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1 UNIDADE II - O DIREITO NO ORIENTE ANTIGO: MESOPOTÂMIA, EGITO E DIREITO HEBRAICO Ad usum privatum Prof Dr. Frederico Martins (Esquemas de aulas conforme bibliografia) 1. INTRODUÇÃO É preciso a verificação de elementos de transição na sociedade e no direito Não é possível separar, em qualquer momento histórico a modificação da sociedade e a evolução no direito. A simples descrição de textos jurídicos e instituições judiciárias não é suficiente para que se possa aferir o real significados das manifestações do direito que surgem ao longo do tempo. É preciso buscar elementos fundamentais de cada civilização e, a partir deste estudo passar ao estudo do direito propriamente dito. Não há direito fora da sociedade. E não há sociedade fora da história. Três fatores históricos marcam a transição das formas arcaicas de sociedade para as primeiras civilizações da Antiguidade: 1. O surgimento das cidades; 2. A invenção e domínio da escrita; 3. O advento do comércio; CIDADE: é possível identificar suas origens no período paleolítico. Um lugar cívico, de satisfação do homem no plano coletivo. Desvinculado de aspectos como sobrevivência, alimentação e proteção contra um ambiente hostil. Isto numa visão que supera o aspecto utilitarista da origem das cidades; Com a organização em aldeias, resultantes da sedentarização no território, que passa a ser cultivado, vai se aproximando a idéia moderna de cidade. Isso ocorreu na Mesopotâmia. (μέσος – ποταμός -Terra entre dois rios) Atual Iraque e terras próximas. Esta formação da cidade na Mesopotâmia foi o termo final de um processo lento de destribalização que se estendeu pela maior parte do quarto milênio da era pré-cristã. Na Baixa Mesopotâmia, às margens do rio Eufrates, mais próxima ao Golfo Pérsico se tinha 5 cidades nos aos 3100-2900 a.C.: Eridu, Badtibira, Sippar, Larak e Shuruppak. No período subseqüente, chamado de dinástico, são mencionadas outras mais. Estrutura tríplice: 1. A cidade propriamente dita, cercada por muralhas (com locais de culto e as células dos futuros palácios reais; 2. Um “subúrbio”, extramuros (com residências e instalações para plantio e criação de animais. 3. O porto fluvial (comércio e instalação de estrangeiros, com admissão vedada nos muros da cidade). A ESCRITA: o processo de invenção e consolidação da escrita está ligado ao surgimento das cidades É na Mesopotâmia que se manifesta a primeira escrita mais complexa, com maior número de sinais e com aspectos ideográficos e fonéticos: a escrita cuneiforme. Forma de “cunha”. 3100 a.C. A simples transmissão oral da cultura começa a se tornar insuficiente para preservação da memória, que já possuem uma estrutura religiosa, política e econômica. Passagem do verba volant para scripta manent. O COMÉRCIO: se tornará elemento fundamental na consolidação das civilizações da Mesopotâmia e Egito. Origem está na divisão do trabalho gerada pela apropriação individual dos produtos antes distribuídos no sei da comunidade. Com a retenção do excedente, a criação de uma camada de comerciantes e a atribuição de valor a determinados bens. Nasce a distinção rico-pobre (Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado) A síntese desses três elementos, cidades, escrita e comércio, representa a derrocada de uma sociedade fechada, organizada em tribos, influenciada por aspectos místicos ou religiosos. Há nessas um direito ainda incipiente, bastante concreto, cognoscível pelo costume e que se confunde com a própria religião. Aos pouco se constrói uma nova sociedade, urbana, arberta a trocas materiais e intercâmbio de experiências políticas que demandará um novo direito. Isso ocorrerá na Mesopotâmia e no Egito. 2 2. MESOPOTÂMIA E EGITO: ASPECTOS GEOGRÁFICOS, POLÍTICOS E ECONÔMICOS Existem indícios de existência humana na Mesopotâmia e Egito já na Era Neolítica (7000ª.C. na Mesopotâmia e 5500 a.C. no Egito). Ambas urbanizam-se e adotam a escrita em períodos próximos. Mesopotâmia 3100 a.C. e no Egito entre 3100 e 3000 a.C. Fontes indicam processos autônomos. Geografia: As duas regiões situadas no Oriente Próximo. Vantagem da proximidade de bacias hidrográficas, ao contrário de povos que precisavam manter-se em território litorâneo, desértico ou montanhoso, como os da Fenícia, Síria, Palestina ou Pérsia. Formaram suas civilizações em torno dos rios Tigre, Eufrates e Nilo. Isso propicia solo bom para a agricultura, navegação fluvial, essencial para transporte de mercadorias e sofisticação do comércio. No Egito a regularidade do Rio gera crença na imortalidade, já na Mesopotâmia pela irregularidade do clima e dos rios não. Política: Ambas a monarquia como forma de governo. No Egito a monarquia era unificada, com poder central bem definido, titularizado pelo Faraó e com capital instalada em determinada cidade do Reino. Na Mesopotâmia: desde o início optou-se pela fundação de cidades com alto grau de independência. Todas essas cidades possuíam soberanos e divindades próprios. No Egito o monarca não representa a divindade mas é o próprio deus. (teofania- per-aa: a grande casa, ou palácio – rei-deus, encarnação do deus Hórus. Na Mesopotâmia com a instabilidade natural era impossível fundar a dominação do rei com base na assunção de uma divindade. A monarquia assumiu um caráter mais humano. O rei era representante de deus (divindade escolhida pela cidade) na terra. Economia: utilização do solo para plantio e o crescente emprego da navegação como meio de transporte de mercadorias. O Egito era rico de produtos minerais: ouro, cobre, ametista e granito para construção e pobre em madeira, importada da Fenícia. A Mesopotâmia era carente de minerais, com exceção do cobre e o solo, ainda que fértil, apresentava problemas quanto á dificuldade de drenagem. As cidades da Mesopotâmia dependiam do comércio mais que o povos do antigo Egito, o que terá reflexo no direito privado das civilizações. 3. A VIGÊNCIA DO DIREITO Em ambos o direito possui uma característica que é a idéia de revelação divina. Era necessário um conjunto de leis escritas, que desse previsibilidade às ações no campo privado, que estipulasse algum tipo de tribunal ou juiz para resolver controvérsias e que fosse inteiramente seguido em toda a extensão do reino para o qual se destinava. O código de Hammurabi é exemplo do direito ainda pautado na revelação: no prólogo fica explicitado o conjunto de leis oferecido ao povo da Babilônia pelo deus Samas, por intermédio do rei Hammurabi, e não por decisão dele. Trecho: “Hammurabi, ao publicar o seu código, quer satisfazer a Samas, deus da justiça, fazer resplandecer o direito no país, arruinar o mau e o malfeitor, impedir o que forte maltrate o fraco.” A justiça aqui identifica-se com a vontade dos deuses, cujas razões escapam à compreensão dos homens: e estes não devem julgá-la. O mesmo raciocínio se aplica ao direito egípcio. 4. PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES DO DIREITO NA MESOPOTÂMIA Não falamos de código aos nossos moldes. Primeiro código surge entre 2140 e 2004 a.C. na Suméria, baixa Mesopotâmia. O rei Ur- Nammu promulga o código Ur-Nammu. Sua estrutura é um meio-termo ente o direito fortemente concreto das sociedades arcaicas e as foras abstratas e gerais que caracterizam o direito moderno. As normas ostentam o perfil de costumes reduzidos a escrito, ou então de decisões LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIO Realce LUÍSANTONIO Realce 3 anteriormente proferidas em algum caso concreto. Mostra a estrutura da sociedade: duas classes, homens livres e escravos e uma intermediária de funcionários que servem os palácios reais e os templos, com liberdade limitada. As normas ligam-se predominantemente ao domínio do direito penal. Dois outros códigos: Código de Lipit-Ishtar (1934- 1924 a.C.) e o código de Esnunna, com institutos conexos à responsabilidade civil, ao direito de família e à responsabilidade de donos de animais por lesões corporais seguidas de morte Código de Hammurabi descoberto na Pérsia, em 1901, por franceses. Documento gravado em pedra negra. Promulgado aproximadamente em 1694 a.C., no apogeu do império babilônico. Composto por 282 artigos em 3600 linhas de texto. Abrange quase todos os aspectos da sociedade babilônica (penas definidas com precisão, institutos de direito privado e economia) Indica ser uma compilação de normas anteriores e decisões tomadas em casos concretos. A organização da sociedade: homens livres, homens com personalidade jurídica, mas subalternos e escravos (bem móvel). Tratamento diferenciado para cada um desses segmentos. Ex: penas para espancamento de filha de homem livre, com que ela aborte, paga 10 siclos de prata, do subalterno 5 e de um escravo apenas 2. Direito de família: a mulher dotada de personalidade jurídica, mantém-se proprietária de seu dote mesmo após o casamento, e tem liberdade na gestão de seus bens. É possível repúdio da mulher pelo marido com reciprocidade. Ela pode alegar má conduta do marido e propor ação para retornar a sua família originária, levando de volta o seu patrimônio. É em regra monogâmica. É possível concubina se o casal não conseguir gerar filhos. Prevê adoção, sucessão (com limitações ao poder de dispor sobre o patrimônio). Domínio econômico: delimita salários e preços. Direito penal: extrema centralização do próprio poder nas mãos do soberano. Fusão de elementos sobrenaturais, princípios de autotulela e retaliação e pensa ligadas à mutilação e ao castigo físicos. Direito privado: Várias modalidades de contratos e negócios jurídicos. Compra e venda, arrendamento e depósito. Empréstimo a juros, títulos de crédito, sociedade de comerciantes. Funcionários do palácio real e sacerdotes auxiliavam o soberano na aplicação do direito. 5. MANIFESTAÇÃO DO DIREITO NO ANTIGO EGITO Não possuímos tantas fontes como no universo da Mesopotâmia. Nenhum texto legal, mas sim, excertos de contratos, testamentos, decisões judiciais e atos administrativos. Justiça simbolizada por uma deusa, Maat. A aplicação da lei estava subordinada à incidência de um critério divino de justiça. Ao Faraó incumbia velar pela vigência do princípio de justiça simbolizado pela deusa. A função real devia estar conforme aos desígnios da Maat. O Faraó podia delegar funcionários para decidir questões concretas. Era o vizir, que era sacerdote da deusa Maat. Conclusão Legado para o direito e para os povos da Europa clássica. O sistema sexagesimal de medida da contagem das horas, minutos e segundos nasceu na Babilônia. Calendário solar é do antigo Egito. 6. DIREITO HEBRAICO O direito hebraico engloba a totalidade das leis da Torah (הרות), ou seja, seiscentos e treze preceitos dispostos nos cinco livros que a integram: Bereshit/Gênesis Shemot/Êxodo, Vayicrah/Levítico, Bamidbar /Números e Devarim/Deuteronômio, além de decretos e ordenações exaradas por autoridades halákhicas (palavra que vem de “Halakhah/הכלה”, leis judaicas como um todo. Os tribunais rabínicos), constituindo verdadeiras compilações jurisprudenciais. LUÍS ANTONIO Realce 4 Na magistral lição de Arnold Cohen, “o objetivo do Sistema Legal Judaico não é preservar uma dinastia em particular ou uma certa forma de governo, senão estabelecer justiça social e manter, com isto, uma próxima, constante, inseparável conexão entre ética e direito, ambos fluindo da mesma fonte”. O complexo jurídico judaico, segundo a própria divisão feita por Moshe (Moisés/השמ) em Devarim 6:1, é constituído por mandamentos, estatutos e julgamentos, incluindo as decisões emanadas pelos Hakhamim (sábios). Os mandamentos são aquelas ordenanças de cunho puramente religioso e ético, como as leis de Shabat (Shemot 31:13), que originaram o repouso semanal remunerado, no Direito do Trabalho. Os estatutos são disposições envoltas de matéria de difícil cognição, uma vez que, aparentemente, são desprovidos de explicação lógica, como a Shaatnez, dispondo que é proibida a mistura (própria gênese da palavra “shaatnez”) de linho e lã sob diversas formas: em tecidos, costuras, no próprio vestir etc; de se cruzar animais de espécies diferentes, bem como sementes, levantando a própria questão de o Judaísmo ser contra as experiências de hibridização, transgenia e, de uma forma mais simplória mas não menos importante: o Direito Judaico traz uma proibição de se plantarem sementes diferentes em um mesmo plantio (Devarim 22:9-11). Nota-se, assim, que o esboço do Biodireito e da Bioética teve origem na Shaatnez. Os julgamentos, por seu turno, estão consubstanciados nos preceitos penais e civis tão necessários para a existência de qualquer sociedade. Tais disposições podem ser encontradas em textos fora da Torahe do Tanakh (a soma da Torah, dos Profetas/Neviim e dos Escritos/Ketuvim). D-us teria dado a Moshe, além da Torah Escrita, a Torah Oral, esta consistindo em várias especificações, processos e “ferramentas” de interpretação da Torah Escrita. Pela natureza, depreende- se que a Torah Oral representa normas de sobredireito, possivelmente as primeiras normas de sobredireito sistematizadas da História. A princípio, a Lei Oral era, de modo efetivo, transmitida oralmente, de Moreh (professor) para Talmid (aluno), no entanto, como ocorre até hoje, os yehudim (judeus) são vítimas de perseguições e, numa delas (empreendida pelos romanos), se viram na obrigação de positivar a Lei Oral com a finalidade de resistir a diáspora(s). O trabalho de transcrever a Lei Oral originou a Mishnah (הנשמ). A Mishnahreduziu a escrito a forma como as leis e os acontecimentos judaicos ocorridos deveriam ser interpretados. Como ilustração, tomemos Shemot 17:11: “E acontecia que, quando Moisés levantava a sua mão, Israel prevalecia; mas quando ele abaixava a sua mão, Amaleque prevalecia”. Para essa passagem, o Tratado de Rosh Hashanah 3:8, da Mishnah diz: “Mas podiam as mãos de Moisés empreender uma guerra ou perdê-la? Isto nos diz que, enquanto Israel olhava para o alto e submetia o coração ao seu pai no céu, eles prevaleciam; mas, quando não o faziam, tombavam”. Com a sistematização dos textos mishnaicos, passa a ocorrer uma verdadeira produção de debates através do processo dialético de tese, antítese e síntese que, positivados, deram origem à Guemarah. Na realidade, a produção científica floresceu de tal forma, àquela época, que é considerada a existência de duas Guemarot (pl.de “Guemarah”), a produzida nas academias de Israel e a produzida na Babilônia, onde, por muito tempo, os judeus foram cativos, tendo se tornado a mais utilizada. A Guemarah é uma compilação doutrinária como as obras que encontramos hoje e que nos auxiliam a resolver as questões que, seja de forma aparente ou não, ficaram à margem dos textos legais. A soma da LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIORealce LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIO Realce 5 Mishnah e Guemarah ficou popularmente conhecida como Talmud (דומלת), embora, tecnicamente falando, o correto seja se referir apenas à Guemarah como Talmud, daí a existência de um Talmud de Jerusalém e um Talmud Babilônio, sendo este último o mais utilizado. A patente influência do Judaísmo no Direito como um todo não se resume a isso. É no Direito Judaico que encontramos as regras pioneiras de competência jurisdicional. Jetro, o sogro de Moisés, percebendo uma certa desordem na prestação da tutela jurisdicional e solução de litígios, propõe a ele: “E declara-lhes os estatutos e as leis, e faze-lhes saber o caminho em que devem andar, e a obra que devem fazer. E tu dentre todo o povo procura homens capazes, tementes a D-us, homens de verdade, que odeiem a avareza; e põe-nos sobre eles por maiorais de mil, maiorais de cem, maiorais de cinqüenta, e maiorais de dez; Para que julguem este povo em todo o tempo; e seja que todo o negócio grave tragam a ti, mas todo o negócio pequeno eles o julguem; assim a ti mesmo te aliviarás da carga, e eles a levarão contigo (Shemot 18:20-22)”. Competências e instâncias foram criadas a partir de tal idéia do sogro de Moisés. Igualmente, o Direito Judaico trouxe a figura do contraditório, como quando Caim matou a Abel e D-us, mesmo sabendo que tinha sido Caim, perguntou-lhe quem era o autor da morte de seu irmão, dando-lhe a chance de se defender. Muitos outros institutos genuinamente judaicos são utilizados por operadores do Direito sem que os mesmos saibam da verdadeira origem, seja pelo tão disseminado anti-semitismo, seja por puro desconhecido. A verdade é que nosso Direito não é apenas reflexo do Direito Romano. Romanos e judeus conviveram, de forma conflituosa, mas é certo que entre eles houve um grande intercâmbio jurídico LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIO Realce LUÍS ANTONIO Realce
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