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TEXTO COMPLEMENTAR 
 
Disciplina: Língua e Cultura Latinas 
Professor: Marcia Selivon 
 
 
 
 
Caos das Incertezas 
 Bruno Fregni Bassetto * 
Os estudos etimológicos são objetivos, porque buscam explicar a razão de 
uma palavra ter a forma e o significado que apresenta no léxico de uma língua. 
Requer conhecimentos vários. |Na história encontram-se autores que tentaram o 
caminho da etimologia, mas a ciência etimológica só se firmou com credibilidade 
nos tempos modernos. As obras do romano Festus e Isidoro de Sevilha (560- 
636), com suas conhecidas Etymologiae, por exemplo, têm valor pelas 
informações apresentadas, mas faltam-lhes o rigor científico e critérios seguros; 
não dispunham também do conhecimento da evolução normal das línguas, dos 
diversos troncos linguísticos. 
Mesmo atualmente, filólogos levam por vezes anos até concluir a pesquisa 
da etimologia de uma palavra, como Ramón Menéndez Pidal, que levou uma 
década para chegar ao étimo da palavra “penha”. Com o Renascimento, grandes 
filólogos redescobriram os tesouros das línguas clássicas, base da cultura 
ocidental, surgindo maior interesse pelo aspecto etimológico das línguas 
modernas. 
Grande impulso foi dado pelo conhecimento do sânscrito e do indo-
europeu, a partir da contribuição de W. Jones, falecido em 1794, e de Franz 
Bopp (1791-1867). Com esses novos conhecimentos foi possível estabelecer os 
étimos comuns da grande família indo-europeia, esclarecer os do latim e, com 
isso, também os das línguas românicas. De toda essa evolução, ficou patente 
que o aspecto fundamental é o semântico, ponto de referência em qualquer 
estudo linguístico e particularmente no etimológico. 
Como age o etimologista 
Numa perspectiva histórica, o etimologista vai encontrar três tipos de 
formas: as herdadas, as semi-eruditas e as eruditas. Herdadas são as que 
provêm naturalmente da fala do povo, com mutações fonéticas mais profundas, 
diversas segundo as Regiões do Império Romano e influenciadas pelos fatores 
do substrato, do superstrato e dos adstratos. 
As semi-eruditas foram inicialmente introduzidas por via culta, passando 
depois ao uso popular e sofrendo alterações fonéticas e não raro semânticas, 
segundo as tendências da língua. 
Eruditas são as palavras transplantadas diretamente do latim, sem 
qualquer modificação fonética ou semântica, embora possam designar algo 
restrito. 
Assim, do latim macula provieram em português: 
a) Mancha (maculam, “nódoa”, “desonra”, > macula > macla > mancha), 
com o mesmo conteúdo semântico do latim macula; essa é forma herdada. 
 
 
b) Malha (macula > macla > malha, sem a nasalação do /-a-/ pelo /m-/, 
fenômeno denominado prolação, uma característica do português), significando 
“sinal natural, de coloração diferente, na pele ou no pelo dos animais”, “mancha”, 
de onde a impressão de “mancha”; em vaca malhada, isto é, “manchada”, há a 
ligação semântica com o étimo latino. Houve a influência do provençal e do 
francês maille, também do latim macula , para o significado de “cada um dos 
anéis, voltas, laçadas de um fio têxtil, com intervalos mais ou tônicamenos 
abertos”, donde malha, peça de roupa. 
c) De uma variante do latim vulgar *mancla proveio mangra, outra forma 
divergente, significando “doença causada pela umidade nas plantas”; a relação 
semântica com o étimo latino está na impressão de “mancha” causada nas 
plantas. 
 
 Essas três formas são herdadas, tendo sofrido as mutações fonéticas 
normais na boca do povo. No século 14, portanto em época mais tardia, 
registrou-se mágoa, igualmente proveniente de macula. 
 O latim macula, empregado em situações cultas e passando depois 
para a linguagem falada, sofreu mutações fonéticas próprias da época: macula > 
magula > magua > mágoa, isto é, com a sonorização da surda intervocálica (/-c-/ 
> /-g-/) e a síncope do /-l-/ intervocálico, mas sem a síncope da pós-tônica, fato 
corrente e normal com os proparoxítonos das palavras herdadas. Por isso é 
considerada palavra semi-erudita. (...) por fim, em 1589, devido ao 
Renascimento, registrou-se a forma erudita, igual à latina tanto formal como 
semanticamente, mácula, ainda que com uso mais restrito de mancha no sentido 
moral. 
Entretanto, com relativa frequência, há confluência de formas homônimas 
de étimos diferentes, resultando significados diversos. Assim, temos em 
português malha, “ação de malhar”, “espancar”, isto é, “bater com o malho” 
registrado em português em 1417. Malho vem do latim malleus, “martelo”, 
“malho”; são seus derivados malha, malhada, malhar, malhação. Embora pouco 
usado, há ainda o termo malha, com o sentido de “cabana”, “choça”, “malhada”, 
habitação rústica”, abrigo sobretudo de pastores, cujo étimo é o lat. magalia, -
ium, com o mesmo significado. 
Homonímia 
Casos como o de “malha” (peça de roupa x ação de malhar), de 
homonímia (palavras iguais na forma, mas de significados diferentes), expressam 
situação diferente do que se denomina polissemia. São dois aspectos 
semânticos, importantes nos estudos etimilógicos. Sem acurado trabalho 
investigativo não é fácil distinguir os casos de homonímia. 
As formas homônimas podem ser iguais por confluência resultante das 
mutações fonéticas, como lat. sanctum> port. são; lat. sunt> port. são (verbo); 
lat. sanum> port. são (sadio), o que acontece geralmente com palavras latinas. 
As formas homônimas podem ainda se originar de empréstimos 
estrangeiros, como latim manica , “parte da veste que vinha até ou cobria as 
mãos” (manicam >manica>maniga>manga); relacionada a essa origem é a 
acepção de “cercado”, “estacada em forma de funil que leva o gado ao curral”, 
advinda da linguagem militar, na qual tinha o sentido de “mão armada”. Há ainda 
manga, a fruta de origem tâmul mankay, que nos veio do malaio manga. Pelo 
 
 
contexto, o etimologista verifica o significado e por ele busca o respectivo étimo e 
sua possível evolução. 
Polissemia 
Polissemia é o fato de uma palavra ter um étimo único, mas aplicado em 
várias acepções, devendo, porém, manter sempre alguma relação com seu 
significado primeiro. Essa aplicação pode ser por ampliação ou restrição 
semântica, metonímia, metáfora, analogia. 
Uma palavra de uso corriqueiro como “ponto” tem seu étimo no particípio 
passado ou supino punctum, do verbo latino pungo, pupugi, pungere , “picar”, 
“espetar”, como o fazem os insetos ou os espinhos. Dessa forma nominal do 
verbo formou-se o substantivo punctum, com o sentido de “picada”. Esse é o 
étimo, pelo menos até onde foi possível chegar com as pesquisas etimológicas. 
Nota-se que já em latim houve metonímia pela relação causa-efeito: a 
picada e o resultado dela, o furo na pele ou o “pontinho” vermelho. O aspecto 
desse “ponto” vai permitir que seja aplicado a tudo aquilo que tiver com ele 
qualquer tipo de relação real, lógica, figurada ou imaginária, geralmente de fácil 
identificação. Podem ser observadas as seguintes aplicações no português: 
ponto de encontro, de ônibus, os vários pontos do bordado, ponto de apoio, de 
honra, de vista ponto cardeal, ponto morto; em ponto, ponto final, de exclamação 
; ponto e vírgula, dois pontos; cortar o ponto, dormir no ponto, entregar os 
pontos, passar o ponto; o assunto de uma exposição (por exemplo, o ponto desta 
exposição é a etimologia) ou aula, os itens de um concurso... 
Com um bom dicionário é possível ampliar a lista. Em todos esses 
empregos, há algo fundamental que torna essas expressões compreensíveis, o 
caráter restrito do conteúdo semântico da palavra “ponto”, oposto a “traço”, por 
exemplo; recorde-se que o código Morse se baseia nesses dois conceitos. 
(texto adaptado da Revista Língua Portuguesa Especial- Etimologia: as 
origens do cotidiano) 
*Bruno Fregni Bassetto é filólogo e professor de filologia românica do 
Departamento de Letras Clássicase Vernáculas da FFLCH, da USP. É auto de 
Elementos de Filologia Românica (Edusp, 2001),prêmio Jabuti em 2002. vra 
ter a forma e o significado que apresenta no léxico de uma língua. Requer 
conhecimentos vários. |Na história encontram-se autores que tentaram o 
caminho da etimologia, mas a ciência etimológica só se firmou com credibilidade 
nos tempos modernos. As obras do romano Festus e Isidoro de Sevilha (560- 
636), com suas conhecidas Etymologiae, por exemplo, têm valor pelas 
informações apresentadas, mas faltam-lhes o rigor científico e critérios seguros; 
não dispunham também do conhecimento da evolução normal das línguas, dos 
diversos troncos linguísticos. 
Mesmo atualmente, filólogos levam por vezes anos até concluir a pesquisa 
da etimologia de uma palavra, como Ramón Menéndez Pidal, que levou uma 
década para chegar ao étimo da palavra “penha”. Com o Renascimento, grandes 
filólogos redescobriram os tesouros das línguas clássicas, base da cultura 
ocidental, surgindo maior interesse pelo aspecto etimológico das línguas 
modernas. 
Grande impulso foi dado pelo conhecimento do sânscrito e do indo-
europeu, a partir da contribuição de W. Jones, falecido em 1794, e de Franz 
Bopp (1791-1867). Com esses novos conhecimentos foi possível estabelecer os 
étimos comuns da grande família indo-europeia, esclarecer os do latim e, com 
 
 
isso, também os das línguas românicas. De toda essa evolução, ficou patente 
que o aspecto fundamental é o semântico, ponto de referência em qualquer 
estudo linguístico e particularmente no etimológico. 
Como age o etimologista 
Numa perspectiva histórica, o etimologista vai encontrar três tipos de 
formas: as herdadas, as semi-eruditas e as eruditas. Herdadas são as que 
provêm naturalmente da fala do povo, com mutações fonéticas mais profundas, 
diversas segundo as Regiões do Império Romano e influenciadas pelos fatores 
do substrato, do superstrato e dos adstratos. 
As semi-eruditas foram inicialmente introduzidas por via culta, passando 
depois ao uso popular e sofrendo alterações fonéticas e não raro semânticas, 
segundo as tendências da língua. 
Eruditas são as palavras transplantadas diretamente do latim, sem 
qualquer modificação fonética ou semântica, embora possam designar algo 
restrito. 
Assim, do latim macula provieram em português: 
a) Mancha (maculam, “nódoa”, “desonra”, > macula > macla > mancha), com o 
mesmo conteúdo semântico do latim macula; essa é forma herdada. 
b) Malha (macula > macla > malha, sem a nasalação do /-a-/ pelo /m-/, fenômeno 
denominado prolação, uma característica do português), significando “sinal 
natural, de coloração diferente, na pele ou no pelo dos animais”, “mancha”, de 
onde a impressão de “mancha”; em vaca malhada, isto é, “manchada”, há a 
ligação semântica com o étimo latino. Houve a influência do provençal e do 
francês maille, também do latim macula , para o significado de “cada um dos 
anéis, voltas, laçadas de um fio têxtil, com intervalos mais ou tônicamenos 
abertos”, donde malha, peça de roupa. 
c) De uma variante do latim vulgar *mancla proveio mangra, outra forma divergente, 
significando “doença causada pela umidade nas plantas”; a relação semântica 
com o étimo latino está na impressão de “mancha” causada nas plantas. 
 
 Essas três formas são herdadas, tendo sofrido as mutações fonéticas 
normais na boca do povo. No século 14, portanto em época mais tardia, 
registrou-se mágoa, igualmente proveniente de macula. 
 O latim macula, empregado em situações cultas e passando depois para a 
linguagem falada, sofreu mutações fonéticas próprias da época: macula > 
magula > magua > mágoa, isto é, com a sonorização da surda intervocálica (/-c-/ 
> /-g-/) e a síncope do /-l-/ intervocálico, mas sem a síncope da pós-tônica, fato 
corrente e normal com os proparoxítonos das palavras herdadas. Por isso é 
considerada palavra semi-erudita. (...) por fim, em 1589, devido ao 
Renascimento, registrou-se a forma erudita, igual à latina tanto formal como 
semanticamente, mácula, ainda que com uso mais restrito de mancha no sentido 
moral. 
Entretanto, com relativa frequência, há confluência de formas homônimas 
de étimos diferentes, resultando significados diversos. Assim, temos em 
português malha, “ação de malhar”, “espancar”, isto é, “bater com o malho” 
registrado em português em 1417. Malho vem do latim malleus, “martelo”, 
“malho”; são seus derivados malha, malhada, malhar, malhação. Embora pouco 
usado, há ainda o termo malha, com o sentido de “cabana”, “choça”, “malhada”, 
 
 
habitação rústica”, abrigo sobretudo de pastores, cujo étimo é o lat. magalia, -
ium, com o mesmo significado. 
Homonímia 
Casos como o de “malha” (peça de roupa x ação de malhar), de 
homonímia (palavras iguais na forma, mas de significados diferentes), expressam 
situação diferente do que se denomina polissemia. São dois aspectos 
semânticos, importantes nos estudos etimilógicos. Sem acurado trabalho 
investigativo não é fácil distinguir os casos de homonímia. 
As formas homônimas podem ser iguais por confluência resultante das 
mutações fonéticas, como lat. sanctum> port. são; lat. sunt> port. são (verbo); 
lat. sanum> port. são (sadio), o que acontece geralmente com palavras latinas. 
As formas homônimas podem ainda se originar de empréstimos 
estrangeiros, como latim manica , “parte da veste que vinha até ou cobria as 
mãos” (manicam >manica>maniga>manga); relacionada a essa origem é a 
acepção de “cercado”, “estacada em forma de funil que leva o gado ao curral”, 
advinda da linguagem militar, na qual tinha o sentido de “mão armada”. Há ainda 
manga, a fruta de origem tâmul mankay, que nos veio do malaio manga. Pelo 
contexto, o etimologista verifica o significado e por ele busca o respectivo étimo e 
sua possível evolução. 
Polissemia 
Polissemia é o fato de uma palavra ter um étimo único, mas aplicado em 
várias acepções, devendo, porém, manter sempre alguma relação com seu 
significado primeiro. Essa aplicação pode ser por ampliação ou restrição 
semântica, metonímia, metáfora, analogia. 
Uma palavra de uso corriqueiro como “ponto” tem seu étimo no particípio 
passado ou supino punctum, do verbo latino pungo, pupugi, pungere , “picar”, 
“espetar”, como o fazem os insetos ou os espinhos. Dessa forma nominal do 
verbo formou-se o substantivo punctum, com o sentido de “picada”. Esse é o 
étimo, pelo menos até onde foi possível chegar com as pesquisas etimológicas. 
Nota-se que já em latim houve metonímia pela relação causa-efeito: a 
picada e o resultado dela, o furo na pele ou o “pontinho” vermelho. O aspecto 
desse “ponto” vai permitir que seja aplicado a tudo aquilo que tiver com ele 
qualquer tipo de relação real, lógica, figurada ou imaginária, geralmente de fácil 
identificação. Podem ser observadas as seguintes aplicações no português: 
ponto de encontro, de ônibus, os vários pontos do bordado, ponto de apoio, de 
honra, de vista ponto cardeal, ponto morto; em ponto, ponto final, de exclamação 
; ponto e vírgula, dois pontos; cortar o ponto, dormir no ponto, entregar os 
pontos, passar o ponto; o assunto de uma exposição (por exemplo, o ponto desta 
exposição é a etimologia) ou aula, os itens de um concurso... 
Com um bom dicionário é possível ampliar a lista. Em todos esses 
empregos, há algo fundamental que torna essas expressões compreensíveis, o 
caráter restrito do conteúdo semântico da palavra “ponto”, oposto a “traço”, por 
exemplo; recorde-se que o código Morse se baseia nesses dois conceitos. 
(texto adaptado da Revista Língua Portuguesa Especial- Etimologia: as origens 
do cotidiano) 
*Bruno Fregni Bassetto é filólogo e professor de filologia românica do Departamento de Letras 
Clássicas e Vernáculas da FFLCH, da USP. É auto de Elementos de Filologia Românica (Edusp, 
2001),prêmio Jabuti em 2002.

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