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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/321886821 DA RESTAURAÇÃO À RECONSTRUÇÃO: impasses conceituais nos debates patrimoniais do século XX e seus reflexos na contemporaneidade Conference Paper · May 2017 CITATIONS 0 READS 155 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Ruin and cultural heritage in Brazil View project Heritage of manufacturing buildings still with original use in the city of São Paulo View project Angela Rosch Rodrigues University of São Paulo 17 PUBLICATIONS 6 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Angela Rosch Rodrigues on 18 December 2017. The user has requested enhancement of the downloaded file. DA RESTAURAÇÃO À RECONSTRUÇÃO: impasses conceituais nos debates patrimoniais do século XX e seus reflexos na contemporaneidade RODRIGUES, ANGELA ROSCH. (1) 1. Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - Doutora História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo Rua Aguapeí, 651, B. Santa Maria, Santo André, SP CEP: 09070-090 angelarr@usp.br RESUMO Na historiografia da preservação patrimonial do século XX a opção pela reconstrução mediante um incidente súbito e trágico se apresentou de forma contundente em diversos momentos. Este trabalho tem como objetivo apresentar um panorama de algumas das principais asserções teóricas desenvolvidas ao longo do século XX e respectivos desdobramentos em documentos internacionais que englobam a problemática do tratamento a patrimônios culturais arquitetônicos acometidos por destruições catastróficas causadas de forma antrópica (guerras, incêndios, acidentes, etc.) ou naturais (enchentes, terremotos, etc.) destacando aspectos pertinentes e extremamente atuais para confrontar essas situações de arruinamento como: o problema do falso histórico; a questão da autenticidade como delineada na Carta de Veneza (1964) e Documento de Nara (1994); o restabelecimento da unidade potencial da obra; o preceito da distinguibilidade dos materiais e técnicas em relação ao preexistente; o limite operacional da reconstrução como definido na Carta de Burra (1980); e o imperativo moral para a restituição da identidade cultural de uma comunidade a partir da reconstrução, conforme disposto na Carta de Cracóvia (2000). É possível constatar um ponto nodal nos debates patrimoniais: o impasse conceitual que envolve a diferença metodológica entre a restauração e a reconstrução de um bem arquitetônico. Segundo a definição que consta na Carta de Veneza, a restauração tem caráter excepcional visando conservar valores estéticos e históricos do monumento através do respeito à matéria preexistente. Já, operações como a reconstrução (o repristino e o refazimento) visam à reconstituição de uma imagem formal. Segundo alguns teóricos da preservação ligados à concepção do restauro crítico conservativo, a intervenção de reconstrução não poderia ser enquadrada no campo disciplinar da restauração. Para tal vertente, embora as fronteiras entre a restauração e a reconstrução pareçam difusas, não basta que a materialidade preexistente seja mantida enquanto suporte para a transmissão da imagem, é necessário verificar o método em que se opera esse tratamento para não incorrer em tendenciosas reconstituições estilísticas. Palavras-chave: preservação patrimonial, reconstrução, restauração. 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 Destruição súbita e traumática: contextualização e desdobramentos teóricos Na historiografia da preservação patrimonial do século XX a opção pela reconstrução mediante um incidente súbito e trágico tem uma extensa casuística e incorre numa série de questionamentos que têm sido cruciais para o amadurecimento desse campo de estudos. Ao estabelecer um breve panorama pode-se retomar como ponto de partida para essa análise o colapso do Campanário de San Marco e de parte da Loggetta del Sansovino em Veneza que ocorreu em 14 de Julho de 1902, cujas propostas engendraram inúmeras controvérsias. Como solução optou-se por um processo reconstrutivo especificado pelo arquiteto Luca Beltrami (1854-1933) como um acurado projeto de repristino - “com`era e dov`era” (como era, onde estava) (Carbonara, 1997, p.183). Os trabalhos foram prosseguidos por Gaetano Moretti (1860-1938) que sublinhou a necessidade de se valer de instrumentos técnicos tradicionais e modernos para uma reconstrução que assegurasse a existência de um novo campanário - uma cópia do antigo com cerca de 2.000 toneladas a menos - cujas obras terminaram em janeiro de 1912. Os argumentos para embasar a opção pela reconstrução basearam-se na vontade popular que via nessa operação uma necessidade simbólica para o sentimento de coletividade de Veneza. O Campanário de San Marco tornou-se um caso paradigmático do mote com`era, dov`era para a cultura internacional da preservação patrimonial. Posteriormente, as duas Grandes Guerras propiciaram cenários decisivos no que tange à reconstrução. A cidade de Ypres (Bélgica), por exemplo, foi completamente destruída durante a Primeira Guerra; com o armistício, o governo belga iniciou um processo que envolveu a reconstrução de edifícios históricos em seu centro mais antigo tendo como referência sua aparência anterior (Martínez, 2007). No período entre Guerras, o engenheiro Gustavo Giovannoni (1873-1947) procurou ampliar a ideologia do denominado restauro filológico que havia sido delineado por Camillo Boito (1936-1914) em fins do século XIX. Essa postura “intermediária” (Giovannoni, 1936, p. 128) reiterava a necessidade de uma abordagem científica e documental dos monumentos se colocando entre a tendência puramente conservativa representada pelo ideário do inglês John Ruskin (1819-1900) e a atitude “estilística” que postulava o repristino de um estado original, cujo principal expoente fora Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879). Alguns dos preceitos básicos apresentados por Giovannoni prescreviam: mínimas obras de manutenção, reparação e consolidação nos bens; o respeito a todos os elementos de valor artístico de qualquer época; e a limitação dos acréscimos ao estritamente indispensável, conduzido por dados seguros embasados documentalmente. Essas considerações foram fundamentais para configurar a base da formulação da Carta de Atenas de 19311, documento internacional inaugural do campo da preservação. Dentre os princípios gerais enunciados na Carta de Atenas para os monumentos havia prescrições para uma manutenção permanente; à consideração da obra no bojo de seus aspectos históricos e artísticos; à utilização respeitosa do patrimônio; e ao emprego de materiais e recursos modernos de modo a não alterar o aspecto e o caráter do edifício evidenciando uma tendência para o abandono das reconstituições integrais. Porém, diante das destruições maciças provocadas pela Segunda Guerra como proceder de modo documental? Com a tragicidade e dimensão das perdas os preceitos dessa postura filológica passaram a ser debatidos do ponto de vista do princípio e método de aplicação. A nova conjuntura apresentava de forma mais incisiva o problema de restituir elementos indispensáveis à fisionomia das cidades danificadas evidenciando a necessidade de revisão e aprimoramento dos conceitos e princípios da preservação patrimonial. Os debates travados entre as décadas de 1940 e 1960 principalmente pelos teóricos e intelectuais italianos convergiram para o denominado restauro “crítico conservativo”, entendido como uma ação cultural, independente do momento de criação da obra e atrelada a outroscampos disciplinares ligados às ciências humanas (como história da arte, sociologia e urbanismo) lançando assim, as bases teóricas e práticas da concepção do restauro contemporâneo. Esse processo de revisão e amadurecimento dos princípios da preservação no Segundo pós-guerra confluiu para o texto da Carta de Veneza (1964)2. Esse documento foi promulgado com o objetivo de delinear uma unidade metodológica para as intervenções nos bens culturais embasada numa concepção histórico-crítica. As destruições súbitas e traumáticas provocadas por incidentes bélicos, antrópicos, ou naturais seguiram sendo um ponto nodal para as discussões travadas nas décadas posteriores pelos comitês e conselhos internacionais deliberando documentos que 1 Produto da conferência organizada pelo Office International des Muséé, Société des Nations que ocorreu entre 21 e 30 de outubro de 1931 na Grécia. 2 Carta Internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios, definida no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos - Icomos (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios). 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 aprofundam alguns aspectos delineados na Carta de Veneza como a Carta de Burra3 (1980), que apresenta definições específicas sobre a reconstrução; o Documento de Nara4 (1994) que se detém na discussão sobre a autenticidade do patrimônio; e a Carta de Cracóvia5 (2000) que relaciona o tema da reconstrução à destruição provocada por conflitos bélicos ou catástrofes naturais. A contemporaneidade do desafio de afrontar essas situações de súbitas destruições se renova constantemente já que diversos bens arquitetônicos são continuamente acometidos por toda ordem de incidentes catastróficos. Em função dos recentes desastres naturais (terremotos) no Nepal e Itália e dos conflitos bélicos na Iugoslávia, Yemen, Iraque e Síria o Icomos se reuniu em 2016 a fim de elaborar diretrizes sobre a recuperação de Patrimônios Mundiais que passam por situações traumáticas originando o Guia intitulado: Post Trauma recovery and reconstruction for World heritage cultural properties (Icomos, 2017). No Brasil há várias situações traumáticas que têm atingido o patrimônio nacional (bens tombados pelo Iphan - ou eventos de grande repercussão em patrimônios tutelados pelas respectivas esferas estaduais ou municipais) no século XX, chegando à contemporaneidade. São destruições parciais ou totais deflagradas principalmente por incêndios e enchentes, como os seguintes casos levantados6: Igreja do Rosário e São Benedito, Rio de Janeiro (RJ) - incêndio em 1967; Paço do Saldanha (atual Liceu de Artes e Ofícios da Bahia), Salvador (BA) - incêndio em 1968; Mercado Modelo (Casa da Alfândega), Salvador (BA) - incêndios em 1969 e 1984; Museu do Caraça, Catas Altas (MG) - incêndio em 1984; Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Mariana (MG) - incêndio em 1999; Igreja Matriz, São Vicente (SP) - incêndio em 2000; cidade de Goiás (centro histórico) - enchente em 2001; Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário, Pirenópolis (GO) - incêndio em 2002; Hotel Pilão, Ouro Preto (MG) - incêndio em 2003; Teatro Cultura Artística, São Paulo (SP) - incêndio em 2008; Igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga (SP), enchente em 2010; Capela São Pedro de Alcântara, Rio de Janeiro (RJ) - incêndio em 2011; Solar Boa Vista, Salvador (BA) - incêndio em 2013; 3 Documento produto da reunião do ICOMOS na Austrália em 1980. 4 Produto da “Conferência sobre autenticidade em relação à convenção do Patrimônio Mundial” (Unesco/Iccrom/Icomos) realizada em 1994 na cidade de Nara (Japão). 5 Produto da Conferência Internacional sobre Conservação (Unesco) em Cracóvia (Polônia) 2000, na sua sessão plenária intitulada: “O património cultural como fundamento do desenvolvimento da civilização”. 6 Consulta no site do IPHAN: <http://portal.iphan.gov.br/> em 18 de abril 17. Mercado Público, Porto Alegre (RS) - incêndio em 2013; Casa do Chico Mendes, Xapuri (AC) - enchente em 2015; Museu da Língua Portuguesa (Estação da Luz), São Paulo (SP) - incêndio em 2015; Museu das Missões, São Miguel (RS) - tornado em 2016. A catástrofe do rompimento da barragem do Fundão da Samarco Mineiração SA que ocorreu em Bento Rodrigues - subdistrito de Mariana (MG) - em 2015 amplificou definitivamente os debates sobre as intervenções emergenciais em áreas e edificações potencialmente consideradas como patrimônio cultural. O fato é que mediante as situações catastróficas, a indagação se estabelece sobre o quanto da preexistência deve ser preservado como suporte à imagem da arquitetura perdida e qual é o limite da intervenção. Na conceituação entre restauração e reconstrução se potencializam alguns embates teóricos, dos quais nos deteremos em alguns aspectos. Restauração e reconstrução Impasses conceituais Ao longo dos debates teóricos da preservação patrimonial do século XX, principalmente após a Segunda Guerra, podem ser destacados alguns pontos envolvendo as intervenções em patrimônios arquitetônicos danificados que evidenciam os impasses conceituais entre as operações de restauração e reconstrução. Um primeiro aspecto se refere aos possíveis riscos da “falsificação” do patrimônio. O arquiteto e teórico da restauração ilatiano Ambrogio Annoni (1882-1954) em seu trabalho Scienza ed arte del restauro achitettonico - idee ed esempi (1946) argumentou que para uma arquitetura perdida (total ou parcialmente), a despeito de seus valores histórico, artístico e sentimental, a opção pela reconstrução deveria ser recusada, pois a reconstituição poderia incorrer numa falsificação: O que parece ser de suprema importância, entretanto, é não recair em nenhuma fantasia sentimental que pode induzir restauradores a reconstruir aquilo que foi destruído para além da reparação, e isso somente seria a perpetuação de uma fraude. (Annoni, 1946, p.21 - trad. nossa) Essa orientação sobre o “falso histórico” também pode ser detectada em outros teóricos do restauro crítico conservativo como Renato Bonelli (1911-2004) e Cesare Brandi (1906- 1988). Em seu trabalho Architettura e restauro (1959) Bonelli alega que: A reconstrução completa do monumento nas mesmas formas não é admissível, ao menos teoricamente, nem mesmo quando se disponha de 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 todos os velhos pedaços que compõe a estrutura e os precisos levantamentos do estado anterior à ruína, já que a remontagem não poderá refazer perfeitamente e em todas as nuances o processo de edificação. (Bonelli, 1959, p. 56 - trad. nossa) Ao mencionar os casos do Campanário de São Marcos e da Ponte Santa Trindade em Florença (destruída em 1945 e reconstruída como era), Brandi, em sua Teoria del Restauro (1963) se refere à gravidade de se optar pela “cópia” como: “[...] um falso histórico e estético e por isso pode ter uma justificação puramente didática e rememorativa, mas não se pode substituir sem dano histórico e estético ao original.” (Brandi, 2004, p.88-89). E acrescenta de modo contundente: “O adágio nostálgico ´como era, onde estava´ é a negação do próprio princípio da restauração, é uma ofensa à história e um ultraje à Estética, colocando o tempo como reversível e a obra de arte como reproduzível à vontade.” (Op. cit., p. 89). A problemática do “falso histórico” está atrelada ao quanto se compromete da matéria remanescente enquanto um “documento autêntico”, conforme disposto na Carta de Veneza. O ideário que o máximo da preexistênciadeva ser preservado enquanto uma referência fidedigna que remeta à arquitetura anterior é o embasamento para a conceituação de autenticidade, que foi amplamente discutida no Documento de Nara (1994): 9. A conservação do patrimônio cultural em suas diversas formas e períodos históricos é fundamentada nos valores atribuídos a esse patrimônio. Nossa capacidade de aceitar esses valores depende, em parte, do grau de confiabilidade conferido ao trabalho de levantamento de fontes e informações a respeito desses bens. O conhecimento e a compreensão dos levantamentos de dados a respeito da originalidade dos bens, assim como de suas transformações ao longo do tempo, tanto em termos de patrimônio cultural quanto de seu significado constituem requisitos básicos para que se tenha acesso a todos os aspectos da autenticidade. (Icomos, 1994 In: Cury, 2004, p.321) Essas asserções sobre autenticidade são reiteradas no conjunto de diretrizes promulgadas no recente Guia do Icomos sobre as providências para a recuperação e reconstrução pós destruições: “[...] qualquer consideração sobre intervenções deve priorizar a autenticidade dos atributos sobreviventes [...]” (Icomos, 2017). No entanto, conforme Choay (1995) o conceito da autenticidade tem se desdobrado em uma multiplicidade de interpretações ao longo dos séculos em diversos campos do saber. Durante a Idade Média o autêntico se referia à legibilidade de um texto original que não leva em conta alterações que ocorreram ao longo do tempo. Ao ser aplicado aos artefatos materiais há que se considerar a condição da ação física na materialidade que se transforma segundo as condições externas (tempo, destruições, etc.). Ao ser transposto para o campo da preservação patrimonial (durante o século XIX) o conceito de autenticidade se estrutura a partir de um impasse: o autêntico se refere a uma condição “original” que fundamenta uma identidade - estipulada e definida segundo uma determinada construção historiográfica; ou a autenticidade se aplica à condição da materialidade física que se transforma pelo porvir do tempo e demais situações (destruições antrópicas ou naturais)? No âmbito das teorias da preservação, Renato de Fusco (1994) fez uma inferência alegando que é necessário pensar a obra como um organismo que nasce em um determinado tempo e depois enfrenta uma existência própria; a sua presença material é tangível a uma constância relativa, modificada em seu percurso histórico. Suas diversas fases são mais ou menos “autênticas” segundo as qualificações e as interpretações que os processos historiográficos lhes conferem; segundo nossa análise essa consideração estaria alinhada à acepção de “documento-monumento” desenvolvida pelo historiador Jacques Le Goff (2010). Assim, é possível constatar que os remanescentes de um bem arquitetônico acometido por um incidente súbito testemunham sobre a sobrevivência do que um dia existiu e também documentam as causas do arruinamento ensejando a seguinte questão: o quanto que as marcas dessa destruição poderiam ser consideradas como parte história de um bem? A manutenção dos remanescentes originais como uma referência que confere autenticidade ao patrimônio está engendrada a outro ponto nodal: o grau de destruição. De acordo com a teoria brandiana, a complexidade em mesurar a dimensão das lacunas envolve o desafio da avaliação sobre o quanto da “unidade potencial” de um bem foi perdida e não pode ser reintegrada como era; a unidade potencial é entendida enquanto uma característica que é qualitativa e não necessariamente quantitativa do objeto. Ao pretender retraçar a unidade originária de uma obra perdida, de acordo com Brandi a restituição deveria limitar-se a desenvolver o que está sugerido pelos fragmentos remanescentes ou pelos testemunhos autênticos do estado prévio, de forma bastante distinguível. No restauro crítico conservativo, esse procedimento se estrutura a partir da relação dialética entre o processo crítico e criativo, integrando a preexistência. Segundo Giovanni Carbonara (1976) o problema da reintegração da imagem não trata da recuperação de uma unidade estilística, mas sim, uma unidade figurativa do objeto. Essa acurada operação implica numa qualificação metodológica que a distingue conceitualmente das ações de “reconstituição” ou “reconstrução”. 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 No âmbito do restauro crítico conservativo, a restauração é entendida como um campo disciplinar que tem princípios operacionais como: reversibilidade, de modo a não impedir ou comprometer intervenções futuras; mínima intervenção, para não descaracterizar o documento histórico devendo respeitar suas estratificações; a compatibilidade de técnicas e materiais, considerando a consistência física do objeto, com a aplicação de técnicas compatíveis ao bem e não nocivas; e a distinguibilidade, para não induzir o observador ao engano de confundir a intervenção ou eventuais acréscimos com o que existia antes (Kühl, 2008). Desse modo, o tema da “reconstrução” torna-se particularmente controverso, por incorrer na discussão sobre um dos preceitos basilares para as restaurações arquitetônicas: a distinguibilidade que permite a leitura daquilo que é novo em relação ao preexistente. Essa premissa foi especialmente destacada pela teoria de Camillo Boito, em suas asserções apresentadas em 1884 (Boito, 2012) e reiteradas em diversos documentos posteriores. A Carta de Veneza, por exemplo, condensou claramente orientações sobre esse ponto em seu Artigo 12º: “Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmonicamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das partes originais, a fim de que a restauração não falsifique o documento de arte ou de história.” (Icomos, 1964 In: Cury, 2004, p.94). A partir desses pontos apresentados (falso histórico, autenticidade, grau de destruição e distinguibilidade), podem ser aferidas algumas controvérsias que indicam uma diferenciação metodológica na abordagem das intervenções de “reconstrução” e “restauração”. Caracterizações e distinções De acordo com o restauro crítico e conservativo, o conjunto de intervenções entendidas no campo disciplinar da restauração (gradativamente: manutenção, conservação e restauração) fundamenta-se numa profunda análise histórica e crítica do objeto, no respeito à materialidade da obra e a seus aspectos documentais e estéticos. As motivações para essas operações são primordialmente de cunho cultural e científico envolvendo uma pormenorizada análise do bem e sua intrínseca materialidade para identificar seu grau de degradação. A caracterização dessas operações consta no texto da Carta de Veneza: a conservação engloba ações (como a manutenção) que precedem a restauração (cujo caráter é mais incisivo). O Artigo 9ª da Carta de Veneza evidencia a excepcionalidade da operação do restauro e seu estrito embasamento documental na matéria original e autêntica do que está sendo avaliado para preservação: Art. 9º: A restauração é uma operação que deve ter caráter excepcional. Tem por objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos. Termina onde começa a hipótese; no plano das reconstituições conjeturais, todo trabalho complementar reconhecido como indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso tempo. A restauração será sempre precedida e acompanhada de um estudo arqueológico e histórico do monumento. (Icomos, 1964 In: Cury, 2004, p.93) No textoda Carta de Veneza, a reconstrução não é caracterizada ou definida; a Carta de Burra (1980) é o primeiro documento internacional da preservação patrimonial que vai se ater ao conceito da reconstrução admitindo-a como uma possibilidade de intervenção como uma condição para a sobrevivência de um bem: Artigo 1º Definições: A reconstrução será o restabelecimento, com o máximo de exatidão, de um estado anterior conhecido; ela se distingue pela introdução na substância existente de materiais diferentes, sejam novos ou antigos. A reconstrução não deve ser confundida, nem com a recriação, nem com a reconstituição hipotética, ambas excluídas, do domínio regulamentado pelas presentes orientações. (Icomos, 1980 apud Cury, 2004, p.148) Assim, a reconstrução se estabelece como uma opção desde que a integridade do bem e do conjunto avariado seja garantida; uma operação que também deveria se limitar à complementação de partes desfalcadas a partir do conhecimento dos testemunhos materiais e documentais e de forma distinguível. Porém, intelectuais ligados à preservação patrimonial questionam sobre se a reconstrução possa ser uma intervenção validada no âmbito do restauro. Como atesta Giovanni Carbonara (2009), as ações que comprometem a leitura da passagem temporal e suas respectivas marcas interpondo motivações de ordem estética às motivações de ordem documental e histórica não poderiam ser qualificadas como restauração. São práticas em que a matéria antiga não é completamente respeitada e transfiguram o monumento renovando-o e reduzindo-o a uma mera citação do antigo. O célebre caso do Teatro La Fenice em Veneza, cuja construção original de 1792 foi gravemente danificada por um incêndio em 29 de janeiro de 1996 ilustra esses embates 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 teóricos recentes no cenário italiano sobre a polêmica de reconstituir a obra como era antes do incidente. Por ser considerada uma das referências arquitetônicas mais icônicas da cidade houve uma grande comoção pública em prol da recuperação mimética do Teatro. A opção em reconstruir “como era, onde estava” passou a ser defendida por ir ao encontro do apelo da população veneziana. A solução, porém, não foi unânime, intelectuais ligados à preservação patrimonial como Giovanni Carbonara, Paolo Torsello, Roberto Di Stefano, Sandro Scarrocchia7 dentre outros apresentaram argumentos contrários alegando que a reconstrução, não faz parte do compito da restauração, a identidade da edificação perdida jamais pode ser restabelecida e a materialidade da preexistência com suas respectivas marcas deveria ser considerada no âmbito metodológico e crítico do campo disciplinar do restauro. Na confluência das possibilidades de reconstrução (como era antes do incidente) e da restauração (enquanto uma ação cultural) se estabelecem questionamentos circunscritos sobre a forma de intervir na matéria, entendida enquanto documento e enquanto suporte de uma imagem que se pretende resgatar. Se por um lado, a reconstrução é tida por muitos teóricos como uma operação extremamente discutível por incidir em pontos controversos, por outro lado, alguns intelectuais também estruturam observações críticas sobre a restauração destacando, por exemplo, que: a abordagem de um objeto a partir de uma dúplice avaliação das instâncias artística e histórica (como definido por Brandi) é limitada, pois implica somente no entendimento da matéria enquanto suporte da imagem e não engloba valores simbólicos de recepção e interpretação dessa imagem por parte dos que vão efetivamente vivenciar o bem arquitetônico. Essa problemática se associa à reflexão de Renato Bonelli para quem a intervenção de restauro - conforme estabelecida pela Carta de Veneza - acaba invariavelmente sobrepondo a instância histórica à artística, já que o monumento é definido como “histórico” (Artigo 1º), sendo interpretado, portanto, enquanto um documento que compreende uma somatória de fases. Para Bonelli, a Carta de Veneza nasce desatualizada, pois está embasada num simplismo empírico de um tardo positivismo oitocentista (Bardeschi, 1995); é um documento que descende diretamente das asserções de Gustavo Giovannoni que, por sua vez atualizou as considerações filológicas de Camillo Boito apresentadas no Congresso degli Ingegneri e Architetti di Roma em 1883. 7 In: Venezia, La Fenice: i fatti, gli atti ufficiali, le opinioni [contributi diversi]. Ananke - cultura, storia e tecniche della conservazione, Firenze, marzo, n.13, p.24-49 1996. Conforme Marco Dezzi Barderschi (1995), a Carta de Veneza foi estabelecida para combater as persistentes sugestões de refazimento em estilo reafirmando uma postura que havia sido enfatizada na teoria de Brandi (explicitamente contrário ao refazimento), embasada no entendimento de que uma obra de arte é irreprodutível. Essa proibição de completamentos em estilo ou análogos à preexistência que possam comprometer a leitura e a preservação da materialidade do documento prévio é uma postura que qualifica parte das teorias italianas de restauro e que foi reiterada na Carta Italiana del Restauro de 1972. O arquiteto Roberto Pane (1897-1987) também fez considerações sobre os limites objetivos do restauro filologicamente concebido expondo a complexidade e abrangência que o ato da restauração pode ter mediante bens total ou parcialmente destruídos. Durante reunião da Unesco em 1949, Pane destacou o apelo popular para a reconstrução de monumentos referenciais destruídos pela Segunda Guerra, uma operação que se não era totalmente justificada do ponto de vista crítico, pretendia responder aos imperiosos desejos de toda uma comunidade. Nesse contexto pós bélico, a cidade de Varsóvia tornou-se um caso emblemático cuja reconstrução se estendeu por extensos trechos que foram totalmente destruídos pelas tropas nazistas em 1945. Logo após o fim da Guerra foram iniciados os trabalhos numa empreitada que seguiu até meados de 1950 constituindo um evento simbólico de superação do povo polaco diante da tragédia. As reconstruções do centro histórico utilizaram como referência uma extensa documentação iconográfica que havia sido conservada mesmo durante a ocupação nazista; os fragmentos salvos também foram sistematicamente resgatados por civis voluntários. Alguns monumentos foram reconstruídos décadas mais tarde, como a Prefeitura e o Castelo Real. A justificativa para essas reconstruções se pautou pelo imperativo moral de identidade do povo polonês. No Brasil, por exemplo, as discussões internas nos respectivos órgãos de preservação sobre a Igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga (SP) quase que totalmente arruinada por uma enchente em 2010 ilustram a importância e contemporaneidade desse aspecto. Optou- se pela reconstrução da Matriz com materiais diversos dos originais, mas mantendo a aparência externa (Figura 1) como era antes da enchente a fim de atender às solicitações da comunidade que tinha nesse objeto arquitetônico uma importante referência de composição da praça central da cidade; interiormente (Figura 2 e 3) foram deixados alguns resquícios da antiga edificação arruinada perceptíveis principalmente nas galerias laterais (Rodrigues, 2017). As justificativas para essa opção estiveram embasadas nas disposições da Carta de Cracóvia (2000) que apresenta a relevância de uma motivação social para a reconstrução mediante uma situação catastrófica: “4. [...] A reconstrução total de um edifício, que tenha sido destruído por um conflito armado ou por uma catástrofe natural, só é 1º Simpósio Cientifico ICOMOS BrasilBelo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 aceitável se existirem motivos sociais ou culturais excepcionais, que estejam relacionados com a própria identidade da comunidade local.” (Unesco, 2000 apud Iphan, 2010, p.148). Figura 1: Igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga (SP), aspecto externo após sua reconstrução, 2014. Foto: Autora. Figura 2: Igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga (SP), galeria lateral com a exposição das ruínas das paredes originais e de fragmentos avulsos, 2014. Foto: Autora. Figura 3: Igreja Matriz de São Luiz do Paraitinga (SP), galeria lateral com a exposição das ruínas das paredes originais, 2014. Foto: Autora. Mas também é possível retomar às teorias do austríaco Alois Riegl (1858-1904) apresentadas no início do século XX em Der moderne Denkmalkultus, sein Wesen, seine Entstehung (1903) como uma chave para compreender a complexidade de enfrentamento do impacto dessas destruições. Riegl se refere à sensação de perda ao ver uma edificação que possuía uma função no cotidiano de uma comunidade (como uma casa, uma igreja ou qualquer outra obra) e passa a não tê-la mais, o que pode proporcionar uma súbita e intolerável impressão de “destruição violenta” (Riegl, 1990, p.59 - trad. nossa). No caso dos edifícios que já conhecemos sem uso - como as ruínas de um castelo medieval ou de um templo romano - a falta de uma atividade humana não é tão perturbadora. Considerações Finais Como pôde ser evidenciado através dos debates teóricos do século XX que têm se renovado diante dos desafios contemporâneos, ao contrapor a restauração à reconstrução há os pontos que foram levantados - falso histórico, autenticidade, grau da perda da unidade potencial do bem e distinguibilidade - e que estão circunscritos na operacionalização prática diante do patrimônio danificado. Para além desses aspectos tangíveis relacionados às instâncias estética e histórica dos bens arquitetônicos há que se considerar ainda os aspectos intangíveis associados aos valores simbólicos e à dimensão psicossocial sobre o tema da perda trágica de conjuntos arquitetônicos. Sendo assim, na convergência das dimensões tangíveis e intangíveis de um bem cultural, diante de perdas súbitas, à problemática do grau de arruinamento e à constatação e aceitação da perda de sua unidade potencial deve ser acrescida a dimensão traumática da situação. 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 Assim, os impasses conceituais levantados poderiam ser sintetizados da seguinte forma: em que medida a reconstrução poderia ser considerada válida, sem cometer um falso histórico e sem comprometer a leitura da antiguidade e autenticidade da preexistência? A restauração enquanto um ato cultural que envolve uma estrita avaliação de caso a caso não seria uma operação suficientemente adequada para responder a uma situação pós destruição? Segundo nossa análise, diante das controvérsias sobre a aplicabilidade de uma metodologia operacional há conflitantes abordagens sobre a reconstrução que puderam ser evidenciadas através dos documentos apresentados: a Carta de Cracóvia (2000) atesta que a reconstrução seria válida em casos de destruições traumáticas desde que haja uma “moticação social”; já na definição da Carta de Burra (1980), a reconstrução tem um caráter extraordinário que deveria limitar-se à complementação de algumas partes desfalcadas (e não de toda a arquitetura perdida), utilizando materiais distintos dos originais. Alguns teóricos demonstram que nas intervenções que buscam por uma mera restauração “estilística” ou uma reconstituição do bem “como era, onde estava” há uma falta de clareza sobre a aplicação dos princípios e métodos do campo disciplinar do restauro, compromentendo a conservação dos remanescentes em suas instâncias histórica e artística. No que tange à restauração, tendo em vista que se trata de um ato de natureza crítica e criativa (Bonelli, 1959), há um maior consenso entre os teóricos (não unanime) em considerá-la como uma operação respaldada por um cabedal metodológico que a dispõe de meios para propor soluções que coadunem as premissas que visam a preservação da materialidade preexistente às gerações futuras - distinguibilidade, mínima intervenção, reversibilidade e o uso de materiais compatíveis - aos anseios de uma comunidade que pretende restituir sua arquitetura danificada numa situação emergencial. Referências bibliográficas Annoni, Ambrogio. Scienza ed Arte del Restauro Architettonico: Idee ed Esempi. Milano: Framar, 1946. Bardeschi, Marco Dezzi. I principi della Carta di Venezia, oggi. Restauro, Napoli, n. 133-134, p. 17-32, 1995. BOITO, Camillo. Os restauradores. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2002. Bonelli, Renato. Architettura e restauro. Venezia: Neri Pozza Editore, 1959. 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Cracóvia, 2000. 1º Simpósio Cientifico ICOMOS Brasil Belo Horizonte, de 10 a 13 de maio de 2017 Venezia, La Fenice: i fatti, gli atti ufficiali, le opinioni [contributi diversi]. Ananke - cultura, storia e tecniche della conservazione, Firenze, marzo, n.13, p.24-49 1996. View publication statsView publication stats
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