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NOTA SOBRE O INCESTO

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NOTA SOBRE O INCESTO
 Darlene Vianna Gaudio Angelo Tronquoy
No dicionário (Houaiss) a palavra incesto quer dizer “relação sexual entre parentes (consangüíneos ou afins) dentro dos graus em que a lei, a moral ou a religião proíbe ou condena o casamento”. Há também, no dicionário, o sentido que indica “aquilo que não é puro”, que é “torpe, obsceno”. É, da mesma forma, o que nomeia “a relação sexual entre pessoas unidas por um elo espiritual”. E esses são os significados que comumente se dá a esse termo.
Entretanto, com a psicanálise, vimos a noção de incesto ampliar-se. Em seu texto Totem e Tabu, por exemplo, Freud dá a este um lugar fundamental. O incesto, a partir de então, deixa de significar somente um ato julgado condenável ou obsceno, e passa a ser, nada mais nada menos, algo que tem alcance de Lei, da Lei maior e mais antiga, que funda mesmo a civilização: a Lei da proibição do incesto, porque este surge justamente com a sua proibição. “A lei é que faz o pecado”, tal é a máxima de São Paulo que exprime o que está aí em jogo.
Nesse texto – Totem e Tabu� – Freud constrói um mito� como tentativa de esclarecer, de dizer algo a respeito da origem da humanidade. E eis que a situa justamente num interdito simbólico que definitivamente arranca o homem do Reino da Natureza e a lança – sua origem – no campo da Linguagem. A “humanidade”, pois, introduz uma ruptura entre natureza e cultura, e passa a depender das leis desta última, das leis da linguagem, portanto. Nesse sentido, o incesto e seu interdito não mais se reduzem a um ato específico, que tampouco precisa ser realizado, efetivado na realidade. Aliás, na maior parte dos casos, as tentativas de efetivá-lo se dão por condutas simbólicas. Essa Lei então se refere ao fato de que numa dada cultura existe sempre pelo menos alguma coisa, um objeto, ao qual não se tem acesso, um objeto que antes de ser proibido é, sobretudo, impossível de ser alcançado. Isso pode variar conforme a cultura. A proibição pode recair sobre objetos diversos. Mas a figura que melhor o encarna poderíamos denominá-la de A Mãe; isso se pudermos supor que A Mãe é idêntica, é equivalente ao desejo primordial que acolhe uma criança quando de sua entrada no mundo, portanto, trata-se, esse desejo, de seu primeiro objeto. Daí podemos igualmente dizer que o primeiro objeto infantil é o de se fazer objeto face a esse desejo. Admitindo isso podemos então definir o incesto como a tentativa de fazer Um, um só com esse objeto. 
Mas vejamos: é justamente sobre ele que recai a proibição primordial. Entre os povos primitivos constatou-se, inclusive, que a transgressão da lei que proíbe um determinado objeto convoca as mais terríveis punições: paga-se com a vida, ou com pedaços do corpo, tal é o horror que o incesto provoca entre os humanos, os seres que falam, “primitivos” ou “civilizados”. Porém, o fato de haver entre os homens esse horror ao incesto, isto não implica que a proibição terá eficácia em todos os casos. Muito pelo contrário, uma certa inclinação a fazer um com o objeto primitivo – e já perdido desde sempre – conviverá, no inconsciente (e esta é a cena do inconsciente por excelência, aquela que permite todo tipo de contradição) com a repulsa e o horror. Isso é assim para todos. Além disso, o humano, porque é falante, porque freqüenta o campo da linguagem, pode usar de artifícios, de artimanhas inúmeras, disfarces e deformações para experimentar deste impossível: a união paradisíaca com A Mãe. E se o interdito não é eficaz para ninguém, ou mesmo inexistente para alguns, é porque dependemos de uma função, a função que separa a criança deste objeto ao mesmo tempo fascinante e horroroso, que deverá vir de fora, do campo simbólico que antecede e ultrapassa a existência real da criança e sua mãe. Trata-se da intromissão aí de um terceiro em posição de barrar tanto a mãe quanto a criança. Esta é a função que a psicanálise nomeou Função Paterna. 
O problema é que ela pode faltar. E mais problemático ainda é o fato de que esse objeto, sua presença maciça é mortífera para o sujeito, ou seja, não há constituição do sujeito, em sua dignidade de humano, de cidadão até, se não houver uma separação suficiente em relação ao objeto incestuoso. Pois que é no intervalo entre um e outro, entre a mãe e a criança, se quisermos, que nasce a possibilidade do desejo. E o desejo é a própria dignidade, ela mesma, pois o sujeito não é o pedaço de carne que dá conta de nossa fisiologia. Ele, o desejo, é quem responde pelo nascimento do sujeito na existência, o que não é pouca coisa.
Para que essa experiência possa ser apreendida de maneira mais clara, façamos um exercício: o de evocar em nossas próprias lembranças o quanto a presença avassaladora de um outro que presumidamente pensa, fala, e age “por nós” é angustiante, a tal ponto que chegamos a vivenciar situações limites cuja máxima expressão é “ou eu ou o outro”. Se não há, então, o vigor da lei simbólica que interdita o incesto, o sujeito terá que passar toda a sua vida tentando dele se livrar. Talvez os atos mais violentos e cruéis estejam, de alguma maneira, ligados à tentativa de eliminá-lo. Inclusive a crueldade que cometemos contra nós mesmos. Pois muitas vezes ele diz respeito a uma parte de nosso próprio corpo que, um dia, sem que nos déssemos conta, supusemos ser o objeto precioso capaz de apaziguar o apetite daquele de quem dependíamos.
Teremos oportunidade de voltar a esse assunto. Mas antes é preciso dizer que esta Lei, eminentemente simbólica – inclusive não é necessário, para que se transmita, que conste no código de leis – precisa de tempos, de condições lógicas, para inscrever-se para cada criança que vem ao mundo. Num primeiro momento, depende diretamente daqueles que dela cuidam. Num segundo momento, contudo, necessita de sua ratificação pelo social através das instituições que o sustentam.
Mas o que dizer de um tempo onde a máxima é consumir sem limites e viver sem fronteiras? O quê ou quem poderá, sob esta nova ética, sustentar a função de limite e de Referências tão caras ao devir de novas gerações? 
�	 FREUD, S. Obras Completas. Rio de janeiro: Imago, Vol. XXI. 
�	 O mito é toda narrativa construída para se tentar dar conta daquilo ao que não se tem acesso a partir da experiência sensível tal como as questões sobre a origem e a morte.

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