelos seres humanos e que vão dar vida simbólica e real ao que antes não existia, porque nada se sabia. Na cultura humana, o “algo” está nos gestos, nos sons, na visão e em todos os sentidos humanos. São exemplos desse algo: o choro, o silêncio, o olhar e tudo mais que gere sentido, sensação, significado, leituras. PUXANDO PROSA 56 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE 3. O QUE TECE A CULTURA: AS SUAS MARCAS E AS POSSIBILIDADES DE LEITURA DO MUNDO De posse desse caleidoscópio cultural, podemos agora trazer alguns teóricos e cientistas modernos para dialogarem conosco sobre o que já se sabe sobre a cultura e suas formas de expressão. A cultura é uma fábrica espetacular de criação de sentidos. Para Clifford Geertz (1987), ela tece significações e sentidos, criando o que ele chama de “teias de significação”. Olha que baca- na! Os sentidos e as significações vão se entrelaçando, criando vínculos com os “nós” simbólicos de cada amarração da teia. Esses “nós” ratificam os signi- ficados e os põem em interação com os outros, criando um mapa de sentidos que vão se alterando conforme os contextos. CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 57 É por isso que os gestos, as palavras, os comportamentos e seus respectivos senti- dos sempre vão depender dos contextos. Lembra-se do que falamos a respeito do choro dos bebês? Há o choro de fome, de medo, de dor, de zanga, o manhoso. Todos carregados de sentido e que precisam ser lidos, interpretados. Pois sim. Há uma relação bem clara en- tre o imaginário e seus sentidos. O antro- pólogo François Laplantine (1997) traz uma excelente reflexão sobre o que é esse imagi- nário. Para ele, trata-se de um processo hu- mano de criação de imagens, de modelos criados pela mente humana. Transmitido de geração a geração e utilizado como me- Você pode saber mais sobre essa temática na obra: A interpre- tação das culturas, Clifford Geertz. Rio de Janeiro: LTC, 1989. PARA ALÉM DO TEXTO mória e tradição de um povo, o imaginário de tanto representar um sentido, confirma e valida esse sentido no imaginário coletivo. Para esse cientista, o imaginário é mais real do que o real, porque faz parte da memó- ria de um povo e não se perde, sendo con- tinuamente renovado, adaptando-se aos mais diversos contextos. Lembra-se da expressão “contar um conto e aumentar um ponto”? Pois isso tem a ver com o imaginário, sabia? Ele se pro- longa nas narrativas de um povo, na sua memória e tradição. Mas entender isso e o que liga a cultura à leitura requer conhe- cer alguns conceitos que trataremos aqui. Em primeiro lugar, precisamos saber que não existe cultura sem um tempo e um espaço que a defina. Um dos princi- pais espaços da cultura e também uma de suas marcas fortes é o cotidiano. É nas relações com o outro que os huma- nos constroem seus significados e senti- do. Tecer sentidos coletivos fortalece o ser humano, sua vida e as relações so- cioculturais necessárias para se orienta- rem no mundo. As vivências e experiên- cias humanas são tecidas, inventadas e reinventadas nos seus cotidianos, onde se constroem seus códigos culturais, seus símbolos e simbolismos. Será que existe uma cultura superior a outra? Por que os portugueses quando invadiram as terras brasileiras tentaram mudar os hábitos e costumes, inclusive as crenças indígenas? Por que os brancos durante muito tempo, e ainda hoje, veem com desconfiança os rituais da Umbanda? Pesquise costumes e hábitos de outros países e povos e reflita sobre a sua cultura e o espaço que as define. DESAFIO 58 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Para o pensador Michel de Certeau (1994), os cotidianos são inventados e se erguem e se modificam segundo essas invenções. Na verdade, segundo o pensa- dor, são táticas, estratégias e artimanhas criadas para dar sentido às coisas naquele espaço e tempo. Mesmo sabendo que so- bre os cotidianos culturais existem impo- sições simbólicas (por regras, ordenações, convenções, disciplinamentos etc.), as práticas dos sujeitos den- tro de cada cotidiano são resolvidas por táticas e invenções bem próprias do sotaque e dicção cul- tural de cada grupo. Ligada à cultura e ao cotidiano, temos a Tradi- ção. É ela que difunde os sentidos de todas as cul- turas. Os autores também dizem que, como o coti- diano, a tradição também é inventada. A tradição é o resultado de seus sentidos. O antropólo- go Paul Connerton (1993) vai mais longe. Para ele, a tradição é inventada e recordada pelo viés da memória. Entretan-to, ela é também atualizada e está em constante movimento. Tradição é também um processo de trans- missão de cultura para as gerações futu- ras. Ela é uma narrativa sobre os povos, as gentes e suas culturas. Mas, prestem aten- ção: nunca se diga que tradição é algo do passado. Não é mesmo! Tradição não é algo velho, como um quadro amarelado pelo tempo. Tradição é continuidade, mo- vimento, dinamismo. A tradição caminha dialogando com o novo, com as marcas da contemporaneidade, sem perder suas ma- trizes fundantes. Junto a essas marcas, apresentamos a senhora Memória, marca indispensável da cultura. Como os demais, a memória tam- bém tem os seus sentidos. Temos a me- mória individual, que recebe dos nossos sentidos humanos os sinais representati- vos do mundo e das coisas. Filósofos como Henri Bergson (1999) trabalharam muito bem essa questão e vale a pena a leitura. Temos também a memória coletiva que, para Maurice Halbwachs (1990), são as me- mórias partilhadas coletivamente, quando nos juntamos para inventar, redimensionar e criar táticas e estratégias para o imaginá- rio, o cotidiano e as tradições, só que em conjunto, levando em conta os contextos sociais dessas criações. Assim, a memória constrói a nossa marca sociocultural, sendo um patrimônio de toda cultura. CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 59 O Patrimônio é um bem cultural de todas as produções de sentido que a cultura deu e fez para nós. Ele é coirmão dos pilares anteriores citados acima. Como os demais, os patrimônios também têm seus sentidos. Assim, todas as coisas mate- riais ou imateriais que nos chegam do pas- sado vem carregado de sentidos desse pas- sado. É preciso ler e entender esse passado e as marcas deixadas por ele se nos apre- sentam como bens materiais e também simbólicos daquelas culturas. Dos utensí- lios ancestrais mais simples àqueles que receberam da técnica um aprimoramento, como as edificações, tudo se configura em um bem cultural, bem simbólico, num patri- mônio. Temos o Patrimônio Material e o Patrimônio Imaterial. Os patrimônios são excelentes fontes de informação e leitura. Por meio deles podemos entender culturas, decodificar tradições, revelar memórias e entender imaginários culturais dos mais di- versos povos. Há uma ligação afetiva e sim- bólica dos sujeitos com seus monumentos. Portanto, lê-los nos faz descobrir os misté- rios simbólicos de onde eles provêm. Por fim, mas absolutamente misturada aos outros pilares aqui citados, temos a his- tória, que narra, que estuda, que interpreta, que dá ciência aos fatos, que estabelece re- lações entre isso tudo e, por excelência, faz a leitura do tempo, das pessoas, das suas relações, das suas trajetórias. E também a história recebe da cultu- ra as suas influências. Não por acaso, os historiadores pertencem – via de regra – a paradigmas investigativos que sofrem as in- fluências dos culturais contextos históricos onde nasceram. Mas você pode nos perguntar: o que é o patrimônio e o que ele tem a ver com a cultura? PARA REFLETIR Segundo artigo 216 da Constituição Federal, configuram patrimônio “as formas de expressão; os modos de criar; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; além de conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” PARA ALÉM DO TEXTO 60 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE A CULTURA E OS SEUS PILARES Observe na figura, que os círculos menores assim o são apenas no desenho e por um recurso didático, mas a grandeza do que cada um deles representa é igual à cultura e à lei- tura. Tente não simplificar o quadro e suas relações. Antes, leia de modo complexo, como também o é a cultura. Aliás, a fim de ratificar essa complexidade cultural e leitora, é bom manter isso sempre em mente: a cultura no singular é sempre plural! Do mesmo modo, os fenômenos que demonstramos aqui como “pilares da Cultura”. Não há a cultura, mas as culturas. De igual modo, costumamos falar – e é o mais correto – dos imaginários, dos cotidianos, das tradições, memórias, patrimônios e histórias de um povo, de um grupo, de uma etnia etc. Do mesmo modo, também são complexas, dinâmicas, plurais e diversas as práticas leitoras culturais. Voltando ao quadro acima, também as direções estão demonstradas de modo que você, leitor(a), escolha a que melhor lhe convier, porque tudo aqui está, como dizem os jovens, “junto e misturado”. Assim, esse é mais do que um “caminhar da cultura”. É, na verdade, a “teia de significações” de que nos fala Clifford Geertz. Cada pilar tem suas teias e elas vão interagindo numa “semiose ilimitada”. Semiose é um conceito usado pela Semiótica (ciência que estudo dos signos e sinais da linguagem, o seu comportamento no universo e nas relações humanas, sociais, culturais etc.). É o processo através do qual cada signo, sinal ou linguagem interpretada gera um novo signo, um novo sinal, uma nova interpretação. Isso acontece porque as linguagens são dinâmicas. Seus sentidos não ficam aprisionados nas leis da escrita, por exemplo. Esses sentidos mudam, se renovam, ganham outras interpretações. Esse processo infinito de novas possibilidades de leitura e interpretação do mundo, nós denominamos de Semiose. CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 61 4. CULTURA E LEITURA: UMA NÃO EXISTE SEM A OUTRA Sim, porque cultura é um processo de lei- tura de mundo. Da mesma forma, a lei- tura é a decodificação dos sentidos que a cultura criou, transmitiu, ritualizou e foi assimilada pelos seres humanos, cada qual dentro da sua cultura específica. As significações mapeiam o mundo para nós. E sabe como mapeiam? Criando um li- vro imaginário sobre o mundo e suas repre- sentações. Lemos o mundo com os olhos da cultura. No lugar das letras, que podem proporcionar escrita e leitura, a cultura nos dá os signos (sinais) que lhe compõem como marcos para lermos o mundo. São exemplos de signos culturais poten- cializadores de leitura: a) a culinária, que constrói e define o sabor de uma cultura, os rituais de preparo das comidas e bebidas e o que elas simbolizam; b) o vestuário, com seus modelos, cores, formas e adereços, além do modo de se vestir e do que as vesti- mentas representam; c) as crenças, os mitos e as religiosida- des, que moldam as condutas huma- nas dentro de cada cultura; d) os valores de cada cultura, que de- fine a moral e a ética de cada povo; e) as narrativas míticas, que constroem os imaginários de cada povo; f) a música, que representa a sonorida- de, poética e musicalidade de cada povo, etnia etc. Tudo isso e muitos outros mais empres- tam a nós possibilidades de leitura. E é pelo processo de leitura que entendemos os signos de uma cultura. Esses complexos processos de leitura também ensejam processos de práticas leitoras. Não entendeu? Ora, ninguém per- manece igual após ler algo sobre alguma coisa. O “algo” lido nos tira do “nada” e nos modifica. Mas não modifica por um proces- so mágico, mas sim pela dinâmica de mu- dança que a prática leitora – aquilo que apreendemos com a leitura – provoca em nós e na nossa vida. 62 FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Se a cultura borda significados e significações, são o nosso afeto e a nossa sensibilidade, diante da leitura (apreensão, admiração, afeto etc.), que provocam mudanças comportamentais. Essas mudanças, esse entusiasmo pela descoberta, são resultantes dessa prática leitora. É por isso que Leitura e Cultura são inseparáveis e indissociáveis. As duas criam erepresentam um mundo de coisas para nós. Se Deus criou o mundo, foi a Cultura que o transformou, escrevendo um mundo para ser lido, interpretado e provocar práticas leitoras fantásticas, eternas e dinâmicas, porque a cada nova leitura, novos horizontes surgem. Pela Leitura e pela Cultura estamos o tempo todo, do nascer ao morrer, ensinando e praticando as leituras de mundo. Isso lhe parece confuso? Pois não é. Tudo o que os nossos sentidos detectam são formas de leitura. Mas o que é a leitura. Calma, não vou repetir o que os outros fascículos explicarão com maior detalhamento. Aqui nos interessa apenas apresentá-lo a Leitura Cultural do Mundo. Trata-se, como já dissemos, da natureza humana de dar sentido ao mundo e às suas coisas. Assim, na cultura, como na leitura, não podemos ter leituras iguais, mesmo que o texto seja o mesmo. O que diferencia uma leitura da outra é o sotaque cultural dessa leitura de cada indivíduo. Assim, tanto os contextos culturais alteram as leituras e as práticas leitoras, como o tempo, o momento dessa leitura altera o(a) leitor(a) e sua prática leitora. Leia um livro na sua infância e veja o que ele lhe diz. Volte a ele na adolescência e verá que nem você nem o livro são os mesmos. Espere com sabedoria e perceba, em sua maturidade, que embora seja o mesmo livro, o tempo atualizará sempre a sua leitura, transformando-a e lhe dando novas oportunidades de novos entendimentos. Esse processo de continuidade criativa dos sentidos e dos efeitos deles sobre nós é o que chamamos de cultura. Com os olhos da cultura podemos ler um quadro, um filme, uma passeata. Podemos ler a vida. Ler a morte e reinventá-la como vida. Se a cultura é o algo onde antes imperava o nada, a leitura é o que imortaliza o algo, afastando-nos do nada. Isso é leitura e leitura é cultura. REFERÊNCIAS BERGSON, Henry. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. CONNERTON, Paul. Como as sociedades re- cordam. Oeiras: Celta Editora, 1993. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma his- tória dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 26 reimp. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-mo- dernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. LAPLANTINE, François, TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997. Assim, as práticas leitoras têm ligação com a cultura, mas não são reféns dela. Sim, porque as leituras se prolongam nos leitores, nas suas experiências, vivências e manifesta- ções culturais. Se as escritas têm o sotaque cultural do seu autor, as leituras ganham as diversidades culturais dos seus leitores. As- sim, além de estarmos diante de uma “se- miose ilimitada”, estamos também diante de uma complexa diversidade cultural. Por fim, mas – como a Leitura e a Cultu- ra – sem nunca acabar, essas duas magias com as quais o ser humano lida desde o sempre, jamais morrerão, porque estarão sempre no nosso imaginário, cotidiano, tradição, memória, patrimônio, história e, principalmente, na nossa mente e nos nos- sos sentidos, sensações e sentimentos, cujo conjunto gera esse patrimônio humano, que, quanto mais o estimulamos, mais cria- ção mágico-mítica ele produzirá. Assim é a Cultura. Assim é a Leitura. Procure um livro que você leu durante a infância e a adolescência, de preferência, algum que lhe marcou, seja por qualquer motivo. Procure-o, leia-o novamente e se perceba nessa leitura, se encontre, procure aquele(a) leitor(a) do passado. Quais as suas impressões hoje a respeito dessa leitura? A obra ainda lhe causa alguma impressão? Você consegue encontrar- se ou identificar-se com aquele(a) pequeno(a)/jovem leitor(a)? Como foi para você essa experiência? Até o final de nosso curso, gostaríamos de saber. DESAFIO Assista ao vídeo “A leitura e a cultura no desenvolvimento cerebral”, com a neurocientista Suzana Herculano-Houzel. ACESSE: https://www.youtube.com/ watch?v=dLWiwD_YhUM PARA ALÉM DO TEXTO CURSO FORMAÇÃO DE mediadores de leitura 63 Luiz Tadeu Feitosa (Autor) É professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC) desde 1992. Docente do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação e do Departamento de Ciências da Informação, mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, doutor em Sociologia pela UFC. Atualmente faz pesquisa de pós-doutorado no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho, em Braga, Portugal. Rafael Limaverde (ilustrador) É ilustrador, chargista e cartunista (premiado internacionalmente) e xilogravurista. Formado em Artes Visuais pelo Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará (IFCE). Escreve e possui livros ilustrados nas principais editoras do Ceará e em editoras paulistas. RealizaçãoApoio EXPEDIENTE: FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) João Dummar Neto Presidente André Avelino de Azevedo Diretor Administrativo-Financeiro Raymundo Netto Gestor de Projetos Emanuela Fernandes Analista de Projetos Tainá Aquino Estagiária UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE Viviane Pereira Gerente Pedagógica Luciola Vitorino Analista Pedagógica CURSO FORMAÇÃO DE MEDIADORES DE LEITURA Raymundo Netto Coordenador Geral e Editorial Lidia Eugenia Cavalcante Coordenadora de Conteúdo Emanuela Fernandes Assistente Editorial Amaurício Cortez Editor de Design e Projeto Gráfico Marisa Marques de Melo Diagramadora Rafael Limaverde Ilustrador ISBN: 978-85-7529-893-0 (Coleção) ISBN: 978-85-7529-896-1 (Fascículo 4) Este fascículo é parte integrante do Programa Fortaleza Criativa, em decorrência do Termo de Fomento celebrado entre a Fundação Demócrito Rocha e a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, sob o nº 05/2018. Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 - Fax (85) 3255.6271 fdr.org.br fundacao@fdr.org.br
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