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O Regime Constitucional das Águas

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O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
Revista de Direito Ambiental | vol. 25 | p. 207 | Jan / 2002
Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental | vol. 2 | p. 1329 | Mar / 2011
DTR\2002\541
Virgínia Amaral da Cunha Scheibe
Área do Direito: Ambiental
Sumário:
1.Introdução - 2.O domínio das águas - 3.Das competências em matéria de águas - 4.A política
nacional dos recursos hídricos - 5.Do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos -
Bibliografia
1. Introdução
A água é "o bem mais precioso do milênio" e tal afirmação já serviu de título e motivo a importante
Seminário que o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal realizou no ano
2000, patenteando o reconhecimento generalizado de que, neste século XXI ela representará o que
o petróleo representou no século passado, inclusive em valores.
Naquele conclave, de várias e brilhantes participações, se ressaltou a importância do tema e a
preocupação generalizada com a escassez dos recursos hídricos. Efetivamente, se mais de 97% da
água do planeta é salgada e não serve sequer para uso industrial 1e apenas 3% é de água doce,
sendo que ainda 2% deste último percentual é constituído de depósitos subterrâneos 2e se sabe que
a poluição crescente em todos os níveis e formas vem alterando a qualidade e reduzindo a
quantidade da água doce disponível, indispensável à continuidade da vida, fica fácil concluir que tal
preocupação procede e se aguça à medida que sabemos que, hoje, mais de 1 bilhão de pessoas no
mundo não dispõe de água potável.
Como recurso ambiental, a água é indissociável dos demais elementos (solo, ar atmosférico, flora e
fauna) que compõem o meio ambiente natural e sua presença garante a continuidade da vida.
A lei que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) a declara constituir um dos
recursos ambientais; Agenda 21 (Capítulo 18) a define como componente essencial da hidrosfera da
Terra e parte indispensável de todos os ecossistemas terrestres; e, consoante anota José Afonso da
Silva, 3"a água é um bem indispensável à vida: humana, animal e vegetal. Compartilha dos
processos ecológicos essenciais, como o da fotossíntese, o da quimiossíntese e o da respiração.
Funciona como hábitat e nicho ecológico de inúmeros organismos e espécies animais e vegetais.
Sua mobilidade, seu poder de solubilidades, sua variação de densidade, sua característica de
regulador térmico e especialmente sua tensão superficial são atributos que respondem por sua
extraordinária função ecológica".
Já é do consenso internacional que a água é um bem de valor econômico, em face da pouca
disponibilidade frente a uma demanda crescente.
A importância da água, especialmente com o que diz com a manutenção do meio ambiente natural
de que são parte os homens e os animais, confere especial relevo a este tema e nele examinaremos
apenas as questões relacionadas com a água doce a partir do contexto constitucional.
Guardado tal lineamento, examinaremos os três grandes tópicos que predominam no Texto, a saber:
o domínio das águas, a partilha das competências em matéria de águas, e em matéria de meio
ambiente, finalizando por analisar, ainda que apenas genericamente, a Lei de Águas.
2. O domínio das águas
A Constituição Federal de 1988, por seu art. 20, III, estabelece que pertencem à União os lagos, rios
e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um Estado,
sirvam de limites com outros países ou se estendam a territórios estrangeiros ou dele provenham,
bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Já pelo inc. IV do mesmo artigo, define que são
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
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bens da União os potenciais de energia elétrica, o que surge ratificado pelo art. 176.
Por sua vez, o art. 26 da Carta, dispondo sobre o domínio dos Estados, estabelece que estão
incluídas dentre os bens destes (inc. I) as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e
em depósito, ressalvadas, nesse caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União.
Vê-se, pois, que o legislador constituinte escolheu alijar do domínio da União as águas subterrâneas,
permanecendo os Estados, ainda, com o domínio dos cursos d'água que não se enquadrem nas
especificações do já mencionado art. 20, III.
Certo que, quanto a esse ponto, já bastante se discutiu em face dos depósitos subterrâneos que
sejam subjacentes a território de mais de um Estado, havendo manifestação do próprio MMA 4no
sentido de que pertenceriam à União, pela similitude que guardam com as águas superficiais
interestaduais.
Todavia, predomina o entendimento de que o Texto Constitucional não admite outra interpretação
que não aquela de que tais depósitos pertencem aos Estados. Nesse sentido, a opinião de Vladimir
Passos de Freitas, 5de Ana Cláudia Graf 6e de José Afonso da Silva. 7
Efetivamente, embora na lógica do sistema se devesse incluir dentre os bens da União os aquíferos
de dimensões interestaduais, não foi esse o entendimento do legislador constituinte, o que mereceu
crítica aberta de Cid Tomanik Pompeu, 8acentuando a possibilidade de conflitos entre os Estados e
eventual exaustão daqueles reservatórios.
A questão do manejo dos aquíferos é de fundamental importância, mormente se considerarmos que
de 97% a 98,8% da água doce do Planeta é subterrânea e temos, no Brasil, a maior reserva
latino-americana dessa água, o Aquífero Guaraní, com capacidade para, bem preservado, garantir o
abastecimento de água para 360 milhões de pessoas.
O Aquífero Guaraní, um dos maiores do mundo, segundo publicações técnicas, 9ocupa uma área
total de 1,2 milhão de km 2, passando pelos Estados de Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo,
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Minas Gerais e estendendo-se ao território do
Paraguai, Argentina e Uruguai. Sua recarga natural é de 160 km 3/ano, sendo que somente em São
Paulo a área de recarga atinge 17 mil km 2.
Em face do domínio estadual sobre um reservatório de tal magnitude, faz-se evidente que somente o
consenso entre os Estados federados pode garantir sua preservação e adequado manejo no
território nacional. Já considerado em toda a sua extensão e, portanto como reservatório
internacional de águas, está a exigir uma co-gestão com os mencionados países vizinhos, sendo de
referir-se à existência, hoje, do Projeto Guaraní, financiado através do Banco Mundial e a cujas
tratativas comparecem os Estados de domínio e não a União, com as dificuldades naturais
decorrentes da pulverização de opiniões e posições.
Outro aspecto significativo, na disciplina constitucional das águas, é a extinção da propriedade
privada sobre elas, consoante o salientado por significativo segmento doutrinário, em face da
previsão de propriedade somente da União e dos Estados, sobre todos os corpos d'água,
derrogando, pois, o Código Civil (LGL\2002\400) e o Código de Águas, no que diz com o ponto. Vale
dizer que, sob a ótica daqueles doutrinadores, consoante a nova disciplina, o proprietário da terra
não é mais proprietário dos recursos hídricos (superficiais ou subterrâneos) nela existentes,
permanecendo, entretanto, na condição de utente e seu detentor e administrador. Administrador da
coisa pública, diga-se, pois, no atual regime, a água é um bem público, bem de uso comum do povo,
na clássica definição civilista.
A propósito, de anotar a opinião de Maria Luiza Machado Granziera, 10no sentido de que qualquer
dúvida sobre esse assunto restou definitivamente solvida pelos claros termos da Lei de Águas sobre
serem estas de domínio público.
A Constituição, em tal aspecto, realmente inovou, pois a Emenda Complementar 1 de 1969 (com as
alterações introduzidas pela Emenda Complementar 16 de 1980), dizia incluir-se entre os bens dos
Estados e Territórios apenas os lagos em terrenos de seu domínio, bem como os rios que neles têm
nascente e foz (art. 5.º), recepcionando, pois, o Código de Águas, promulgado em 1934.O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
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Efetivamente, se a vontade constituinte de l988 declarou o domínio estatal sobre a água e esta,
como bem indispensável à vida, integra o meio ambiente sadio e equilibrado que é direito de todos e
bem de uso comum do povo, como expressamente o declara o art. 225 caput, da Carta, força é
concluir que o proprietário de terra aquinhoada com recursos hídricos sobre estes detém, hoje,
apenas a guarda e o poder de administração, sujeito a rigoroso controle público, em prol da
preservação ambiental.
Nesse aspecto, vale registrar a noção hoje corrente acerca da função social da propriedade e a de
que o fato do domínio privado sobre terra onde se situem riquezas ambientais não confere ao
proprietário o direito de dispor livremente destas, para dilapidá-las e comprometer por qualquer forma
o equilíbrio ecológico e o meio ambiente, em prejuízo de um direito que é de todos.
De qualquer maneira, força é convir, com Leme Machado, 11que, a entender-se a permanência da
propriedade privada sobre águas, ter-se-ia que indenizar o proprietário por toda autorização de uso
outorgada pelo Poder Público, em ferimento - sustenta - ao seu direito adquirido.
Todavia, é dever referir ainda que entre administrativistas de escol, como Hely Lopes Meirelles 12e
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, 13a opinião é de que persiste a propriedade privada sobre águas
comuns, tal como as define o Código de Águas, ou seja, aquelas que não permitem navegação nem
flutuação.
Embora o dissenso doutrinário, a questão, do ponto de vista da defesa ambiental - foco desta
exposição, fica resolvida pelo só entendimento de que o poder de polícia alcança o uso de qualquer
corpo hídrico, sob qualquer domínio ou em terras de qualquer domínio, na forma de limitação
administrativa, em prol do meio ambiente sadio e equilibrado.
3. Das competências em matéria de águas
Na clássica definição de José Afonso da Silva, "competência é a faculdade juridicamente atribuída a
uma entidade, ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são
as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar
suas funções". 14Sua partilha segue o critério da preponderância de interesses.
Segue daí que a competência pode ser material ou legislativa. A primeira, relacionada à prática de
atos administrativos, e a segunda, à edição de normas legais. A competência material pode ser
exclusiva ou comum, ao passo que a legislativa pode ser exclusiva, privativa, concorrente ou
suplementar, consoante ao seu tempo rememoraremos.
Na repartição de competências entre as pessoas políticas, a Carta adotou o critério de enumerar as
competências da União, conferir aos Estados as remanescentes e indicar as dos Municípios,
consoante bem assinala ainda José Afonso da Silva. 15
A competência exclusiva é restrita à pessoa política à qual cometida, não admitindo delegação ou
suplementação, diferentemente da competência privativa, que admite delegação. A Carta de 1988
comete à exclusiva competência material da União Federal as matérias enumeradas no seu art. 21 e
estabelece sua competência legislativa privativa quanto às matérias enumeradas em seu art. 22, cujo
parágrafo único prevê a possibilidade de, por via de lei complementar, serem os Estados autorizados
a legislar sobre questões específicas das matérias ali relacionadas.
A par disso, a Carta prevê áreas comuns de atuação de todas as pessoas políticas (competência
material) em seu art. 23 e competência legislativa concorrente entre a União, Estados e Distrito
Federal, em seu art. 24. Importante salientar que, em se tratando de competência concorrente,
consoante os parágrafos deste último dispositivo, à União limitar-se-á a estabelecer normas gerais,
não excluída a competência suplementar dos Estados e, na ausência de lei federal sobre normas
gerais, cabe aos Estados exercer competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
Em tema de águas, o legislador constituinte estabeleceu competência legislativa privativa da União
Federal, conforme art. 22, IV, do Texto. Vale dizer, sobre o tema, somente esta legislará, sem
embargo de que, sobre dada questão do mesmo tema, lei complementar admita regramento pelos
Estados.
Tal opção por parte da Constituinte resultou em acerbas críticas da doutrina, como a formulada por
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Cid Tomanik Pompeu relatando seus esforços quando da Constituinte, em rumo diverso 16como
aquela que veicula José Afonso da Silva, ao afirmar: "Não é muito coerente atribuir aos Estados o
domínio de águas superficiais e subterrâneas, como já vimos (art. 26, I), sem lhes reconhecer a
competência para legislar, ainda que fosse apenas suplementarmente sobre águas. Como poderão
os Estados administrar suas águas se a competência para legislar sobre elas é privativa da União?".
A indagação do doutrinador põe-nos questão de relevo.
Em matéria de águas, com o centralismo adotado, qual o caminho indicado ao legislador ordinário,
mormente considerado o domínio exclusivo dos Estados sobre as águas não arroladas no domínio
da União?
Para resolver tal questão, devemos recorrer a uma interpretação sistemática do Texto, visando
integrar suas disposições, de maneira a extrair delas a máxima eficácia possível. Retornando, pois, à
Carta, e anotando que é da competência privativa da União Federal a instituição do sistema nacional
dos recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso (art. 22, XIX, CF/88
(LGL\1988\3)) e que, consoante o anteriormente assinalado, aos Estados são reservadas as
competências que não lhes sejam vedadas pela Constituição (art. 25, § 1.º, CF/88 (LGL\1988\3)) e o
poder de legislarem concorrentemente com a União em matéria de meio ambiente (art. 24, VI, CF/88
(LGL\1988\3)) e é dever do Poder Público como um todo zelar por um meio ambiente sadio e
equilibrado (art. 225, CF/88 (LGL\1988\3)), força é concluir que aos Estados incumbe não só dispor
sobre águas em tudo o que pertine à conservação de sua qualidade e quantidade, guardados os
parâmetros fixados pela legislação federal, como exercer o direito de outorga do seu uso e o poder
de polícia decorrente, tudo conforme o sistema nacional de recursos hídricos, entretanto.
A propósito desse ponto, assinala com propriedade o Prof. Leme Machado 17que o estabelecimento
de competência privativa da União para legislar sobre águas significa que os padrões de qualidade
das águas deverão ser estabelecidos somente pela União, à qual incumbe dar critérios para
classificação dos corpos hídricos, cabendo aos Estados fazer a aplicação dos critérios federais e
efetuar a classificação das águas de seu domínio.
Ademais, ainda consoante aquele autorizado magistério, as normas de emissão de efluentes,
naturalmente relacionadas coma a manutenção ou alcance de um dado padrão de qualidade da
água, devem ser baixadas pelos Estados, quando não estarão legislando propriamente sobre águas.
Todavia, a norma estadual deverá garantir o padrão de qualidade fixado pela lei federal.
Assim, constituindo a água elemento integrante do meio ambiente natural e a cuja tutela está
obrigado o Poder Público, há de reafirmar que o caminho lógico para que os Estados exerçam seu
poder-dever no campo das águas é aquele do exercício de sua competência concorrente para
legislar sobre conservação da natureza, defesa dos recursos naturais, proteção ao meio ambiente e
controle da poluição (art. 24, VI), ou seja, por via de legislação suplementar. Também hão de fazê-lo
através do exercício da competência comum (material) para proteger o meio ambiente e combater a
poluição em qualquer de suas formas (art. 23, VI, CF/88 (LGL\1988\3)).
Assim, parece que as dificuldades decorrentes do estabelecimento da competência privativa da
União Federal para legislar sobre águas e sua exclusiva competência para instituir o sistemanacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga dos direitos de seu uso
não criam empeços à atuação dos Estados na defesa desse precioso elemento natural. Tanto assim
é que em tal sentido vem baixando leis sobre Sistema Estadual de Recursos Hídricos e normas
próprias sobre a defesa das águas, como fez, a exemplo, o Estado do Rio Grande do Sul com seu
Código Estadual do Meio Ambiente (Lei 11.410, de 03.08.2000).
Veja-se que, no próprio plano federal, a Lei de Águas (Lei 9.433/97), ao instituir a Política Nacional e
Recursos Hídricos e criar o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos,
regulamentando o art. 21, XIX, da CF/1988 (LGL\1988\3), estabelece a gestão descentralizada de
tais recursos e deixa clara a competência dos Estados e do Distrito Federal para efetivar a outorga
de autorizações de uso de recursos hídricos de seus domínios, segundo os critérios ali fixados.
Parece-nos que a preocupação do legislador constituinte em centralizar a competência legislativa em
matéria de águas, melhor se interprete como a de garantir uma política única, de âmbito nacional,
para suportar uma gestão coordenada dos recursos hídricos. Desiderato esse perfeitamente
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
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justificável em se tratando de matéria de interesse de toda a Nação, de um assunto nacional,
portanto, a reclamar um tratamento uniforme e equilibrado.
Prosseguindo no estudo das competências legislativas e materiais das pessoas políticas em matéria
de águas, no Brasil, é de ver-se que não estaria completo sem a devida menção às atribuições e
poderes que a propósito foram conferidos aos Municípios.
A estes, como se viu, não reservou expressamente a Carta qualquer domínio sobre corpos d'água,
mesmo o daqueles confinados ao seu território, como lagos ou rios que nele tenham nascente e foz.
Todavia, de registrar a opinião de Leme Machado, quanto a considerar possível a existência de
águas municipais.
De qualquer maneira, mister é ter presente que a Carta reserva aos Municípios (art. 30, I e II, CF/88
(LGL\1988\3)) competência para legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar a
legislação federal e a estadual no que couber, o que os autoriza a suplementar a legislação
concorrentemente baixada por aquelas duas esferas, em questões ambientais.
Reserva-lhes também competência para organizar e prestar serviços de interesse local (art. 30, V,
CF/88 (LGL\1988\3)), vale dizer, atuação sobre águas, esgoto e lixo, ou saneamento, a par da
promoção do ordenamento territorial (art. 30, VIII, CF/88 (LGL\1988\3)), matérias diretamente ligadas
à melhoria e proteção a corpos hídricos.
Os Municípios são também aquinhoados com a competência comum outorgada a todas as pessoas
políticas em matéria (dentre outras) de proteção ao meio ambiente e combate à poluição (art. 23, VI,
CF/88 (LGL\1988\3)), de promoção de programas de saneamento básico (art. 23, IX, CF/88
(LGL\1988\3)) e registro, acompanhamento e fiscalização das concessões de direitos de pesquisa e
exploração de recursos hídricos e minerais (art. 23, XI, CF/88 (LGL\1988\3)).
Ademais, o parágrafo único do multicitado art. 23 do Texto prevê lei complementar para fixar normas
de cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o
equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar no âmbito nacional, deixando clara a intenção do
legislador constituinte no sentido da ação integrada em todos os níveis, em prol de tais objetivos, de
cuja consecução não podemos apartar o adequado tratamento ao meio ambiente.
Além disso, em face da política descentralizada na gestão dos recursos hídricos prevista no Brasil, a
participação dos Municípios na gestão e proteção desses recursos não pode ser minimizada,
recomendando, antes, o princípio da subsidiariedade, que a ação estatal seja dimensionada a partir
da escala mais próxima da realidade a ser atingida.
Por tudo isso, se pode concluir que a importância da atuação municipal na defesa da qualidade e
preservação da água não é pequena, antes guarda marcante significado.
Guardadas as observações que fizemos ao texto da Carta de 1988, necessário ingressar agora à
análise, ainda que perfunctória, da legislação federal sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos
e Sistema Nacional de Recursos Hídricos.
A Política e o Sistema Nacional de Recursos Hídricos teve seu lineamento fixado pela já mencionada
"Lei de Águas" - Lei 9.433, de 08.01.1997. Ali estão definidos os fundamentos, os objetivos, as
diretrizes gerais, os instrumentos da Política Nacional dos Recursos Hídricos e a ação do Poder
Público. É ali também criado o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, fixados
seus objetivos e sua composição, distribuídas as atribuições respectivas e impostas penalidades
administrativas pelo mau uso da água.
4. A política nacional dos recursos hídricos
São os fundamentos declarados (art. 1.º, Lei 9.433/97) de tal política: a noção de que a água é um
bem de domínio público, um recurso natural limitado e dotado de valor econômico, cujo uso
prioritário, em situações de escassez, é o consumo humano e a dessedentação dos animais; a
gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas; a bacia
hidrográfica é a unidade territorial para implementação da política e atuação do sistema. A gestão
dos recursos hídricos deve ser descentralizada e participativa.
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
Página 5
Seus objetivos são (art. 2.º, Lei 9.433/97): assegurar à atual e futuras gerações a necessária
disponibilidade de água em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; utilização
racional e integrada dos recursos hídricos; prevenção e defesa contra eventos hidrológicos críticos.
As diretrizes gerais para sua implementação são (art. 3.º, Lei 9.433/97): a gestão sistemática dos
recursos hídricos, sua integração com a gestão ambiental e sua adequação às diversidades físicas,
bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País; a articulação do
planejamento com aqueles dos setores usuários e entre os regionais, estaduais e o nacional; a
integração da gestão das bacias hidrográficas com a dos sistemas estuarinos e zonas costeiras. A
articulação da gestão dos recursos hídricos com a do uso do solo.
Os instrumentos dessa política são (art. 5.º, Lei 9.433/97): os Planos de Recursos Hídricos, o
enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água, cabendo
à legislação ambiental o estabelecimento dessas classes (art. 10, Lei 9.433/97); a outorga dos
direitos de uso dos recursos hídricos, a cobrança pelo seu uso, a compensação a municípios e o
Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.
A lei prevê ainda a elaboração dos Planos de Recursos Hídricos (planos diretores) por bacia
hidrográfica, por Estado e para o País (arts. 6.º e 8.º, Lei 9.433/97).
Estabelece que a outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos, a ser feita pelo Poder Executivo
Federal, Estadual e do Distrito Federal (art. 14, Lei 9.433/97), recairá sobre a derivação ou captação
de água para consumo final, inclusive abastecimento público ou insumo de processo produtivo,
extração de água de aquífero subterrâneo, lançamento de esgotos e demais resíduos líquidos ou
gasosos tratados ou não em corpo de água, aproveitamento de potenciais hidrelétricos e outros usos
que alterem o regime, a quantidade ou a qualidade da água existente em um corpo hídrico.
Pelo princípio da insignificância, alguns usos são dispensados de outorga e se assinala
expressamente (art. 18, Lei 9.433/97) que tal outorga não implica a alienação parcial das águas, que
são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso, o que revela o intuito legislativo de conferir relevo
à norma que já resulta do sistema e do regime constitucional das águas no Brasil.
Quanto à cobrança pelo uso de recursos hídricos estabelecea lei que faz-se restrita aos usos
sujeitos a outorga (art. 20, Lei 9.433/97) e objetiva (art. 19, Lei 9.433/97): reconhecer a água como
bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor, incentivar a racionalização do uso
da água, obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções previstos
nos planos de recursos hídricos.
Diz ainda a normativa (art. 22, Lei 9.433/97) que os valores arrecadados com a cobrança pelo uso
dos recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados.
Por último, no tópico, estabelece a lei (art. 31, Lei 9.433/97) que, na implementação da política, os
Poderes Executivos municipais promoverão a integração das políticas locais de saneamento básico,
uso, ocupação e conservação do solo e do meio ambiente com as políticas federal e estadual de
recursos hídricos.
Nesse contexto, gostaríamos de ressaltar que as linhas mestras de tal política, como a gestão
sistemática dos recursos hídricos com vistas à observância de sua quantidade e qualidade e a
integração desta com a gestão ambiental e articulação com a gestão do uso do solo, são fatores que
tenderão a constituí-la em fator decisivo na proteção e preservação da água.
5. Do sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos - Bibliografia
Os objetivos declarados (art. 32, Lei 9.433/97) do sistema são: coordenar a gestão integrada das
águas, arbitrar administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos, implementar
a PoNRH, planejar, regular e controlar o uso, a preservação e a recuperação dos recursos hídricos e
promover a cobrança pelo seu uso.
É o sistema integrado pelos seguintes órgãos (art. 33, Lei 9.433/97): o Conselho Nacional dos
Recursos Hídricos, a Agência Nacional de Recursos Hídricos (ANA), os Conselhos Estatais de
Recursos Hídricos, os Comitês de Bacia Hidrográfica, os órgãos dos poderes públicos federal,
estaduais e municipais, cujas competências se relacionem com a gestão, e as Agências de Água.
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
Página 6
No Conselho, sob a presidência do Ministro do Meio Ambiente (art. 36, I, Lei 9.433/97), têm assento
(art. 34, Lei 9.433/97), dentre outros, os representantes dos usuários dos recursos hídricos e os
representantes das organizações civis de recursos hídricos, e dentre suas atribuições destacaríamos
a de estabelecer critérios gerais para a outorga de direitos de uso de recursos hídricos e para a
cobrança de seu uso (art. 35, Lei 9.433/97).
Já aos Comitês de Bacia Hidrográfica, compostos por representantes (art. 39, Lei 9.433/97) da
União, Estados (ou DF) em cujo território se situem Municípios de situação, usuários e entidades
civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia, incumbem (art. 38, Lei 9.433/97):
promover o debate das questões e articular a atuação das entidades intervenientes, arbitrar em
primeira instância administrativa os conflitos, aprovar o Plano de Recursos Hídricos da Bacia e
acompanhar sua execução, propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais os usos
insignificantes para fins de necessidade de outorga e estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso
de recursos hídricos, sugerindo os valores a serem cobrados.
Junto a cada Comitê deverá funcionar uma Agência de Água, exercendo a função de sua secretaria
executiva (art. 41, Lei 9.433/97).
Ressaltados tais aspectos da Lei, que somente no que diz com o Conselho Nacional foi
regulamentada pelo Dec. 2.612 de 1998, vale enfatizar que a Política e o Sistema Nacional dos
Recursos Hídricos do Brasil não inova, no mundo, sendo, em essência, o mesmo adotado em
diversos países.
É um sistema moderno que se assenta sobre as seguintes bases:
a) bacia hidrográfica como unidade de planejamento - é do plano de recursos hídricos ali aprovado,
devidamente articulado regional e nacionalmente, que se partirá para a execução de projetos locais e
é lá que se travarão os grandes debates que vão definir a vocação da bacia, sua política de isenção
e a sugestão dos valores a serem cobrados pelos usos outorgados. Trata-se da aplicação do
princípio da subsidiariedade, tendência manifesta da Administração Pública moderna em todo o
mundo;
b) usos múltiplos das águas - a gestão dos recursos hídricos deverá propiciar idêntico acesso a
todos os usuários (abastecimento humano, insumo industrial, irrigação), mas guardada a vocação da
bacia, que vai ditar as diferentes vazões, para atender às diferentes demandas;
c) água como um bem econômico - a escassez dos recursos hídricos perante uma demanda
crescente, o caracteriza como bem de valor econômico. Por outro lado, inegável a necessidade de
resguardá-lo contra o mau uso (degradação e excesso), garantir investimentos necessários à sua
conservação e preservação. Tais fatores ditam a necessidade de cobrança pelo seu uso, com a
aplicação do princípio do poluidor-pagador e do específico princípio do usuário-pagador;
d) gestão descentralizada e participativa - a descentralização administrativa e a ampla participação
da sociedade na gerência dos destinos da bacia garantem feitio democrático ao sistema e, com isso,
sua credibilidade e aceitabilidade.
O sistema, como se vê, a par de envolver toda a sociedade no trato da questão hoje tão crucial que é
a água e procurar criar recursos próprios para a consecução de seus objetivos, estrutura-se de forma
moderna e articulada com a orientação que, em nível internacional, se vem firmando no trato do
tema.
Dois pontos, entretanto, na disciplina legal, causam preocupação.
O primeiro diz com a cobrança pelo uso doméstico da água quando esse uso é ínfimo (6%), se
comparado àquele proveniente da irrigação agrícola (73%) e da utilização como insumo industrial
(20%), segundo dados da Agenda 21. Somado ao automático repasse desse custo ao preço dos
produtos, tem-se que o usuário doméstico de águas será o grande onerado com o sistema (não é à
toa que se fala que, no espaço de 30 anos, as maiores despesas de uma família serão com o preço
da água e da luz). Ademais, a pensar-se na taxação como forma de educar para um uso racional da
água, melhor seria que fosse taxado (e bem taxado) o excesso de consumo, isentando o consumo
normal ou adequado desse indispensável recurso natural.
O REGIME CONSTITUCIONAL DAS ÁGUAS
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De qualquer sorte, embora ainda muito se possa polemizar a propósito da cobrança pelo uso da
água, dado ao enorme contingente de populações empobrecidas e miseráveis no mundo, força é
convir que, sem suporte financeiro e sem participação popular, nada é possível fazer em termos de
preservação e defesa ambiental.
O outro ponto de preocupação é a previsão legal de aplicação apenas prioritária na bacia geradora
dos recursos ali gerados. O ideal teria sido que a lei estabelecesse um percentual de aplicação
obrigatória dos recursos na bacia de origem, disponibilizando o restante às prioridades locais,
regionais e nacionais, conforme os respectivos planos. Como está, sem uma melhor definição sobre
o quanto das prioridades locais deva ser atendido, corre-se o risco de que os recursos da bacia
sejam, em parte considerável, aplicados bem longe dela, prejudicando a aceitabilidade e a
credibilidade de que o sistema precisa desfrutar no seio das comunidades que quer integrar num
esforço de gestão participativa.
Esperemos que a regulamentação total da Lei de Águas venha a operacionalizar adequadamente o
sistema e garantir uma adequada aplicação daquele texto, e o trabalho dos juristas e da própria
Justiça possam resultar no seu aprimoramento, com vista a que, enfim, melhor se possa atuar para
preservar nossos mananciais e nossa grande riqueza natural, que é a água.
Bibliografia
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dez. 2000.
(3) José Afonso da Silva. Direito ambiental constitucional. 3. ed. São Paulo : Malheiros, 2000. p. 116.
(4) Ana Cláudia Bento Graf; Vladimir Passos de Freitas (Coord). Águas, aspectos jurídicos e
ambientais. Curitiba : Juruá, 2000. p. 65.
(5) Freitas, op. cit., p. 24.
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