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7"Vivendo"em"conflito"numa"França"sem"Estado" Uma"6pologia"dos"mecanismos"de"resolução"de"conflitos,"1050?1200" Juntamente com a manutenção da paz, a administração da justiça era uma função primordial para a tradição política no Ocidente. O direito público é a pedra angular da ordem político-social moderna e, por seis ou mais séculos, tem sido o objetivo e até o mecanismo de fundação de Estados nacionais. Nas sociedades do Ocidente, em contraste com outras (atualmente, de maneira mais notável, o Japão, onde contratos e conflitos, corporativos e privados, raramente necessitam de intervenção legal), tem se tornado frequente o uso de instituições jurídicas formais, centralizadas em maior ou menor grau, para resolver as usuais disputas e atritos da complexa vida em sociedade. Isso obviamente não significa que na França ou nos Estados Unidos contemporâneos as querelas necessariamente levarão à sala de um tribunal; ao contrário, em sua vasta maioria, esses casos são resolvidos através de compromissos extralegais ou informais. Mas tais conclusões privadas são encorajadas pelo senso comum de que tais aparatos legais existem e que, através de uma quantidade relevante de tempo e gastos, irão prover um julgamento definitivo ao qual ambas as partes serão requisitadas – ou mesmo forçadas, se necessário – a aderir. Deste modo, caso o sistema judicial seja acionado, ou simplesmente invocado, notória ou tacitamente, cortes judiciais capazes de chegar a um julgamento relativamente imparcial, decisões definitivas ou aplicações forçosas dessas decisões são uma parte basilar da sociedade ocidental. Não é surpresa, portanto, que historiadores do período medieval, retratando um período em que essas cortes eram inexistentes, ou estendiam sua jurisdição apenas aos elementos não livres da sociedade, ficaram provavelmente perplexos ao não verem nenhum meio de controle social ou gerenciamento de conflitos. De uma perspectiva contemporânea, ou mesmo daquela do século XIV, tais sociedades pareceriam anárquicas. Historiadores institucionais e jurídicos têm se encontrado, particularmente, em terreno desconhecido, e tendem a passar por cima do período feudal como um estado de organização primitiva, a manter um sistema de cortes privadas exercendo sua influência sobre indivíduos dependentes desta, ou a descartar tais meios de resolução de conflitos colocando-os como evidência da “anarquia feudal”. �1 Uma visão mais tradicionalista, sustentada por historiadores jurídicos como Y. Bongert, é a de que entre o fim das cortes carolíngias, nos séculos X e XI, e a ascensão das cortes reais e condais do fim do século XII, não existiram quaisquer instituições legais pelas quais a “anarquia feudal” do período poderia ter sido mitigada. O trabalho pioneiro de George Duby no campo das instituições judiciais da Borgonha, publicado inicialmente em 1946, pareceu, de alguma forma, reforçar essa interpretação, já que, como ele mesmo demonstrou de forma brilhante, as formas tradicionais de instituições jurídicas públicas, mais especificamente as cortes do conde e do bispo, gradualmente evoluíram para tribunais voluntários de mediação. Pelo fim do século XI, Duby concluiu, “obrigações morais e a persuasão dos pares eram tudo o que podia impor limites à sua violência e ganância.” Ainda que pareça confirmar a conclusão de gerações de historiadores jurídicos, a verificação de Duby sutilmente minou-a e apontou o caminho para uma nova compreensão das instituições e do controle social que substituiu as velhas estruturas legais carolíngias na Europa feudal: é verdade que não era possível enxergar os tribunais de uma França descentralizada por esses mecanismos; preferencialmente, deve-se examinar os horizontes morais e formas extralegais de pressão social. Em outras palavras, uma compreensão dos meios pelos quais os conflitos eram manuseados na França feudal não pode ser atingida através dos métodos mais tradicionais concebidos pela historiografia institucional e jurídica; ela demanda os métodos do historiador social e cultural. Em ambos os casos, medievalistas europeus e americanos responderam ao desafio de Duby. O primeiro a dar contorno às estruturas envolvidas nessas “obrigações morais e persuasão dos pares” foi Frederic Cheyette, que, num artigo de 1970, examinou o papel dos compromissos de resolução de disputas no Midi, o conhecido “pays de droit écrit”. Ele argumentou que antes da metade do século XIII, conflitos raramente se resolviam através de tribunais autorizados e em acordo com critérios jurídicos. Mais frequentemente, eles eram analisados por árbitro, sendo formalmente escolhidos ou simplesmente amigos e conselheiros, cujo objetivo não era julgar segundo um código de regras, mas encontrar uma solução que desarmaria uma situação real ou potencialmente explosiva. �2 Stephen White examinou a tese geral de Cheyette, isto é, de que no Oeste da atual França no século XI, conflitos não resolvidos por guerras, eram firmados por compromissos organizados através do uso voluntário e informal de árbitros. White concluiu que “compromissos não eram alcançados, como os julgamentos, através da aplicação de algumas poucas regras consideradas legalmente relevantes a uma disputa. Em seu lugar, eram listadas as obrigações conflitantes sobre relações sociais, bem como os direitos de propriedade... [e] serviam... para reconciliar partidos em disputa e criar interrelações de formas que constituíam a estrutura social das comunidades nas quais essas querelas se encontravam.” Stephen Weinberger então examinou os conflitos entre clérigos e leigos na Provença e percebeu que tais conflitos, em vez de evidenciarem uma possível “anarquia feudal”, revelaram que os leigos tentavam defender os direitos hereditários contra as reivindicações eclesiásticas baseadas em títulos legais. Os estudos de Lester Little e outros sobre os rituais pelos quais comunidades religiosas tentavam coagir oponentes também estão muito relacionados a isso; tais rituais eram mais visíveis em livros de liturgia monástica dos séculos X ao XII, precisamente o período em que tal justiça não estava disponível para instituições humanas. Todos estes estudos tornam cada vez mais claro que a concepção feudal de conflito era extremamente complexa, e mais relacionada às estruturas sociais e culturais do que à tradição legal. A sociedade medieval possuía numerosos meios não-judiciais de lidar com querelas, e elas parecem uma evidência de anarquia apenas quando observadas de uma perspectiva histórica formal e jurídica particularmente estreita. Muito ainda resta a ser feito até que a natureza do conflito na França feudal possa ser compreendida adequadamente. Diversas instituições judiciais regionais estão sendo analisadas a fim de tornar possível uma cronologia da transformação das instituições jurídicas carolíngias. Mais estudos destas transformações, semelhantes aos do modelo burgúndio do trabalho de Duby e de Henri Platelle sobre Saint-Amand, ainda são necessários, assim como maiores análises da formação e funcionamento das cortes de arbitragem como as de Cheyette, White e Weinsberger. Tão essencial quanto, é haver maiores pesquisas sobre os rituais pelos quais os conflitos eram dirigidos e �3 transformados, como o que Little faz na área de clamor litúrgico na Itália, França e Espanha. Somado a isso, devemos também repensar modelos conceituais nos quais compreendemos o local do conflito nas sociedades feudais. O modelo jurídico tradicional de solução de controvérsias é, como dito agora, inadequado. Em seu lugar, os medievalistas precisam começar a procurar por modelos conceituais diferentes, e aqueles quemais provavelmente nos serão úteis são encontrados na rica, e frequentemente contraditória, literatura da antropologia jurídica. Historiadores medievalistas não são de forma alguma os primeiros estudiosos a encontrar sociedades que lidam com conflitos e disputas sem o benefício de instituições centralizadas e impessoais de justiça, capazes de apresentar e impor vereditos definitivos. Diversas sociedades como estas existem, e mesmo que a Europa medieval seja radicalmente diferente dos mundos de, por exemplo, grupos como os “Barotse”, no norte de Zimbábue, ou os povos Kung do Kalahari, a experiência de antropólogos que estudam como estas e outras sociedades lidam como tensões sociais pode nos auxiliar a formar categorias úteis na compreensão da Europa medieval. Tendo tudo isso em mente, deixe- me, então, sugerir um modelo preliminar para a compreensão do conflito medieval. O Exemplo de Chorges Uma disputa do fim do século XI entre monges de São Victor (Saint-Victor) de Marselha e um grupo de cavaleiros da área de Chorges (nos Altos Alpes, próximo a Embrun) possui todas as características salientes dos conflitos medievais. O aparente problema era uma querela sobre a posse do sponsalicium, isto é, a oferta de fundação para o priorado de Chorges. A doação foi feita a São Victor em 1020. A determinação do Prior William em apresentar sua versão do que se passava entre os monges e os leigos resultou na inclusão do registro de São Victor de uma longa (10 páginas na edição de Guérard) narrativa do conflito. Sendo, de fato, uma espécie de minicrônica, o texto apresenta o que pode ser percebido como um teatro social no qual atuaram certos problemas fundamentais de hierarquia, estrutura comunitária local e demais relações. �4 Esse teatro era realizado sobre um pano de fundo de crise regional da autoridade, que começou com a morte do conde Joffred de Provença, em 1062 ou 1063, e se tornou ostensivo com seu filho, Bertrand, o último representante da casa condal, que morreu em 1090 ou 1094, precipitando uma rivalidade entre os condes de Barcelona e Toulouse pelo controle da região. A essa crise política, foi somada a turbulência da reforma gregoriana na Provença, que foi particularmente uma batalha dura e violenta. O bispo simoníaco Ribert de Gap, havia sido deposto, provavelmente pelo Papa Nicolau II, apesar da oposição dos cavaleiros locais, o que resultou na interdição da diocese por parte do Papa Alexandre II. O sucessor do bispo, um monge da Trinité de Vendôme, Arnulfo, desagradou tanto os cavaleiros locais que foi assassinado por um deles em 1074. Isso resultou num vácuo de autoridades públicas e, nas palavras de uma carta de Montmajour, “Graças a isso não houve naquele tempo nenhum duque ou marquês capaz de realizar a justiça corretamente, mas toda ordem laica, da mais baixa à mais alta, praticava sua injustiça diariamente.” O texto começa em medias res, com a morte de Poncius de Turre, um dos cavaleiros que haviam mantido o sponsalicium apesar dos protestos do mosteiro. Poncius, sua família e correligionários tinham sido excomungados por causa de sua recusa a devolver a propriedade ao priorado, portanto os monges e o clero não estavam dispostos a conceder-lhe enterramento cristão. A fim de sepultá-lo em terreno consagrado, seus parentes, durante um encontro presidido pelo “Conde” Isoard de Gap, aceitaram abandonar toda a propriedade que poderia demonstrar ter pertencido à doação original, com a garantia de que em troca eles poderiam manter em feudo certas mansiones ou fazendas. No dia seguinte foi pedido ao prior concordasse com essa resolução, o qual objetou dizendo que o acordo final deveria ser garantido pelo Cardeal- arcebispo Ricardo, o abade de São Victor. Em um encontro subsequente presidido pelo conde Isoard, os cavaleiros e monges representantes do abade aprovaram o acordo, mas deixaram o problema da identificação da propriedade não resolvido. Nesse caso em particular, de acordo com o prior William, a identificação teria sido complicada pelo fato de que o manso de Benedet Pela havia sido posteriormente dividido em dois mansos distintos, o de Salamus e o de Ferreng. Levando em consideração que a carta não mencionava essas �5 duas propriedades, os cavaleiros insistiram que estas não teriam feito parte do sponsalicium. O encontro terminou de forma inconclusiva, tendo o conde logrado apenas a convencer os grupos a jurar respeitar sua futura decisão. Os cavaleiros então procuraram seu senhor, o Arcebispo Lancelmo de Embrun, para informá-lo de que o prior, por levar sua querela ao conde, teria agido contra os interesses do arcebispo. Lantelmo ficou furioso e repreendeu a William mas foi, todavia, encontrar-se com o conde e concordou em permitir que Isoard arbitrasse o conflito. Enquanto isso, contudo, os cavaleiros e os monges, igualmente descontentes, começaram a organizar uma guerra particular. Para evitar a violência, o conde e o arcebispo convocaram os partidos novamente e começaram por convidar seus conselheiros (denominados “iudices”) à Igreja de São Cristóvão para perguntar qual a melhor maneira de resolver a querela. Os conselheiros sugeriram que Peter Poncius deveria perguntar a sua mãe sobre a extensão do sponsalicium e então ele deveria revelá-la sob juramento. O prior William foi então chamado à igreja e a solução lhe foi ofertada. Ele a rejeitou, insistindo que se Peter fosse determinar toda a propriedade, ele a aceitaria sem um juramento; já que caso contrário, os santos e monges poderiam sair prejudicados simplesmente pela ignorância de Peter. Foi assegurado a William, no entanto, de que este não seria o caso: se ele pudesse provar que mais propriedade pertencia à dotação do que Peter havia demonstrado, os monges poderiam tê-la. William aceitou esses termos. Então, Peter Poncius e seu amigo Peter de Rosset foram chamados e informados do acordo (placitum). Eles concordaram, e Peter Poncius comprometeu (fideiussor) cem solidi nas mãos do arcebispo como garantia de que em quatro dias ele, Peter, indicaria a totalidade do sponsalicium e realizaria o juramento. No dia indicado, no entanto, ele apresentou apenas a propriedade que já havia reconhecido anteriormente e negou que certas propriedades, inclusive os mansos de Salamus e Ferreng, estivessem incluídas. Ele concordou em dar sua palavra para confirmar esta demonstração no dia seguinte, mas na manhã seguinte não pôde ser encontrado em nenhum lugar da vila. A situação permaneceu nesse impasse até que algum tempo depois, quando Peter de Rosset quis organizar um casamento duplo unindo sua família e aquela do falecido �6 John de Turre. Ele iria se casar com a viúva de John, e seu filho, com a filha de John. Peter de Rosset foi até o Prior William e o pediu para intervir perante o lorde de John, o conde, e obter a permissão. William estava hesitante porque John tinha sido irmão de Poncius de Turre, e portanto, sua viúva estava sob a marca de excomunhão por continuar a manter parte do Sponsalicium. William sentia medo que através casamento de Peter com uma participante da querela, perderia sua amicicia (amizade). Peter prometeu que, caso William garantisse seu apoio, ele faria a esposa de John renunciar à propriedade antes de se casar. William então concordou e organizou os termos do noivado. No entanto, quando os cavaleiros e monges se encontraram para discutir o acordo em um placitum, o primeiro insistiu que os monges pagassem 40 solidi em troca de seu gripicionem (garantia de cessar a querela imobiliária/quitclaim). Os monges recusaram, e os grupos se separaram sine amore. Sem surpresas, os monges se recusaram a abençoar os casamentos (hordinem facere,sicut mos est), e os cavaleiros se despediram com ameaças contra os monges e celebraram os casamentos sem eles. Os cavaleiros logo encontraram uma maneira de se vingar. Eles atacaram um padre de Saint-Victor que passava por Rosset com vinho para o priorado, tomaram seu cavalo e suas mulas, e confiscaram o vinho. Quando William foi até lá exigí-los de volta, foi enfaticamente amaldiçoado. Ele então apelou ao conde por justiça. Isoard chamou Peter de Rosset perante a si, fez com que Peter pagasse e se retratasse, e então o ordenou a abdicar de toda a poção do sponsalicium que, através do casamento, ele havia adquirido e mantinha injustamente, para encerrar sua “malefacta” e compensar os monges pelas injúrias cometidas contra eles. Alguns dias depois, Peter e seus filhos foram até o arcebispo e abdicaram das terras em favor deste na presença dos monges. Em troca, o arcebispo liberou Peter de sua excomunhão. Essa conclusão durou apenas enquanto o conde estava presente na região. Assim que saiu em cruzada para a Espanha, Peter de Rosset, seus filhos e os filhos de Poncius de Turre, vendo que a propriedade disputada não possuía qualquer tipo de proteção, começaram novamente a molestar os monges. Mais uma vez os cavaleiros foram excomungados, mas isso apenas os encorajou a redobrar seus ataques. Eles pastorearam seus animais em campos semeados, cortaram árvores da propriedade para usar como lenha para seus fogos, se apropriaram das oferendas destinadas à igreja, e até mesmo �7 impediram os monges de realizarem os últimos ritos de seu moribundo “oficial de justiça”, Martin, chegando ao ponto de jogarem a Eucaristia e a cruz para fora da casa quando os monges chegaram à beira de seu leito. Quando Martin morreu, os monges o enterraram, mas do dinheiro que havia deixado para o priorado, Peter Poncius e Peter de Rosset tomaram dez solidi, e os deram a outra comunidade monástica, a de Saint- Michel. Os monges apelaram à condessa, que chamou os cavaleiros a perante a ela. Apenas Peter de Rosset se preocupou em aparecer, e apenas para vilipendiar William. Mais tarde, quando seu senhor, Arcebispo Lantelmus, visitou Chorges, Peter de Rosset e Peter Poncius concordaram em abrir mão da propriedade que possuíam em --“feudo”— como ele os havia mandado, e então asseguraram sua promessa com uma garantia de 200 solidi e dois fideiussores. O arcebispo ordenou um “oficial de justiça”(his?) chamado Peter para se apresentar perante a ele e a igreja e, ameaçando-o de excomunhão, o ordenou, pela fidelidade que ele o devia, a dizer a verdade. Peter ficou aterrorizado mas admitiu que o manse de Benedect Pela pertencia ao sponsalicium. Ao deixar a igreja, o Arcebispo então ordenou a Isoard, filho de Poncius de Turre, e Girald, filho de John de Turre, a renunciar a propriedade da Igreja de Santa Maria e o sponsalicium como Peter Poncius havia feito, e foi obedecido. Eles alegaram, no entanto, que o manse em disputa eles mantiveram pelo arcebispo em pessoa, e que eles admitiriam que este fazia parte do sponsalicium, não porque acreditavam que fosse verdade, mas simplesmente em cumprimento do desejo de seu senhor, o arcebispo. Lantelmus instou-os a aceitarem a propriedade não simplesmente porque ele o desejava, mas porque era a verdade. Eles o responderam afirmando que não sabiam que ela um dia teria feito parte do sponsalicium. Então, o arcebispo respondeu que não sabia como ele poderia repreendê-los se eles não sabiam que a propriedade teria fei’o parte do sponsalicium. A essa altura, os cavaleiros finalmente aceitaram a extensão do sponsalicium e imploraram por repreensão (?). Após o reconhecimento formal, o arcebispo buscou um compromisso. Ele reuniu os dois grupos e ofereceu conservar os cavaleuros como vassalos de metade do tasche ou dividir a colheita de Benedect Pela e daria aos monges outra propriedade. Os cavaleiros recusaram, alegando que eles prefeririam chegar a um consenso de acordo �8 com uma das duas condições: ou abririam mão de metade do manse de Benedect Pela e dariam aos monges outra propriedade, a quantidade exata seria definida pelos amigos destes cavaleiros e dos monges em conjunto; ou manteriam toda a propriedade dos monges em feudo, pagando um censo anual. Essas contraofertas desagradaram o arcebispo, e a tentativa de resolver a querela terminou sem nenhuma mudança: os cavaleiros continuaram a manter a propriedade disputada como antes. O prior William continuou sua campanha para que o arcebispo e o conde forçassem um acordo e pôde reavivar o assunto quando o conde de Urgelle foi a Chorges. Uma vez mais os monges e cavaleiros apareceram e repetiram suas exigências e contra exigências. Muito da disputa dessa vez envolveu encontrar testemunhas confiáveis cujo testemunho fosse aceitável para os dois grupos. William sugeriu os filhos de um certo Guina Tasta Ceias, mas um dos cavaleiros, Bruno Stephanus, rebateu, alegando que eles seriam jovens demais para deporem; William então ofereceu o último testemunho do pai, mas Bruno, talvez até com sarcasmo, afirmou que um homem morto era velho demais para servir como testemunha. Finalmente o oficial Peter foi novamente selecionado. Ele repetiu o juramento que havia feito na reunião anterior, asseverando que os manses disputados, e algumas outras propriedades haviam feito parte do sponsalicium, e todos concordaram em aceitar seu testemunho. Os cavaleiros retornaram a propriedade para as mãos do arcebispo, e o Conde Isoard instou que William aceitasse os cavaleiros como seus vassalos (portanto, retornando a propriedade para eles em feudo). William a princípio concordou, mas insistiu que tal decisão poderia ser feita apenas pelo abade de Saint- Victor, que estava ausente. Ele tentou organizar um encontro entre Petr de Rosset e Peter Poncius e o abade, mas os dois cavaleiros se recusaram a se apresentar. Apenas quando o Abade Richard veio a Chorges de fato é que eles puderam encontrá-lo. Dessa vez, eles se encontravam dispostos a admitir que o manse de Benedect Pela e algumas outras propriedades disputadas tinham sido parte do sponsalicium. William pressionou-os, contudo, a tomarem conhecimento não apenas as propriedades que o oficial Peter havia enumerado especificamente, mas também outras que ele havia dito que haviam um dia feito parte do sponsalicium mas que não faziam mais. Tal tarefa os cavaleiros se recusaram a realizar sem que houvessem outros testemunhos sob juramento do oficial Peter. Porque Peter não era vassalo do abade, não �9 obstante, o abade não poderia compelí-lo a garantir um juramento. A essa altura, o abade determinou que ele deveria, portanto, ter que esperar pelo Arcebispo Lanthelmus e pelo Conde Isoard para relatar o que o oficial havia atestado. Se isso chegou a acontecer, o fato é ainda desconhecido, já que a descrição se encerra nesse ponto, com o amargo comentário, “E assim permaneceu”. Análise: O Conflito como Estrutura Essa descrição muito simplificada da disputa parece, a princípio, sustentar a imagem tradicional do conflito na sociedade do Século XI como algo próximo de uma anarquia: os cavaleiros avarentos, a fraqueza do conde, a insuficiência das diversas tentativas de resolução, tudo pode implicar numa sociedade sem ordem ou controle. Em um exame mais próximo do contexto e das várias fases da querela, no entanto, emerge uma série de eventos cuidadosamente estruturados que esbarra nas questões mais fundamentais de status, poder e de senhoria [lordship; pode ser também traduzido como domínio] na região de Chorges durante um período de rápidas mudanças no âmbito social e institucional, aceleradas pelo movimento da reforma e pelo conflito pela disputadasucessão provençal. Devemos então começar reconhecendo que na Chorges do Século XI, assim como de fato são a grande maioria das sociedades, incluindo a nossa própria, a contenda desempenhava um integral, e em toda a construção, papel na vida diária. A disputa era uma parte orgânica da estrutura organizacional desta sociedade. As unidades sociais possuíam diferentes interesses, e a busca por tais interesses naturalmente levou a conflitos tanto entre grupos similares (parentes vs. parentes, monastérios vs. monastério, senhor vs. senhor) quanto entre grupos diferentes (laico vs. eclesiástico, família vs. seguidores feudais [feudal following], clero regular vs. clero secular). O prior, o arcebispo e os cavaleiros estavam cada um envolvidos em suas próprias buscas em harmonia com seus valores particulares, o que levou a conflitos com aquelas dos outros. O prior estava preocupado com a integridade territorial da propriedade de sua instituição, uma preocupação pela qual ele deveria prestar contas a Saint-Victor por si próprio; o arcebispo se encontrava igualmente preocupado com as temporalidades da �10 diocese, assim como com suas relações comoc senhor feudal com seus vassalos. Os cavaleiros ansiavam por proteger aquilo que tinha se tornado direito hereditário familiar em sua localidade. Em adição, conflitos nasceram pela perseguição de interesses divergentes ou níveis sociais (senhor vs. camponês, urbano vs. campo, bispo vs. baixo clero). Nem eram as origens do conflito limitadas a tensões de aspecto social; pois a mais religiosa compreensão de relação entre mundo natural e ações humanas prevalecente na cultura também levou a inevitáveis altercações. Porque todo aspecto do mundo era assimilado como possuidor de um significado direto na vida humana, o que chamaríamos hoje de “desastres naturais” eram então entendidos como dotados de significados e demandavam retribuição, ou, pelo menos, algum tipo de reação humana dirigida àqueles considerados passíveis de culpa. Pragas, períodos de fome, inundações, más colheitas portanto significavam que os Judeus, bruxas, hereges, pecadores ou reis que eram percebidos como causa direta ou indireta, deveriam ser destruídos, excluídos, punidos ou corrigidos, dependendo das circunstâncias e de como a comunidade as interpretava. Na sociedade medieval, contatos diários, ou ao menos frequentes, com oponentes era inevitável; portanto, o conflito era constante e uma parte contínua da vida. Inimigos frequentemente eram forçados a se encontrar, talvez mesmo a trabalhar juntos, e certamente, rezar juntos, e isso reforçava constantemente a atmosfera de hostilidade que envolvia em última instância, não apenas os rivais, ou suas famílias, mas toda a comunidade. Todos os conflitos levavam para si uma sociedade mais alargada; já que indivíduos e famílias eram forçados a tomar um lado, a definir suas relações com os principais participantes. Na disputa de Chorges nós vemos um conflito que envolve não apenas o prior e os irmãos de Turre, mas também seus respectivos vassalos, senhores (o abade e o arcebispo, respectivamente), parentes e, em última instância, os vizinhos que eram forçados a testemunhas por um lado ou pelo outro. O círculo de conflito se torna progressivamente mais amplo. O magnetismo fatal que os feudos exerciam na sociedade de maneira geral é, talvez, melhor ilustrado pela literatura contemporânea. A essência da tragédia em épicos e sagas medievais é frequentemente exatamente isso: um homem, sobrecarregado por �11 obrigações complexas a grupos externos, é fatalmente atraído para seus conflitos. Neutralidade é impensável. O exemplo mais óbvio é o conflito entre Roland e seu padrasto, Ganelon, que leva em última instância à morte não apenas dos dois principais envolvidos, mas de seus pares, numerosos cavaleiros francos e trinta familiares de Ganelon (para não mencionar milhares de sarracenos). Em Chorges, o prior tenta evitar atrair Peter de Rosset para a teia de contendas, por medo de perder sua amizade; o oficial Peter tenta evitar dar um testemunho porque sabe que ao fazê-lo iria colocá-lo dentro do conflito. Ambos os esforços deram em nada. Nesse processo de tomar lados, de testar ligações, veio não apenas o antagonismo social, mas também coesão. As disputas, portanto, serviram para definir os limites dos grupos sociais: familiares, grupos de vassalagem, conexões de patronato, e semelhantes. Além disso, conflitos criaram novos grupos assim como indivíduos ou partidos procuraram novas alianças para apoiá-los em sua tarefa de insistir por suas reclamações [ou direitos, fica a critério]. Finalmente, todo conflito testava as preexistentes e implícitas ligações sociais e hierarquias, e cada novo surto demandava que ligações fossem reafirmadas ou negadas. A disputa de Chorges testa e reforça as ligações unindo os grupos de Turre e de Rosset, testa e reforça a lealdade de seus vassalos e amici, e força toda a comunidade local a tomar uma instância e se definir na relação entre os dois lados. Ao fim do relato (que não significa o fim da querela), os cavaleiros têm razão para duvidar da força de suas ligações com o senhor, o arcebispo, e a reconfortarem na lealdade de Bruno Stephanus e seus outros vassalos, que provaram sua dedicação. O arcebispo e os monges, que haviam se enfrentado diversas vezes como oponentes, se aproximaram e um esforço mútuo pelo fim do conflito. Como a disputa sobre o sponsalicium em si, sua narrativa não se inicia pelo “começo” e segue até o “fim”. Isso é típico de tais registros, porque esses conflitos eram parte tão essencial do pano social que dificilmente alguém conseguiria falar sobre eles como possuidores de um começo, um meio, e um fim. Conflitos eram mais estruturas do que eventos – estruturas frequentemente durando gerações. A base para as formas sociais em si era frequentemente um conflito herdado, de longo prazo sem os quais os grupos sociais teriam perdido seu significado e, por conseguinte, sua coesão. Como historiadores, então, nossos interesses devem ser menores em como esses antagonismos �12 de baixa patente [low standing] eram resolvidos, do que como eram manejados. Os usos do conflito são mais relevantes do que as “causas” ou “soluções” de incidentes distintos, enquanto tanto começos quanto fins que aparecem em nossos relatos raramente os são. O que eles realmente são, são evidências de momentos expressivos nos quais estruturas conflitivas mais profundas se abrem, são usadas para determinados propósitos sociais e então parecem desaparecer, apenas para reaparecerem novamente no futuro. Essas manifestações de conflito não são aleatórias, já que elas envolvem questões particularmente críticas para aquela porção da sociedade a qual podemos vislumbrar em nossos textos. Essas questões são a terá e seu uso, domínio e honra, sendo a última de uma vez um termo concreto que abarca os dois primeiros, e uma categoria mais larga do reconhecimento ritual e público de status e de regozijo alcançado através dos outros dois, seu oposto sendo honte, ou desgraça, temida acima de qualquer outra coisa em uma sociedade cavalheiresca. De forma semelhante, as formas tomadas por eclosões dramáticas de conflito nessa sociedade são distantes do aleatório. Elas frequentemente incluem a tomada violenta da propriedade, o assassinato ou captura de seus oponentes e o real ou ritual exercício de poder sobre pessoas ou coisas em disputa. No exemplo de Chorges, o problema aparente é a terra. Para compreender o contexto, no entanto, precisamos retornar à fundação do priorado e à doação original de seu sponsalicium pelo Arcebispo Rado de Embrun e Isoard de Mison em 1020.O presente de fundação incluía um manse identificado pelo nome da pessoa que trabalhava nela, um certo Benedet Pela (Benedictius Peladus), e doado por Rado. Através de cinquenta anos, a família do vinsconde de Embrun (à qual Isoard de Mison provavelmente pertencia) fez uma série de doações a Saint-Victor, mas as relações entre os poderes locais de Embrun e o grande monastério de Marseillaise não eram sempre calmas: o arcebispo foi envolvido em uma série de conflitos que diziam respeito a direitos sobre os bens temporais do priorado. Outrossim, os cavaleiros envolvidos na disputa eram dificilmente menos ligados ao priorado; suas famílias haviam formado laços a este por trocas e outras relações ao longo de gerações. Eram mais antigos amigos do que inimigos do priorado, apesar de que eram também vassalos do arcebispo, que havia dado a eles, aparentemente, a disputada propriedade em feudo. Peter de Rosset em particular havia feito doações a Saint-Victor. Tendo feito muito pelo �13 priorado, esses homens agora procuravam um relacionamento particular com essa instituição que, em sessenta anos desde a sua fundação, havia se desenvolvido e se tornado um importante e crescente detentor de terras e poder na região de Chorges. O que eles buscavam não era simplesmente a propriedade, mas o esclarecimento das relações estruturais propriamente ditas entre si, seu senhor arcebispo Lantelmus, e o priorado, o que é claro pela forma como insistiram em se tornarem vassalos do priorado, com direitos de feudo [enfeoffed, não possui tradução] sobre toda ou parte da terra do sponsalicium. A importância da tal relação de amizade é enfatizada pela terminologia: William teme perder a amicicia de Peter de Rosset, e que depois da querela os cavaleiros se vão sine amore. Essa amizade deve ser criada ou restaurada com o objetivo de resolver as questões em jogo; sem um delineamento explícito dos relacionamentos entre grupos não existiria a menor chance de alcançar um consenso na questão que diz respeito à propriedade. Nem há, tampouco a possibilidade de um relacionamento neutro entre os monges e cavaleiros. Na falta de uma resolução real, os dois grupos continuarão inimigos, um sob a pena da excomunhão, ou seja, sob ataque da Igreja; o outro molestado e incomodado frequentemente pelos cavaleiros. Os problemas que contextualizam o conflito são, portanto, profundamente amarrados à mudança de estruturas de poder da região na qual grupos puramente locais – cavaleiros – estão tentando definir seus relacionamentos com um grande, geograficamente diversificado e poderoso monastério. Mas, quando a latente estrutura conflitual resulta em exageradas e explícitas hostilidades – aquele episódio específico e carregado poderia ser tradicionalmente interpretado como disputa? É impossível saber. A disputa já estava ocorrendo ao início do documento e continuou após seu fim, e apesar de ter sido “resolvida” diversas vezes, a questão continuou a eclodir outras vezes. Essas estruturas de conflito latentes no tecido social aparentam ter se incendiado num conflito evidente em específico, momentos cruciais quando as ligações sociais (e portanto os conflitos que ajudaram a cria-las e sustenta-las) necessitaram ser revisitadas e rearticuladas. Em Chorges, os momentos de particular desarranjo, foram instâncias de transição nas duas comunidades: a morte de John, os casamentos de Peter de Rosset e de seu filho. Esses foram os pontos no ciclo da vida aristocrática nos quais as relações deveriam ser explicitadas e propriedades de terra deveriam ser esclarecidas. O menos �14 significativo nessas circunstâncias foi que os ofícios sacramentais da Igreja foram necessários, dando aos monges uma maior vantagem do que normalmente teriam. Como o conflito em si, que poderia perdurar por anos, a sentença de excomunhão não era necessariamente um fardo tão pesado de se carregar como a Igreja esperava que fosse, mas era certamente algo difícil de se morrer sob, e talvez ainda mais difícil de ser enterrado como excomungado. De maneira semelhante, as delicadas negociações ao redor do novo casamento de uma viúva herdeira requeriam a assistência do prior, tanto para negociar com o senhor da viúva, quanto para abençoar a união. Estruturas de conflito como essas não são de forma alguma exclusivas à Europa medieval. O que é pouco usual no “tratamento de conflitos” no décimo primeiro e décimo segundo século é, em grande parte da Europa Ocidental, que não havia nenhuma forma efetiva, centralizada de canalizar ou limitar erupções ou convertê-las em outras formas de ação social. Ao longo do século X e XI, cortes públicas comitais, que haviam funcionado mais ou menos bem no período carolíngio, haviam desaparecido de grandes áreas da Europa. Essas cortes que continuaram ou eram, ou se tornaram rapidamente, privadas. Donos ou mantenedores de terras individuais (isto é, na velha aristocracia), os recém emergida sociedade livre guerreira, e as instituições eclesiásticas, todas possuíam suas próprias cortes, mas estas serviam apenas para prover a justiça aos seus dependentes não livres ou semi-livres. Aqui, “justiça” era severamente dispensada, e os julgamentos reais eram “reconhecidos” através de julgamentos, ordenamentos, ou, em áreas de tradição legal romana, testeminho. A jurisdição dessas cortes não se estendia, no entanto, além do círculo dos dependentes de um senhor, e frequentemente ele não era capaz mesmo de requerer que os seus próprios vassalos resolvessem suas disputas na corte. Essas cortes privadas eram, portanto, instituições de menor cunho público do que importantes fontes de controle social e receitual. Não se pode dizer que, aqueles suficientemente poderosos para escapar das jurisdições privadas, ou seja, os milites, ou ordens cavaleirescas, e a Igreja – não eram sujeitos a nenhum sistema público de legislação ou justiça; mas o sistema que prevalecia era imanente na comunidade e se expressava mais em negociações como a de Chorges do que em uma autoridade central ou transcendental como um conde. De fato, condes como Isoard de Gap, deveriam ser vistos menos como autoridades públicas �15 impotentes do que como indivíduos num esforço para coagir ou persuadir seus vizinhos em submeterem-se à sua justiça privada. Isso não significa que lei e sistemas legais eram desconhecidos. Ao contrário, pode-se falar de uma enorme abundância de sistemas legais: as leis germânicas tradicionais como transmitidas e retificadas pelos carolíngios; a lei romana continuava viva em diversas regiões do sul da Europa; um corpo de leis eclesiásticas; e uma lei feudal emergente. O que faltava era um sistema que forçasse mutuamente o senso de comunidade e um sistema jurisprudente ou outros meios pelos quais indivíduos pudessem ser controlados ou compelidos. Aonde cortes comitais continuaram a se encontrar, participações da comunidade livre eram majoritariamente voluntárias, e decisões, frequentemente chamadas enganosamente de “julgamentos” (iudicia) nos documentos que preservaram a forma mas não o conteúdo da tradição carolíngia, não eram executáveis pelo conde ou juiz. Mesmo quando um conde particularmente forte podia impor sua justiça sobre a sociedade livre de sua região, esta imposição era normalmente possível através apenas do medo, e seu desaparecimento, através da morte ou ausência, eram campos suficientes para que seus julgamentos fossem ignorados e a violência eclodisse novamente. Nenhuma comunidade baseada numa abstrata “regra da lei” verificava ou controlava a erupção de um conflito violento. A situação em Chorges era exatamente como a exposta acima. Apesar da presença de lordes importantes da região,o arcebispo e o conde – e apesar do vocabulário do texto, que se refere a iudices, placita, iusticiam facere, iusticiam dare, placitum facere, e assim por diante – os tipos de procedimentos raramente podem ser denominados adjudicações da disputa. Mais do que agir como “juízes”, o arcebispo, o conde, e seus conselheiros não poderiam fazer nada mais do que sugerir soluções ou, no máximo, impor soluções temporárias que se dissolveriam assim que o conde estivesse ausente da região. No momento em que Isoard foi para a Espanha para enfrentar os “bárbaros”, deixando a terra sine potestate, o velho conflito prosseguiu. Na falta de tal comunidade de autoridades mutuamente reconhecidas e um tal senso de “regra da lei”, indivíduos e grupos, para quem a neutralidade era impossível, se referiam uns aos outros como amici – isto é, aqueles que eram ligados por uma pax ou amizade – ou como inimici – ou seja, aqueles que se enfrentavam em uma possível ou real estado de �16 guerra. Se iniciando no décimo século, o movimento Paz de Deus tentava induzir membros da sociedade a se unirem em uma pax que iria estabelecer um relacionamento positivo e comum entre vizinhos, e formar as bases para o controle de comunidade. Essa tentativa de substituir a paz de Deus por aquela não mais efetiva paz do rei encontrou oposições tanto de baixo, já que os guerreiros livres a consideraram uma imposição sobre sua liberdade, quanto por cima, já que reis, imperadores, e condes a reconheceram como uma forma de competição. De forma não surpreendente, exceto naquelas áreas onde magnatas puderam cooptar a Paz de Deus e utilizá-la para expandir sua autoridade territorial, esta falhou em criar instituições de justiça pública ou mantenedoras da paz duradouras, baseadas num consenso espiritual. Mecanismos Para o Gerenciamento de Conflitos Para acertar a ausência de um sistema de cortes público com uma jurisdição reconhecida não quer dizer que nesta sociedade existiu um estado de anarquia. Grupos e indivíduos pertenciam a uma sociedade e a uma cultura notavelmente homogêneas, e dentro deste sistema homogêneo, eles lidavam com suas relações conflituais de acordo com um complexo de valores comuns e regras implícitas. O modelo primário para lidar com outros com quem tinha-se uma disputa era uma auto-ajuda armada, o feudo. Esse era o método natural de se endireitar os erros num grupo social que baseava sua existência em, e justificava seu papel social na guerra. O modelo de feudo não estava confinado ao mundo laico. O clero, especialmente as comunidades monásticas, que dominavam a sociedade religiosa do período, dividiam o ideal de seus irmãos marciais e estavam constantemente prontos para empreender uma guerra espiritual e até mesmo uma guerra física contra seus inimigos. Tais conflitos, frequentemente tidos como guerrae in fontes contemporâneas, não eram de forma alguma, no entanto, conduzidos como guerras ilimitadas que visavam a extinção da família ou facção opositora. Normalmente, tal guerrae tinha o interesse de reestabelecer o equilíbrio em ofensas reais ou imaginárias (olho por olho) e portanto para restaurar um equilíbrio de honra, ou então eram empreendidas para alcançar vantagens temporárias e forçar o inimigo a negociar questões mais profundas e �17 subjacentes. Essas questões podem ser a posse de propriedade, o esclarecimento de relações hierárquicas, ou o reconhecimento de ligações e obrigações tradicionais. Quando, por exemplo, Hugo “Chiliarchus”, frustrado em suas tentativas de obter o que considerava um tratamento digno de seu senhor, William IX da Aquitânia, negou suas ligações de fidelidade e começou uma guerra contra seu soberano, chegando ao ponto de tomar alguns de seus castelos, e não tinha o interesse de tornar a quebra permanente. A “guerra” não era nada mais do que um ataque limitado e cerimonial, feito apenas para indicar a seriedade da situação e obter para si uma posição mais forte de negociação com seu antigo e eterno senhor. É claro, um feudo não precisa ser mantido apenas pela guerra: poderiam igualmente ser buscado através de um incômodo ocasional, uma interferência nas atividades diárias do inimigo, ou mesmo ataques verbais em assembleias ou cortes legais. Os cavaleiros e monges em Chorges tiveram diversos meios de urgir por seus interesses, cada um específico de sua posição social. Os cavaleiros buscavam exercer domínio sobre a propriedade em disputa, ou ao menos evitar que os monges o fizessem, ao tomar a propriedade, destruir as lavouras, e de maneira geral, atrapalhando a exploração da terra. Eles também tentaram dificultar o exercício das atividades religiosas dos monges, particularmente quando aquelas atividades, como a administração dos ritos finais, poderiam beneficiar os monges materialmente. Por sua parte, os monges buscaram interromper a rotina na comunidade laica através da recusa em realizar os sacramentos e através da excomunhão (realizada, claro, pelo arcebispo). Assim como a guerra era um ato belicoso cerimonial com o intento de exercer pressão sobre o inimigo, essas medidas litúrgicas poderiam ser exercidas para o mesmo fim. O repertório incluía rituais de excomunhão, maldição litúrgica, humilhação pública e práticas do tipo. Esses rituais serviam tanto para anunciar à sociedade o grande erro que haviam cometido, quanto para reafirmar a estrutura de relação propriamente dita, a qual, de acordo com os clérigos, havia sido estorvada. Eles também tinham o intento de compelir a maior parte da sociedade a tomar lados no conflito e portanto, ordenar uma pressão comunitária por uma resolução ou ao menos a contenção de seus inimigos. Esses ritos deveriam ser vistos não como rituais de resolução de �18 conflitos propriamente ditos, mas como meios de continuação do conflito de forma a reforçar a posição relativa da igreja na estrutura conflitual da sociedade. Todos esses rituais eram públicos. Excomunhões e maldições rituais, por exemplo, aconteciam durante a missa de Domingo imediatamente após a leitura do evangelho. Uma humilhação ritual, na qual as relíquias e outros objetos sagrados da igreja eram colocados no chão e cobertos com espinhos acontecia após a consagração e antes do beijo da paz. O significado do ritual era claro e explicado graficamente aos presentes. Em caso de excomunhão, o bispo explicava à congregação exatamente como a pessoa a ser excomungada havia ofendido a Deus e, através de seu orgulho extravagante, havia se cortado da comunidade dos fiéis. A maldição ritual praticada em monastérios, que não tinham o poder episcopal para excomungarem, buscava de forma semelhante realizar ofensas claras ao inimigo e exigir, através impressionantes ou ficcionais confirmações episcopais ou papais o direito a amaldiçoar seus oponentes. A humilhação ritual buscava o mesmo objetivo através de uma inversão física do status hierárquico propriamente dito: as relíquias e imagens sagradas da igreja eram colocadas no chão e cobertas com espinhos para mostrar como, através de seu orgulho, os inimigos haviam contrariado as ordens divinas. Em Saint-Amand, depois que o crucifixo havia sido colocado no chão da igreja, uma lista de ofensas cometidas pelos inimigos do monastério foi colocada na mão aberta de Cristo para que ele, e presumivelmente todos os outros, soubessem a exata causa da humilhação. Apesar de que o clamor, o chamado ritual pela ajuda de Deus, formava o coração desses rituais, o religioso não parava no apelo divino, já que as liturgias eram designadas para atrair também o público. A excomunhão colocava o indivíduo em posição de exílio em sua própria comunidade. Sob a dor de se juntar a ele ou ela comoexcomungado, ninguém deveria dar ao condenado comida ou abrigo, ou mesmo interagir com ele ou ela, exceto que houvesse a possibilidade de arrependimento. As terríveis maldições colcoadas sobre as cabeças dos inimigos do monastério deveriam visitar também aqueles que auxiliassem os amaldiçoados. E após um ritual de humilhação, o fechamento da igreja à comunidade laica local privava todos na região do acesso ao divino até que o conflito fosse resolvido. �19 Nesses rituais podemos discernir três objetivos: primeiro, isolar o inimigo tanto de Deus quanto dos homens; segundo, romper as relações sociais normais da comunidade – levar as relações diárias usuais a uma parada; e terceiro, apresentar uma imagem das estruturas hierárquicas apropriadas para o mundo, assim como uma imagem gráfica e ritual de inversão não natural, causada pelo ofensor. Ao apresentar como o sistema divino havia sido ameaçado, o clero poderia insinuar a compreensão de todo acidente natural, ferimento, ou revés na sorte no campo inimigo como retribuição divina sendo aplicada sobre o malfeitor e seus aliados. Assim como em Chorges, tais rituais eram particularmente efetivos em momentos críticos específicos da vida. Na hora da morte, um excomungado ou inimigo de longa data do monastério local poderia ser levado pelo medo da danação a buscar uma resolução. Se isso falhasse, a Igreja possuía outra arma poderosa: negar um enterro cristão. Não é incomum encontrar relatos de acordos alcançados entre herdeiros e monastérios enquanto o corpo do velho oponente jazia não enterrado em seu meio. Assim como nos casos de casamento, que para a sociedade cavaleiresca era um forte tipo de aliança entre famílias assim como meios cruciais de continuação da família, a comunidade laica ansiava por uma bênção da igreja, o que era altamente desejável apesar de não essencial para garantir uma união frutífera e legítima. Essas pressões, ambas no aspecto individual e no comunitário como um todo, tinham o interesse não de destruir os inimigos da Igreja, mas de buscar negociações. Apesar dos textos escritos pela perspectiva do claro serem lidos como se os resultados de seus ritos fossem a abjeta rendição dos malfeitores, um exame mais minucioso frequentemente sugere que, sob a pressão do público em geral e dos amigos do senhor de seu oponente, um compromisso podia ser negociado. A proposta definitiva de negociação era para estabelecer a pax ou amicitia entre as facções rivais, ou seja, criar uma relação positiva para substituir o estado de guerra. Em Chorges, ambos os lados estavam relativamente dispostos, caso outras formas de ação direta falhassem ao restaurar a amicitia, a recorrer às armas, e essa ameaça de se iniciar a uma guerra aparentou ter sido a causa majoritária dos esforços da comunidade de arbitrar a disputa. A negociação pode ser levada adiante entre os líderes das facções �20 opositoras. Portanto, o abade ou prior do monastério talvez se encontrasse face a face com o cavaleiro com quem disputava a parte da propriedade exigida pelo monastério. Mais frequentemente, como em Chorges, negociações eram continuadas por um árbitro com o qual os dois grupos concordassem. A posição de árbitro não era designada institucionalmente. Era um trabalho dado a alguém que por virtude de sua posição social ou carismática pudesse exercer uma certa força moral na comunidade, e que possuía algum tipo de relação com as duas facções. Um árbitro propriamente neutro provavelmente não poderia ser encontrado em tal sociedade, mas mesmo que algum possa ter sido, é provável que cada lado tenha esperado que os laços que prendiam o árbitro ao seu lado da disputa fossem se provar as mais fortes na disputa. Frequentemente o árbitro era um conde, bispo, ou abade, mas em todo caso ele exercia seu papel apenas sob a concordância dos dois grupos em disputa. Em nosso exemplo, nem o arcebispo nem o conde eram observadores desinteressados no resultado da querela. O arcebispo em particular era o senhor feudal da maior parte dos cavaleiros envolvidos na disputa – decerto, eles alegavam que ele próprio havia dado a propriedade disputada a eles em feudo. John de Turre também era vassalo do conde, assim como era de Isoard que Peter de Rosset deveria obter permissão para se casar com a viúva de John. Era graças a essas ligações pessoais, não por causa de suas jurisdições, que eles eram chamados para tentar arbitrar, como fica claro pela raiva inicial do arcebispo quando ele descobriu que o assunto não tinha sido trazido a ele, mas ao conde, assim como a aparente boa vontade do conde de permitir que o arcebispo arbitrasse a causa em seu lugar. O conde e o arcebispo eram assistidos em sua tarefa por seus conselheiros (iudices, sapientes), participaram na interrogação das facções, ofereceram seus consilium, e de forma geral, tomaram parte ativa nos procedimentos. Esses eram os vassalos do conde, essenciais em cada passo da deliberação pois representavam a comunidade de forma geral. Os árbitros eram tomavam muito cuidado para não apresentarem sugestões sem seus conselhos. Os dois grupos de oponentes estavam também presentes nas sessões de arbitragem, com seus próprios apoiadores, seus vassalos e outros amici, para aconselhá- �21 los e tentar pressionar os procedimentos até uma conclusão satisfatória. O comparecimento a essas assembleias era majoritariamente voluntário. Apesar de convocados, os cavaleiros nem sempre apareciam, e uma vez presentes, poderiam se retirar caso os procedimentos parecessem desagradá-los, como Peter Poncius deixou o vilarejo antes de ser necessário realizar um juramento reconhecendo o sponsalicium. Frequentemente o árbitro tentava assegurar promessas para tolerarem sua decisão através de garantidores e exigindo juramentos garantindo uma soma monetária a ser confiscada caso o acordo não fosse aceito. Esses garantidores poderiam ser da família, ou vassalos dos grupos e em alguns casos serviam virtualmente como reféns até que se chegasse a um consenso. Aparentemente eles também serviam para estimular seus respectivos lados para uma resolução, se não por outra razão, além de obter sua liberdade. Nas assembleias ocorridas diante do conde de Gap, os cavaleiros o deram um de seus vassalos, Bruno Stephanus, “in manu [comitis]” como um fideiussor, e os monges em troca, cederam um fideiussor de sua parte. Esse mesmo Bruno Stephanus, juntamente com Peter Cedal, foi fideiussor em uma assembleia posterior perante o arcebispo. Esses garantidores parecem não ter servido apenas para garantir que seus lados fossem acatar a decisão mas também para aconselhá-los a chegar a um acordo. Nos procedimentos iniciais, esses fideiussores parecem ter sido as únicas garantias providas pelas facções. Quando o conflito se intensificou e os participantes cada vez mais recusavam a aceitar os compromissos propostos, as reuniões subsequentes começaram com a caução de quantidades específicas de dinheiro para vinculá-los. O juramento inicial, prometendo um vínculo, inicialmente cem sólidos, e então duzentos, era realizado pelas mãos do arcebispo ou conde que estivesse presidindo. Assim que os juramentos eram realizados em campo aberto, porções iniciais dos procedimentos eram necessárias para começar as assembleias, juramentos e testemunhas eram centrais para as deliberações que tomaram lugar nas porções internas das sessões. Por mais centrais que fossem, no entanto, sua efetividade era limitada tanto pelo fato de que os envolvidos no conflito não poderiam ser forçados a aceitar o testemunho oferecido sob julgamento, e pelo fato que que exceto sob circunstâncias muito específicas, as pessoas não poderiam sercoagidas a realizar tais juramentos. Portanto, o prior William poderia se recusar a aceitar o juramento feito por Peter �22 Poncius, não porque ele poderia estar mentindo, mas simplesmente porque ele poderia ignorar a verdade. Além disso, testemunhas sugeridas, por qualquer um dos grupos envolvidos, poderiam ser recusadas por outras razões que percebemos, como por exemplo, a idade. Já que os árbitros não estavam agindo em capacidade pública ou oficial, sua habilidade de extrair juramentos válidos dos envolvidos e testemunhas era limitado a qualquer ligação pessoal que eles tivessem com aqueles que eles esperavam que poderiam jurar. Portanto, o arcebispo poderia forçar que seu oficial Peter jurasse, não porque era juiz de uma corte pública, mas apenas porque ele era o arcebispo de Peter, quem poderia excomungá-lo. Possivelmente mais pontualmente, Peter era seu agente. Pela mesma razão, Richard, o arcebispo cardeal abade de Saint-Victor, não foi capaz de extrair um juramento válido de um certo William Peter, porque este último aparentemente não era nem vassalo, e nem agente do arcebispo. Finalmente, mesmo quando a pessoa parecia pronta para jurar, era possível evitar o juramento simplesmente ao desaparecer. Quando Peter Poncius não apareceu para realizar o juramento que havia prometido, os monges aparentemente não tiveram nenhum recurso, e o conde e o arcebispo não tomaram nenhuma atitude contra ele. Novamente, a natureza voluntária de todo o processo é impressionante. Assim como no caso de excomunhões, maldições rituais, humilhações, e ações semelhantes, o tempo e o lugar das sessões de negociação eram partes importantes da mise-em-scène. Essas sessões ocorriam em dias de festivais públicos, normalmente Domingos ou, em caso de uma das assembleias de Chorges, o Sábado antes do Domingo de Ramos. Assim como as datas davam ênfase na natureza pública das assembleias, também o eram suas configurações. As assembleias de Chorges normalmente ocorriam na igreja de São Cristóvão, tanto do lado de fora (aparentemente em seu pórtico) quanto dentro. Nós detectamos um certo ritmo de movimentação do exterior para o interior, e de volta para fora. A abertura e as fases formais de negociação, assim como as reclamações iniciais, juramentos para aceitar as recomendações dos árbitros, e a entrega de reféns e cauções, ocorria na parte externa mais pública da assembleia. Conde Isoard, na boa tradição Carolíngia, estava realizando sua assembleia a céu aberto quando os cavaleiros, temendo que os as coisas estavam se voltando contra �23 eles, foram avisar ao arcebispo que o prior estava indo contra seus interesses. Similarmente, as reclamações iniciais na segunda assembleia, ocorridas diante do conde e do arcebispo, ocorreram do lado de fora, antes que os “juízes” entrassem na igreja para deliberar entre eles como melhor encerrar a querela. Depois que os cavaleiros haviam impedido os monges de administrar os ritos finais ao oficial moribundo Martin, o arcebispo começou do lado de fora da igreja, onde ele fez Peter Poncius e Peter de Rosset jurarem aceitar sua decisão antes de começarem os procedimentos. Os mais privados, detalhados e complexos aspectos dos procedimentos eram realizados na parte interna. Lá os árbitros e seus conselheiros questionavam, persuadiam e ameaçavam as facções em disputa. Foi dentro da igreja, por exemplo, que o arcebispo reprimiu o prior William por ter levado o problema ao conde e não a ele. De forma semelhante, na assembleia ocorrida no Sábado anterior ao Domingo de Ramos, os judices interrogaram cada um dos grupos privadamente dentro da igreja. Lá também Peter, o oficial, foi interrogado e compelido pela fidelidade que devia ao arcebispo, a identificar todo o sponsalicium sob juramento. O árbitro operava, não de acordo com nenhuma das leis contraditórias que competiam entre si, mais ou menos reconhecidas na sociedade, mas mais de acordo com o que teria formado o conceito de equidade. Isto é, ele tentava alterar a estrutura de relacionamento entre os grupos, não simplesmente negociar a questão aparente. Portanto, embora a razão evidente para uma negociar um problema fosse a tomada de uma pessoa ou propriedade sob autoridade do oponente, o assunto real da arbitração poderiam ser problemas mais antigo, profundo e muito mais complexos, que eram basicamente expostas pela tomada dessa propriedade. No problema mais aparente, o árbitro, aconselhado por sua vez por membros respeitados da sociedade laica e espiritual, normalmente sugeria um compromisso. Raramente alguém surgia como vencedor ou perdedor claro em tais procedimentos. Em Chorges, todas as tentativas de solução, com exceção da tentativa desastrosa do conde de forçar o retorno de todo o sponsalicium após o ataque do padre que transportava vinho, incluíam alguma forma de divisão da propriedade em questão. Frequentemente quando a disputa era entre oponentes religiosos e seculares, o compromisso era �24 apresentado como ato de caridade: propriedades há muito em disputa podem ser concedidos ao partido laico, que então doaria à igreja por algum benefício espiritual do doador e sua família. Idealmente, também, o árbitro conduzia os oponentes a uma nova relação estrutural, e um relacionamento meramente neutro muito provavelmente se mostraria insustentável. A interação diária das facções realmente requeria que um relacionamento positivo substituísse um negativo, se o conflito não fosse interferir na sociedade novamente. Portanto, entre grupos laicos, o fim das negociações era frequentemente cimentado com um pacto firme de amizade, que especificava formas concretas de assistência mútua. Em disputas entre instituições seculares e religiosas, a instituição eclesiástica frequentemente era exigida a retornar a propriedade em disputa aos homens laicos como feudo. Portanto, os homens laicos teriam a propriedade que haviam reivindicado e se uniriam ao monastério ou igreja através de laços de fidelidade. Na primeira sessão de arbitragem de Chorges, foi sugerido que os cavaleiros mantivessem certas propriedades, às quais manteriam como feudo de Saint-Victor. Alguma variação dessa proposta foi novamente sugerida a cada sessão subsequente. Se nenhuma relação vassálica formal fosse formada, os laicos poderiam receber um “presente” do monastério. Weinberger considerou que a probabilidade de receber um presente ao fim de uma disputa pode ter encorajado laicos a pressionarem por reivindicações absurdas. Apesar de que essa possibilidade não pode ser excluída, nós devemos enxergar os presentes como um ganho tanto para o receptor quanto para o que o oferece, já que aceitar o presente estabeleceria uma relação positiva entre os dois partidos, um relacionamento que, como aqueles criados por outras hostilidades de cunho ritual, definia e estabelecia conecções estruturais. Em conflitos entre grupos laicos, o “presente” poderia ser uma filha para formar uma aliança matrimonial. Se o compromisso fosse aceito pelos dois lados, uma reconciliação ritual era performada. Assim como o público havia sido envolvido no anúncio original da ruptura, também estava incluído na reunificação. Numa sociedade laica, esse ritual incluía um banquete. Um excomungado se encontrava solenemente com o bispo na porta da igreja e era trazido de volta à sociedade ritualmente. Em uma reconciliação subsequente a uma humilhação ritual, o laico oferecia humildemente seu respeito aos santos e então as �25 relíquias eram alegremente colocadas de volta em seus lugares de honra. Mesmo que as estruturas conflituais se mantivessem, esses rituais públicos indicavam que os partidos haviam retornado àlatência e a vida da comunidade poderia prosseguir. Assim como nenhum começo era inteiramente novo na história dos conflitos sociais, diversos fins não eram definitivos. Idealmente, a comunidade tinha sido reestruturada através do processo: o período explícito do conflito havia servido como um drama social ao longo do qual a comunidade havia experimentado uma catarse e emergido mudada para melhor. Isso é muito para se esperar de qualquer sistema social, todavia, especialmente um bi qual os conflitos eram uma força positiva na definição dos grupos e estruturas sociais. Portanto, apesar dos votos, as trocas de reféns, e coisas do tipo, não era incomum que uma ou outra facção se recusasse a aceitar a solução oferecida pelo árbitro ou, mais comumente, para evitar quebrar um juramento, renunciar aos procedimentos, como fez Peter Poncius assim que ficou claro que as resoluções iam contra seus interesses. Além disso, mesmo após a aceitação de um compromisso, tensões sociais subjacentes e interesses opostos, se não tivessem sido inteiramente resolvidos para todos os membros de cada grupo, poderiam reemergir na próxima geração, com a morte dos principais partidos, ou mesmo se, depois de aceitar o compromisso, um partido experimentasse uma perda de honra por parte da opinião pública. Hariulf, em sua vida de Bispo Arnulf de Soissons, por exemplo, conta de tal situação: um cavaleiro de Aldenburg, William the Long, possuía um filho notório por seu comportamento criminoso. O filho foi pego em flagrante, invadindo uma casa e foi morto por seu dono, um tal Siger. Apesar do da manifestação culpada do filho, William normalmente teria que vingar sua morte, mas Santo Arnulf conseguiu a paz entre William e Siger. Logo após, no entanto, as pessoas começaram a se perguntar o porquê de William ter aceitado a morte de seu filho de forma tão tranquila, e essa conversa, que causou a vergonha de William, o induziu a quebrar a paz e matar o assassino de seu filho. O conflito entre cavaleiros e o prior de Chorges não é exceção a esse padrão. Nenhuma conclusão foi encontrada, pelo menos não na extensão da documentação, e as razões são muito mais profundas do que simplesmente a perfídia dos cavaleiros ou a teimosia do prior. Para começar, a evidência sobre a qual eles deveriam basear a solução �26 era extremamente difícil de controlar. Em Provença, uma região de forte tradição legal romana, não é surpreendente notar que a evidência escrita era considerada importante. Mas o material escrito (nesse caso, uma carta de doação) era inadequada porque muito pouco das atividades sociais e econômicas do dia foram registrados. Em verdade, uma carta mostrava registro de uma doação inicial do manse de Benedect Pela, mas as divisões subsequentes da propriedade foram, aparentemente, feitas sem nenhum registro escrito. Porque a falta de registros escritos era mais regra do que exceção, o valor de um documento era, por consequência, reduzido. A base real para decisão era, então, a memória da comunidade. Ainda assim a comunidade era composta por pessoas intimamente envolvidas com os queixosos, portanto, o testemunho, extraído trabalhosamente através de juramentos, se provava limitado em valor assim como o documento escrito. Talvez mais fundamental para o problema fosse o fato de que o problema real não era a posse do manse, mas as relações que uniam grupos leigos e exlesiásticos na região. O priorado em Chorges era apenas uma de muitas, muitas posses de Saint- Victor, e apesar de que uma solução amigável para seus problemas com os cavaleiros da área poderia ter sido algo muito importante para o prior, a ele faltava autoridade para concluir as negociações por conta própria. O abade, que possuía tal autoridade, era parte de um mundo muito maior e mais complexo no qual lidar com aqueles cavaleiros em particular teria tido um significado muito diferente, e de prioridade mais baixa. Os cavaleiros, igualmente, eram limitados em suas opções e presos por seu próprio envolvimento em um sistema maior e mais complexo, o da vassalagem para com o arcebispo. Através dos procedimentos, eles reclamaram apenas que a propriedade disputada pertencia a eles, mas que eles haviam a recebido em feudo pelo arcebispo. Portanto, em oposição ao prior, eles estavam defendendo os interesses de seu senhor (apesar de que é claro que graças à hereditariedade dos feudos de facto, estavam também defendendo os seus próprios). Ser vassalo do arcebispo, eles sem dúvida esperavam seu apoio nos procedimentos, então sua aceitação das exigências do prior William devem ter parecido a eles uma tentativa de revogar suas obrigações para com eles. À partir dessa perspectiva, o que aconteceu foi que seu senhor havia formado uma nova relação com os monges, o que os excluía de seus direitos tradicionais como seus �27 vassalos. Portanto, pode-se compreender a irritação, o ressentimento e a desconfiança a cada compromisso sugerido que os deixariam sem a posse da propriedade que eles haviam mantido segundo a tradição, e não ligados ao reconhecido dono da propriedade – o arcebispo ou o abade – por claras relações de fidelidade. Não é de se admirar, portanto, que enquanto o arcebispo e o abade perseguiam seus maiores fins em um mundo cada vez mais complexo da Provença do final do Século XI, os cavaleiros e o prior de Chorges encontraram um túnel sem saída à sua frente. Podemos dizer, então, que na sociedade do décimo primeiro e décimo segundo séculos as estruturas conflituais possuíam uma importância tão fundamental e duradoura que tentativas de resolver um conflito eram menos relevantes do que as tentativas de utilizá-las. Conflitos podem ter acontecido através de uma violência ritualizada, mas não menos violenta, ou poderiam ter seguido através da alteração desses rituais de violência em cerimônias menos perigosas para a sociedade de maneira geral. Quando esforços eram feitos para encerrar um conflito, eles parecem ter sido direcionados majoritariamente à transformação das estruturas sociais, dando uma guinada aos conflitos – consequentemente as tentativas em arbitrar para estabelecer ligações positivas ao invés de simplesmente eliminar a hostilidade. Deve ser pouco surpreendente saber que esses esforços eram muitas vezes inefetivos, dada a necessidade dos grupos sociais em preservar as estruturas conflituais que as deram coesão. Eu ainda não disse nada sobre a transformação gradual dessas cortes voluntárias de arbitração em instituições de arbitração unificantes e, por fim, adjudicação. Isso é porque tal desenvolvimento provavelmente nunca aconteceu. A habilidade de impor julgamentos a partidos numa disputa implica um relacionamento que não seria possível, ou mesmo considerada desejável pelos contemporâneos. Tal corte exerceria necessariamente um poder coercitivo para se fazer cumprir uma paz, mesmo se a base do conflito continuasse. Tais cortes continuaram a existir ao longo desse período com jurisdição, mas apenas sobre aqueles que não fossem totalmente “livres”. Essas cortes possuíam juízes �28 reais que “reconheciam” o julgamento de Deus trazido contra aqueles sob sua jurisdição e dispensaram decisões definitivas e penalidades. Mas essas cortes eram designadas menos para resolver disputas e construir uma sociedade melhor e sem conflitos do que para aumentar receitas, controlar indivíduos dependentes através de um poder coercitivo judicial, e portanto, demonstrar o poder do domínio. Quando, ao longo do décimo terceiro e décimo quarto séculos, novos sistemas judiciais foram implantados através da Europa com uma jurisdição que incluía aqueles que haviam estado fora de qualquer alçada,eles desenvolveram não de um aumento na aceitação dos árbitros ou algum tipo de contrato social cada vez mais atador de homens livres, ou mesmo de uma aceitação agradável de uma melhor qualidade judicial. Aparentemente, ao invés disso, que essas cortes eram impostas verticalmente, já que os condes, reis, bispos e papas encontraram seus meios de expandir sua autoridade judicial coercitiva desde seus servos, escravos, até os guerreiros livres, nobres e clérigos da Europa. �29
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