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Revolução e golpe de Estado - Texto 3

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TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO POR REVOLUÇÃO, REFORMA E 
GOLPE 
Autora: Professora Ana Paula Teixeira Delgado[1] 
 
Resumo 
O objetivo deste artigo é elucidar acerca das transformações do Estado no 
tocante à revolução, à reforma e ao golpe, definindo as principais diferenças 
entre esses fenômenos bem como os seus efeitos do ponto de vista político, 
jurídico e social. 
Palavras-chave: Estado; revolução; reforma; golpe 
 
Introdução 
 
O Estado, enquanto sociedade política, tem por finalidade promover o 
bem comum mediante a criação de condições de vida social que propiciem e 
que sejam capazes de assegurar o desenvolvimento da personalidade dos 
integrantes de seu povo. 
A formação estatal corresponde, assim, a determinada sociedade, 
protagonizada por diversos atores e grupos em determinado contexto histórico, 
o que, por conseguinte, implica o surgimento de novos carecimentos e 
interesses face à evolução da sociedade, que está sujeita a contínuas 
transformações. 
Desta forma, é possível inferir que o Estado não pode ser concebido de 
forma estática, em virtude da dinâmica das mutações vivenciadas pelo seu 
povo. Decerto, quando não se considera tal dinâmica, tem-se um Estado 
obsoleto e ineficaz na consecução de seus propósitos, até alcançar um 
momento crítico de deterioração, no qual o descontentamento popular acentua-
se, conduzindo-o inexoravelmente a transformações por meios violentos ou 
pacíficos. Tais mudanças são traduzidas pelos fenômenos da revolução, da 
reforma e, ainda, do golpe. 
É imperioso ressaltar que o tema merece especial enfoque, em virtude 
da utilização indiscriminada dos referidos conceitos, o que é constatado muitas 
vezes. 
Tal questão adquire ainda maior color, quando se trata de definir as 
principais diferenças entre esses fenômenos e os seus efeitos do ponto de 
vista político, jurídico e social. 
Portanto, passar-se-á ao exame das peculiaridades dessas categorias, 
a fim de propiciar-se o emprego devido de cada uma delas. 
 
1. Revolução 
 
O tema ‘revolução’ é tratado de forma interdisciplinar em virtude das 
enormes repercussões trazidas às sociedades envolvidas, o que acarreta 
desdobramentos no campo político, histórico, social e jurídico. 
Ora tal fenômeno é concebido como a interrupção de um período 
cultural (concepção histórica), ora é visto como mudança violenta das 
instituições políticas do Estado, o que corresponde à sua concepção política. 
Do ponto de vista sociológico, a revolução opera mudanças profundas na 
estrutura da sociedade, alterando o sistema de classes sociais.[2] Sob o 
enfoque jurídico, a revolução constitui uma ruptura com o ordenamento jurídico 
anterior por meio da modificação não legal dos princípios fundamentais da 
ordem constitucional vigente.[3] 
Em suma, constata-se que, seja qual for a concepção adotada, o 
vocábulo ‘revolução’ é utilizado para designar um fenômeno que realiza 
mudanças radicais da estrutura política, jurídica e social. Neste sentido, 
destaca José Ribas Vieira: 
Podemos visualizar que as revoluções devem ser conceituadas e 
compreendidas como um processo de mudança violenta e abrupta, por 
determinadas forças sociais, dos níveis de articulação entre as 
sociedades civil e política em determinadas condições históricas.[4] 
É válido destacar que a qualificação jurídica do movimento está 
condicionada ao seu triunfo. Assim, caso o movimento obtenha êxito, sua 
relevância será político-jurídica; caso contrário, será oposta antijuridicidade à 
sua fundação, revestindo-se de relevância jurídico-penal, como ensina 
Zippelius.[5] 
No tocante à análise da revolução, merecem relevo dois aspectos que 
lhe são inerentes: a ilegalidade e a legitimidade. O primeiro, deve-se ao fato de 
a revolução caracterizar-se pela quebra do princípio da legalidade, uma vez 
que se instaura nova ordem por procedimento não previsto no ordenamento 
jurídico anterior, isto é, há a tomada do poder por meios extralegais e a 
substituição por nova ordem jurídica através da implantação de um poder 
constituinte que compatibilize os preceitos da Carta política revolucionária com 
as reivindicações da sociedade. Cabe ressaltar que, embora a revolução seja 
revestida do caráter de ilegalidade, não significa que os revolucionários não 
possam empregar os instrumentos jurídicos legais do sistema para alcançar 
uma posição de poder institucional. 
O outro aspecto, o da legitimidade, relaciona-se à aceitação fática do 
rompimento brusco do antigo poder e de sua eliminação. A acumulação de 
descontentamentos e decepções, em alto grau, pela sociedade em face de 
graves injustiças perpetradas pelo regime anterior, acabam por destituí-lo de 
apoio popular e, por conseguinte, de autoridade. Desta forma, a revolução 
almeja destruir uma ordem de coisas tida como injusta, para impor a edificação 
de nova estrutura capaz de levar ao progresso e atender aos reclamos sociais, 
revestindo-se, por conseguinte, de apoio popular. 
O processo revolucionário é desencadeado, assim, pela acumulação 
de impugnações da ordem de valores impostos, culminando inexoravelmente 
em um momento crítico de tomada do poder. Não é possível identificar 
precisamente a ocasião exata em que a revolução começa e termina, 
compreendendo um processo que comporta basicamente três fases: o período 
pré-revolucionário ou de fermentação, no qual há uma série de distúrbios 
sociais, o período revolucionário propriamente dito ou de crise, representado, 
em geral, pela atuação do movimento armado e pela tomada do poder; e o 
período pós-revolucionário, caracterizado por ser a fase de ascensão do novo 
poder, que vai se alicerçando, para se tornar o novo fundamento da legalidade. 
Entende-se que, mesmo após a ruptura revolucionária, certos atos 
praticados pelo Estado anteriormente devem seguir válidos em seus efeitos no 
regime superveniente, em razão do princípio da continuidade do Estado, a 
exemplo das obrigações internacionais anteriormente assumidas, que 
necessitam ser cumpridas.[6] 
Cumpre destacar que, uma vez consumada a revolução, é preciso que 
a ordem, a paz e a segurança sejam restauradas, a fim de que o poder estatal 
se afirme e possa implementar as promessas que objetivava ao deflagrar a 
revolução; caso contrário, o novo poder estará apenas beneficiando a classe 
revolucionária em detrimento de todo o povo, o que pode culminar em regime 
ditatorial, como testemunhou algumas vezes a História. 
 
2. Golpe 
 
Observam-se muitas vezes imprecisões no emprego dos conceitos 
‘golpe’ e ‘revolução’. Ocorre que se verifica constantemente a utilização da 
expressão ‘revolução’ para designar o que, na realidade, corresponderia a 
golpe de Estado. Esse uso se dá em razão do prestígio de que se reveste 
tradicionalmente o vocábulo ‘revolução’, em contraposição à conotação 
negativa atribuída ao vocábulo ‘golpe’. Tal fato pode ser comprovado sobretudo 
nos países da América Latina e nos do continente africano, onde os golpes 
tiveram lugar, com maior freqüência, no século passado, em virtude da 
instabilidade das instituições políticas e sociais, que não permitiram o emprego 
normal dos mecanismos constitucionais de continuidade do poder. 
Paulo Bonavides, ao sistematizar a distinção entre golpe e revolução, 
presta o seguinte esclarecimento: “O golpe de Estado bem sucedido não raro 
se veste também da roupagem de revolução; malgrado se reduz, no entanto a 
um crime político de alta traição.”[7] 
Embora ambos os termos possuam aparentemente similitudes – 
tomada de poder por meios violentos não previstos no sistema jurídico estatal, 
com a violação do sistema jurídico constitucional –, vislumbram-se limites ao 
seu emprego em face da análise de características que os tornam nitidamente 
distintos. 
O golpe é concebido como tomada de poder por meios 
ilegais.[8] Diferentemente da revolução, ogolpe parte de um segmento 
específico, que é composto, em geral, por integrantes do próprio poder, os 
quais, por já estarem investidos das funções estatais, contam com melhores 
condições de imobilizar mais rapidamente a reação do governo, usurpando-lhe 
o poder. Já a revolução advém do próprio povo, o que lhe confere o caráter de 
legitimidade. 
Podem ser destacados outros traços distintivos entre o golpe e a 
revolução, como o fato de o primeiro se fazer contra a pessoa do governante e 
de seu modo de governar, traduzindo o interesse de um grupo restrito ou do 
próprio líder, ao passo que a revolução resulta do alto grau de insatisfação com 
os atos tidos como injustos, perpetrados pelo sistema. Assim, com a revolução, 
almeja-se modificar não somente o governo, mas os próprios fundamentos do 
Estado e de suas instituições, tendo como prevalência o interesse da 
coletividade e não a satisfação de número limitado de pessoas. Disso se 
conclui que a revolução é um processo que se reveste de legitimidade, ao 
passo que o golpe é simultaneamente ilegal e ilegítimo. 
Cabe mencionar ainda que, no golpe, não há transformações 
substanciais no âmago da organização social, tal como ocorre na revolução, 
operando apenas algumas mudanças que não implicam o total rompimento 
com a antiga ordem social. 
Outrossim, cumpre destacar a afirmação de Tocqueville ao referir-se ao 
legado das revoluções: 
A revolução segue, no entanto seu curso: à medida que se vê 
aparecer a cabeça do monstro, que sua fisionomia singular e terrível vai-
se descobrindo, que após ter destruído as instituições políticas, suprime 
e muda, em seguida, as leis, os usos e costumes e até a língua: quando, 
após ter arruinado a estrutura do governo, mexe nos fundamentos da 
sociedade e parece querer agredir até Deus.[9] 
Constata-se assim, que, na revolução, há mudanças viscerais na 
sociedade, na ideologia e no sistema político, deixando marcas profundas, o 
que parece não ocorrer no golpe de Estado, visto que este tem o condão de 
operar apenas algumas reformas, incapazes de trazer alterações na estrutura 
da sociedade, a saber, a aparição de nova organização político-jurídica, de 
novo sistema de classes sociais e o surgimento de novas instituições. 
 
3. Reforma 
 
Constitui a reforma um modo de reestruturação do Estado através de 
meios pacíficos, em que são tomadas medidas econômicas, sociais e políticas 
com o intuito de solucionar uma grave crise social. 
Através da reforma pretende-se solucionar delicados problemas com 
base em consenso entre o poder estatal e as classes sociais ressentidas, 
restabelecendo-se um diálogo que propiciará a retomada de confiança pelos 
diversos segmentos descontentes em relação ao Estado. 
Destarte, pela reforma, evita-se o emprego de meios violentos 
utilizados na dinâmica revolucionária, capazes de expor o povo a situações de 
desordem e de insegurança, além de resguardá-lo do caráter de 
imprevisibilidade de suas conseqüências. 
Enquanto na revolução há queda de toda uma ordem jurídica de forma 
abrupta, pela reforma, o Estado evolui prudentemente, ao adotar políticas 
capazes de corrigir as imperfeições do sistema, sem que ocorram mudanças 
violentas, capazes de levar à queda das instituições e à ruptura com a ordem 
vigente. 
 
Conclusão 
 
A apreciação da temática das transformações do Estado mediante a 
revolução, a reforma e o golpe na esfera dos estudos políticos revela que há 
limites substanciais ao emprego dessas categorias, embora comumente 
observem-se equívocos acerca do tema. 
É preciso registrar que a revolução constitui um modo de 
transformação do Estado, em que se edifica nova ordem político-jurídica e 
social com largo apoio do povo, em substituição a uma ordem considerada 
injusta e obsoleta, incapaz de trazer benefícios à sociedade. 
A revolução é, portanto, o poder de fato que a sociedade possui de 
subverter a ordem jurídica vigente e instaurar novo direito positivo, assentado 
em instituições inovadoras e em novo modelo de organização social e política, 
quando a crise constitucional alcança patamares insuportáveis. 
Conclui-se assim, que o processo revolucionário opera mudanças 
abruptas na sociedade, distintamente da chamada reforma, na qual se almeja 
corrigir as imperfeições do sistema por meios pacíficos e legais, objetivando-se 
preservar a sociedade dos efeitos imprevisíveis da revolução. 
Por derradeiro, o golpe associa-se à atuação de um segmento 
integrante, em geral, do próprio governo, que, movido por interesses próprios, 
neutraliza a ação do Governo, tomando-lhe o poder, sem desencadear 
mudanças profundas nas raízes do sistema. 
 
Referências bibliográficas 
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Teoria do Estado e Ciência Política. São 
Paulo: Saraiva, 1995. 
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros . 1997. 
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado, São Paulo: 
Saraiva, 1995. 
DELGADO, Ana Paula Teixeira. O direito ao desenvolvimento na perspectiva 
da globalização: paradoxos e desafios. Rio de janeiro:Renovar, 2001. 
MALUF, Sahyd. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Saraiva, 1991. 
MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de direito internacional público. Rio 
de Janeiro: Renovar, 2003 
MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica 
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 
TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. São Paulo: 
Hucitec, 1989 
VIEIRA, José Ribas. O autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil. 
Rio de janeiro: Renovar, 1997 
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Lisboa: Fundação Callouste 
Gulbenkian, 1997. 
 
 
[1]Mestre em Direito pela UGF, bacharel em Direito pela UFRJ. Professora de 
Direito Internacional e de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá, 
da Faculdade Moraes Júnior/Mackenzie, do Centro Universitário da Cidade. 
Advogada. 
[2] BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 1999, p.408. 
[3] ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Lisboa: Callouste 
Gulbenkian, 1997, p.191. 
[4] VIEIRA, José Ribas. O autoritarismo e a ordem constitucional no Brasil. 
Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.32. 
[5] Op. cit., p.191. 
[6] MELLO, Celso de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, v.1, p.394. 
[7] Op.cit., p.424. 
[8] Ibid, p.421. 
[9] TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. São Paulo: 
Hucitec, 1989, p.52. 
 
*Disponível em 
http://www.direitopositivo.com.br/modules.php?name=Artigos&file=display&jid=
39. Acessado em 26.05.2013.

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