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Diana Raquel Martins Fernandes Rompante Ferreira ATAXIA DE FRIEDREICH REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E CASO CLÍNICO Dissertação de Mestrado Integrado em Medicina Artigo de Revisão Bibliográfica Orientador: José Fernando da Rocha Barros, Assistente Graduado de Neurologia e Professor Auxiliar Convidado de Neurologia Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Largo Prof. Abel Salazar, 2. 4099-003 Porto PORTO, 2011 2 Resumo A ataxia de Friedreich (FRDA) é uma doença neurológica, genética, degenerativa. Tem uma distribuição epidemiológica universal, sendo a mais frequente das ataxias autossómicas recessivas, com uma prevalência de 2 a 4/100000 e uma frequência do estado de portador estimada em 1/120. Pretendemos sintetizar o conhecimento sobre esta patologia em diferentes perspectivas, complementando o trabalho com a observação de uma doente, descrição e discussão do seu caso clínico. Clinicamente a FRDA é caracterizada por início dos sintomas antes dos 25 anos, ataxia mista progressiva, ausência de reflexos osteotendinosos, perda de sensibilidades profundas e sinal de Babinski bilateral. Outras alterações são a disfagia, alterações oculomotoras, cardiomiopatia, deformidades ortopédicas e diabetes mellitus. Podem ocorrer quadros de apresentação atípica. A causa é uma mutação no gene FXN que se localiza no cromossoma 9, que codifica para a frataxina, proteína constituinte da matriz mitocondrial e envolvida no processo de homeostase do ferro celular. Ela deve-se a uma repetição de tripletos GAA no primeiro intrão do gene. A maioria dos pacientes é homozigoto para esta mutação. O diagnóstico é feito pela clínica e por genética molecular. Impõe-se à distinção clínica com a ataxia por deficiência de vitamina E, ataxia-telangiectasia e ataxia com apraxia oculomotora. O diagnóstico definitivo é feito por detecção molecular da mutação no gene FXN. A FRDA não tem cura ou tratamento etiológico e as tentativas têm sido pouco robustas. A terapêutica sintomática pode ajudar os doentes e famílias a garantir dignidade e qualidade de vida. Concluindo, a FRDA é uma patologia com sintomatologia progressiva e debilitante e para a qual ainda não existe cura, sendo imperativo prosseguir com a investigação terapêutica. A genética molecular revolucionou o diagnóstico e alargou o espectro clínico desta doença. Palavras-chave: Ataxia de Friedreich; ataxia recessiva; consanguinidade; arreflexia; síndrome cordonal posterior; cardiopatia hipertófica; escoliose; pés cavus; gene FXN; frataxina; homeostase do ferro. 3 Abstract Friedreich‟s ataxia (FRDA) is a neurological, genetic, degenerative disease. It has an universal epidemic distribution, being the most frequent autossomal recessive ataxia, with a prevalence of 2 to 4/100000 and a frequency of carrier estimated at 1/120. We intent to synthesize the knowledge about this pathology in different perspectives, completing the work with the observation of a patient, description and discussion of his case history. Clinically, FRDA is characterized by onset of symptoms before age 25, progressive mixed ataxia, absence of deep tendon reflexes, loss of deep sensitivity and bilateral Babinski sign. Others symptons are dysphagia, oculomotor changes, cardiomiopathy, orthopedic deformities and diabetes mellitus. Clinical presentation can be atypical. Its cause is a mutation on FXN gene which is located on chromosome 9, responsible for encoding frataxin, a protein constituent of the mitochondrial matrix and involved in cellular iron homeostasis. This is due to a GAA repeat in the first intron of the gene. Most patients are homozygous for this mutation. The diagnosis is made by clinical presentation and molecular genetics. The differential diagnosis must be established with ataxia with vitamin E deficiency, ataxia- telangiectasia and ataxia with oculomotor apraxia. The definitive diagnosis is made by molecular detection of gene mutation in FXN. The FRDA has no cure or etiologic treatment and previous attempts have been less than robust. The symptomatic therapy can help patients and families to ensure dignity and quality of life. In conclusion, FRDA is a disease with progressive and debilitating symptoms, for which there is still no cure, making it imperative to proceed with therapeutic research. Molecular genetics has revolutionized the diagnosis and broadened the clinical spectrum of this disease. Key-words: Friedreich ataxia; recessive ataxia; consanguinity; areflexia; syndrome of posterior columns; hypertrophic cardiomiopathy; scoliosis; pes cavus; FXN gene; frataxin; iron homeostasis. 4 1 - Introdução Estão reconhecidos mais de 20 tipos clínicos de ataxias autossómicas recessivas (AR). Elas são caracterizadas, essencialmente, por desequilíbrio, incoordenação motora, tremor cinético ou postural e disartria (1). A ataxia de Friedreich (FRDA) pertence a este grupo, estando na subcategoria das AR mitocondriais (Anexo 1) (2). A ataxia de Friedreich é uma doença neurológica, genética e degenerativa, que afecta, principalmente, o sistema nervoso e o coração (3). Foi descrita pela primeira vez em 1863 pelo Dr. Nicholaus Friedreich como uma “atrofia degenerativa das colunas posteriores da espinhal medula” (4). A FRDA é a mais frequente das AR, com uma prevalência de cerca de 2 a 4/100000, uma frequência do estado de portador estimada em 1/120 e uma distribuição epidemiológica universal (5), embora mais frequente em humanos de origem europeia. A idade média de morte nestes doentes é aproximadamente aos 38 anos, podendo variar entre os 5 e os 70 anos (1). 5 2 - Características Clínicas A FRDA caracteriza-se por início dos sintomas antes dos 25 anos, ataxia progressiva, ausência de reflexos osteotendinosos, perda de sensibilidades profundas e sinal de Babinski bilateral. A idade de início mais precoce pode aproximar-se dos 2 anos (6). A ataxia mista (cerebelosa e sensitiva profunda) é o sintoma cardinal. Os doentes sentem desequilíbrio e têm quedas, além de dificuldades crescentes nas actividades que requerem destreza (escrita, asseio pessoal). A dismetria, tremor de intenção e marcha com base alargada com mudança permanente de posição e titubeação, levam a perda da autonomia em 10 a 15 anos (1,3,7). A disartria caracterizada por discurso lento, imprecisão na articulação e monotonia surge após 2 a 5 anos de evolução da doença e pode progridir para anartria (1). A disfagia para líquidos é um sintoma da doença avançada e progride até ser necessária entubação nasogástrica ou gastrostomia percutânea (4). As funções cognitivas estão preservadas (1,3,4). As perturbações oculares são tardias, sendo o nistagmo e a instabilidade de fixação as alterações mais comuns (8). Há outras características clínicas como a cardiopatia hipertrófica (mais de 50% dos casos), sendo uma importante causa de morte (9); a escoliose, presente em aproximadamente 100% dos casos, apresentando curvaturas ligeira a moderada (<40º) ou severa (>60º) (10,11), necessitando de correcção cirúrgica; pé cavo (96%) (12); atrofias distais (50%); diabetes mellitus (10 – 20%) e surdez neurossensorial (6,13). A escoliose está frequentemente associada a hipertonia dos músculos para-espinais, sugerindo estas alterações como causa da deformidade anatómica em alguns casos desta patologia (14). No entanto existem quadros de apresentação atípica da FRDA, sendo os mais conhecidos a LOFA (Late-Onset Friedreich Ataxia), caracterizada por uma idade de início tardia (6) ea FARR (Friedreich Ataxia with Retained Reflexes) caracterizada pela presença de reflexos osteotendinosos. Os doentes com LOFA não apresentam, habitualmente, atrofia óptica, surdez neurossensorial, diabetes mellitus ou evidência de cardiomiopatia (15). Um outro quadro clínico (algumas das mutações missense) manifesta-se por uma forma menos severa com marcha espástica no início da doença, progressão lenta, ausência de disartria, hiper/normorreflexia e ausência de ataxia cerebelosa (3,16). Outras apresentações raras caracterizam-se por alterações do tempo 6 de evolução da doença (casos de progressão rápida com perda de autonomia locomotora em menos de 10 anos e pacientes que preservam a marcha, precisando apenas de apoio passados mais de 15 anos de evolução), indivíduos com idade de início tardia e preservação dos reflexos osteotendinosos, apresentações atípicas das alterações oculares e movimentos hipercinéticos como tremores (sendo que este surge mais frequentemente em doentes com quadro clínico típico de FRDA), distonia, mioclonia e coreia (15,17). 7 3 - Patofisiologia Relativamente à patofisiologia, o sistema somatossensorial que conduz a sensibilidade proprioceptiva é afectado no início da doença e de forma severa (3). Há evidências de desmielinização e diminuição do número de neurónios dos cordões posteriores e feixes espinocerebelosos devido ao atrofiamento e morte dos neurónios localizados nos gânglios dorsais e no nucleus thoracicus posterior, respectivamente. A nível do sistema locomotor, observa-se degenerescência progressiva dos feixes piramidais, sendo esta mais evidente distalmente, sugerindo um processo de dying-back (3,4,18). A nível do cerebelo observa-se envolvimento do vérmis e núcleo dentado, sendo esta degenerescência de apresentação tardia (3). As lesões anteriormente referidas explicam a origem mista da ataxia nesta doença. Estudos de potenciais evocados demonstraram alterações severas e simétricas dos SSEPs (Somatosensory Evoked Potencial) e condução motora central anormal na fase inicial da doença. Também foram detectadas alterações ao nível dos VERs (Visual Evoked Response) e BAERs (Brainstem Auditory Evoked Response) (4). As velocidades de condução nervosa (VCNs) confirmam a perda prematura dos SNAPs (Sensory Nerve Action Potentials), mas com redução apenas ligeira a moderada das VCNs (4,19). Ao nível do músculo cardíaco, o ECG demonstra inversão das ondas T, hipertrofia ventricular, alterações da condução cardíaca (10%), extra-sístoles supraventriculares e, ocasionalmente, fibrilação auricular. Ecocardiograficamente observa-se hipertrofia concêntrica ventricular e hipertrofia assimétrica septal (2). Histologicamente, o coração apresenta perda de fibras nervosas, fibrose difusa, necrose miocárdica focal e hipertrofia celular (9,13). 8 4 - Patogénese 4.1 - O gene FXN A causa da FRDA é uma mutação no gene FXN que contém 7 exões e se localiza no braço longo do cromossoma 9, no locus 9q13-21.1, tendo sido descoberto em 1988 e associada a esta patologia em 1996 (20,21). O gene FXN é expresso em todas as células, mas em níveis variáveis nos diferentes tecidos e estes variam durante o desenvolvimento, sendo a sua expressão elevada naqueles que são mais afectados pela doença, como é o caso dos tecidos nervoso e cardíaco (também é expresso a nível do fígado, músculo esquelético e pâncreas) (21,22,23). A FRDA é uma doença de repetição de tripletos GAA no primeiro intrão do gene superior há observada nos indivíduos sem patologia (<40 repetições) (4). A maioria dos pacientes é homozigoto para este mutação (95-98%), sendo que apenas uma pequena percentagem é heterozigoto, contendo a expansão GAA num alelo e uma mutação pontual no outro, sendo estas do tipo missense, nonsense, mutações no splice site e deleções (3,4,24,25). Das mutações missense, algumas são responsáveis por um fenótipo de evolução atípica e mais benigna (D122Y, R165P, G130V), enquanto outras agravam a evolução do quadro clínico (W173G, devido a total ausência de actividade) (3,25,26). O tamanho da expansão GAA (entre 70 a 1000), no alelo mais pequeno (relação inversa com a expressão genética residual), está inversamente relacionado com a idade de início da doença e directamente relacionado com a perda da autonomia e o desenvolvimento de cardiomiopatia (3,4). Outros factores influenciam o fenótipo, entre eles genes modificadores, variação na sequência de DNA mitocondrial e mosaicismo celular (4). A transmissão hereditária da expansão GAA é instável, sendo que expansões ou contracções são igualmente comuns após transmissão materna, enquanto estas últimas são mais frequentes por transmissão paterna (3,4,27). O mecanismo molecular através do qual as expansões GAA causam FRDA está relacionado com a formação de estruturas de DNA anormais (estrutura não-B DNA) que interferem com a transcrição (3,28,29,30). Duas destas formam uma extensão de DNA que contém apenas purinas (R) numa fita de DNA ou apenas pirimidinas (Y) na outra fita, sendo que estas sequências R-Y podem dobrar-se sobre si próprias e formar um tripleto R-R-Y intramolecular adoptando, posteriormente (através da conjugação de 9 duas regiões R-R-Y), uma estrutura em forma de haltere e que apenas pode sofrer ruptura através de elevadas temperaturas (>80ºC) e com a adição de EDTA para remover iões metálicos divalentes (28,31,32,33). Estas estruturas são denominadas de sticky DNA, impedindo virtualmente todos os processos biológicos incluindo transcrição (sequestro da RNA polimerase por ligação directa com o sticky DNA), replicação, reparação e recombinação (4,28). As expansões GAA apresentam, ainda, um outro mecanismo molecular para silenciar o gene FXN através da remodelação e condensação da cromatina no núcleo celular. Sequências repetitivas de DNA têm a propensão para embrulhar regiões genómicas em estruturas de heterocromatina inacessíveis, levando ao silenciamento genético. Este fenómeno denomina-se position effect varigation (PEV) e é mimetizado pelas expansões GAA (28,34,35,36). A repetição dos tripletos GAA leva, também, a instabilidade da molécula de DNA, processos de mutagénese e a uma taxa de recombinação elevada (15 vezes o normal, levando a expansões e contracções) (28,37). 4.2 - A Frataxina e suas funções O gene FXN codifica para a frataxina, uma proteína altamente conservada de 210 aminoácidos e localização mitocondrial. A sua estrutura consiste numa proteína globular contendo uma hélice-α N-terminal, uma região em folha-β média, uma segunda hélice-α e uma cadeia C-terminal em conformação extendida (38,39). Trata-se de uma proteína constituinte da matriz mitocondrial e está envolvida no processo de homeostase do ferro celular. Pensa-se que esta participa em pelo menos cinco processos celulares: envolvimento na biogénese do heme e clusters de ferro-enxofre (ISCs); proteína de armazenamento de ferro durante excesso celular deste; ajudante na reparação das aconitase ISCs oxidativamente danificadas; factor de controlo do stress oxidativo celular ao diminuir as espécies reactivas de oxigénio (ROS); e como participante activo em cadeias que envolvem conversão energética e fosforilação oxidativa. Fenótipos associados a deficiência de frataxina incluem acumulação de ferro mitocondrial, perturbações na biossíntese de heme e ISCs e agravamento progressivo da homeostase celular do ferro (40). Outras características incluem alterações do funcionamento da cadeia transportadora de electrões, diminuição da produção de ATP, alterações da 10 homeostase do cálcio e da permeabilidade mitocondriale, eventualmente, degeneração e morte celular (41,42). O motivo pelo qual o sistema nervoso é o mais afectado devido às alterações na síntese de frataxina é porque este é o sistema que necessita de maior quantidade de energia para o seu funcionamento, podendo o número de mitocondrias por célula variar entre centenas a milhares. Como cada um destes organelos possui 2 a 10 cópias de mtDNA, tem-se vários milhares de cópias deste por cada neurónio. Este tipo de DNA é de herança quase exclusivamente materna (a hereditariedade paterna é muito rara), no entanto, o risco de mutação é 10 vezes superior ao do DNA nuclear devido à ausência de proteínas protectoras (como as histonas) e de um sistema de reparação altamente eficiente, ocorrendo a presença de mtDNA mutado e normal na mesma célula – heteroplasmia. Sendo que o mtDNA é o responsável pelo controlo funcional dos sistemas mitocondriais, quanto maior for a proporção de mtDNA mutado relativamente ao normal, maior é o nível de disfunção deste organelo. Isso traduz-se num quadro clínico neurológico mais exuberante e com mais rápida evolução (43). O papel da frataxina na homeostese do ferro pode ser observado através da acumulação deste quando ocorre produção deficiente desta proteína (21) e pela diminuição da função dos ISCs, complexos que servem de grupos prostéticos para variadas enzimas com diferentes funções incluindo metabolismo energético (aconitase; complexos I, II e III da cadeia respiratória), metabolismo do ferro (ferroquelatase; proteína responsiva do ferro I), síntese de purinas e reparação do DNA. A deficiente produção de ISCs, devido ao insuficiente transporte e fornecimento de ferro pela frataxina, leva à acumulação deste no espaço intracelular (40,44,45). Uma outra forma de registar a função dos ISCs é pela actividade da cadeia respiratória mitocondrial, que é expressa pela razão entre as enzimas citrato sintetase e aconitase nos diferentes tecidos. Num estudo de 10 doentes com FRDA confirmada geneticamente, foram observadas reduções significativas da actividade do complexo I, complexo II/III e da aconitase no tecido cardíaco. Diminuição da actividade destas enzimas também foi observada no músculo esquelético, o que não ocorreu ao nível do cerebelo (redução do complexo I) e dos gânglios dorsais (redução da aconitase) (21). Uma outra função da frataxina é o seu envolvimento na biossíntese de ISCs, processo mediado pelas proteínas estruturantes do ferro mitocondrial IscU‟s, 11 especialmente a IscU2 (nas leveduras) que, ao receber o ferro da frataxina, envolve-se nos passos iniciais da síntese de ISCs (36,46). Ambas as formas monomérica e oligomérica da frataxina podem ligar e transportar Fe 2+ . No entanto, esta proteína pode actuar de uma forma ferritina-like (proteína oligomerizada, formando agregados), podendo ligar-se, preferencialmente, a átomos de Fe 3+ de forma a destoxificá-lo (evitando a formação de ROS, transformando o Fe 3+ em Fe 2+ através da ferroxidase) e funcionando como uma proteína de armazenagem do ferro (46,47,48). Foram, também, encontradas evidências da presença de uma forma truncada (~14kDa) da molécula de frataxina (normal é ~17kDa, encontrada no espaço mitocrondrial após clivagem da sequência-alvo pela MPP – Mitocondrial Processing Peptidade) devido à actividade da enzima proteolítica DLD (Dihydrolipoamide Dehydrogenase). Esta forma truncada é incapaz de agregar e desempenhar as funções de destoxificação do Fe 3+ anteriormente referidas in vitro (49,50). A deficiência de frataxina também afecta o metabolismo oxidativo (relacionados com os distúrbios do metabolismo do ferro), podendo isto ser observado pela sensibilidade celular ao peróxido de hidrogénio (H2O2) (44,51). Este, ao reagir com o Fe 2+ , gera o radical hidroxilo, altamente tóxico, responsável por danificar ácidos nucleicos, proteínas e lípidos da membrana celular, levando a diminuição da biossíntese mitocondrial, alterações do funcionamento dos sistemas energéticos celulares e diminuição da fluidez e aumento da permeabilidade da membrana interna (diminuição da produção de um fosfolipídeo ácido, a cardiolipina), respectivamente (43,44). O défice desta proteína leva ao aumento de ambos os compostos e, consequentemente, ao aumento de ROS. O H2O2 é eliminado pela glutationa peroxidase, através do consumo da molécula antioxidativa glutationa, cujos níveis estão diminuídos devido ao consumo excessivo desta (43,52). Um outro ROS é o superóxido (O2 - ) que, ao reagir com o óxido nítrico (NO), um neurotransmissor importante ao nível do sistema nervoso central (SNC) e periferia, produz um agente oxidante potente, o peroxinitrito (53). A velocidade desta reacção é 3 vezes superior à reacção de destoxificação do O2 - pela enzima superóxido dismutase (SOD), tornando os neurónios vulneráveis a esta molécula tóxica (43,53). Nos doentes com FRDA o stress oxidativo é demonstrado por aumento dos níveis plasmáticos de malondialdeído (MDA, um produto da peroxidação lipídica), 12 aumento do 8-hidroxi-2‟-deoxiguanosina (8-OHdG) urinário (marcador de dano oxidativo do DNA), diminuição da glutationa livre e aumento da actividade da glutationa-S-tranferase plasmática (54,55,56). A função da frataxina na biossíntese do grupo heme é mediada pela ferroquelatase, enzima que catalisa o último passo da síntese deste produto, sendo que é necessária a presença de ferro para que estas interajam. A frataxina actua através da doação de uma molécula de Fe 2+ para a inserção no anel de porfirina (40,57,58). Também foram observadas alterações ao nível de órgãos-alvo como o tecido cardíaco onde foi observada diminuição da actividade de genes codificadores de proteínas contrácteis, contribuindo para a cardiomiopatia. O músculo esquelético revelou alterações em genes envolvidos no metabolismo lipídico e oxidação de ácidos- gordos e o tecido hepático diminuição da actividade dos genes glicolíticos; ambas estas alterações podem contribuir para a resistência à insulina e desenvolvimento de diabetes (36). 13 5 - Diagnóstico O diagnóstico de FRDA é feito pela clínica típica e por genética molecular, sendo a síndrome completa altamente sugestiva para médicos informados. Este impõe-se à distinção clínica com outras AR, sendo as mais relevantes a ataxia por deficiência de vitamina E (AVED), a ataxia-telangiectasia (AT) e a ataxia com apraxia oculomotora (AOA) (3). A AVED apresenta uma idade de início entre os 4 e 20 anos (59), sendo caracterizada clinicamente por ataxia progressiva do tronco e membros, disartria, perturbação das sensibilidades postural e vibratória nos membros inferiores, arreflexia osteotendinosa e sinal de Babinski bilateral (60). Outros sinais frequentes são escoliose e pé cavo, distonia (13%), titubeação da cabeça (28%) e cardiomiopatia ou um evento cardíaco agudo, associados a morte prematura nestes doentes (59,61). No entanto, a idade de início, as manifestações clínicas e a velocidade de progressão são muito variáveis. Esta patologia é causada por uma mutação no gene TTPA (α-tocopherol transfer protein gene), provocando uma diminuição dos níveis de vitamina E circulante (61,62). A AT tem uma prevalência estimada de 1/40000 (63), apresentando como manifestações clínicas principais ataxia progressiva com início antes dos 3 anos de idade, telangiectasias em mais de 90% dos casos com início 2 a 8 anos após os primeiros sintomas (63,64). Como sintomas associados observam-se variadas alterações oftalmológicas (nistagmos optocinético – 81%, movimentos sacádicos – 76%, estrabismo – 38% e apráxiaoculomotora – 30%), disartria, disfagia, hipomimia facial, neuropatia periférica e perturbações dos movimentos como tremor ou coreoatetose (64,65). A perda da autonomia locomotora ocorre após 10 anos de evolução clínica (63,64). Imunodeficiência provoca susceptibilidade aumentada para infecção sinopulmonar crónica e posterior desenvolvimento de doença maligna. A causa da AT é uma mutação no gene ATM que codifica para a proteína ATM serina/treonina cinase, pertencente ao complexo fosfatidil-inositol-3-cinase (PI3K), responsável pela reparação de erros no DNA (63,66). Por fim, temos a AOA, podendo esta ser de tipo 1 ou tipo 2. A AOA tipo 1 caracteriza-se por idade de início entre os 1 e 20 anos, alterações oculomotoras (nistagmo - 100% -, apraxia oculomotora, movimentos sacádicos, instabilidade da 14 fixação e pestanejar excessivo) e movimentos involuntários coreicos ou distónicos e/ou ataxia global progressiva com disartria e tremor das mãos e cabeça e atraso do desenvolvimento (incapacidade cognitiva variável). Com a progressão da doença surgem outras manifestações clínicas como neuropatia periférica (com atenuação das alterações dos movimentos), atrofia distal, pé cavo e hipo/arreaflexia osteotendinosa (67,68). Esta é provocada por uma mutação no gene APTX, envolvida na reparação ssDNA (69). Relativamente à AOA tipo 2, esta manifesta-se por idade de início entre os 2 e 25 anos, ataxia global progressiva, disartria, neuropatia axonal sensitivo-motora e alterações oculomotoras (apraxia oculomotora em menos de 50% dos casos, movimentos sacádicos em 100% dos casos, nistagmo e estrabismo com abdução limitada dos olhos bilateralmente). Distonia, tremor postural, disfagia, pé cavo e escoliose são observados ocasionalmente e a função cognitiva está preservada (70,71). Uma mutação no gene SETX que codifica para a senataxina (proteína com actividade DNA e RNA helicase) é a responsável por esta patologia (72). O diagnóstico definitivo é feito por detecção molecular da mutação no gene FXN. Após a implementação dos testes genéticos começaram a surgir casos atípicos, diferentes do paradigma clássico, fenótipos incompletos e idades de início tardias, que no passado não seriam diagnosticados como FRDA. 15 6 - Tratamento A FRDA não tem cura ou tratamento etiológico, tendo as tentativas terapêuticas sido pouco robustas. No entanto, a ausência de cura não significa demissão de tratamento. A terapêutica sintomática pode ajudar os doentes e famílias a garantir dignidade e mesmo qualidade de vida. Esta pode ser médica ou cirúrgica, indo desde agentes farmacológicos como agonistas PPARγ (Peroxisome Proliferator-Activated Receptor Gamma), quelantes de ferro, agentes antioxidantes, inibidores HDAC (Histone Deacetylase), eritropoetina e pentamidina (73); vacinas, prevenção de complicações cardíacas, tratamento da diabetes mellitus, fisioterapia, cinesioterapia respiratória, natação, ajudas técnicas e correcção de deformidades ortopédicas (escoliose e pé cavo) (13). Provavelmente o desenvolvimento passará por terapias precoces susceptíveis de atrasar a progressão da doença (74). Com base nisto, são necessários instrumentos de medida da progressão da doença para o desenvolvimento de novos fármacos. Outras medidas que os clínicos podem ter em conta como sendo úteis são as PRO (Patient- Reported Outcome) que relatam o impacto da doença na perspectiva do doente (13,75). Uma vez que o sistema afectado em primeiro lugar e que apresenta mais alterações patológicas é o SNC, medidas de morbilidade neurológica foram desenvolvidas estando entre elas as escalas ICARS (Internacional Cooperative Ataxia Rating Scale) (Anexo 2), a FARS (Friedreich Ataxia Rating Scale) (Anexo 3), especificamente desenvolvida para avaliar os danos neurológicos desta patologia e a SARA (Scale for the Assessment and Rating of Ataxia), tendo esta menor importância que as precedentes (75). A ICARS é uma escala semi-quantitativa de 100 pontos que consiste de 19 itens divididos em 4 subescalas: posição postural (34 pontos), ataxia dos membros (52 pontos), disartria (8 pontos) e alterações oculomotoras (6 pontos) (76). Apesar deste instrumentos ser apenas parcialmente objectivo, isso não diminui a sua eficácia, uma vez que este apresenta uma boa reprodutibilidade e boa correlação entre resultados total e subescalas e idade e duração da doença, respectivamente. No entanto apresenta um efeito tecto significativo, a partir do qual as variações das variáveis já não podem ser medidas (75,77,78). 16 A FARS tem uma pontuação máxima de 159 ou 167, sendo a mais alta associada a doença com maior severidade. Estas variações nas pontuações máximas ocorrem devido a esta escala ter duas versões, uma que inclui e outra que exclui dois itens de 4 pontos na subescala do exame neurológico. Assim sendo, a FARS consiste de 3 subescalas: ataxia (6 pontos), actividades da vida diárias (AVD: 36 pontos) e exame neurológico (117 ou 125 pontos) (79). Como esta escala ainda não foi submetida a análise psicométrica, ela pode conter itens redundantes (75). A SARA foi desenvolvida para medir a severidade da ataxia e foi validada através de testes em indivíduos com ataxia espinocerebelar autossómica dominante (80,81). Ela consiste em 8 itens que avaliam a marcha, postura, posição sentada e disartria e por 4 itens que avaliam a função cinética dos membros. Tem uma pontuação máxima de 40, directamente proporcional com a severidade da ataxia. Esta apresenta uma boa correlação inter-observador e boa reprodutibilidade, no entanto, apenas avalia os factores relativos à ataxia, não sendo, por isso, tão abrangem como as escalas anteriormente referida para a avaliação da FRDA (75,80). As medidas PRO consistem em escalas que avaliam a qualidade de vida (QoLS), desenhadas para averiguar a perspectiva do doente acerca do seu bem-estar e como a sua vida e a da sua família é afectada pela doença; satisfação do tratamento e medidas gerais que avaliam o impacto da doença no indivíduo (82,83). A QoLS mais generalizada é a SF36 (Medical Outcomes Study 36-Item Short Form Health Survey) (84), sendo que os doentes com FRDA apresentam piores resultados na subescala PCS (Physical Component Summary) (75). Contudo, uma escala específica para avaliar o impacto da FRDA na perspectiva do doente ainda não foi desenvolvida, mas é altamente pertinente. Relativamente a agentes farmacológicos, os agonistas PPARγ como a pioglitazona são úteis através da restauração da acção da enzima PGC-1a (Peroxisome Proliferator-Activated Receptor Gamma Coactivator 1-Alpha), que é um regulador transcripcional importante dos sistemas de síntese energética e antioxidante mitocondriais, aumenta a β-oxidação de ácidos gordos e diminui as respostas inflamatórias (73,85). Os quelantes de ferro como a deferiprona e desferroxamina actuam através da diminuição das concentrações de ferro e, consequentemente, dos seus efeitos tóxicos ao nível das alterações do funcionamento dos sistemas energéticos celulares, diminuição da 17 fluidez e aumento da permeabilidade da membrana mitocondrial interna e lesão do mtDNA com activação dos mecanismos de apoptose. Relatos sobre melhoria clínica dos sintomas neurológicos foram obtidos com a administração de deferiprona (36,86,87,88). Agentes antioxidantes como a ibedenona e coenzima Q10 protegem a mitocôndria da lesão pelas ROS. Esta pertence à classe das ubiquinonas que actuam através do seu papel na cadeia transportadora de electrões, recebendo os pares de electrões do NADH do Complexo I e do FADH2 do Complexo II, sendo que estes podem ser fornecidos àsROS para as estabilizar e evitar a sua acção lesiva. A ibedenona, em doses reduzidas (5mg/Kg/dia) reduz a progressão da cardiomiopatia com consequente melhoria do estado geral e diminuição da fatigabilidade, sem influência na progressão clínica da doença neurológica (89,90,91). A coenzima Q10, em doses de 400mg/dia melhora a bioenergética do tecido cardíaco e do músculo esquelético, principalmente quando combinado com vitamina E, um outro antioxidante (36,91). Em relação aos inibidores HDAC (por exemplo, o BML-210), a sua acção é demonstrada através da abertura da cromatina, impedindo os mecanismos que promovem a formação de heterocromatina (dificulta a formação de estruturas não-B DNA e sticky DNA), uma vez que o silenciamento genético nos alelos FXN expandidos é acompanhado de hipoacetilação das histonas H3 e H4 e trimetilação de H3, processo compatível com um mecanismo de repressão mediado por heterocromatina (92,93). A eritropoetina actua pelo aumento da produção de frataxina ao nível pós- transcripcional (activação de factor transcripcional específico) oferecendo um efeito neuroprotector e cardioprotector, estimulando a neurogénese, diferenciação neuronal e activação dos mecanismos antiapoptóticos, antioxidantes e anti-inflamatórios (36,94). Um outro grupo de agentes farmacológicos são os compostos que se ligam ao DNA ao qual pertence a pentamidina que aumentam a transcripção através da sua ligação preferencial ao DNA com estrutura B, aumentando assim a síntese de frataxina (92). A FRDA é uma patologia devido a perda de função, sendo que novas estratégias baseadas em alvos genéticos desenhadas para aumentar a síntese de frataxina podem vir a ser uma terapia ideal. Já foi descrita produção desta proteína por vectores víricos em fibroblastos com alterações por FRDA, ocorrendo correcção parcial da sensibilidade ao stress oxidativo. No entanto ainda existem várias limitações para a aplicação clínica destas (73,92,95,96). 18 Em relação às restantes intervenções, estas incidem, maioritariamente, na prevenção, correcção cirúrgica de potenciais complicações e na promoção da qualidade de vida. Também a informação fornecida aos doentes sobre a sua patologia desempenha um papel crucial na forma como estes lidam com esta e influenciam positivamente as medidas PRO (13). Há excepção dos antioxidantes e quelantes de ferro, as restantes terapêuticas farmacológicas ainda se encontram em fase de investigação, sendo que o seu uso para o tratamento da FRDA ainda não foi aprovado. Por outro lado, as estratégias farmacológicas actualmente em uso têm um efeito muito limitado ao nível da progressão e sintomatologia desta doença. As restantes terapêuticas são utilizadas como forma de correcção de alterações debilitantes ou como forma de prevenção para outras patologias que possam surgir em associação a esta. 19 7 - Caso Clínico R.B.M.D.; 29 anos; sexo feminino. É natural de uma aldeia do concelho de Amarante. Tem o 12º ano de escolaridade. Desempregada. Desde a infância que apresenta dificuldades na marcha, sendo estas mais notórias em actividades desportivas (corrida, ginástica e jogos). Ocorreu agravamento progressivo sendo que, actualmente, é necessário apoio para subir e descer escadas e é incapaz de manter deambulação em linha recta. Posteriormente, aos 14 ou 15 anos iniciou alterações da caligrafia e disartria com agravamento progressivo, dificuldades nas actividades de vida diárias com lentificação dos movimentos para uso de utensílios de cozinha, vestir-se e fazer a sua higiene pessoal e perturbações auditivas. Mais tardiamente surgiu disfagia, mais acentuada para líquidos, e tremor de acção generalizado, com agravamento progressivo. Ausência de consanguinidade parental ou de história familiar de patologia neurológica idêntica. Há outras pessoas com a mesma doença na aldeia. Exame neurológico: Vigil, orientada no espaço e no tempo e com discurso coerente. Disartria cerebelosa e disfagia. Força e tónus muscular normais. Arreflexia osteo-tendinosa. Sinal de Babinski bilateral. Dismetria nas provas dedo-nariz e calcanhar-joelho, com decomposição do movimento, procura permanente do centro de gravidade axial, marcha atáxica com base alargada e funânbulo impossível, . Diminuição das sensibilidades vibratória e postural Outras alterações são a presença de escoliose discreta e pés cavus. O diagnóstico de FRDA foi confirmado por teste genético com resultado de homozigotia para expansão GAA no gene FXN, sendo a expansão dos alelos de 290 e 807 GAA‟s, respectivamente. Último despiste para patologia cardíaca apresenta ECG e Holter sem alterações e ecocardiograma com discreta insuficiência tricúspide com PSAP de 26mmHg e despiste para diabetes mellitus negativo. Foram pedidas novas consultas de Oftalmologia para despiste de alterações oculares e de Otorrinolaringologia para reavaliação das alterações previamente detectadas. 20 8 - Conclusões A Ataxia de Friedreich é uma patologia com sintomatologia progressiva e debilitante, avançando naturalmente para a morte do doente e para a qual ainda não existe cura. A importância da sua abordagem reside não só nestes factores, como também na sua distribuição epidemiológica universal e no facto de ser a mais frequente das ataxias autossómicas recessivas, com uma prevalência e uma frequência do estado de portador elevadas. A identificação de mutações genéticas específicas nomeadamente ao nível do gene FXN nos pacientes com FRDA revolucionou o diagnóstico desta patologia. Muitos casos como início tardio dos sintomas, hiperreflexia ou outras apresentações “atípicas”, que anteriormente não eram possíveis de enquadrar nesta ataxia, podem agora ser incluídos devido à análise genética. Desta forma, o espectro clínico desta doença é, agora, muito mais diversificado relativamente às descrições clássicas. Actualmente a terapêutica é limitada, uma vez que, há excepção dos antioxidantes e quelantes de ferro, as restantes terapêuticas farmacológicas ainda se encontram em fase de investigação, sendo que, mesmo essas têm um efeito muito limitado no controlo da progressão e sintomatologia desta doença. Desta forma, será imperativo prosseguir com a investigação para a descoberta e melhoria de agentes farmacológicos para o tratamento desta patologia. Mesmo um pequeno avanço a nível da terapêutica sintomática pode ajudar os doentes e famílias a garantir dignidade e qualidade de vida. 21 Bibliografia 1. Fogel BL, Perlman S. Clinical features and molecular genetics of autosomal recessive cerebellar ataxias. Lancet Neurol 2007;6:245-257. 2. Embiruçu EK, Martyn ML, Schlesinger D. Autossomal Recessive Ataxias – 20 types, and counting. Arq Neuropsiquiatr 2009;67(4):1143-1156. 3. 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