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TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

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ALINE VIEIRA DE ALMEIDA
FACULDADE DOCTUM DE JOÃO MONLEVADE
TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
João Monlevade
2018
ALINE VIEIRA DE ALMEIDA
FACULDADE DOCTUM DE JOÃO MONLEVADE
TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Trabalho de Conclusão de Cruso
apresentado ao Curso de Direito da
Faculdade Doctum de João
Monlevade, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em
Direito.
Área de concentração: Direito Penal
Prof.(ª) Orientadora: Msc. Renata
Martins de Souza.
João Monlevade
2018
RESUMO
O presente trabalho, que emprega o método essencialmente bibliográfico, tem como
escopo a análise da (in)compatibilidade da teoria da cegueira deliberada, também
conhecida como willfull blindness, com o ordenamento jurídico pátrio, discorrendo
sobre sua origem e sua possível adoção no direito brasileiro. Para isso, tomar-se-á
como base as garantias previstas na Constituição da República de 1988 e os
comandos previstos nos Decretos-Leis nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940, no que diz respeito especificamente aos institutos
do dolo e do erro de tipo. Isso porque, originária do direito costumeiro, onde os
julgadores não são atrelados aos textos legais, a teoria da cegueira deliberada
encontra barreiras nos países que adotam o civil law, sistema em que a lei
positivada é comando basilar e fonte principal de toda a estrutura, sendo esse o
caso do Brasil. Nesse sentido, em feitos concretos e considerando a falência da
investigação criminal, que muitas vezes não consegue comprovar a autoria da
infração penal e todas as suas circunstâncias, a utilização da referida teoria acaba
estendendo o conceito de dolo ao presumi-lo na modalidade eventual, a fim de punir
àquela pessoa que não teve sua real intenção evidenciada no processo, sob o
argumento de que ela deveria ostentar possível consciência do ilícito e acarretando-
se, assim, em decisões desprovidas de certezas ou até mesmo injustas, o que fere
de forma contundente os ditames do ordenamento jurídico brasileiro, como o
princípio da legalidade e a presunção de inocência. Diante disso, constatar-se-á que
a teoria da cegueira deliberada é, ao que tudo indica, incompatível com o direito
pátrio e sua adequada utilização demandaria reformas legislativas, evitando-se,
assim, interpretações tiranas e arbitrárias.
Palavras-chave: Teoria da cegueira deliberada. Princípio da legalidade. Presunção
de inocência. Dolo eventual. Responsabilidade penal. Jus puniendi.
Incompatibilidade.
RESUMEN
El presente trabajo, que emplea el método esencialmente bibliográfico, tiene como
objetivo el análisis de la (in)compatibilidad de la teoría de la ceguera deliberada,
también conocida como willfull blindness, con el ordenamiento jurídico patrio,
discurriendo sobre su origen y su posible adopción en el derecho brasileño. Para
ello, se tomará como base las garantías previstas en la Constitución de la República
de 1988 y los mandos previstos en los Decretos-Leyes nº 3.689, de 3 de octubre de
1941, y nº 2.848, del 7 de diciembre de 1940, en lo que se refiere específicamente a
los institutos del dolo y del error de tipo. La teoría de la ceguera deliberada
encuentra barreras en los países que adoptan el civil law, sistema en que la ley
positivada es comando basilar y fuente principal de toda la estructura, que es el caso
de Brasil. En este sentido, en hechos concretos y considerando la quiebra de la
investigación criminal, que muchas veces no logra comprobar la autoría de la
infracción penal y todas sus circunstancias, la utilización de la referida teoría acaba
extendiendo el concepto de dolo al presumirlo en la modalidad eventual, a fin de
castigar a aquella persona que no tuvo su real intención evidenciada en el proceso,
bajo el argumento de que ella debería ostentar posible conciencia del ilícito y
acarreándose así en decisiones desprovistas de certezas o incluso injustas, lo que
hiere de forma contundente los dictados del ordenamiento jurídico brasileño, como el
principio de la legalidad y la presunción de inocencia. En este sentido, se constatará
que la teoría de la ceguera deliberada es, al parecer, incompatible con el derecho
patriótico y su adecuada utilización demandaría reformas legislativas, evitando así
interpretaciones tiranas y arbitrarias.
Palabras-clave: Teoría de la ceguera deliberada. Principio de legalidad. Presunción 
de inocencia. Dolo eventual. Responsabilidad penal. Jus puniendi. Incompatibilidad.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................8
2
2.1
3
TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA...........................................................10
Conceito e origem............................................................................................10
PERSECUÇÃO PENAL E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO 
BRASILEIRO.....................................................................................................13
3.1 Análise da persecução penal no sistema brasileiro.....................................13
3.2 Garantias constitucionais norteadoras da persecução penal.....................15
4
4.1
4.2
DO INSTITUTO DO DOLO................................................................................20
Conceito do dolo e teorias correlatas............................................................20
O dolo eventual e a sua relação com a teoria da cegueira 
deliberada.........................................................................................................22
5 PROBLEMÁTICA DA ADOÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA 
NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO.......................................................24
5.1
5.2
5.3
6
6.1
Presunção do dolo diante da ausência de provas, estado de inocência e 
responsabilidade penal objetiva....................................................................24
Do princípio da legalidade, da analogia in malam partem e do jus 
puniendi............................................................................................................28
Dos riscos e benefícios da utilização da teoria da cegueira deliberada em 
casos concretos..............................................................................................31
DO INSTITUTO DO ERRO DE TIPO E SEU ENFRAQUECIMENTO..............35
Conceito e análise da sua possível incompatibilidade com a teoria da 
cegueira deliberada.........................................................................................35
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................38
REFERÊNCIAS.................................................................................................39
8
1 INTRODUÇÃO
 O presente trabalho tem por escopo analisar a compatibilidade da Teoria da
Cegueira Deliberada, originária do direito consuetudinário, com o ordenamento
jurídico brasileiro, demonstrando, ainda, os riscos que envolvem sua utilização
desenfreada nos casos concretos. 
A princípio, cumpre conceituar Teoria da Cegueira Deliberada como a
situação em que o agente, por livre e espontânea vontade, opta por não enxergar o
cenário ilícito em que se encontra, ainda que tenha possibilidade de fazê-lo.
A Teoria da Cegueira Deliberada, também denominada Teoria do Avestruz,
willfull blindness ou willfull ignorance, nasceu na Inglaterra, ganhou força nos
Estados Unidos e foi adotada ineditamente pelo Brasil no julgamento da apelação
criminal nº 5520/CE, proferida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região,sendo
que a deflagração da ação penal ocorreu após funcionários de uma concessionária
venderem onze automóveis de luxo para um grupo de compradores, mediante
pagamento à vista e horas após o Banco Central da cidade ter sido furtado.
Naquele processo, o juiz de primeira instância condenou os funcionários da
agência, fundamentando-se no sentido de que eles deveriam presumir que o
dinheiro do pagamento dos veículos possuía origem ilícita, contudo, em sede de
recurso, o TRF afirmou que a condenação se deu, implicitamente, com base na
Teoria da Cegueira Deliberada, o que configura responsabilidade objetiva, vedada
no âmbito penal. 
A partir de então, a Teoria da Cegueira Deliberada ganhou força no país,
principalmente nos julgamentos envolvendo crimes de lavagem de capitais, como os
da Operação Lava-Jato, estendendo-se aos demais tipos de delitos, ainda que o
TRF da 5ª Região tenha reconhecido, desde o início, sua incompatibilidade com o
ordenamento jurídico brasileiro.
Importante destacar que a Teoria da Cegueira Deliberada surgiu no sistema
common law, onde o regramento se encontra firmado em Jurisprudência, havendo
certa liberdade e discricionariedade dos julgadores para decidirem de acordo com
costumes, contrariamente daquilo que acontece em países que adotam o civil law,
como o Brasil, onde a fonte principal do direito se encontra na letra fria da lei, sendo
ela o comando principal de qualquer decisão.
9
Para o direito penal brasileiro, deve-se analisar o comportamento e a vontade
subjetiva do indivíduo, uma vez que puni-lo somente pela existência de um resultado
ilícito, sem que tenha sido demonstrada sua real intenção, viola o consagrado
princípio da culpabilidade, que exige a presença de dolo ou culpa na conduta,
afrontando também diversas outras garantias constitucionais, como a presunção de
inocência e o in dubio pro reo.
Assim, considerando que o ordenamento jurídico pátrio adota expressamente
a responsabilidade penal subjetiva como regra, sendo imprescindível que a conduta
do agente tenha dolo ou culpa, a utilização da Teoria da Cegueira Deliberada para
punir alguém que deveria ou possuía possibilidade de saber que estava praticando
um ilícito, ainda que não tenha certeza sobre isso, nos leva à responsabilidade
objetiva.
Ademais, a referida teoria também vem sendo compreendida como
desdobramento ou extensão do instituto do dolo, especificamente na modalidade
eventual, o que ofende contundentemente o princípio da legalidade, na medida em
que um indivíduo só poderá ser punido pela prática de atos expressamente previstos
em lei, sendo vedadas interpretações extensivas ou analogias in malam partem.
Diante disso, surge o seguinte questionamento: seria viável, de acordo com o
que estabelece o nosso ordenamento jurídico, a utilização da Teoria da Cegueira
Deliberada, ou tal mecanismo serviria apenas como válvula de escape de um
sistema acusatório incapaz de comprovar seguramente a prática criminosa de
determinado indivíduo, fazendo-se necessário condená-lo por meras presunções?
Neste sentido, a presente pesquisa ostenta relevante importância para o
tema, atentando-se aos riscos que emergem da aplicação da Teoria da Cegueira
Deliberada no ordenamento jurídico pátrio, bem como para os princípios e garantias
constitucionais desrespeitados quando da sua utilização.
Para defender a argumentação explanada, serão utilizados os
posicionamentos de ilustres doutrinadores, como Pacelli de Oliveira (2008), Jesus
(2010), Coêlho (2016), Jakobs (2009), Sydow (2018) e Capez (2007), além de
Jurisprudência e artigos variados, a fim de se sustentar a (in)compatibilidade da
Teoria da Cegueira Deliberada com o sistema jurídico brasileiro.
10
2 TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA 
O capítulo em questão visa analisar a história da teoria da cegueira
deliberada, desde o seu nascimento, na Inglaterra, passando-se pela sua adoção
pioneira nos Estados Unidos e, por fim, no Brasil, onde foi utilizada pela primeira vez
no célebre julgamento do furto do Banco Central de Fortaleza/CE, conforme
demonstra-se a seguir.
2.1 Conceito e Origem
Nascida na Inglaterra e popularizada nos Estados Unidos, entende-se por
Teoria da Cegueira Deliberada quando o agente possui possibilidade ou
previsibilidade, ainda que mínima, de saber que o que está praticando é ilícito,
todavia, por livre e espontânea vontade, coloca-se em sentimento de negação e
cega-se para tirar proveito da situação, auferindo vantagens indevidas.
Na Inglaterra, a teoria ficou conhecida como willful blindness e foi adotada,
pela primeira vez, no ano de 1861, no julgamento denominado Regina v. Sleep,
referente a um indivíduo acusado de malversação de coisa pública, por ter
embarcado em seu navio um barril com diversos parafusos de cobre, contendo em
todos eles o símbolo do Estado, real proprietário dos objetos.
No mencionado caso, embora tenha afirmado desconhecer a propriedade
estatal dos parafusos de cobre, o acusado fora condenado em primeira instância,
sob o argumento de ter ele se esquivado intencionalmente de obter informações
sobre a real origem dos bens, quando poderia fazê-lo, optando por cegar-se
voluntariamente.
A partir de então, a Teoria da Cegueira Deliberada, ou simplesmente willful
blindness, passou a ser utilizada de forma recorrente pelos tribunais ingleses, sendo
compreendida como a abstenção voluntária de obter informações sobre sua conduta
possivelmente ilícita, equivalendo-se ao verdadeiro conhecimento sobre o fato.
Após ganhar fama na Inglaterra, em 1899, os tribunais dos Estados Unidos da
América também passaram a adotar a Teoria da Cegueira Deliberada, utilizando-a
de forma pioneira no julgamento denominado Spurr v. United States.
11
O mencionado julgamento ocorreu após o gerente de um banco americano ter
recebido cheques de um indivíduo, sem certificar-se sobre a existência de fundos na
conta.
Ressalta-se que, no ordenamento jurídico americano, para ser configurada
como crime a conduta do gerente, seria necessário o conhecimento e a intenção de
violar o regulamento de emissão de cheques.
Dessa forma, os jurados foram instruídos no sentido de que, caso tenha se
colocado proposital e voluntariamente em situação de cegueira, poderia o gerente
ser condenado como se conhecimento verdadeiro possuísse.
Assim, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, a Teoria da Cegueira
Deliberada passou a ser compreendida como uma forma semelhante de
conhecimento sobre o fato, fazendo cumprir a lei entre as lacunas legislativas.
Menciona-se, aqui, que tal compreensão foi facilmente possível em razão dos
dois países adotarem o sistema common law, cabendo ao julgador decidir livremente
em cada caso concreto, sem precisar se ater totalmente à preceitos positivados.
Já no Brasil, a Teoria da Cegueira Deliberada fora adotada pela primeira vez
em meados de agosto do ano de 2005, quando indivíduos adquiriram onze veículos
de luxo de uma concessionária da cidade de Fortaleza/CE, oferecendo dinheiro em
espécie como forma de pagamento.
Em primeira análise, não existia suspeita, contudo, veio à tona que, horas
antes da referida compra, o Banco Central da cidade havia sido alvo de bandidos,
que subtraíram exorbitante quantia em dinheiro.
Diante disso, os funcionários da concessionária foram denunciados por
lavagem de dinheiro e, posteriormente, condenados em primeira instância, sob o
fundamento de que eles optaram por não enxergar a ilicitude diante dos seus olhos,
cegando-se de maneira deliberada para tirar proveito da situação.
Em sede recursal,durante julgamento da Apelação Criminal 5520/CE, o
Tribunal Regional Federal da 5ª Região reconheceu que a condenação em primeira
instância se deu, implicitamente, com base na estrangeira Teoria da Cegueira
Deliberada, e argumentou que sua utilização beira a responsabilidade objetiva,
fortemente combatida no direito penal brasileiro, sustentando, ainda, que a conduta
praticada pelos funcionários não se enquadra na modalidade do dolo eventual.
12
Mesmo afastada pelo TRF, por sua possível incompatibilidade ao violar
preceitos legais e extralegais, a Teoria da Cegueira Deliberada começou a ganhar
mais adeptos no país, estando predominantemente presente em julgamentos de
crimes de lavagem de capitais, como os da denominada Operação Lava-Jato, mas
também em processos pela prática de delitos de diferentes naturezas, como
receptação, tráfico de drogas, latrocínio, dentre outros.
No entanto, em que pese a construção jurisprudencial no sentido de equiparar
a Teoria da Cegueira Deliberada com o dolo eventual, nota-se a existência de
incoerências dos seus requisitos configuradores com os ditames do ordenamento
jurídico brasileiro, algo que fomenta o debate.
13
3 PERSECUÇÃO PENAL E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NO DIREITO
BRASILEIRO
Antes de aprofundar o tema em questão e visando melhor compreender a
problemática que envolve a Teoria da Cegueira Deliberada, imprescindível se faz
explorar o ordenamento jurídico brasileiro, as garantias constitucionais e a
persecução penal como um todo, como se verá no presente capítulo.
3.1 Análise da persecução penal no sistema jurídico brasileiro
Sabe-se que a legislação penal determina sanções para determinadas
condutas ditas como ilícitas, cabendo exclusivamente ao Estado a função de impor
penas aos agentes causadores.
Logicamente, para que o Estado possa cumprir seu papel, é preciso que o
crime praticado chegue ao seu conhecimento de algum modo, caso contrário,
injustiças passariam despercebidas e a sociedade sofreria as consequências.
Por essa razão, imprescindível se faz a chegada de todas as informações
sobre a ocorrência do crime e de suas circunstâncias ao Poder Público, para que,
munido com os dados necessários, possa efetivar a justiça.
Todavia, o que se vê na prática é a significante ausência de elementos
mínimos sobre a ocorrência ou não de crimes, além dos inúmeros casos de autoria
ignorada, o que impossibilita o exercício do poder de sanção.
Sendo assim, cabe ao Estado empreender esforços e agir para melhor apurar
os fatos, obtendo-se, assim, as informações que precisa para identificar infratores e
aplicar as penas previstas em sua legislação.
É justamente o agir do Estado na busca pela elucidação dos fatos criminosos
e, consequentemente, na satisfação da pretensão punitiva, que se entende por
persecução penal, também conhecida por caminho do crime.
Durante a persecução penal, ocorrem três fases distintas, sendo a primeira a
investigação inicial ou preliminar, seguindo-se da instauração da ação penal e, por
fim, da execução da reprimenda imposta.
Importante mencionar que, a fase de investigação preliminar não se trata
somente do trabalho da polícia, na medida em que o inquérito policial é peça
14
meramente administrativa e dispensável, podendo o órgão acusatório ajuizar ação
penal independentemente de sua instauração.
De toda forma, na investigação preliminar, buscam-se indícios suficientes de
materialidade e autoria delitivas para que, consequentemente, possa ser ajuizada a
ação penal, oportunidade em os meros elementos indiciários transformar-se-ão em
provas concretas, produzidas sob o crivo do contraditório e demais garantias
constitucionais.
Em consequência, comprovada indubitavelmente materialidade e autoria do
crime, passa-se à fase de execução penal, onde se consuma a pretensão punitiva
estatal.
Nesse sentido, Bonfim (2012, p. 138):
Essa atividade, denominada ‘‘persecução penal’’, é o caminho que percorre o
Estado-Administração para satisfazer a pretensão punitiva, que nasce no
exato instante da perpetração da infração penal. A persecutio criminis divide-
se em três fases: investigação preliminar (compreende a apuração da prática
de infrações penais, com vistas a fornecer elementos para que o titular da
ação possa ajuizá-la), ação penal (atuação junto ao Poder Judiciário, no
sentido de que seja aplicada condenação aos infratores, realizando assim a
concretização dos ditames do direito penal material diante de cada caso
concreto que se apresentar) e execução penal (satisfação do direito de punir
estatal, reconhecido definitivamente pelo Poder Judiciário).
Com efeito, percorrida a persecução penal e reunidos os elementos
necessários para o convencimento do julgador, tem-se a aplicação da sanção e,
consequentemente, a obtenção da justiça no caso em concreto.
Cabe mencionar, ainda, que o exercício do jus puniendi vai muito além de ser
direito do Estado, torna-se um dever para que seja alcançada a ordem e a paz
social, conforme também afirma Bonfim (2012, p. 138):
Mister ressaltar que o jus puniendi, de titularidade do Estado, mais do que um
direito, é um dever estatal. Com efeito, na sua atribuição de manter a ordem e
a paz social, afrontada pelo comportamento transgressor, é necessária a
punição aos infratores da lei penal. O Estado proíbe o exercício, por seus
cidadãos, da autotutela, o que configura, ainda, o crime previsto no art. 345
do CP (exercício arbitrário das próprias razões). Como contrapartida, deve
prover a punição aos que afrontam os bens e interesses relevantes à
sociedade.
Assim, por meio da persecução penal, ocorre a atividade estatal com o fim de
colher indícios de materialidade e autoria delitivas para, em seguida, transformá-los
em provas produzidas judicialmente, diante da ampla defesa e do contraditório, além
de demais outras garantias, o que possibilita a satisfação do jus puniendi.
15
3.2 Garantias constitucionais norteadoras da persecução penal
Sabe-se que, em todas as fases da persecução penal, o Estado deve agir
baseando-se no respeito às garantias constitucionais e às leis propriamente ditas,
impondo-se limites na sua atuação, para que sejam evitadas arbitrariedades ou
tiranias.
O ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente baseado no sistema civil law,
de origem romana, tem a lei propriamente dita como fonte imediata do direito, sendo
o comando amplo que se amolda aos casos concretos
Todavia, os mecanismos do sistema common law vem influenciando
fortemente o ordenamento jurídico pátrio, passando-se a analisar, em certos casos,
somente as peculiaridades específicas, com base em costumes e Jurisprudência, e
afastando-se cada vez mais a incidência expressa do texto frio da lei, o que afronta
diretamente princípios e garantias constitucionais.
No direito penal brasileiro, julgamentos que afastam, ainda que de forma
implícita, o texto da lei, fere de forma contundente o princípio da reserva legal, sendo
perigoso, também, aqueles que distorcem o sentido da norma através de analogias
e interpretações extensivas, obtendo-se verdadeira situação in malam partem.
Certo é que, quando há omissão ou lacuna legislativa, é possível obter a
solução da questão por meio de analogias, desde que tal mecanismo não coloque o
acusado em situação mais desfavorável que aquela em que ele se encontrava, sob
pena de configurar a hipótese in malam partem, expressamente vedada no nosso
ordenamento jurídico.
No mesmo sentido, também não devem ser toleradas interpretações
extensivas maléficas, que utilizam institutosexistentes para expandir e ampliar seu
sentido, abarcando novas situações não previstas em lei, em razão do desrespeito
ao princípio da legalidade, também compreendido como reserva legal.
Isso porque, a reserva legal é cláusula pétrea na nossa Constituição da
República de 1988, sendo prevista em seu art. 5º, inciso XXXIX, e refere-se à
necessidade de certeza e determinação expressa ao tipificar conduta criminosa por
meio de uma lei, de modo que o cidadão não tenha dúvida quanto ao seu conteúdo,
motivo pelo qual não devem ser toleradas analogias in malam partem ou
interpretações extensivas.
16
Quanto à referida vedação, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já se
manifestou, no REsp 956.876 RS, de relatoria do Min. Napoleão Nunes Maia Filho:
Não cabe ao Julgador aplicar uma norma, por assemelhação, em substituição
a outra validamente existente, simplesmente por entender que o legislador
deveria ter regulado a situação de forma diversa da que adotou; não se pode,
por analogia, criar sanção que o sistema legal não haja determinado, sob
pena de violação do princípio da reserva legal.
É por meio do princípio da reserva legal, equivalente ao princípio da
legalidade para alguns doutrinadores, que se conclui que, um fato não pode ser
considerado crime se antes de sua ocorrência não exista uma lei que o defina
expressamente como tal.
Nesse entendimento, Bitencourt (2007, p. 11):
Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da
legalidade, a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei,
isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal
pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei
definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve
definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.
Também em relação à legalidade, Jakobs (2009, p. 106):
A vinculação à lei de que se trata deve garantir objetividade: o
comportamento punível e a medida da pena não devem ser definidos sob
efeito de fatos ocorridos, mas ainda não julgados, nem como instrumento
contra agentes já conhecidos, mas sim antecipadamente e de forma
geralmente válida, mais precisamente por meio de uma lei promulgada e
definida anteriormente ao fato²º. O princípio abarca todos os pressupostos da
punibilidade, não se limitando ao âmbito do imputável (assim como as
condições exclusivamente objetivas, incontestavelmente compreendidas, e as
exceções relacionadas om as funções da punibilidade): a prescrição, em
especial, também deve estar legalmente determinada, não devendo ser
prolongada retroativamente, tenha ou não o prazo decorrido antes do ato de
prorrogação²¹.
Pela necessidade de certeza e taxatividade na definição da conduta dita como
ilícita, podemos concluir a importância da vedação à analogia in malam partem e à
interpretação extensiva maléfica, na medida em que o agente poderá ser punido
somente quando enquadrar-se expressamente na letra da lei e nada mais que isso.
Nas palavras, Masson (2014, p.23):
Como desdobramento lógico da taxatividade, o Direito Penal não tolera a
analogia in malam partem. Se os crimes e as penas devem estar
expressamente previstos em lei, é vedada a utilização de regra análoga, em
prejuízo do ser humano, nas situações de vácuo legislativo.
O fundamento político é a proteção do ser humano em face do arbítrio do
poder de punir do Estado. Enquadra-se, destarte, entre os direitos
fundamentais de 1.ª geração.
17
Em continuidade, atrelada à necessidade do respeito à reserva legal ou
legalidade, que dita que a conduta criminosa precisa ser determinada por lei
expressa e cristalina, com respeito à vedação da analogia in malam partem e à
interpretação extensiva maléfica, tem-se a garantia do devido processo legal,
prevista no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição da República de 1988, de onde se
extrai que a solução de conflitos entre partes, com a participação do Estado, deve
ocorrer por meio de procedimentos previamente estabelecidos, buscando proteção à
dignidade, contraditório e ampla defesa dos envolvidos, para que a decisão seja
proferida de forma clara, justa e razoável.
Assim ensina Moraes (2014, p. 110),
O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto
no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito
formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-
persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do
processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e
julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão
criminal).
Já para Coêlho (2016, p. 51), o devido processo legal é o complexo de
direitos e garantias que norteiam a busca da finalidade jurisdicional de pacificar
conflitos e aplicar a lei de forma justa, protegendo a liberdade, igualdade e a
dignidade dos envolvidos.
É importante destacar que, o devido processo legal subdivide-se em duas
vertentes, sendo a material, protegendo o indivíduo da atuação estatal arbitrária em
cada caso concreto, e formal, tratando-se de garantia no âmbito processual e tendo
como consequência os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Além dos consagrados princípios do contraditório e da ampla defesa, que
asseguram ao acusado todos os meios e recursos lícitos para se defender, merece
especial destaque os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
É corolário no nosso direito que, um indivíduo não será considerado culpado
até o trânsito em julgado da sentença penal que o condenou, sendo o estado de
inocência presunção constitucional, tanto é que se encontra prevista no art. 5º, inciso
LVII, da Constituição da República de 1988.
É em virtude dessa presunção de inocência que vira ônus da acusação
comprovar, de forma segura e indene de dúvida, a autoria criminosa de determinado
indivíduo.
18
Ou seja, vigora no nosso ordenamento jurídico o chamado actori incumbit
probatio, traduzido como a incumbência do autor da ação de provar aquilo que
alegar para, assim, convencer o julgador com base em fatos verdadeiros.
Assim entende Bonfim (2012, p. 381):
Quanto a isso, a regra geral vigente entre nós é a do brocardo latino actori
incumbit probatio, que em vernáculo se traduz no cânon segundo o qual cabe
ao autor a prova do que alegar. O ônus probatório, portanto, representa um
encargo que tem a parte de provar as suas alegações, buscando criar no juiz
a convicção acerca de sua veracidade. Em regra, cabe ao acusador provar os
elementos que compõem a imputação levada a juízo. A esse respeito, é
relevante que se diga que a incumbência não constitui um dever: não há
sanção, propriamente dita, a ameaçar aquele que não prova o quanto alega.
A consequência jurídica da falta de prova acerca daquilo que se alega é o não
acatamento da alegação. O autor que não prova o que alega assume, na pior
das hipóteses, o risco de ver desatendida sua pretensão. Daí se falar em
ônus da prova, em vez de dever de prova ou direito de prova.
Caso não seja demonstrada a veracidade dos fatos, bem como a autoria
criminosa, conforme alegado pelo autor da ação, que teve o ônus de comprovar
suas arguições, deverá o julgador absolver o acusado, considerando-o inocente, vez
que, como desdobramento do princípio da presunção de inocência, nos casos em
que pairar dúvida, há de se aplicar o in dubio pro reo.
Corroborando com o mencionado, Bonfim (2012, p. 87):
Esse princípio tem por fundamento a presunção de inocência. Em um Estado
de Direito, deve-seprivilegiar a liberdade em detrimento da pretensão
punitiva. Somente a certeza de culpa surgida no espírito do juiz poderá
fundamentar uma condenação (art. 386, VII, do CPP). Havendo dúvida
quanto à culpa do acusado ou quanto à ocorrência do fato criminoso, deve ele
ser absolvido.
Também não é demais lembrar que todo o nosso sistema jurídico se pauta no
princípio da dignidade da pessoa humana, sendo o norte para todas as relações e
conflitos.
Assim, vê-se que a persecução penal, compreendida como o caminho que o
Estado percorre para atribuir, de forma justa e precisa, a prática do crime ao agente
causador, encontra-se atrelada aos princípios constitucionais e penais,
principalmente no tocante ao devido processo legal e à presunção de inocência.
Conforme já mencionado, a persecução penal desdobra-se em três fases,
sendo a primeira a investigação preliminar, oportunidade em que são colhidos
elementos informativos para sustentar a deflagração da ação, e a segunda, que
refere-se ao processo penal propriamente dito, onde se produz provas concretas
19
diante de garantias fundamentais, como o contraditório e a ampla defesa, enquanto
na terceira, executa-se a pretensão punitiva estatal.
É durante a persecução penal que se analisa questões como a presença de
dolo ou culpa na conduta do agente, bem como a existência de provas suficientes
para imputá-lo com segurança a prática da infração criminal, devendo o Estado agir
sempre conforme dita o regramento legal, respeitando-se direitos e garantias
fundamentais para se obter, assim, o verdadeiro sentido de justiça.
20
4 DO INSTITUTO DO DOLO
Durante a persecução penal, o Estado busca evidenciar a prática criminosa e
todas as suas circunstâncias, principalmente no que se refere a real intenção do
agente, se agiu com vontade, pretendendo o resultado, ou apenas foi descuidado
com seus atos, sendo essa a análise exigida no princípio da culpabilidade.
Diante disso, observa-se a importância de se evidenciar o que o agente traz
em seu animus, na medida em que a Teoria da Cegueira Deliberada equipara-se à
presença de dolo eventual, ausentando-se propositalmente a consciência, mas
assumindo o risco da produção do resultado.
É justamente essa equiparação que gera o grande impasse na utilização da
Teoria da Cegueira Deliberada, em razão de ser o conceito de dolo algo
extremamente restrito no nosso ordenamento.
Assim, passa-se a analisar o instituto do dolo, a fim de verificar possíveis
incompatibilidades com a Teoria da Cegueira Deliberada.
4.1 Conceito do dolo e teorias correlatas
Sabe-se que, no ordenamento jurídico pátrio, constitui infração penal
condutas que, dotadas de dolo ou culpa, ocasionam certo resultado, conforme dita o
princípio da culpabilidade, sendo obrigatória a existência de nexo de causalidade
entre o agir e a consequência.
Inexistindo dolo ou culpa no íntimo do autor, estaremos diante de algo
acidental, fortuito ou de força maior, excluindo-se, consequentemente, o crime, vez
que o resultado depende, necessariamente, da conduta do agente que lhe causou,
sendo essa relação conhecida por conditio sine qua non ou equivalência das
condições.
Nesse entendimento, Bitencourt (2007, p. 245):
Com a consagração da teoria finalista da ação, situando o dolo ou, quando for
o caso, a culpa, no tipo penal, já se estabelece um primeiro limite à teoria da
equivalência das condições. Ora, segundo essa orientação, pode ser que
alguém dê causa a um resultado, mas sem agir com dolo ou om culpa. E fora
do dolo ou da culpa entramos na órbita do acidental, portanto, fora dos limites
do Direito Penal. Com efeito, uma pessoa pode ter dado causa a determinado
resultado, e não ser possível imputar-se-lhe a responsabilidade por esse fato,
por não ter agido nem dolosa nem culposamente, isto é, não ter agido
tipicamente. Essa atividade permanece fora da esfera do Direito Penal, sendo
21
impossível imputá-la a alguém pela falta de dolo ou culpa, constituindo a
primeira limitação à teoria da conditio sine qua non.
Em questão de dolo, o Código Penal Brasileiro adota, de forma expressa, as
teorias da vontade e do consentimento, afirmando, em seu artigo 18, inciso I, que,
‘‘diz-se o crime doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de
produzi-lo’’.
Nota-se que o dispositivo legal acima mencionado aponta dois tipos de dolo:
direto, quando o agente visa o exato resultado e tem livre e espontânea vontade de
produzi-lo, e indireto, quando ele não visualiza uma consequência determinada, mas
aceita o que vier, tornando-se indiferente quanto à sua produção.
O dolo indireto reparte-se, ainda, em alternativo, quando o agente possui mais
de uma opção, como ferir ou matar, e eventual, quando ele aceita e assume o risco
de produzir qualquer resultado, ainda que não o queira.
Evidentemente, não há no dolo eventual a mesma certeza sobre
conhecimento e vontade existentes no dolo direto, contudo, não configura total
ausência desses elementos, sendo apenas uma redução.
Isso porque, de acordo com a chamada teoria finalista da ação, criada pelo
alemão Hans Welzel, definir a vontade e a intenção pessoal do agente é primordial
para configurar a infração penal e, em qualquer espécie de dolo, deve haver, ainda
que minimamente, a presença de tais requisitos.
Nessa esteira, afirma Bitencourt (2007, p. 267):
O dolo, elemento essencial da ação final, compõe o tipo subjetivo. Pela sua
definição, constata-se que o dolo é constituído por dois elementos: um
cognitivo, que é o conhecimento do fato constitutivo da ação típica; e um
volitivo, que é a vontade de realizá-la. O primeiro elemento, o conhecimento,
é pressuposto do segundo, a vontade, que não pode existir sem aquele.
A consciência elementar do dolo deve ser atual, efetiva, ao contrário da
consciência da ilicitude, que pode ser potencial. Mas a consciência do dolo
abrange somente a representação dos elementos integradores do tipo penal,
ficando fora dela a consciência da ilicitude, que hoje está deslocada para o
interior da culpabilidade. É desnecessário o conhecimento da configuração
típica, sendo suficiente o conhecimento das circunstâncias de fato
necessárias à composição da figura típica. Enfim, em termos bem
esquemáticos, dolo é a vontade de realizar o tipo objetivo, orientada pelo
conhecimento de suas elementares no caso concreto.
Na mesma linha, a chamada teoria finalista da ação, também adotada pelo
ordenamento jurídico pátrio, explica que o dolo, em qualquer de suas modalidades, é
a conduta direcionada ao resultado, sendo este o seu fim.
22
Para essa teoria, o comportamento humano tem como finalidade a produção
do resultado final, ou seja, a conduta é voluntariamente dirigida a algum fim, na
medida em que ninguém faz algo somente por fazer, conforme bem explicam
Mirabete e Fabbrini (2007, p. 89):
Para a teoria finalista da ação (ou da ação finalista), como todo
comportamento do homem tem uma finalidade, a conduta é uma atividade
final humana e não um comportamento simplesmente causal. Como ela é um
fazer (ou não fazer) voluntário, implica necessariamente uma finalidade. Não
se concebe vontade de nada ou para nada, e sim dirigida a um fim. A conduta
realiza-se mediante a manifestação da vontade dirigida a um fim. O conteúdo
da vontade está na ação, é a vontade dirigida a um fim, e integra a própria
conduta e assim deve ser apreciada judicialmente.
Com isso, verifica-se que, a presença de cognição intelectual, consistente no
conhecimento daquilo que pretende fazer, aliada à vontade de produzir o resultado,
constituem os elementos imprescindíveispara configurar o dolo direto, conforme
dizeres de Bitencourt (2007, p. 269), sendo que, na modalidade eventual, há apenas
a redução de tais requisitos.
É justamente essa consciência sobre o fato e o desejo de agir, que
constituem o dolo direto, amparado pela teoria da vontade, enquanto no dolo
eventual, basta apenas previsão e certa indiferença em relação à consequência,
ainda que o agente não queira verdadeiramente a sua produção, conforme dita a
teoria do consentimento.
Diante disso, a partir do instituto do dolo, especialmente no que pese à
modalidade eventual, analisar-se-á a viabilidade da adoção da Teoria da Cegueira
Deliberada no ordenamento jurídico pátrio, vez que ela exige, para a sua
configuração, a previsibilidade ou possibilidade do agente descobrir que está
praticando algo ilícito, mas opta por cegar-se voluntariamente e, assim, auferir
vantagens com a situação, inexistindo, a menos a princípio, conhecimento atual ou
vontade expressa em sua intenção.
4.2 O dolo eventual e a sua relação com a teoria da cegueira deliberada
Conforme explanado anteriormente, diferente do dolo direto, no dolo eventual,
exige-se mínimos elementos de vontade e consciência, ganhando enfoque o
sentimento de indiferença na produção do resultado, o qual é consentido pelo
agente, ainda que ele verdadeiramente não o queira.
23
Ou seja, para configurar dolo eventual, basta que o agente preveja e consinta
a produção do resultado, sendo essa postura explicada didaticamente como o
sentimento de ‘‘foda-se’’ em relação ao ocorrido.
Todavia, embora reduzidas as capacidades de cognição e vontade em
relação a todas as circunstâncias do tipo, não há no dolo eventual a total ausência
desses elementos.
Pelo contrário, independente da modalidade ou espécie, qualquer conduta
dolosa exige vontade e conhecimento do fato, ainda que mínimos.
Assim, é na esfera do dolo eventual que se encontra a utilização da Teoria da
Cegueira Deliberada, na medida em que o agente possui possibilidade de descobrir
o que está praticando ou previsibilidade sobre a produção do resultado e, mesmo
assim, opta por cegar-se para obter vantagens, adotando verdadeiro sentimento de
indiferença.
Nota-se que a voluntariedade ao cegar-se demonstra que o agente deve
dispor, ainda que infimamente, de conhecimento e consciência sobre as
circunstancias do fato típico que tenta evitar, o que nem sempre ocorre nos casos
concretos, sendo questionável a utilização da Teoria da Cegueira Deliberada para
forçar uma espécie de presunção de dolo eventual.
O fato de o agente esquivar-se de obter informações sobre a conduta que
está praticando, ainda que possua meios para fazê-lo, assumindo de certa forma o
risco do que poderá produzir, acaba aproximando a referida teoria ao dolo eventual,
hipótese em que o autor também possui previsibilidade e consente a produção da
consequência, ainda que não a queira.
Em razão disso, inexistindo legislação adequada para o tema, surge a grande
problemática acerca da utilização da Teoria da Cegueira Deliberada como
modalidade ou extensão de dolo eventual, ferindo garantias estabelecidas
constitucionalmente e demais preceitos legais consagrados no direito pátrio.
24
5 PROBLEMÁTICA DA ADOÇÃO DA TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA NO
ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Considerando os inúmeros crimes sem solução e a sensação de insegurança
suportada pela sociedade, que muitas vezes presencia momentos de impunidade e
acaba desacreditando da Justiça Pública, a adoção da Teoria da Cegueira
Deliberada como válvula de escape na solução desses problemas não deve ser
ignorada ou compreendida como normal, ainda que melhores sejam as intenções.
Certo é que, sendo elemento subjetivo do ser humano, a comprovação do
dolo torna-se extremamente difícil para nossas instituições investigativas, o que não
significa que devem ser toleradas condenações por meras suposições e presunções.
Nesse sentido, por aproximar-se do dolo eventual, mas não se enquadrando
adequadamente a esse instituto e nem mesmo a nenhum outro, surgem diferentes
problemas e dificuldades na adaptação da Teoria da Cegueira Deliberada com o
ordenamento jurídico brasileiro, conforme se expõe a seguir.
5.1 Presunção do dolo diante da ausência de provas, estado de inocência e
responsabilidade penal objetiva
Em que pese os alarmantes e altíssimos números de infrações penais que
ocorrem diariamente no Brasil, o patamar de solução para tais vem caminhando em
linha contrária, sendo cada vez mais difícil obter provas suficientes para elucidar
materialidade e autoria em desfavor de alguém.
Isso porque, o trabalho policial sofre com o baixo investimento estatal em sua
área, que ocasiona grande déficit em estrutura física e mão de obra, questões essas
que acabam colaborando para a demora na condução da investigação e,
consequentemente, no sucesso do trabalho.
A combinação do baixo número de servidores, com a falta de estrutura física
e excesso de demandas, acaba gerando procedimentos investigativos
enfraquecidos, compostos de frágeis indícios que culminam em provas judiciais
duvidosas ou, pelo menos, questionáveis, não oferecendo a certeza necessária e
suficiente para o julgador formar seu convencimento.
25
Nessa esteira, a Teoria da Cegueira Deliberada vem sendo vulgarmente
utilizada como extensão de dolo eventual para proferir condenações nos casos em
que as provas existentes não são seguras, em razão de ter a investigação policial
fracassado ao não comprovar de forma precisa e suficiente a prática criminosa de
determinado indivíduo, o que remete ao importante princípio da presunção de
inocência.
Ora, o estado de inocência é a regra que a acusação precisa derrubar,
assumindo o ônus de comprovar a existência da infração penal e a sua consequente
autoria. Caso contrário, a decisão deve ser proferida em favor do réu.
Quanto à presunção de inocência, tem-se o artigo 11, nº 1, da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, garantindo que:
Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa.
Vê-se que tal princípio pode ser considerado uma das bases do nosso
sistema penal, sendo aplicável em três momentos distintos, no entendimento de
Capez (2007, p. 44): a) durante o processo, cabendo ao lado acusador provar a
culpabilidade, na medida em que a inocência é presumida; b) na análise das provas,
com interpretação favorável ao acusado; e c) no tratamento propriamente dito
concedido ao acusado durante todo o processo.
Nota-se que, como regra absoluta, o acusado é considerado presumidamente
inocente, até que se prove o contrário por meio de sentença condenatória transitada
em julgado.
É nesse aspecto que ocorre o grande problema da utilização da Teoria da
Cegueira Deliberada como forma de punir um indivíduo que não teve seu elemento
subjetivo – dolo ou culpa – devidamente comprovado nos autos, condenando-o
somente por acreditar que ele deveria saber que estava praticando um crime.
Alegar que o agente tinha possibilidade ou mínima previsibilidade de saber
que a conduta que praticou era crime, considerando tal situação apta a condená-lo,
constitui presunção de dolo, o que impõe a inversão do ônus probatório, o qual
passa a recair sobre a defesa, agora incumbida de buscar meios para afastar a tese
de potencial consciência do réu ao praticar o ilícito.No sentido, Pacelli de Oliveira (2008, p. 35):
26
[...] todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem
recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas
demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de
ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada.
Dessa forma, diante da inexistência de provas suficientes para expedir
decreto condenatório e considerando que, para configurar dolo, é necessário que o
agente ostente conhecimento sobre as circunstancias do fato, além da sua vontade
de produzi-lo, questiona-se a utilização da Teoria da Cegueira Deliberada como
forma de punir um indivíduo que apenas deveria possuir consciência de que estava
praticando um crime, forçando uma espécie de presunção de dolo eventual e
alterando o ônus probatório, em nítida afronta ao estado de inocência.
Ademais, se a persecução penal não demonstrou se o agente possuía ou não
dolo ou culpa em seu ato, não pode o julgador puni-lo somente por acreditar que ele
deveria ter consciência sobre a situação ilícita, o que configuraria responsabilidade
penal objetiva, amplamente combatida na esfera penal.
Assim posiciona-se o doutrinador Jesus (2010, p. 53),
Nullum crimen sine culpa. A pena só pode ser imposta a quem, agindo com
dolo ou culpa, e merecendo juízo de reprovação, cometeu um fato típico e
antijurídico. É um fenômeno individual: o juízo de reprovabilidade
(culpabilidade), elaborado pelo juiz, recai sobre o sujeito imputável que,
podendo agir de maneira diversa, tinha condições de alcançar o
conhecimento da ilicitude do fato (potencial consciência da antijuridicidade). O
juízo de culpabilidade, que serve de fundamento e medida da pena, repudia a
responsabilidade penal objetiva (aplicação de pena sem dolo, culpa e
culpabilidade).
Assim, prevalece no nosso ordenamento jurídico, a responsabilidade penal
subjetiva, considerando-se a real intenção do agente causador de um resultado, se
agiu voluntariamente ou faltou-lhe o dever de cuidado.
Tanto é que o próprio Código Penal Brasileiro expressa em seu artigo 19 que,
um resultado somente pode ser atribuído àquele que o produziu, seja por dolo ou
culpa, excluindo-se completamente a possibilidade de responsabilização objetiva.
Quanto ao tema, melhor explica Capez (2007, p. 25/26):
Nenhum resultado objetivamente típico pode ser atribuído a quem não o
tenha produzido por dolo ou culpa, afastando-se a responsabilidade objetiva.
Do mesmo modo, ninguém pode ser responsabilizado sem que reúna todos
os requisitos da culpabilidade. Por exemplo: nos crimes qualificados pelo
resultado, o resultado agravador não pode ser atribuído a quem não o tenha
causado pelo menos culposamente. Tome-se o exemplo de um sujeito que
acaba de conhecer um hemofílico e, após breve discussão, lhe faz um
pequeno corte no braço. Em face da patologia já existente, a vítima sangra
até morrer. O agente deu causa à morte (conditio sine qua non), mas não
responde por ela, pois não a causou com dolo (quem quer matar corta a
27
artéria aorta, não o braço), nem com culpa (não tinha como prever o desfecho
trágico, pois desconhecia a existência do problema anterior). É a inteligência
do art. 19 do CP.
Contrariamente da subjetiva, a responsabilidade penal objetiva considera
quase que irrelevante a análise da existência de dolo ou culpa, punindo-se o agente
violador do bem jurídico alheio independente de sua real intenção, algo amplamente
combatido no ordenamento jurídico brasileiro.
Por essa razão, há uma linha tênue que define a Teoria da Cegueira
Deliberada, o dolo eventual e a responsabilidade penal objetiva, vez que o agente
que opta por não aprofundar seu conhecimento sobre determinada conduta,
correndo o risco de ser ela ilícita, o que supostamente o faz assumir o resultado que
vier, não necessariamente ostenta o elemento cognitivo e muito menos o volitivo,
exigidos na modalidade do dolo, sendo sua condenação, em situações como essa,
baseada nas presunções e suposições de que ele deveria saber o que estava
acontecendo, mas por algum motivo não o fez.
A título de exemplificação, imagine-se que uma pessoa, desempregada e
passando por problemas financeiros, recebeu determinada quantia em dinheiro de
um cidadão comum, o qual solicitou que ela se dirigisse ao shopping local com uma
maleta lacrada, onde outro indivíduo aguardaria no estacionamento para recebê-la.
Durante o percurso, a pessoa exemplificativa é abordada por policiais e, após
averiguação, constatou-se que no interior da maleta encontrava-se um revólver, até
então desconhecido por ela. Assim, seria razoável a responsabilização pelo crime de
porte ilegal de arma de fogo, com base na Teoria da Cegueira Deliberada?
No caso mencionado, a pessoa desconhecia o conteúdo da maleta que trazia
consigo, contudo, possuía potencialmente a possibilidade de descobrir ou até
mesmo a previsibilidade, na medida em que a situação da entrega já gera certa
suspeição, o que se difere totalmente do juízo de plena cognição e vontade,
imprescindível para configurar dolo.
Nota-se que o erro recai sobre a tipicidade em si, o agente nem mesmo sabe
que está praticando crime, pouco importando o motivo que o fez não agir para obter
maiores informações sobre o que estava fazendo, algo inexigível para um homem
médio, o que afasta também o dolo eventual, modalidade em que ele aceita e
assume o risco de produzir o resultado, possuindo certa consciência sobre sua
conduta.
28
Além disso, é importante destacar que, a conduta de abstenção do agente
está mais próxima da ausência do dever de cuidado, requisito da modalidade
culposa, que do instituto do dolo propriamente dito.
Ainda assim, mesmo que o agente tenha a mínima possibilidade ou
previsibilidade de conscientizar-se sobre sua prática ilícita, deve-se considerar a
ausência de certeza e, em caso de punição, estaremos diante de um ativismo
judicial in malam partem, ou até mesmo da responsabilidade penal objetiva,
combatida no nosso ordenamento jurídico por evidentemente ferir consagrados
princípios e garantias, como o da presunção de inocência, e abrir margem para
decisões arbitrárias e infundadas.
5.2 Do princípio da legalidade, da analogia in malam partem e do jus puniendi
Conforme já visto, compreendida como a modalidade em que o agente possui
previsibilidade ou possibilidade de descobrir que possivelmente está praticando
crime, mas opta por cegar-se voluntariamente, verifica-se que a Teoria da Cegueira
Deliberada não se adequa à culpa e nem mesmo ao dolo.
Em razão da incompatibilidade com os institutos do dolo e da culpa e não
havendo previsão legal adequada, para revolver o problema prático, usa-se a
referida teoria com base em analogias ou como simples extensão do dolo eventual
para, assim, conseguir punir determinado indivíduo, ainda que sua real intenção não
tenha sido comprovada claramente na persecução penal.
A priori, importante conceituar a técnica analógica como sendo a aplicação de
determinado instituto em hipótese diversa e específica não regulamentada por lei, ou
seja, onde há lacuna legislativa, sendo possível somente em benefício do acusado,
enquanto a interpretação extensiva refere-se à situação em que existe o texto
normativo, mas não se aplica perfeita e adequadamente ao caso concreto, cabendo
ao julgador ampliar seu sentido.
Desta feita, vê-se que, relacionar a Teoria da Cegueira Deliberada com o dolo
eventual constitui verdadeira analogia in malam partem, repudiada pelo direitobrasileiro, merecendo atenção, também, a interpretação extensiva que afronta de
forma contundente o princípio da legalidade.
29
Isso porque, o princípio da legalidade ou da reserva legal, exige a punição de
determinado indivíduo somente quando sua conduta e todas as circunstâncias do
fato estejam expressamente previstas na letra fria da lei, evitando-se, assim, tiranias
e arbitrariedades em seu desfavor.
Sendo assim, nota-se que a Teoria da Cegueira Deliberada não se enquadra
adequadamente em nenhum texto legal, motivo pelo qual os julgadores baseiam-se
nos mecanismos da analogia ou da extensão interpretativa quando da sua utilização,
a fim de punirem indivíduos, ainda que as investigações não tenham demonstrado
provas suficientes sobre conhecimento ou intenção, algo tirano e nitidamente
maléfico para os réus.
Quanto à vedação da analogia maléfica ao réu, entende Arouck (2017, p. 6):
Em matéria penal, a analogia somente deve ser utilizada para o julgador
preencher as lacunas legislativas de forma a delimitar a interpretação fiel à lei
e desde que, com isso, não traga consequências ao acusado. Por outro lado,
não pode o julgador valer-se dessa manobra hermenêutica para criar ou
modificar direitos, mormente quando trouxer algum prejuízo ao réu.
Arouck também entende pela impossibilidade de utilização da Teoria da
Cegueira Deliberada como extensão do dolo eventual, conforme vêm fazendo os
tribunais pátrios (2017, p. 7):
A construção jurisprudencial da Teoria da Cegueira Deliberada nada mais é
que uma interpretação extensiva do conceito de dolo, pois, uma vez que o
dolo é conceituado na parte geral do Código Penal Brasileiro como querer e
conhecer, não pode o intérprete da lei (o juiz) considerar um eventual não
conhecimento de determinado pressuposto fático, por qualquer razão que
seja, como conhecimento para fundamentar um decreto condenatório.
Por outro lado, há quem entenda ser plenamente compatível o dolo eventual e
a Teoria da Cegueira Deliberada, na medida em que o agente opta por não enxergar
o ilícito diante de seus olhos enquanto supostamente assume o risco de produzir o
resultado.
Compartilhando desse entendimento, Garcia (2016, p. 14):
Pelo exposto, assevera-se que a teoria da cegueira deliberada é
perfeitamente adequada ao nosso dolo eventual, tal qual previsto
ideologicamente na norma penal (com base na teoria do assentimento), em
que se pune pela forma dolosa aquela aceitação e indiferença à produção ou
não do resultado. É importante essa ressalva, de atrelar-se ao seu conceito
puro (dever ser), inicialmente proposto pelo legislador ordinário tendo em
vista a exacerbada banalização do dolo eventual, tal qual testemunhamos na
jurisprudência hodierna (em que muitos casos de flagrante culpa consciente
são tratados como dolo eventual, a fim de se satisfazer uma sociedade
vingativa, alimentada por uma mídia tendenciosa e pouco cautelosa, que
busca uma pena exclusivamente devolutiva).
30
O Supremo Tribunal Federal também já admitiu a utilização da Teoria da
Cegueira Deliberada como dolo eventual, conforme se extrai do Informativo 684:
[...] o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de
configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com
apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber
determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem
pretendida.
Todavia, em que pese existam posicionamentos favoráveis acerca da sua
compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio, há certas divergências entre a
Teoria da Cegueira Deliberada e o instituto do dolo eventual, de acordo com o
exposto anteriormente, na medida em que os elementos cognitivos e volitivos restam
prejudicados e, utilizá-la por meio de interpretações extensivas ou analógicas acaba
inegavelmente estendendo o direito de punição do Estado, chamado de jus puniendi.
Essa punição estatal é compreendida como um poder-dever, criando normas
para mostrar à sociedade que ninguém poderá adotar tal conduta, pois, se o fizer,
será aplicada a justa sanção.
É no momento em que determinado agente pratica alguma conduta
expressamente vedada em lei anterior que surge ao Estado o direito de punir, ou
seja, o jus puniendi.
O fato de se punir somente aquilo que está previsto em lei impõe limites ao
Estado e protege o indivíduo de arbitrariedades, sendo que, qualquer interpretação
extensiva ou analógica inadequada, acaba estendendo esse direito de punição.
Nesse sentido, entende Capez (2007, p. 38):
(...) O tipo exerce função garantidora do primado da liberdade porque, a partir
do momento em que somente se pune alguém pela prática de crime
previamente definido em lei, os membros da coletividade passam a ficar
protegidos contra toda e qualquer invasão arbitrária do Estado em seu direito
de liberdade. O princípio contém uma regra – segundo a qual ninguém poderá
ser punido pelo poder estatal, nem sofrer qualquer violação em seu direito de
liberdade – e uma exceção, pela qual os indivíduos somente serão punidos
se, e quando, vierem a praticar condutas previamente definidas em lei como
indesejáveis.
Corroborando com o tema, Mirabete e Fabbrini (2007, p. 29):
Diante do princípio da legalidade do crime e da pena, pelo qual não se pode
impor sanção penal a fato não previsto em lei (item 2.1.1), é inadmissível o
emprego da analogia para criar ilícitos penais ou estabelecer sanções
criminais. Nada impede, entretanto, a aplicação da analogia às normas não
incriminadoras quando se vise, na lacuna evidente da lei, favorecer a situação
do réu por um princípio de eqüidade. Há, no caso, a chamada ‘‘analogia in
bonam partem’’, que não contraria o princípio da reserva legal, podendo ser
utilizada diante do disposto já no citado art. 4º da LICC. Ressalta-se, porém,
que só podem ser supridas as lacunas legais involuntárias; onde uma regra
31
legal tenha caráter definitivo não há lugar para a analogia, ou seja, não há
possibilidade de sua aplicação contra legem (...)
Sendo assim, diante de um conceito de dolo restrito e expresso em lei, utilizar
a Teoria da Cegueira Deliberada analogicamente ou como forma de extensão do
instituto acaba ampliando o jus puniendi estatal, abarcando maior número de
indivíduos, ainda que suas condutas não tenham ofendido verdadeiramente o texto
legal, e punindo-os por meras presunções de previsibilidade ou possibilidade de
conhecimento, principalmente nos casos em que a persecução penal tenha falhado
ao não demonstrar com precisão autoria e materialidade dos crimes, algo totalmente
incompatível à luz dos princípios e garantias previstos em nosso ordenamento
jurídico.
5.3 Dos riscos e benefícios da utilização da teoria da cegueira deliberada em
casos concretos
De todo modo, com a criminalidade cada vez mais engenhosa e moderna,
aliada à investigação defeituosa, em razão da ausência de condições adequadas
para confeccionar o trabalho e do pouco investimento estatal, que contribuem para o
insucesso do resultado, torna-se cada vez mais difícil comprovar a autoria delitiva e
externar a intenção real do agente causador de um dano.
É nesses casos que surge a Teoria da Cegueira Deliberada como a válvula
de escape capaz de facilitar o poder punitivo estatal, mostrando-se como uma
saudosa solução no combate à impunidade em casos em que o agente, de fato,
cega-se de forma intencional para eximir-se de sua responsabilidade penal.
Todavia, se por um lado combate a impunidade em determinados casos, em
outros, a utilização da Teoria da Cegueira Deliberada, como mecanismo altamente
abrangente, poderá culminar em injustiças e arbitrariedades.Se há dificuldade em se comprovar a presença do comportamento doloso do
agente, da mesma forma ocorre quando ele supostamente cega-se para não
aprofundar seu conhecimento sobre determinado ato, ainda que tenha
previsibilidade ou possibilidade de fazê-lo.
Isso não significa que ele cegou-se porque sabia que auferiria vantagens
ilícitas, pelo contrário, o que pode ocorrer é a concessão do benefício da dúvida para
32
si mesmo, não havendo qualquer juízo de certeza sobre a infração que está
praticando.
Também há situações em que o agente, por falta de cautela ou inexperiência,
acaba não buscando maiores informações sobre algo que está praticando e, exigir
que ele assuma o resultado, somente pelo fato de que poderia desde o início
aprofundar seu conhecimento, remetendo-se novamente à responsabilidade
objetiva.
Por outro lado, não devem ser ignorados os reais casos em que um criminoso
audacioso, agindo de forma consciente e com real intuito de obter vantagens
indevidas, coloca-se em situação de cegueira, ignorando por completo a ilicitude
diante de seus olhos.
A fim de melhor compreensão, imagine o exemplo de um cidadão que
ofereceu abrigo ao seu sobrinho, inimputável para fins penais, após seus genitores
falecerem, em troca de ajuda financeira para manter a residência.
Enquanto o referido cidadão trabalhava fora, o inimputável, oriundo de outra
cidade e que pouco conhecia seu tio, começou a utilizar o imóvel para armazenar
entorpecentes e receber usuários de drogas, construindo enorme rede de negócios
em um curto prazo de tempo e alterando radicalmente o fluxo de pessoas
transitando pelo local.
A movimentação ocorria dias e noites, inclusive nos fins de semana, e o
cidadão, proprietário da residência, sempre visualizou o inimputável em contato com
diferentes pessoas no local.
Certo dia, veio à tona a comprovação de que na residência havia exorbitante
quantidade de drogas e elevada quantia em dinheiro, oriundo do tráfico realizado
pelo inimputável.
Diante dessa situação, a princípio, não há qualquer envolvimento aparente do
cidadão com o tráfico de drogas realizado pelo seu sobrinho, contudo, sendo sua
residência o exato local em que tudo ocorreu, devendo considerar, ainda, as
grandes alterações de movimentação e a presença de pessoas que possivelmente
gerariam suspeitas, pode-se dizer que ele cegou-se, voluntariamente, para obter
algum proveito do ilícito, já que o inimputável também contribuía financeiramente
com suas despesas?
33
Em outro exemplo, visualize a situação em que um proprietário de um ferro
velho adquire, de um indivíduo educado e com boa aparência física, um aparelho
automotivo usado, mas com peças conservadas e ainda em funcionamento.
O proprietário do local não se preocupou em realizar pesquisas sobre o
indivíduo e nem mesmo sobre o produto, confiando prontamente na integridade do
negócio, mesmo que o valor aceito pelo vendedor tenha sido muito aquém do
cobrado normalmente.
Após a realização do negócio, o indivíduo rapidamente evade-se do local e,
minutos depois, policiais militares chegam para informar que receberam informações
de que o autor do furto de um aparelho automotivo estaria ali, ocasião em que
deparam com o referido objeto nas mãos do proprietário do ferro velho.
Considerando a hipótese, seria viável dizer que o proprietário do ferro velho,
ao adquirir um produto por valor muito abaixo do que costuma pagar, cegou-se
voluntariamente para obter alguma vantagem, ainda que não tenha desconfiado do
indivíduo que o vendeu o aparelho automotivo?
Nota-se que tal análise deve ser feita de forma demasiadamente minuciosa e
prudente, na medida em que as circunstâncias variam de caso a caso e, levando ao
pé da letra os requisitos de previsibilidade ou possibilidade de descobrir que está
praticando um crime, qualquer indivíduo poderá ser condenado por mera presunção,
sendo ele inocente ou não, o que, mais uma vez, demonstra ofensa aos princípios e
garantias constitucionais.
Além disso, por não existirem regramentos legais adequados e expressos em
relação ao tema, a utilização da Teoria da Cegueira Deliberada, com base no
entendimento íntimo de cada julgador, decidindo conforme peculiaridades de casos
concretos, demonstra a necessidade de reforma legislativa para padronizar e
viabilizar a aplicação da referida teoria no ordenamento jurídico brasileiro, de modo
que a segurança jurídica não fique comprometida.
A referida reforma legislativa também se mostra importante para que o Poder
Judiciário afaste-se, definitivamente, do hábito de legislar em decisões, criando ou
modificando direitos, na medida em que tal função não lhe compete, sendo usurpada
do Poder Legislativo.
De toda forma, o Poder Judiciário deve ater-se à sua principal função, ou seja,
a de intérprete da lei, afastando-se da tentação de legislar em seus julgados, ao
34
expandir o direito de punir do Estado em casos em que a previsão legal é bem
restritiva, sob pena de acabar legitimando o ativismo judicial com o intuito de
solucionar maior número de infrações penais e, assim, gerar sensação de segurança
e satisfação à sociedade, o que perdurará por pouco tempo, vez que o verdadeiro
problema permanecerá sem resposta.
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6 DO INSTITUTO DO ERRO DE TIPO E SEU ENFRAQUECIMENTO
Configurada nas hipóteses em que o agente coloca-se em situação de
negação, cegando-se para tirar proveito de determinado fato, com o intuito obter
vantagens indevidas e assumindo, assim, o risco de produzir o resultado, a Teoria
da Cegueira Deliberada, além dos problemas cognitivos e volitivos trazidos pela sua
pouca compatibilidade com o instituto do dolo, também acaba enfraquecendo o
instituto do erro de tipo.
Isso porque, assim como no erro de tipo, não há conhecimento atual e efetivo
na configuração da Teoria da Cegueira Deliberada e, se presumi-la como dolo
eventual, o primeiro instituto acabará enfraquecido, conforme se vê a seguir.
6.1 Conceito e análise da sua possível incompatibilidade com a teoria da
cegueira deliberada
No tocante à conduta dolosa, conforme já visto, exige-se para a sua
configuração a presença de conhecimento e vontade por parte do agente, de
maneira que, excluindo-se o primeiro requisito, constitui-se o erro de tipo, o que
afasta o próprio instituto do dolo.
No instituto do erro de tipo, previsto no artigo 20 do Código Penal Brasileiro, o
agente possui falsa percepção da realidade, equiparando-se à ignorância da Teoria
da Cegueira Deliberada, hipótese em que não há conhecimento real de que sua
conduta seja ou não ilícita.
Quanto ao instituto do erro de tipo, Mirabete e Fabbrini (2007, p. 162):
[...] O erro é uma falsa representação da realidade e a ele se equipara a
ignorância, que é o total desconhecimento a respeito dessa realidade. No
caso de erro de tipo, desaparece a finalidade típica, ou seja, não há no
agente a vontade de realizar o tipo objetivo. Como o dolo é querer a
realização do tipo objetivo, quando o agente não sabe que está realizando um
tipo objetivo, porque se enganou a respeito de um de seus elementos, não
age dolosamente: há erro de tipo. São casos em que há tipicidade objetiva
(nos exemplos, os tipos de homicídio, lesão corporal, aborto, furto, corrupção
ativa), mas não há tipicidade subjetiva por estar ausente o dolo.
Assim, sendo erro de tipo a modalidade em que o agente confunde-se e, por
equívoco, desconhece um dado relevante descrito em determinada tipificação penal,
utilizar a Teoria da Cegueira Deliberadacomo presunção de dolo nos casos em que
o indivíduo tinha probabilidade ou possibilidade de obter conhecimento, mas opta
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por cegar-se, conferindo-lhe o benefício da dúvida em relação aos possíveis
resultados, acaba enfraquecendo o primeiro instituto, em razão da aparente
incompatibilidade.
Ora, imagine o célebre exemplo de um caçador que, em meio à floresta
destinada à caça selvagem, percebe certa movimentação suspeita atrás de um
arbusto e, sem pensar duas vezes e acreditando tratar-se de um animal, aponta sua
arma de fogo e efetua disparos, atingindo o alvo.
Ao se aproximar, o caçador percebe que, na verdade, acabou atingindo outra
pessoa, que também estava no local para caçar animais, configurando, assim, o erro
elementar do tipo penal.
Diante disso, analisando esse exemplo à luz da Teoria da Cegueira
Deliberada, vê-se que o caçador dispunha de meios para aprofundar seu
conhecimento sobre o que estava acontecendo diante de seus olhos, na medida em
que também sabia que se encontrava em local frequentado por outras pessoas,
mas, ao tomar a decisão precipitada, acabou produzindo um grave resultado.
Poderia assim dizer que o caçador cegou-se voluntariamente? Como nos
demais casos envolvendo a referida teoria e tratando-se de característica subjetiva,
constante no íntimo do agente, tal análise deve ser feita de forma minuciosa e
ponderada, conforme já dito.
Certo é que, se na Teoria da Cegueira Deliberada não há o conhecimento
concreto do agente, assim como no erro de tipo, proferir punições a título de dolo
eventual, através de meras presunções, acaba enfraquecendo o instituto.
É importante mencionar que, não há espécie de erro de tipo que determine a
punição do agente a título de dolo, caso tenha se esquivado de descobrir a ilicitude
de sua conduta, pouco importando o motivo de sua abstenção.
Ademais, também cumpre destacar que, não se trata aqui do erro invencível,
mas sim da hipótese vencível, que exclui o dolo para punir a título de culpa, quando
a ignorância do agente poderia ter sido por ele evitada.
Explicando sobre o tema, Sydow (2018, p. 190/191):
No que se refere ao critério da vencibilidade, as características da cegueira
deliberada em sentido estrito parecem desafiar a compatibilidade. A
ignorância é criada e, portanto, a deliberação por si só parece ter em si
inerente a característica da evitabilidade. Só se pode decidir por ignorar algo
que se sabe existir. E não se pode alegar ignorância verdadeira sobre fato
identificado.
Ocorre, porém, que uma análise ex post poderá concluir pelo fato de que
ainda que o agente – que propositalmente se colocou em posição de
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ignorância – tivesse buscado investigar sua suspeita, ainda assim não
conseguiria atingir o conhecimento necessário para ou (a) impedir o resultado
ou (b) compreender que a conduta refletiria elemento do tipo e restringir sua
ação.
 
Se por um lado a situação do erro de tipo vencível pode fazer com que o
agente seja punido a título de culpa, caso exista tal previsão, vê-se que, ao adotar a
Teoria da Cegueira Deliberada nos mesmos casos, poderá ser ele punido
dolosamente, por meras presunções e por acreditar o julgador que a situação de
ignorância fora intencional para obter vantagens indevidas, enfraquecendo o
primeiro instituto.
Quanto ao tema, também explica Sydow (2018, p. 194):
O reconhecimento da figura da cegueira deliberada, acreditamos, pode vir a
enfraquecer tratamento jurídico dado pelo instituto do erro, uma vez que
modifica a logica da situação de ignorância, de modo a negar a estrutura do
artigo 20 do Código Penal Brasileiro, piorando a situação do réu. A permissão
de presunção de dolo, já rechaçada em outro momento da historia a partir das
propostas de MEZKER, teria oportunidade de regressar – e consigo o Direito
Penal de autor – e recriar todo um debate sobre a subjetividade na aplicação
do instituto e sua conveniência político-criminal.
Dessa forma, além das violações às garantias constitucionais, sustentadas
nos tópicos anteriores, nota-se que de fato também há a possibilidade do
enfraquecimento do instituto do erro de tipo com a utilização da Teoria da Cegueira
Deliberada, em razão da presunção do dolo eventual nos casos de ignorância e
desconhecimento vencíveis, carecendo a modalidade de regulamentação adequada
para, assim, ser viabilizada no ordenamento jurídico brasileiro.
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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de uma persecução penal falha, que muitas vezes não consegue
evidenciar de forma segura e precisa a autoria e os elementos íntimos do agente,
consistentes na sua real intenção, há quem afirme que a Teoria da Cegueira
Deliberada trouxe importante contribuição para o direito brasileiro, ainda que de
forma imperfeita, satisfazendo o sentimento de justiça da sociedade.
Considerando que a análise da conduta e da vontade subjetiva do agente
deve ser feita de forma cuidadosa pelo julgador, em razão da linha tênue existente
entre o dolo eventual, a responsabilização penal objetiva e a Teoria da Cegueira
Deliberada, sua utilização ainda encontra forte resistência no ordenamento jurídico
pátrio.
A resistência mencionada se dá ao fato de que, por ser importada de um
sistema diverso do adotado pelo Brasil, a Teoria da Cegueira Deliberada ainda
carece de melhor regulamentação e, mesmo que os magistrados estão utilizando-a
cada vez mais para combater impunidades nos casos concretos, deve-se manter a
devida cautela.
Diz-se cautela, pois, nos moldes atuais, a referida teoria mostra-se
formalmente incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no
que se refere ao conceito restrito de dolo, onde é sustentada a sua equiparação.
Assim, não se encaixando nos critérios da legislação brasileira, torna-se
imprescindível buscar meios para adequar a Teoria da Cegueira Deliberada no
direito nacional antes de popularizar sua utilização, ainda que seja necessária
reforma legislativa, principalmente porque ela acaba expandindo o jus puniendi
estatal, colocando os acusados em situação mais maléfica que aquela expressa no
texto legal, obviamente violando direitos e garantias asseguradas
constitucionalmente.
Com efeito, a nítida controvérsia existente no tema em questão justifica a
importância do presente trabalho, sendo que a hipótese inicial de incompatibilidade
se confirma diante da demonstração da linha tênue existente entre a referida teoria e
a responsabilidade penal objetiva, de modo que sua utilização vem ocorrendo como
válvula de escape de um sistema acusatório incapaz de comprovar seguramente
práticas criminosas e todas as suas circunstâncias.
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REFERÊNCIAS
AROUCK, Vinícius. A Teoria da Cegueira Deliberada e sua aplicabilidade no 
ordenamento jurídico pátrio. 2017. Disponível em: 
<http://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-da-cegueira-deliberada-e-sua-
aplicabilidade-no-ordenamento-juridico-patrio> Acesso em: 3 jun. 2018.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva.
2007.
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Saraiva. 
2012.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva. 
2007.
COÊLHO, Marcos Vinicius Furtado. Garantias Constitucionais e Segurança Jurídica. 
Belo Horizonte: Editora Fórum. 2016.
GARCIA, Simone. Teoria da cegueira deliberada e seus desdobramentos no Direito 
Penal Comparado e Brasileiro. Jus Navigandi. 2016. Disponível em: 
<https://jus.com.br/artigos/45718/teoria-da-cegueira-deliberada-e-seus-
desdobramentos-no-direito-penal-comparado-e-brasileiro>

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