Prévia do material em texto
7 SOBRE ARROGÂNCIA1 83. Neste trabalho tenciono lidar com o surgimento, no material de certo tipo de paciente, de alusões à curiosidade, arrogância e estupidez de tal modo dispersas e distanciadas uma das outras que sua correlação pode passar despercebida. Terei oportunidade de sugerir que o analista deve encarar o aparecimento delas como indicio de que está lidando com um desastre psicológico. É possivel ter uma indicação do significado que desejo conferir ao termo “arrogância”, se recorrer- mos à hipótese de que, na personalidade em que predominam os instintos de vida, o orgulho se converte em respeito a si mesmo; predominando os instintos de morte, o orgulho se transforma em arrogância. O distanciamento entre essas alusões e a falta de evidência de qualquer correlação entre elas constituem um indício de que ocorreu um desastre. Visando a esclarecer a conexão entre as mesmas, aborda- rei o mito de Édipo por um prisma que torna o crime sexual um elemento periférico de uma história em que o crime central é a arrogância de Édipo ao jurar que desnudaria a verdade a qualquer preço. 1 Lido no 20.° Congresso da Associação Psicanalítica Internacional em Paris, julho- agosto de 1957. 101 84. Esta mudança de Ênfase coloca os seguintes elementos no centro da história: a esfinge, que formula o enigma e se destrói quando este é respondido; o cego Tirésias que, possuindo saber, lamenta a decisão do rei de sair a buscá-lo; o oráculo que instiga essa busca que o profeta condena e, além destes, o rei que, concluída a busca, sofre a cegueira e o exilio. É essa a história cujos elementos se disünguem em meio às ruínas da psique e em cuja direção apontam as alusões dispersas à curiosidade, arrogância e estupidez. Afirmei que tais alusões são significativas no caso de certo tipo de paciente; o tipo a que me refiro é aquele cujos mecanismos psicóticos são ativos, tendo de ser desvendados analiticamente para que se obtenha um ajustamento estável. Na prática, a análise de um paciente assim pode dar a impressão de seguir os padrões que freqüentemente encontramos no tratamento das neuroses, mas com a diferença funda- mental de a melhora no estado do paciente não parecer proporcional ao trabalho analítico efetuado. Recapitulando, o analista que trata de um paciente aparentemente neurótico deve encarar uma resposta terapêutica negativa, concomitante ao aparecimento de alusões disper- sas, sem correlação mútua, à curiosidade, arrogância e estupidez, como um indicio de que está diante de uma catástrofe psicológica que terá de enfrentar. 85. É de se supor que o aparecimento de uma dessas alusões na análise propicie uma abordagem do problema em questão, e é justa- mente isso o que de fato acontece. É importante que o analista trate a alusão que se faça a qualquer um desses atributos como uma ocorrên- cia significativa que exige investigação e ocasiona resistências mais empedernidas que as habituais. Infelizmente o problema se complica em razão de um fato que já deve estar óbvio, ou seja, o próprio método analítico ser precisamente uma manifestação da referida curiosidade que é sentida como um componente intrínseco do desastre. Como decorrência o próprio ato de analisar o paciente torna o analista um cúmplice na precipitação da regressão e na transformação da própria análise numa “atuação". Do ponto de vista de uma análise bem-sucedi- da, esse é um desfecho que se deve evitar, Não me foi possível, no entanto, ver como fazê-lo. Um procedimento alternativo é aceitar a 102 “atuação” e a regressão como inevitáveis e, se possivel, tirar proveito disso. Creio que se possa consegui-lo, mas envolve a interpretação minuciosa do que ocorre na sessão. Tais ocorrências são manifestações ativas dos mecanismos de cisão, de identificação projetiva, bem como dos fenômenos correlatos e subsidiários dos estados confusionais, da despersonalização e alucinação, descritos por Melanie Klein, Segai e Rosenfeld como parte integrante da análise de pacientes psicóticos. 86. Nessa fase da análise, a transferência é suí generís, pois, além das características que já assinalei em trabalhos anteriores, volta-se para o analista como analista. Típico desse fato é o surgimento do analista (e do paciente, na medida em que este se identifica com o analista), sucessivamente, ora como cego, ora como imbecil, suicida, curioso e arrogante. Posteriormente terei mais a acrescentar sobre as características da arrogância. Cumpre salientar que, nesta etapa, o paciente dá a impressão de não ter problema algum a não ser a existência do próprio analista. E que, além disso, o espetáculo apresen- tado é semelhante, usando uma analogia de Freud, ao do arqueólogo que descobre, em seu trabalho de campo, os indícios não tanto de uma civilização primitiva, mas de uma catástrofe primitiva. Em termos analíticos, deve-se ter a esperança de que as investigações efetuadas redundem na reconstituição do ego. Esse objetivo fica, no entanto, obscurecido em razão de o método analítico haver-se transformado numa “atuação” de ataques destrutivos, desfechados contra o ego onde quer que se vislumbre este último. Isto é, quer o ego se manifeste no paciente ou no analista. Esses ataques recordam bastante as descrições que nos forneceu Melanie Klein dos ataques que, na fantasia, o bebê faz ao seio. 87. Se nos voltarmos agora ao exame do que há na realidade que a torna tão detestável para o paciente, tendo ele de destruir o ego que o põe em contato com esta, será natural supor que é a existência da situação edípica de base sexual; e de fato encontrei muitos elementos que consubstanciam esse ponto de vista. Quando a reconstituição do ego progride o suficiente, de modo a tornar visível a situação edípica, é bem comum descobrirmos que isto desencadeia mais ataques ainda 103 ao ego. Hã, porém, indícios de que outro elemento adicional desempe- nhe um papel importante na produção de ataques destrutivos ao ego, e na decorrente desintegração do mesmo. A chave disso está nas alusões à arrogância que prometi examinar melhor. Em resumo, parece que poderosas emoções se associam à preten- são do paciente (ou do analista) de ter os atributos que são exigidos de quem procura a verdade, em especial a capacidade de tolerar as tensões associadas à introjeção de identificações projetivas de outrem. Em outras palavras, o objetivo implícito da psicanálise de buscar a verdade a qualquer preço é encarado como sinônimo da pretensão à posse da capacidade de abrigar os aspectos descartados, excísados, de persona- lidades alheias, ao mesmo tempo em que se mantêm a ponderação e equilibrio. Ao que parece, isso constitui sinal instantâneo para explo- sões de inveja e ódio. 88. Proponho-me agora destinar o restante deste trabalho à des- crição do aspecto clínico do material que até o momento abordei teoricamente. O paciente em questão não se portou, em momento algum, de um modo que justificasse, a meu ver, um diagnóstico de psicose; apresentava, no entanto, as características que mencionei, ou seja, alusões dispersas à curiosidade, arrogância e estupidez concomi- tantes ao que eu julgava ser uma resposta terapêutica precária. No período estudado, o significado dessas características se tomara claro e eu tinha conseguido dar-lhe um certo insígíit acerca da correlação delas e da freqüência crescente com que surgiam, em primeiro plano, no material que fornecia. Ele próprio descrevia o seu comportamento nas sessões como louco ou insano, e demonstrava ansiedade em relação à sua incapacidade de se portar de uma maneira que fosse — conforme sua experiência de análise lhe mosttara — útil para o incremento do progresso analítico. De minha parte, eu estava impres- sionado com o fato de ele aparentar, por diversas sessões numa ocasião, estar desprovido do insight e discernimento queeu sabia, com base em experiência prévia, que ele possuía. Além disso, o material era quase inteiramente do gênero que eu costumava encontrar na análise de pacientes psicóticos. Ou seja, a identificação projetiva era extremamen- te ativa, sendo fácil detectar os estados confusionais e a despersonali- 104 zação do paciente, não raro óbvios. Por alguns meses as sessões ficaram de tal modo sobrecarregadas de mecanismos psicóticos que eu me indagava como é que o paciente aparentemente continuava a vida extra-analitica sem que tivesse havido, ao que eu soubesse, qualquer mudança concreta para pior, 89. Não me alongarei mais na descrição dessa etapa, uma vez que não difere de relatos anteriores sobre o trabalho com o paciente psicótico. Desejo concentrar-me no aspecto da análise que se relaciona a uma forma especial de objeto interno. Em sua forma mais simples, esse material surgia em sessões em que faltava coerência às associações do paciente, que consistiam em “orações” tremendamente falhas num ou noutro aspecto da gramática do inglês falado. Assim, um objeto significativo poderia ser menciona- do, mas faltava pronome ou verbo; ou aparecia uma forma verbal significativa, por exemplo, “indo patinar”, mas não se dizia quem estaria fazendo isto nem tampouco onde, e assim por diante, numa sucessão aparentemente inesgotável de variações. O estabelecimento de um forte relacionamento analítico através da comunicação verbal parecia, assim, impraticável. Analista e paciente formavam um par frustrado. Isto, em si, não era novo, e certa ocasião, durante uma sessão relativamente lúcida, o próprio paciente notou, que o método de comunicação estava mutilado a tal ponto que era impossível o trabalho criativo, perdendo a esperança na possibilidade de que alguma cura surgisse. Ele já estava bem familiarizado com a ansiedade sexual implícita nessa conduta, de modo que era razoável supor que algum progresso se seguisse, e o mais surpreendente foi que, na prática, isso não ocorreu; a ansiedade do paciente aumentou. Finalmente, fui força- do a admitir, em bases teóricas, que teria havido progresso bem como mudanças em seu comportamento que eu não conseguira ver. Tendo em mente esta suposição, tentei sair à cata de uma pista reveladora que indicasse que mudanças seriam essas. Nesse ínterim, as sessões per- maneciam como antes. Eu continuava perdido, até que um dia o paciente, num momento de lucidez, disse que ele se perguntava se eu conseguiría suportar aquilo. Foi o que me deu a pista: pelo menos eu sabia agora que havia algo qüe eu era capaz de suportar e ele, aparen- 105 temente, não o conseguia. Ele compreendera que se sentia barrado em seu intento de estabelecer um contato criativo comigo, e que a força obstruente estava às vezes nele, às vezes em mim, ocupando ocasional- mente uma localização desconhecida. Além disso, a obstrução era feita por outros meios que não a mutilação e as comunicações verbais. O paciente já havia deixado claro que as forças ou os objetos obstrutivos estavam fora de seu controle, 90. O passo seguinte deu-se quando o paciente afirmou que a força obstrutiva era eu, sendo uma característica marcante minha “eu não agüentar aquilo”. Agora eu trabalhava baseado no suposto de que o objeto perseguidor que não podia permitir qualquer relacionamento criativo era um objeto que “não conseguia agüentar aquilo", mas eu não tinha ainda clareza quanto ao que era esse “aquilo". Presumir que o “aquilo” fosse qualquer relação criativa, que se tornava intolerável para o objeto perseguidor, em virtude da inveja e ódio contra o par criativo, era uma hipótese atraente. Infelizmente essa hipótese não acarretou progresso algum, por ser um aspecto do material que já tinha sido esclarecido sem produzir qualquer avanço. O problema quanto ao que seria o “aquilo”, portanto, aguardava ainda uma solução. Antes de prosseguir examinando esse problema, devo mencionar uma peculiaridade do material que levou a essa conclusão, pois isto contribuirá para o entendimento da etapa seguinte. Durante todo o período que ora descrevo, as alusões à curiosidade, arrogância e estupidez tornaram-se cada vez mais freqüentes e mais claramente inter-relacionadas. A estupidez era intencional e a arrogância, nem sempre designada com este nome, às vezes era uma acusação, outras, uma tentação e, por vezes, um crime. O efeito cumulativo dessas alusões convenceu-me de que a correlação entre elas dependia da associação que mantinham com o objeto obstrutor. A curiosidade e a estupidez aumentavam e diminuíam de intensidade simultânea e peri- odicamente; ou seja, se a curiosidade se intensificava, o mesmo se dava com a estupidez. Desse modo, achei que eu obtivera certo ganho no conhecimento da natureza da força obstrutiva, O que o objeto não podia suportar veio a ficar mais claro em determinadas sessões nas quais transpareceu que, na medida em que eu, como analista, insistia 106 no uso da comunicação verbal como método de explicitar os problemas do paciente, eu era visto como alguém que está atacando diretamente os métodos de comunicação deste último. Partindo disso, ficou patente que eram os métodos de comunicação do paciente o que eu não podia suportar, quando identificado à força obstrutiva. Nessa fase, o emprego que eu fazia da comunicação verbal era encarado pelo paciente como um ataque despedaçador aos seus métodos de comunicação. Desse ponto em diante, demonstrar que o elo de ligação do paciente comigo era a sua capacidade de empregar o mecanismo de identificação projetiva foi apenas uma questão de tempo. Ou seja, sua relação comigo e sua capacidade de se beneficiar através da associação entre nós dois assentavam-se na oportunidade de excisar partes de sua psique e projetá-las dentro de mim. Disso dependiam diversas práticas que, no seu sentir, garantiam experiências recompensadoras, do ponto de vista emocional, tais como, para citar apenas dois procedimentos, a capacidade de colocar em mim sensações más e deixá-las em meu interior o tempo suficiente para que fossem modificadas pela permanência em minha psique, e a capacidade de colocar partes boas suas dentro de mim, daí resultando ele sentir estar lidando com um objeto ideal. A sensação de estar em contato comigo associava-se a essas experiências; o que constituía, estou incli- nado a crer, uma forma primitiva de comunicação que fornece as bases de que depende, em última instância, a comunicação verbal. Foi-me possível deduzir, a partir de seus sentimentos para comigo quando eu era identificado ao objeto obstrutor, que esse objeto era curioso a respeito dele, paciente, mas, não aguentando ser receptáculo de aspec- tos da personalidade deste último, desfechava, em decorrência disso, ataques destrutivos e despedaçadores (em grande parte através de várias modalidades de estupidez) contra sua capacidade de fazer idendficação projetiva. Desse modo, concluí que a catástrofe decorria dos ataques despedaçadores efetuados contra essa espécie extrema- mente primitiva de elo de ligação entre paciente e analista. 107 C O N C L U S Ã O 91. No caso de certos pacientes, a negativa ao uso normal que eles fazem da identificação projetiva desencadeia um desastre, em virtude da destruição de um importante elo de ligação. É inerente a este desastre a instalação de um superego primitivo que coíbe o uso da identificação projetiva. A pista que conduz a esse desastre é fornecida pelo surgimen- to de alusões, bastante isoladas uma das outras, à curiosidade, arro- gância e estupidez. 108