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Linguagem matemática e linguagem natural: interpretação de regras e de símbolos Marisa Rosâni Abreu da Silveira Universidade Federal do Pará / Brasil e-mail: marisabreu@ufpa.br Introdução O presente artigo aborda os obstáculos encontrados na interpretação de textos matemáticos em situações de ensino e de aprendizagem. O aluno tem dificuldades de interpretar a linguagem simbólica, bem como as regras matemáticas que regem tanto o texto em linguagem natural como em linguagem matemática. Para compreendermos essa problemática torna-se necessário analisarmos as características da linguagem matemática e das regras matemáticas, para podermos usar a criatividade no sentido de auxiliar o aluno na busca de sentidos na leitura e na interpretação de tais textos. A Matemática é objetivada por meio de sua linguagem que é regida por uma sintaxe que segue regras matemáticas, porém essa linguagem quando traduzida para a linguagem natural passa também a seguir regras gramaticais. Nesse processo de tradução de uma linguagem à outra, a sintaxe deve ser compreendida para que a semântica se complete. Os significados do texto podem ser encontrados nas diferentes formas de uso dos símbolos matemáticos e os sentidos variam de acordo com o contexto nas quais eles estão sendo empregados. Os alunos quando lidam com textos matemáticos mostram em seus registros, os equívocos advindos da interpretação. O movimento de criar significados aos símbolos objetivados por meio da linguagem matemática é mediado pela subjetividade do aluno. O conflito entre a objetividade da linguagem matemática e a subjetividade do aluno ao interpretar tais textos, como também, entre os procedimentos lógicos e o uso da imaginação que envolve procedimentos psicológicos, se estabelece de maneira tal, que se torna necessário a comunicação entre o professor e o aluno por meio de um jogo de linguagem. Criar significados é um processo subjetivo e representá-los por meio da linguagem matemática é um processo que se objetiva por meio da escrita. Esse processo de confronto entre a subjetividade do aluno e a objetividade da Matemática cria obstáculos na leitura e na escrita, já que a lógica do aluno está de acordo com a sua imaginação e a sua criatividade que pode não coincidir com a lógica do professor e a lógica da matemática. Na prática do uso da linguagem, uma parte grita as palavras, a outra age de acordo com elas; mas na instrução da linguagem vamos encontrar este processo: o aprendiz dá nome aos objetos. Isto é, ele diz a palavra quando o professor aponta para a pedra. - De fato, vai-se encontrar aqui um exercício ainda mais fácil: o aluno repete as palavras que o professor pronuncia-ambos, processos lingüísticos semelhantes. (...) Quero chamar esses jogos de “jogos de linguagem” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 18). É por meio desses jogos que professor e aluno podem compartilhar do mesmo universo discursivo. O diálogo entre eles envolve diferentes linguagens com diferentes lógicas - linguagem do aluno, linguagem do professor e linguagem matemática – e proporciona a convergência para a mesma significação. Linguagem natural e regras matemáticas A conversão da linguagem natural para a linguagem matemática exige a compreensão das regras matemáticas que estão implícitas no texto. Cada uma dessas regras quando interpretada define os conceitos contidos no enunciado, bem como a evidência das conseqüências de sua aplicação. A regra segue o imperativo “que seja assim!”, pois ela é normativa. As normas devem ser obedecidas, pois prevêem o resultado do cálculo, mas limitam a criatividade do aluno que deve seguir regras, porém, existe a possibilidade do aluno criar significados quando demonstra tal resultado. Um texto em linguagem natural pode especificar a ordem ao aluno sem que ele precise interpretar, por exemplo, quando enunciamos ao aluno “multiplique” basta que ele multiplique. Porém, “entre a ordem e a execução há um abismo. Este tem que ser fechado pela compreensão” (WITTGENSTEIN, 1996, p. 173). A ação de multiplicar implica o conceito de multiplicação e esse conceito obedece regras pré-estabelecidas que prevêem um resultado indicado pela lógica da Matemática. “La expresión de la regla y su sentido no son más que una parte del juego de lenguaje: seguir la regla” (WTTGENSTEIN, 1987, p. 346). Muitas vezes, o aluno lê o enunciado e sabe o que deve fazer - multiplicar, mas não como fazer – o conceito de multiplicação. Ele pode saber multiplicar 2 por 3, 4 por 5, mas pode não saber multiplicar zero por 6, justamente porque o conceito de multiplicação que deveria ser o mesmo em qualquer contexto, na perspectiva do aluno pode mudar, talvez pelo fato do zero não se encontrar no seu campo de visão. Multiplicar significa seguir as regras da multiplicação e uma delas afirma que todo número multiplicado por zero resulta zero. Por outro lado, o texto pode não especificar a ordem e nesse caso, o aluno deve interpretar o conceito subjacente ao conjunto de palavras que o compõe. O enunciado “um bombom custa $ 0,50. Quanto custa cinco bombons?” não afirma que o aluno deve multiplicar cinco por 0,50. Essa ação deve ser compreendida no processo de leitura, pois as palavras são também atos (WITTGENSTEIN, 1996). Os atos pronunciados pelas palavras dizem ao aluno o que ele deve fazer, mas esse dizer representa um resíduo, pois está implicitamente escrito no texto, ou seja, fora do texto. Interpretar um texto matemático implica em ler o que está escrito e aquilo que está subentendido. Interpretação da linguagem matemática A tradução da linguagem matemática para a linguagem natural exige a compreensão dos símbolos matemáticos que estão inseridos no texto. A Matemática não dispõe de seus objetos, e sim apenas de suas representações, pois o objeto matemático não é visível e não podemos imaginar aquilo que não vemos e, por esse motivo, o objeto precisa de uma representação. GRANGER (1990) analisando o pensamento de Wittgenstein afirma que o objeto matemático não é representado pelo simbolismo matemático, os símbolos formam um sistema que envia às regras matemáticas. Assim, o simbolismo matemático atua como intermediador entre o objeto e o seu conceito, pois o conjunto de símbolos forma um sistema que interpreta regras. “As matemáticas, com efeito, parecem mesmo reduzir-se a uma pura linguagem, porque o elemento sintáctico absorve o elemento semântico: os signos matemáticos não se referem já a objectos que transcendem a linguagem, mas as leis de sua própria estrutura” (GRANGER, 1975, p. 74). Para (WITTGENSTEIN, 1996), a essência do pensar é a lógica e apresenta uma ordem a priori do mundo, é anterior ao pensamento. A intenção para o filósofo é o querer dizer, porém a intenção com o qual se age não acompanha a ação, tão pouco quanto o pensamento acompanha a fala. “Se você excluir da linguagem o elemento da intenção, toda a sua [da linguagem] função desmorona” (WITTGENSTEIN, 2005, p. 49). Nesse sentido, representar é descrever em palavras e o uso da palavra corresponde ao seu significado. Portanto, o significado de um nome é o objeto que ele representa. O significado de uma palavra está no uso e pode ser objetivado por meio da escrita, já o seu sentido depende do contexto em que ela está sendo empregada. Três x ao quadrado na oralidade, poder ser compreendido pelo aluno como 2)3( x ou 23x . A linguagem formal é desprovida de oralidade, mas ela é importante para que o sujeito construa sentidos. Os atos de fala representam o fazer matemático, pois existe circularidade entre os atos do professor que constitui o conceito do objeto e as regras que o constituem o conceito. A açãode dizer três x ao quadrado é ambígua e necessita do ato de mostrar por meio de um gesto. O conceito de três x ao quadrado é um conceito ostensivo, ele necessita ser mostrado por meio da escrita. A ação acompanhada pela fala é muito utilizada pelo professor em sala de aula. Quando o professor afirma que o triângulo retângulo possui um ângulo reto, ele desenha o triângulo e mostra o ângulo reto apontando para o ângulo de noventa graus. Para mostrar que a altura de uma pirâmide não corresponde à sua apótema, o professor desenha a pirâmide no quadro e aponta para a sua altura. Ele mostra por meio de gestos aquilo que é difícil de explicar por meio de palavras. Criatividade em Matemática: a interface entre a subjetividade e a objetividade A linguagem matemática pretende ser unívoca e busca a generalização, o rigor e a formalização. A objetividade dessa linguagem não pode ser compreendida sem a subjetividade do aluno. A subjetividade está presente na intuição e na sensação que é privada e se objetiva por meio da palavra. A linguagem é um dos meios pelos quais nos comunicamos e é por meio dela que o professor deve buscar um intermediário entre a subjetividade do aluno e a objetividade da Matemática. A atividade matemática é sempre regrada, mesmo que essa regulação não seja explicitamente formulada, pois existe nela uma parte implícita e outra explícita. Esse fato pode limitar a criatividade do aluno, já que ele deve seguir regras, mas pode criar por meio de seus atos quando inventa o caminho para demonstrar o resultado previsto. Isso quer dizer que, por meio de procedimentos lógicos ele pode demonstrar e por meio da intuição ele pode inventar. Os limites da liberdade do aluno (CAVEING, 2004) ao demonstrar o resultado do cálculo são demarcados pela exigência do necessário rigor que evita as ilusões da intuição. O aluno é criativo porque inventa regras, porém as regras criadas por ele seguem uma lógica própria, e nem sempre a lógica do aluno está de acordo com a lógica da Matemática. O aluno ao dividir 432 por 3 encontra dificuldades, então modifica o cálculo e divide 432 por 111 e obtém 432. O seu cálculo tem uma lógica própria, pois 3 é o resultado de 1 + 1 + 1. O pensamento lógico do aluno busca uma solução para uma regra matemática - no caso a divisão - que não tem sentido para ele. Como “o significado de uma pergunta é o método de responder a essa pergunta” (WITTGENSTEIN, 2005, p. 52), o aluno mostra por meio de seus registros os problemas de interpretar tal divisão. O professor deve ser criativo, no sentido de buscar compreender as diferentes lógicas dos alunos, e é por meio do diálogo que essas lógicas podem convergir para a lógica da Matemática. Ele precisa tomar cuidado no uso de suas palavras, pois as palavras da linguagem natural são polissêmicas e a palavra em linguagem matemática pretende ser unívoca. Os jogos de linguagem em sala de aula entre professor e alunos se apresentam como uma alternativa na busca de entendimento, pois eles adquirem uma forma de vida que pode fornecer significados aos símbolos matemáticos, como também às regras matemáticas. A comunicação do leitor com o texto matemático é apenas virtual porque não temos acesso ao objeto matemático e precisamos de sua representação para que haja comunicação. O professor pode torná-la presencial oferecendo a palavra ao aluno e convidando-o para participar da construção do conceito do objeto. Considerações finais Para (GRANGER, 1970), a sintática relaciona os signos entre si, a semântica relaciona os signos entre si e seus significados e a pragmática relaciona os signos com os seus significados e com seus interpretantes (usuários). Os significados desses signos dependem da leitura dos significados que estão além da simbologia e o interpretante precisa comunicar-se com o texto para que haja interpretação. A representação é subjetiva, o aluno re-apresenta o objeto matemático utilizando outro objeto que pode não corresponder às regras que definem o seu conceito. Muitas vezes, a necessária objetividade (BOUVERESSE, 1987) faz com que o aluno não consiga trocar adequadamente as representações subjetivas por significações objetivas. Esse fato é constatado na educação de jovens e adultos que ficaram algum tempo longe da escola, pois eles sabem fazer cálculos mentais, mas apresentam dificuldades de representá-los por meio da escrita. A escrita se distancia do curso das representações mentais, pois a objetividade da linguagem se dá sem a intuição que não caminha com o material morto da escrita (WITTGENSTEIN, 1987). Os significados que o professor oferece a um determinado símbolo ou a uma determinada regra matemática pode ser interpretado com significados diferentes pelo aluno. Esses significados não estão no texto e sim, no uso do texto num contexto. Esse fato mostra ao professor que não pode tratar a Matemática apenas como linguagem formal, pois é preciso dar vida aos seus símbolos e às suas regras que não têm significado para o aluno. É preciso que o professor compreenda que a linguagem é instrumento de comunicação e é por meio dela que pode entrar em entendimento com o aluno. É por meio do diálogo que tanto aluno como professor aprende a ser criativo: o aluno ensina ao professor o que não compreende e o professor ensina ao aluno utilizando outras palavras - aprimorando o seu vocabulário - de uma forma que o aluno compreenda. Referências BOUVERESSE, Jacques. La force de la règle : Wittgenstein et l’invetion de la necessité. Paris : Les Éditions de Minuit, 1987. CAVEING, Maurice. Le problème des objets dans la pensée mathématique. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2004. GRANGER, Gilles-Gaston. Invitation à la lecture de Wittgenstein. Aix-en-Provence: Editions Alinea, 1990. ___. Objeto, estructuras y significaciones. In: Estructuralismo y Epistemologia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1970. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Rio de Janeiro: Coleção Pensamento Humano, 1996. ___. Observações Filosóficas. São Paulo: Edições Loyola, 2005. ___. Observaciones sobre los fundamentos de la matemática. Madrid: Alianza Editorial, 1987.
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