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Sumário Sumário Ficha catalográfica Créditos Agradecimentos Epígrafe Prefácio Apresentação Nota Notas introdutórias: mais de uma década de Hermenêutica e(m) Crise Notas 1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas da modernidade – da necessidade de uma crítica da razão ínica no Brasil e o binômio “estamentos-patrimonialismo” Notas 2. O Estado Democrático de Direito e a (dis)funcionalidade do Direito 2.1. Da interindividualidade à transindividualidade – a transição de modelos de Direito 2.2. “O Direito importa e por isso é que nos incomodamos com essa história” 2.3. Elementos para um debate acerca do papel do Direito e dos Tribunais no Estado Democrático de Direito 2.4. A Constituição e o constituir da sociedade: a superação da crise de paradigmas como condição de possibilidade Notas 3. A não recepção da viragem ontológico-linguística pelo modelo interpretativo (ainda) dominante em terrae brasilis 3.1. A crise de paradigma (de dupla face) e o senso comum teórico dos juristas como horizonte de sentido da dogmática jurídica Notas 4. Dogmática e ensino jurídico: o dito e o não dito do senso comum teórico – o universo do silêncio (eloquente) do imaginário dos juristas Notas 5. A fetichização do discurso e o discurso da fetichização: a dogmática jurídica, o discurso jurídico e a interpretação da lei 5.1. A fetichização do discurso jurídico e os obstáculos à realização dos direitos: uma censura significativa 5.2. O processo de (re)produção do sentido jurídico e a busca do “significante primeiro” ou de como a dogmática jurídica ainda não superou os paradigmas que se sustentam no esquema sujeito-objeto 5.3. O sentido da interpretação e a interpretação do sentido ou de como a dogmática jurídica (continua) interpreta(ndo) a lei: no centro do debate, a história do positivismo jurídico e as tentativas de sua superação – do exegetismo (e pandectismo) à jurisprudência dos valores (isto é, da “razão” à “vontade”) 5.3.1. Sobre (alguns) mal-entendidos acerca do positivismo 5.3.2. Voluntas legis versus voluntas legislatoris: uma discussão ultrapassada 5.3.2.1. Subjetivismo e objetivismo e o problema dos paradigmas filosóficos 5.3.2.1.1. Objetivismo e subjetivismo na perspectiva epistêmica de Ferraz Jr. 5.3.2.1.2. O que são paradigmas filosóficos? De que modo eles condicionam a interpretação? 5.3.2.2. O dilema Objetivismo v.s. Subjetivismo no âmbito (hermenêutico) da aplicação do direito: o problema dos “cruzamentos fundacionais” 5.3.2.3. Objetivismo e Subjetivismo – voluntas legis v.s. voluntas legislatoris e o senso comum teórico dos juristas 5.3.3. As lacunas (hermenêuticas) do Direito 5.3.4. As técnicas de interpretação: a hermenêutica normativa bettiana e a preocupação na fixação de regras interpretativas. O método em debate 5.3.5. Os princípios constitucionais e a superação dos princípios gerais do Direito – o problema do pamprincipiologismo Notas 6. A filosofia e a linguagem ou de como tudo começou com “o Crátilo” 6.1. A primeira filosofia de Aristóteles: o nascimento da metafísica e o surgimento de seu maior adversário 6.2. O longo caminho até o século XX – a continuidade da tradição metafísica e as reações à busca da essência e da coisa em si 6.3. O grande acontecimento ruptural: o surgimento do sujeito – a modernidade e seu legado Notas 7. Hamann-Herder-Humboldt e o “primeiro” giro linguístico – as fontes gadamerianas do século XIX e a linguagem como abertura e acesso ao mundo Notas 8. Saussure e o (re)nascimento da linguística. Peirce e seu projeto semiótico – primeiridade secundidade e terceiridade. Os caminhos para a invasão da filosofia pela linguagem. Rumo à linguagem como abertura do mundo. 8.1. O projeto semiológico de Saussure 8.2. O projeto semiótico-pragmático de Charles S. Peirce 8.3. A Semiótica jurídica Notas 9. A viragem linguística da filosofia e o rompimento com a metafísica ou de como a linguagem não é uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto 9.1. A constituição de uma razão linguística como condição de possibilidade para o rompimento com a filosofia da consciência 9.2. A generalização do “giro”: em busca de superação dos Eingenschaften (atributos) dos paradigmas anteriores Notas 10. A interpretação do Direito no interior da viragem linguística (lato sensu) 10.1. A hermenêutica como uma “questão moderna” 10.2. A hermenêutica e seus três estágios: técnica especial para interpretação; teoria geral da interpretação e hermenêutica fundamental 10.2.1. Hermenêutica especial 10.2.2. Teoria geral da interpretação 10.2.3. Hermenêutica fundamental 10.3. A hermenêutica jurídica diante dessa intrincada tessitura 10.4. A hermenêutica filosófica: abrindo caminho para uma hermenêutica jurídica crítica 10.4.1. Da filosofia hermenêutica (Heidegger) à hermenêutica filosófica (Gadamer) 10.4.2. A hermenêutica jurídica gadameriana: a tarefa criativa e produtiva do Direito 10.5. A diferença (ontológica) entre “texto e norma” e “vigência e validade”: a ruptura com a tradição (metafísica) da dogmática jurídica – o necessário combate ao solipsismo 10.5.1. Hermenêutica versus crítica: uma questão secundária 10.5.2. A hermenêutica jurídico-filosófica, e o rompimento hermenêutico com os ”conceitos-em-si-mesmos-das-normas” e o crime de “porte ilegal da fala” 10.5.3. A hermenêutica e o combate ao solipsismo Notas 11. Hermenêutica jurídica e(m) crise: caminhando na direção de novos paradigmas 11.1. A modernidade, seu legado e seu resgate 11.2. O labor dogmático: uma (nova) forma de divisão do trabalho? 11.3. Dogmática e Hermenêutica: a tarefa da (razão) crítica do Direito 11.4. Hermenêutica jurídica e a relevância do horizonte de sentido proporcionado pela Constituição e sua principiologia 11.5. A proposição da nova postura hermenêutica: um modo-de-ser (condição de possibilidade) para a exploração hermenêutica da construção jurídica Notas 12. O abrir de uma clareira e a busca do acontecer do Direito: a hermenêutica e a resistência constitucional – um (necessário) posfácio 12.1. A abertura para a claridade 12.2. A busca do acontecimento (Ereignis) do Direito 12.3. A necessária ruptura com a tradição inautêntica 12.4. Como enfrentar a crise? O “estranho” representado pela Constituição 12.5. Pode o novo (o estranho) triunfar? A tarefa do des-vela- mento hermenêutico 12.6. O caráter não relativista da hermenêutica 12.7. A surgência constitucionalizante: o-vir-à-presença-do-fenômeno-do-Direito Notas Pós-posfácio – A resistência do positivismo – ainda o problema da discricionariedade interpretativa I. Uma advertência necessária: a necessidade da preservação da Constituição. A democracia como condição de possibilidade. II. O velho e o novo na hermenêutica: o problema da efetividade da Constituição em um país de modernidade tardia III. Hermenêutica e democracia: discricionariedades interpretativas, suas decorrências e consequências. De como o problema é paradigmático IV. O necessário repto à discricionariedade e aos decisionismos. De como as súmulas não devem ser entendidas como um “mal em si”. V. A resposta correta (adequada à Constituição) como direito fundamental do cidadão VI. Fazendo justiça a Dworkin e Gadamer. De como o juiz Hércules não é subjetivista (solipsista). As razões pelas quais “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa” Notas Bibliografia Lenio Luiz Streck Procurador de Justiça – RS Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Pós-Doutor em Direito Constitucional e Hermenêutica pela Universidade de Lisboa Professor Titular da Unisinos - RS (Mestrado e Doutorado) e Unesa-RJ; Professor Visitante e Convidado de Universidades brasileiras e estrangeiras (Faculdade de Direito de Coimbra-PT; Faculdade de Direito de Lisboa-PT; Universidad Javeriana-CO); membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional; Presidentede Honra do IHJ – Instituto de Hermenêutica Jurídica. HERMENÊUTICA JURÍDICA E(M) CRISE Uma exploração hermenêutica da construção do Direito 11ª EDIÇÃO revista, atualizada e ampliada Ficha catalográfica Conselho Editorial André Luís Callegari Carlos Alberto Alvaro de Oliveira Carlos Alberto Molinaro Daniel Francisco Mitidiero Darci Guimarães Ribeiro Draiton Gonzaga de Souza Elaine Harzheim Macedo Eugênio Facchini Neto Giovani Agostini Saavedra Ingo Wolfgang Sarlet Jose Luis Bolzan de Morais José Maria Rosa Tesheiner Leandro Paulsen Lenio Luiz Streck Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira ___________________________________________________________________ S914h Streck, Lenio Luiz Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito / Lenio Luiz Streck. 11. ed. rev., atual. e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014. ISBN 978-85-7350-139-1 1. Direito. 2. Dogmática jurídica (Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB-10/652) Créditos © Lenio Luiz Streck, 2014 Revisão Rosane Marques Borba Projeto gráfico e diagramação Livraria do Advogado Editora Gravura da capa Honoré Daumier – Advogado de Lesender Direitos desta edição reservados por Livraria do Advogado Editora Ltda. Rua Riachuelo, 1300 90010-273 Porto Alegre RS Fone/fax: 0800-51-7522 editora@livrariadoadvogado.com.br www.doadvogado.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Agradecimentos O presente livro, já em sua décima primeira edição, é resultado de projeto de pesquisa patrocinado pela UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos –, através do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado, ligado ao Centro de Ciências Jurídicas e Sociais. Também foram fundamentais os diálogos com meus amigos Ernildo Stein (Porto Alegre) e Albano Marcos Bastos Pepe (Recife). Não posso olvidar a colaboração dos meus alunos dos Seminários de Hermenêutica Jurídica, dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito, além dos participantes do DASEIN – Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Rafael Tomaz de Oliveira, André Karam Trindade, Clarissa Tassinari, Rafael Köche, Fabiano Müller e Santiago Artur Berger Sito). Nesta 11ª edição, colaboraram Adriano Obach Lepper, André Karam Trindade, Clarissa Tassinari, Daniel Ortiz Matos, Danilo Pereira Lima, Fabiano Müller, Edson Vieira, Guilherme Mariani, Luis Henrique Braga Madalena, Rafael Giorgio Dalla Barba, Rafael Köche, Rafael Tomaz de Oliveira, Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, Santiago Artur Berger Sito, Saulo Salvador Salomão, Vinicius de Melo Lima, Marcelo Cacinotti e Victoria Santos de Azevedo. Coaches do projeto: Clarissa, Daniel e Adriano. E para Rosane e Malu, que sabem por quê! Lenio Luiz Streck lenios@globo.com http://www.leniostreck.com.br http://www.facebook.com/LenioStreck Epígrafe Quando as águas da enchente derrubam as ca- sas, e o rio transborda arrasando tudo, quer dizer que há muitos dias começou a chover na serra, ainda que não nos déssemos conta. ERACLIO ZEPEDA Prefácio Sobre certos temas só deveríamos escrever quando com nossas análises conseguíssemos abrir um espaço novo. Caso contrário, caímos na repetição, na glosa ou mesmo na paródia. No campo do direito, tal situação tem acontecido com escandalosa frequência. Por isso nos alegramos sempre que uma perspectiva nova se apresenta, quer seja para ampliar a visão teórica, quer seja para levantar hipóteses sobre casuística, quer seja para trazer um aporte novo no universo epistêmico. Com o livro Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito, foram ultrapassadas muitas expectativas que poderíamos alimentar entre nós neste setor. LENIO STRECK não se limitou àquilo que poderia trazer um bom livro de teoria ou de crítica. A análise que nos é apresentada inaugura um universo teórico que certamente nos traz novos parâmetros para o exame da crise do direito e sua superação. Mas a moldura teórica não se constitui simplesmente de uma apresentação brilhante de argumentos contra diversos grupos de autores. Nem se resume em introduzir uma nova alternativa para alguma área da ciência do direito ou da filosofia, partindo de determinados grupos de autores clássicos. Temos diante de nós um livro que revoluciona a própria concepção do direito positivo atual e da história do direito. Tal obra exige uma base muito ampla, uma arquitetônica inovadora e uma combinação de conceitos filosóficos novos e atuais. A obra de LENIO STRECK traz tudo isso e acrescenta ainda três dimensões absolutamente raras a se combinar: uma visão das questões concretas de direito e sua aplicação no conflituado terreno entre o social e o jurídico; uma análise crítica das teorias jurídicas principais que foram produzidas durante séculos, no empenho de encontrar soluções novas que, combinando o social, o político e o jurídico, afirmaram ter descoberto uma nova coordenação teórica harmônica num estado democrático; e os contornos de uma matriz teórica que permita situar todo o debate em torno da crise do direito, no contexto de um novo paradigma. O autor desenvolve em seu livro elementos centrais para uma hermenêutica jurídica que sirva de vetor e de moldura para todo o debate sobre a mudança de paradigma no universo jurídico. Hermenêutica perde aqui seu significado de rotina e de capa formal que vinha reforçar a aplicação conservadora da dogmática jurídica. Hermenêutica passa a nos remeter a uma nova matriz de racionalidade, em que se possa desenvolver toda crítica ao direito vigente e todo esforço na construção de um horizonte novo para pensarmos os fundamentos do conhecimento jurídico. Quem acompanhou o nascimento do paradigma hermenêutico seguiu em muitos passos o desenvolvimento da hermenêutica clássica e se deixou empolgar pelo novo trazido pela filosofia hermenêutica de Heidegger e pela hermenêutica filosófica de Gadamer, de um lado, e quem se aprofundou nas teorias contemporâneas do significado e da linguagem e nas diversas direções desenvolvidas pelas discussões linguísticas e da pragmática, de outro lado, pode avaliar o que o autor conseguiu articular no seu livro, a partir da filosofia atual da linguagem, na exploração da construção do direito. Não é simplesmente repetir o autor quando se procura ver na sua hermenêutica crítica o instrumento de ruptura do objetivismo ingênuo em que se funda toda construção jurídica na sua visão positivista, partindo da relação sujeito-objeto na fundamentação do conhecimento. A grande novidade da obra de STRECK nos leva para um território situado além das ontologias ingênuas que em geral sustentam a dogmática jurídica até hoje e lhe dão, assim, um irrenunciável caráter ideológico. Somente quando percebemos que tudo se funda na linguagem, que direito é linguagem, que seu funcionamento desliza sobre pressupostos linguísticos, é que começamos a perceber os contornos da profunda inovação que traz para a ciência e a filosofia do direito e para a hermenêutica jurídica, essa obra surpreendente. Mas o autor nos leva um passo adiante e com ele nos situa diante do desafio mais criativo: no direito, a hermenêutica filosófica nos leva a uma resolução da crise da representação através da superação das teorias da consciência. Todo o conteúdo epistêmico do direito até agora era apresentado através de múltiplas e aleatórias epistemologiasjurídicas baseadas nas teorias da representação e orientadas na fundamentação, no esquema da relação sujeito- objeto. LENIO STRECK nos remete a um universo em que a hermenêutica se refere ao mundo prático, o mundo da pré-compreensão, em que já sempre somos no mundo e nos compreendemos como ser-no-mundo a partir e na estrutura prévia de sentido. É ela que nos carrega e é dela que surgimos enquanto estrutura que nos precede, e toda teoria da consciência chega tarde com sua pretensão de fundar. A linguagem torna-se aí o meio especulativo a partir do qual se determina a linguisticidade de todo o nosso conhecimento. Uma vez estabelecida tal matriz linguística que, ao mesmo tempo, nos sustenta, na qual nos movemos e de quem nunca somos proprietários, temos as condições para a instauração do diálogo. Todo conhecimento jurídico é situado inovadoramente pelo autor no quadro dessa matriz. É nesse contexto que o livro passa a definir sua forma e sua dinâmica interna. É no quadro da matriz hermenêutico-linguística que então terá que ser compreendida a condição essencial do direito na sua relação com a sociedade. Só assim a solução para sua crise se apresentará com um potencial de constante revisão e ajustamento. A crise do direito é crise de fundamento, e STRECK nos mostra isso através da crítica do paradigma que sustentou o direito até agora, introduzindo o paradigma hermenêutico- linguístico em que situa o direito e a todos os que com ele trabalham, no universo do sentido e da compreensão. O direito não trabalha com objetos, não opera com normas objetificadas, não se confronta com pessoas coaguladas em coisas, nem maneja a linguagem como instrumental rígido de retórica. O direito se sustenta na palavra plena, produz sentido, dialoga na sua aplicação, desde que a hermenêutica nos mostrou que “somos um diálogo”. O autor não nos apresenta simplesmente as teorias da compreensão e da interpretação, e filósofos como Heidegger e Gadamer, que estão, entre outros, na base de sua discussão. Ele luta por encontrar um caminho para o problema da hermenêutica jurídica que circule no discurso contemporâneo. Ele sabe da tarefa da filosofia que consiste em clarear expressões linguísticas e manter uma visão sobre o todo de nosso compreender, que também é autocompreensão e autocrítica. Mas, para além duma simples questão linguística, o autor redescobriu o lugar propriamente filosófico – que é a questão do sentido e do significado – e que se estabelece, não desde um sujeito soberano e um discurso dogmático, mas assume a sua historicidade como um acontecimento. É desse acontecimento que nos fala a hermenêutica existencial quando fala na história do ser. É a partir dela que podemos compreender os limites da interpretação e, ao mesmo tempo, as condições da filosofia hermenêutica que nos dá as bases para a hermenêutica filosófica, em que aprendemos a escutar aquilo “que para além de nós, para além do que queremos e fazemos, acontece conosco”. ERNILDO STEIN Apresentação LENIO LUIZ STRECK faz a autêntica crítica do Direito neste livro que tenho a honra de apresentar. Ademais, o fenômeno jurídico nele se apresenta como força viva, como um plano da realidade social que é. Por isso mesmo se pode dizer que o ritmo da linguagem do autor, solta e livre, assim se manifesta porque referida a essa força viva, plena de movimento. Muito se escreveu, e ainda se escreve, nesta última década do século, a propósito da crise do Direito, apresentada agora, definidamente – e sobretudo entre nós, brasileiros – sob feição particular, vale dizer, como crise do Poder Judiciário. É inegável a existência dessa crise. Não podemos deixar de apontar, contudo, duas evidências. Uma, a de que essa peculiar “crise do Direito” não é, originariamente, dele, senão de que o produz, o Estado. Vivemos, nesta última década, sob deliberado processo de enfraquecimento do Estado, patrocinado pelos governos neoliberais globalizantes dos Presidentes Collor e Cardoso. O exame das propostas frustradas de reforma constitucional pretendidas pelo primeiro e daquelas logradas pelo segundo evidencia a identidade de valores nos programas de um e de outro. Ora, obtida a fragilização do Estado, todos os seus produtos passam a exibir as marcas dessa fragilização. O Direito que imediatamente conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos ser “posto” pelo Estado não apenas porque seus textos são escritos pelo Legislativo, mas também porque suas normas são produzidas pelo Judiciário.1 Em segundo lugar, cumpre observar que a fragilização do Poder Judiciário atende a interesses bem marcados dos Executivos fortes, que se nutrem de projetos desdobrados de uma nítida transposição, hoje, dos quadros do privado para os do público, do individualismo possessivo. Penso podermos afirmar que, se de um lado o capitalismo já não padece do temor da contestação social, os executivos já não têm pejo de violar as Constituições e de violentar as exigências de harmonia entre os Poderes. A América Latina tem sido profusa e generosa em exemplos... O desconforto provocado por essa crise coloca os estudiosos do Direito sob o desafio do descobrimento de caminhos que conduzem à produção de justiça material, no mínimo a uma reeticização do Direito. LENIO STRECK cria suas próprias trilhas nessa busca, penetrando fundo pela análise da linguagem, especialmente da “viragem linguística da filosofia”, até alcançar, intensamente também, a semiótica e a hermenêutica filosófica, que abrem o caminho para uma hermenêutica jurídica crítica, no bojo da qual se põe em dinamismo uma razão crítica do Direito. Visualizada como processo de produção de sentido, a interpretação apresenta-se então como ponto de partida desde o qual não apenas a crítica é feita, mas também se pode empreender a construção de uma razão emancipatória para o Direito. O Direito, note-se bem, é um discurso constitutivo na medida em que designa/atribui significados a fatos e palavras, como mostra CARLOS CÁRCOVA. A concepção da interpretação como um processo criativo – que, de outra forma, tomo quando a qualifico de alográfica – conduz não apenas a uma nova hermenêutica, mas a um novo conjunto de possibilidades de produção de justiça material. Daí a importância deste livro. Necessitamos de novas trilhas, voltadas à reconstrução de conceitos, critérios e princípios, indispensáveis à superação da crise – o livro de LENIO LUIZ STRECK abre caminhos que devem, necessariamente, ser percorridos. Tiradentes, janeiro de 2004. EROS ROBERTO GRAU Nota 1 Permito-me remeter o leitor aos meus Direito posto e direito pressuposto, 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, e La doble desestructuración y la interpretación del derecho, mencionado na bibliografia indicativa por LENIO STRECK. Notas introdutórias: mais de uma década de Hermenêutica e(m) Crise Há mais de uma década resolvi fazer uma viragem na interpretação do Direito. De uma trajetória inicial ligada às teorias analíticas, iniciei a incursão nas trilhas da hermenêutica filosófica, pavimentada pela filosofia hermenêutica. Isto porque me convenci, ainda nos anos 90, que perscrutar a linguagem no plano de um semantic sense não era suficiente para albergar a complexidade do Direito em terrae brasilis. O ponto central – inicial – foi a discussão da crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, e seus reflexos na sociedade. Dizia então que o Direito e a dogmática jurídica (que oinstrumentaliza), preparado/engendrado para o enfrentamento dos conflitos interindividuais, não conseguiam atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e conflituosa (J. E. Faria). O paradigma (modelo/modo de produção de Direito) liberal-individualista-normativista estava esgotado. O crescimento dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social reclama(va)m novas posturas dos operadores jurídicos. Passados tantos anos, penso que isso, em grande medida, continua atual. A crise do modelo liberal-individualista não foi superada. Entretanto, o decorrer do tempo foi mostrando que o problema da inefetividade do Direito – compreendido a partir do Estado Democrático de Direito – não estava apenas na umbilical ligação do modelo liberal- individualista com o exegetismo ainda fortemente presente na doutrina e na jurisprudência, mas também no fenômeno que foi crescendo especialmente na última década: as teorias voluntaristas, que, sob pretexto de superar o “juiz boca da lei”, apostaram na liberdade interpretativa dos juízes e tribunais. Resultado: o establishment passou a investir em projetos de vinculação jurisprudencial. Essas novas questões foram recebendo atenção na presente obra, na medida em que novas edições foram surgindo. Pode-se dizer, assim, que a presente edição busca reunir os vários elementos da crise que atravessa o Direito, especialmente nestes vinte e cinco anos de Constituição compromissória e dirigente. O caminho passa pela (re)discussão das práticas discursivas/argumentativas dos juristas, a partir do questionamento das suas condições de produção, circulação e consumo. Isto porque, como diz Veron, “entre as lições de Marx, uma é mister não abandonar: ele nos ensinou que, se se souber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo que o engendrou. Esses traços lá estão, mas não são vistos, por ‘invisíveis’. Uma certa análise pode torná-los visíveis: a que consiste em postular que a natureza de um produto só é inteligível em relação às regras sociais de seu engendramento”. O enorme fosso ainda existente entre o Direito e a sociedade, que é instituído e instituinte da/dessa crise de paradigmas, retrata a incapacidade histórica da dogmática jurídica (discurso oficial do Direito) em lidar com a realidade social. Afinal, o establishment jurídico- dogmático brasileiro produz doutrina e jurisprudência para que tipo de país? Para que e para quem o Direito tem servido? Para se ter uma ideia da dimensão do problema, ainda não conseguimos sequer entender que Kelsen não foi um positivista exegético e, sim, um positivista normativista...! Esse hiato e a crise de paradigma do modelo liberal-individualista-normativista retratam a incapacidade histórica da dogmática jurídica em lidar com os problemas decorrentes de uma sociedade díspar como a nossa. Na verdade, tais problemas são deslocados no e pelo discurso dogmático, estabelecendo-se uma espécie de transparência discursiva. Pode-se dizer, a partir das lições de A. Sercovich, que o discurso dogmático dominante é transparente porque as sequências discursivas remetem diretamente à “realidade”, ocultando as condições de produção do sentido do discurso. A este fenômeno podemos denominar de fetichização do discurso jurídico, é dizer, através do discurso dogmático, a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (histórico-sociais) que a engendra(ra)m, como se a sua condição-de- lei fosse uma propriedade “natural”. Parte-se, pois, da premissa de que as práticas argumentativas do Judiciário, da dogmática jurídica e das escolas de Direito são consubstanciadas pelo que se pode denominar de senso comum teórico dos juristas ou campo jurídico (Warat-Bourdieu), o qual se insere no contexto da crise do modelo de Direito de cunho liberal-individualista. Para tanto, basta um passar d’olhos no Direito penal e a cultura manualesca-estandartizada que domina a aplicação desse ramo do Direito. Essa crise do modelo (dominante) de Direito (ou modo de produção de Direito) institui e é instituída por uma outra crise, aqui denominada/trabalhada como crise dos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, bases desse modelo liberal- individualista de interpretação/aplicação do Direito ainda dominante no “campo jurídico” vigorante no Brasil. Isto porque as práticas hermenêutico-interpretativas vigorantes/hegemônicas no campo da operacionalidade – incluindo aí doutrina e jurisprudência – ainda estão presas à dicotomia sujeito-objeto, carentes e/ou refratárias à viragem linguística de cunho pragmatista-ontológico ocorrida contemporaneamente, em que a relação passa a ser sujeito-sujeito. Dito de outro modo, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, uma terceira coisa que se interpõe entre o sujeito e o objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de “essências” e “corretas exegeses” dos textos legais. Ou, na outra ponta do problema, sob pretexto da superação das posturas objetivistas,vê-se o surgimento das diversas (neo)teorias, como o neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo, que apostam no protagonismo judicial e no instrumentalismo processual, dando azo a uma verdadeira fábrica de princípios. Isso para dizer o mínimo. Daí a necessidade da elaboração de uma crítica à hermenêutica jurídica tradicional – ainda (fortemente) assentada nesses dois paradigmas filosóficos (metafísica clássica e filosofia da consciência) – através da fenomenologia hermenêutica, pela qual o horizonte do sentido é dado pela compreensão (Heidegger) e ser que pode ser compreendido é linguagem (Gadamer), onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado e a interpretação faz surgir o sentido. Por isso, o processo de produção do sentido (daquilo que é sentido/pensado/apreendido pelo sujeito) do discurso jurídico, sua circulação e seu consumo não podem ser guardados sob um hermético segredo, como se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, “aparecem” como se fossem provenientes de um “lugar virtual”, ou de um “lugar fundamental”. Esse é o problema fulcral da dogmática jurídica e que procuro desmi(s)tificar ao longo destes anos. Ora, as palavras da lei não são unívocas; são, sim, plurívocas, questão que o próprio Kelsen já detectara de há muito. Mas isso não significa que o processo hermenêutico admita discricionariedades e decisionismos. É possível encontrar respostas corretas em direito, justamente pelo caráter antirrelativista da hermenêutica filosófica, que retrabalho na obra como uma Nova Crítica do Direito ou Crítica Hermenêutica do Direito. Venho procurando demonstrar, enfim, que a lei e o saber do Direito constituem um nível de relações simbólicas de poder (Warat). Consequentemente, visando a superar a crise de paradigma de dupla face antes delineada, faz-se necessário um trabalho de interrogação sobre o discurso jurídico, utilizando a lei e o saber contra eles mesmos, fazendo deles um lugar vazio, onde o sujeito necessariamente não seja (ou necessite ser) um transgressor, mas, sim, o protagonista que legitima a democracia (Warat). Buscando apresentar um ferramental para a interpretação do Direito, desde a primeira edição, venho utilizando, como fio condutor, o “método” fenomenológico-hermenêutico, visto, a partir de Heidegger,2 como “interpretação ou hermenêutica universal”, é dizer, como revisão crítica dos temascentrais transmitidos pela tradição filosófica através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão linguístico da metafísica ocidental, mediante o qual é possível descobrir um indisfarçável projeto de analítica da linguagem, numa imediata proximidade com a praxis humana, como existência e faticidade, em que a linguagem – o sentido, a denotação – não é analisada num sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade. Enquanto baseado no método hermenêutico-linguístico, o texto procura não se desligar da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada. Nesse período, construí as bases daquilo que chamei inicialmente de Nova Crítica do Direito (NCD) – e que está desenvolvida também no meu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica –, e que deve ser entendida como processo de desconstrução da metafísica vigorante no pensamento dogmático do direito (senso comum teórico). A tarefa da Nova Crítica do Direito, que doravante passo a denominar de Crítica Hermenêutica do Direito – CHD –, é a de “desenraizar aquilo que tendencialmente encobrimos” (Heidegger-Stein). É, em síntese, o desenrolar do método hermenêutico de que falei anteriormente. A metafísica pensa o ser e se detém no ente; ao equiparar o ser ao ente, entifica o ser, através de um pensamento objetificador.3 Ou seja, a metafísica, que na modernidade recebeu o nome de teoria do conhecimento (filosofia da consciência), faz com que se esqueça justamente da diferença que separa ser e ente. No campo jurídico, esse esquecimento corrompe a atividade interpretativa, mediante uma espécie de extração de mais-valia do ser (sentido) do Direito. O resultado disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnicização e da especialização, que na sua forma simplificada redundou em uma cultura jurídica estandardizada, na qual o direito não é mais pensado em seu acontecer. Há que se retomar, assim, a crítica ao pensamento jurídico objetificador, refém de uma prática dedutivista e subsuntiva, rompendo-se com o paradigma metafísico-objetificante (aristotélico-tomista e da subjetividade), que impede o aparecer do direito naquilo que ele tem (deve ter) de transformador. A Crítica Hermenêutica do Direito, fincada na matriz teórica originária da ontologia fundamental, busca, através de uma análise fenomenológica, o des-velamento (Unverborgenheit) daquilo que, no comportamento cotidiano, ocultamos de nós mesmos (Heidegger): o exercício da transcendência, no qual não apenas somos, mas percebemos que somos (Dasein) e somos aquilo que nos tornamos através da tradição (pré-juízos que abarcam a faticidade e historicidade de nosso ser-no-mundo, no interior do qual não se separa o direito da sociedade, isto porque o ser é sempre o ser de um ente, e o ente só é no seu ser, sendo o direito entendido como a sociedade em movimento), e onde o sentido já vem antecipado (círculo hermenêutico). Afinal, conforme ensina Heidegger, “o ente somente pode ser descoberto seja pelo caminho da percepção, seja por qualquer outro caminho de acesso, quando o ser do ente já está revelado”. Trata-se, enfim, da elaboração de uma análise antimetafísica, isto porque, a partir da viragem linguística e do rompimento com o paradigma metafísico aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, a linguagem deixa de ser uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, passando a ser condição de possibilidade. Melhor dizendo, a linguagem, mais do que condição de possibilidade, é, como bem assinala Luiz Rohden,4 “constituinte e constituidora do nosso saber, conhecer e agir”. Ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo (Auslegung) e passa a ser produtivo (Sinngebung). É impossível ao intérprete desprender-se da circularidade da compreensão, isto é, como aduz com pertinência Stein, nós, que dizemos o ser, devemos primeiro escutar o que diz a linguagem. A compreensão e explicitação do ser já exige uma compreensão anterior. Há sempre um sentido que nos é antecipado. Opta-se, desse modo, por adotar a matriz heideggeriana, enquanto superação do esquema sujeito-objeto, representada pela busca na filosofia de um fundamento para o conhecimento, a partir do discurso em que impera a ideia de juízo (Stein). O privilegiamento da ontologia fundamental heideggeriana radica na construção das condições de possibilidades que esse ferramental representa para uma crítica ao pensamento objetificador que domina o pensamento dogmático do direito. A ontologia fundamental rompe com o processo de entificação do ser próprio do pensamento dogmático-jurídico. Dito de outro modo, enquanto a dogmática jurídica tenta explicar o direito, a partir da ideia de que o ser (o sentido) é um ente (isto é, como se o conceito de “coisa julgada” ou “legítima defesa” fosse um ente apreensível como ente), a partir de Heidegger pretendo mostrar que há uma clivagem entre nós e o mundo, porque nunca atingimos o mundo dos objetos de maneira direta, mas, sim, sempre pelo discurso.5 A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) sustenta-se na noção de “método” formulado por Heidegger, pelo qual a linguagem é comandada pela coisa mesma, torna-se absolutamente relevante sua inserção no direito, exatamente pelo fato de que o pensamento dogmático do direito, por ser objetificador e pensar o direito metafisicamente, esconde a coisa mesma, obnubilando o processo de interpretação jurídica. Essa coisa mesma que Heidegger persegue é a questão do ser no horizonte da diferença ontológica (Stein). Por isso, todo o trabalho de desconstrução do pensamento dogmático-objetificador do direito é feito, no interior da Crítica Hermenêutica do Direito, sob o signo desse fundamental teorema heideggeriano: a diferença ontológica. Assim, é para esta incursão hermenêutica que o leitor é convidado. Numa palavra: esta edição tem também um caráter comemorativo. Mas, fundamentalmente, a pretensão é atualizar o meu próprio pensamento e a minha trajetória. Da Dacha de São José do Herval, no verão tórrido de 2010/2011 e no início do inverno de 2013. Notas 2 Para tanto, ver Stein, Ernildo. A questão do método na filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. Porto Alegre: Movimento, 1983, p. 100 e 101. 3 Cf. Stein, Ernildo. Diferença e Metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 67 e segs. 4 Cf. Rohden, Luis. Hermenêutica e Linguagem. In: Hermenêutica Filosófica nas Trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 160. 5 Cf Stein, Diferença, op. cit., p. 48. 1. A Modernidade tardia no Brasil: o papel do Direito e as promessas da modernidade – da necessidade de uma crítica da razão ínica no Brasil e o binômio “estamentos- patrimonialismo” Em tempos de globalização, é inexorável que a questão da função do Estado e do Direito seja (re)discutida, assim como as condições de possibilidade da realização da democracia e dos direitos fundamentais em países saídos de regimes autoritários, carentes, talvez, de uma segunda transição (Guillermo O’Donnell). O (dominante) discurso desregulamentador – atravessado/impulsionado pelo fenômeno da democracia delegativa6 – adjudica sentidos em nosso cotidiano, tentando nos convencer de que a modernidade acabou. Pois é justamente neste contexto que estas reflexões se inserem, buscando a construção de um discurso que aborde criticamente o papel do Direito, do discurso jurídico e a justificação do poder oficial por meio do discurso jurídico em face da problemática da relação Direito-Estado-DogmáticaJurídica. Para grande parte das elites brasileiras, a modernidade acabou. Tudo isto parece estranho e ao mesmo tempo paradoxal. A modernidade nos legou a noção de sujeito, o Estado, o Direito e as instituições. Rompendo com o medievo, o Estado Moderno surge como um avanço. Em um primeiro momento, como absolutista e, depois, como liberal; mais tarde o Estado se transforma, surgindo o Estado Contemporâneo sob as suas mais variadas faces. Essa transformação decorre justamente do acirramento das contradições sociais proporcionadas pelo liberalismo (ou aquilo que representava um modelo de Estado que atravessa o século XIX e, no século XX, “dá de frente com as revoluções”). Veja-se que esse “Estado intervencionista não é uma concessão do capital, mas a única forma de a sociedade capitalista preservar-se, necessariamente mediante empenho na promoção da diminuição das desigualdades socioeconômicas. A ampliação das funções do Estado, tornando-o tutor e suporte da economia, agora sob conotação pública, presta-se a objetivos contraditórios: a defesa da acumulação do capital, em conformidade com os propósitos da classe burguesa, e a proteção dos interesses dos trabalhadores”.7 Além disto, é bom frisar que “o intervencionismo estatal também se constitui em defesa do capital contra as insurreições operárias, opondo-se à ilusão de igualdade de todos os indivíduos diante da lei”.8 Nessa linha, vem bem a propósito o dizer de Boaventura de Sousa Santos, para quem esse Estado, também chamado de Estado Providência ou Social, foi a instituição política inventada nas sociedades capitalistas para compatibilizar as promessas da Modernidade com o desenvolvimento capitalista. Este tipo de Estado,9 segundo as perspectivas “desreguladoras”, foi algo que passou, desapareceu, e o Estado simplesmente tem, agora, de se enxugar cada vez mais (embora – lembremos – na crise do setor financeiro mundial de 2008, quem tenha salvado a economia tenha sido justamente o “malsinado” Estado). Alguns dados podem auxiliar na compreensão desse fenômeno: em junho de 2009, a General Motors (GM), empresa que – ainda na década de 1970 – criou o ideal de “obsolecência programada”, dando início a uma nova fase do capitalismo, teve sua concordata decretada pelo Poder Judiciário estadunidense. A crise econômica gerada pela “bolha especulativa” que estourou em 2008 – a chamada “crise do sub prime” que contaminou as principais economias do mundo –10, fez com que a GM chegasse ao fim com uma dívida acumulada em 176 bilhões de dólares. Para que o desastre não fosse ainda maior, o governo dos Estados Unidos decidiu comprar 60% das ações da empresa. Ironicamente, uma das empresas responsáveis pela fustigante onda daquilo que, com Michel Foucault, podemos chamar de “fobia de Estado”, tem agora como efetivo “dono” o Estado estadunidense.11 Pouco antes, em março de 2009, importante revista brasileira (Carta Capital) trazia como matéria de capa a notícia de que havia aumentado o consenso entre os economistas no sentido de que o “resgate” do sistema bancário12 – o campo econômico afetado diretamente pela atual crise – passaria inevitavelmente por políticas de estatização.13 Essa fenomenologia pode ser corroborada por uma série de autores que também vislumbram o momento da crise econômica mundial – provocada por um excessivo ímpeto desregulamentador por parte dos agentes econômicos – como um retorno às propostas keynesianas. Nesse sentido, Fernando Cardim de Carvalho afirma que “a crise que começou como financeira no início de 2007 e transformou-se em uma crise da economia real ao final de 2008 e cuja resolução ainda se mostra extremamente incerta tem dado novo eco a proposições feitas por Keynes e lembradas por praticantes dessa nas muitas décadas em que ela ficou relegada ao submundo dos heréticos”.14 Em linha similar, também Bresser Pereira15 entende que essa crise enseja uma remodelação do capitalismo que deverá trazer consigo uma retomada das tendências econômicas presentes nos anos dourados do capitalismo – que vão do final da Segunda Guerra até o rompimento do acordo de Bretton Woods, que acabou com a paridade ouro-dólar – quando o domínio das políticas macroeconômicas propostas por Keynes fazia parte da cartilha dos economistas. Observe-se que, para os mesmos que, quando precisam, buscam socorro no Estado – inclusive por intermédio de políticas de welfare state ou, porque não dizer, keynesianas – o Estado continua sendo uma instituição anacrônica (sic), porque é uma entidade nacional, e tudo o mais está globalizado. Ora, paradoxalmente, a globalização sempre se colocou como o contraponto das políticas de intervenção do Estado e, principalmente, das políticas de regulação da economia. Nesse sentido, não surpreende que a falta de regula(menta)ção do sistema financeiro nos Estados Unidos tenha sido o principal motivo do desencadeamento da crise de 2008.16 Não é possível ainda saber se o capitalismo globalizado tirou lições dos episódios que abalaram a primeira década do século XXI. De todo modo, é possível dizer que “a lógica geral da competição globalizante [continua a ser] inequivocamente concentradora. Daí não apenas fusões, mas, sobretudo, a exclusão de grandes massas de trabalhadores da possibilidade de inserção apta no mundo econômico, o desemprego e a precarização do trabalho, a desigualdade social crescente mesmo nos países em que o desemprego é comparativamente reduzido, e os indicadores exibem saúde e pujança econômica – em suma, aquilo que alguns têm chamado de ‘brasilianização’ do capitalismo avançado. No caso brasileiro, acresce o fato de que nos inserimos mais precariamente no jogo, não só porque já somos o Brasil da pesada herança escravista e do fosso social, mas também porque nossas fragilidades nos tornam vítimas preferenciais, sempre prontas a surgir como ‘bola da vez’ nas perversidades da dinâmica transnacional”.17 A globalização aparece como a nova face/roupagem do capitalismo internacional. Nesse contexto, André-Noël Roth18 alerta para o fato de que a globalização nos empurra rumo a um modelo de regulação social neofeudal, através da constatação do debilitamento das especificidades que diferenciam o Estado moderno do feudalismo: a) a distinção entre esfera privada e esfera pública; b) a dissociação entre o poderio político e o econômico; e c) a separação entre as funções administrativas, políticas e a sociedade civil. Para Roth, o caráter neofeudal da regulamentação social reside em parte nessa evolução e em parte em uma leitura pessimista da forma decisória – a infinidade de foros de negociações descentralizados – sugerida pelo direito reflexivo (de cunho autopoiético). Evidentemente, a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem consequências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social.19 O Estado interventor- desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta função social, foi – especialmente no Brasil – pródigo (somente) para com as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional os monopólios e os oligopólios da economia e, entre outras coisas, construindo empreendimentos imobiliários com o dinheiro do fundo de garantia (FGTS) dos trabalhadores, fundo esse que, em 1966, custou a estabilidade no emprego para os milhões de brasileiros! Exemplo disto éque, enquanto os reais detentores/destinatários do dinheiro do FGTS não têm onde morar (ou se moram, moram em favelas ou bairros distantes), nossas classes médio-superiores obtiveram financiamentos (a juros subsidiados) do Banco Nacional da Habitação (sic) – depositário dos recolhimentos do FGTS – para construir casas e apartamentos na cidade e na praia... Isso para dizer o mínimo! Desnecessário lembrar que parcela considerável dos financiamentos realizados na década de 70 do século passado sequer foram pagos até o final dos contratos, pela singela circunstância de que as prestações ficaram tão baixas que não valia a pena a emissão dos carnês de cobrança. Existe, ainda, um imenso défice social em nosso país, e, por isso, temos que defender as instituições da modernidade. Por isso, o Estado não pode pretender ser fraco, lembra Boaventura Sousa Santos:20 “Precisamos de um Estado cada vez mais forte para garantir os direitos num contexto hostil de globalização neoliberal”. E acrescenta: “Fica evidente que o conceito de um Estado fraco é um conceito fraco.(...) Hoje, forças políticas se confrontam com diferentes concepções de reforma”. Como resultado, temos que, em terrae brasilis, as promessas da modernidade só são aproveitadas por um certo tipo de brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheid social! Para exemplificar, lembremos que um grupo de 5.000 famílias “muito ricas” – ou 0,001% do total de famílias do país – reúne um patrimônio que representa 46% do PIB.21 Mais: segundo dados divulgados em 2011 pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), os brasileiros de alta renda – aqueles (63.000 pessoas) com pelo menos R$ 1 milhão em aplicações, fecharam o ano de 2010 com R$ 371 bilhões investidos nos bancos. Por isso não surpreende a existência no Brasil de duas espécies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subintegrado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não tem acesso.22 Por que atingimos esse grau de desigualdade? E por que o Estado brasileiro é lócus da dilapidação da res publica? Uma das formas de explicar esse problema reside no binômio patrimonialismo-estamento, que Raymundo Faoro apresenta para construir sua interpretação do Brasil (desde as feitorias até a Era Vargas). Com efeito, em reduzida síntese, a tese de Faoro vai no sentido de que o poder político no Brasil se articula, devido a uma herança lusitana, a partir de um estado que é patrimonialista em seu conteúdo e estamental na forma. Patrimonialista porque os titulares do poder se apoderam do aparelhamento estatal de tal forma que acaba por gerar uma quase indistinção entre o que é bem público (Estado) e o que é o bem privado; ou seja, trata-se da utilização dos espaços estatais para realização e administração de interesses de origem privada. Isso tem consequências sérias. O estamento, por outro lado, é o que dá forma a esse exercício patrimonialista do poder. Trata-se de uma verdadeira casta que assume o controle do Estado, governando-o de acordo com seus interesses. Portanto, os estamentos, vistos a partir de Os Donos do Poder, mostra-nos que, em determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma sociedade de estamentos, que “ficam de fora” da classificação tradicional de classes sociais. Nas palavras de Faoro: “sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém- vindos, imprimindo-lhes os seus valores”.23 Há, assim, brasileiros “diferentes” de outros brasileiros, circunstância reconhecida pela mais alta autoridade da nação (o então Presidente Luís Inácio Lula da Silva), ao sugerir que o Ministério Público, antes de denunciar alguém, examine antes o seu curriculum...!24 O binômio estamento-patrimonialismo pode ser detectado facilmente nos processos de privatização no Brasil. A partir deles, pode-se ver o modo como a res publica é vista pelos governantes e pelas elites. Em detalhado estudo trazido a lume em primeira mão pelo jornalista Elio Gaspari, Sérgio Lazzarino mostra que entre 1996 e 2009 a rede do Estado e dos burocratas de caixas de pensão (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal etc.) expandiu-se. Em 1996, num universo de 516 grandes empresas, o BNDES e os fundos PREVI (Banco do Brasil), Petros (Petrobrás) e Funcef (Caixa Federal) participaram de 72 sociedades. Em 2003, numa amostra de 494 companhias, o Estado fazia-se presente em 95. Em 2009, num universo de 624, o Estado tinha um pé em 199 empresas. O livro de Lazzarini leva o sugestivo nome de Capitalismo de Laços, mostrando a herança patrimonialista presente nas diversas camadas do establishment. A obra inicia contando a investida do Governo no fundo de pensão Previ e do empresário Eike Batista sobre os administradores da Vale do Rio Doce, empresa privatizada no governo Fernando Henrique Cardoso por um valor simbólico. Em tese, a Vale é uma empresa privada. Na prática, pelo “capitalismo de laços”, o governo é seu maior acionista e, na ocasião, Eike Batista era o melhor amigo. Em 2008, foi o maior financiador do filme “Lula, o Filho do Brasil” e, em 2006, o maior doador individual da campanha que reelegeu Lula. E o maior doador corporativo foi a empresa “privada” Vale do Rio Doce.25 O mesmo estudo de Lazzarini mostra que o governo Fernando Henrique ajudou a sedimentar essa “capitalismo de laços” em terrae brasilis. Atualmente, esse “capitalismo de laços” pode ser visto, por exemplo, pela estrutura das grandes empresas: 11 grandes empresários participam de 66 conselhos de empresas. Como se pode perceber, não bastasse o modo como as empresas estatais foram privatizadas – aquilo que Gaspari vem chamando de “privataria” – construiu-se um segundo estágio nesse processo de “entrelaçamento entre o público e o privado”, isto é, o velho patrimonialismo tão bem denunciado por Raymundo Faoro. A pergunta que se faz é: em que medida o país avança no tocante à redução das desigualdades? Se no âmbito do “andar de cima” as elites conseguem se agrupar e reagrupar em todos os segmentos econômicos e financeiros, no “andar de baixo” os indicadores, mormente os da última década, de redução da pobreza e inclusão social decorrem de fortes investimentos governamentais. Ou seja, parece haver dois “mundos” separados: o “mundo” dos estamentos, para usar aqui a expressão de Raymundo Faoro, que funciona paralelamente ao “mundo” de baixo, que depende de políticas governamentais como o “bolsa-família”. Assim, paralelamente ao “capitalismo de laços”, que concentra mais e mais a riqueza nacional, não se pode deixar de assinalar uma melhora nos indicadores sociais. Com efeito, foram divulgados resultados do Censo de 2010, realizado pelo IBGE, de que 98,2% das crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos frequentam regularmente escolas,26 o que representa, certamente, um salto decisivo em direção à universalização do ensino preconizada no art. 208 da CF. Ao mesmo tempo, também com relação ao Ensino Superior, de 1998 a 2008, o número de jovens entre 18 e 24 anos cursando alguma Faculdade passou de 6,9% para 13,9%.Porém, se considerarmos o índice de brasileiros que frequentam a universidade, independente da idade, o índice chega em 30%. Assim, de um lado temos um forte componente estamental, fruto de uma herança patrimonialista e, na mesma linha, o “capitalismo de laços”. Não é difícil perceber o quadro de desigualdade social gerado no decorrer da história27 e, de certo modo, “aprimorado” nos anos de maior concentração de renda (período da ditadura militar). Um dos maiores problemas do país – e isso decorre da própria tradição patrimonialista- estamental – está na corrupção e nos desvios de dinheiro público lato sensu. Efetivamente, basta uma amostragem de menos de dez edições da Folha de São Paulo – e utilizo deliberadamente apenas um veículo de comunicação e em um curtíssimo espaço de tempo – para se ter uma ideia do grau de apropriação/privatização da res publica. Uma auditoria na Funasa, ligada ao Ministério da Saúde, constatou o desvio de até R$ 500 milhões (mais de 300 milhões de dólares) somente no período de 2007 a 2010.28 Ao mesmo tempo, lê-se que, em Porto Alegre, o atendimento à saúde (hospitais da rede pública) entrou em colapso, em um quadro aterrador, em que centenas de pessoas aguardaram nos corredores, em macas improvisadas, vagas para internação.29 Outro dado que torna manifesto a mixagem entre o público e o privado, deixando sempre para o primeiro (o Estado) o pagamento da conta, diz respeito ao fato de os planos de saúde de terrae brasilis não restituírem ao SUS os atendimentos feitos na rede pública aos usuários dos planos privados.30 O valor devido é suficiente para a construção de dezenas de hospitais ou para equipar as emergências nas quais os pacientes são atendidos em macas improvisadas ou tomam soro em pé, como ocorreu, nos últimos anos, nos casos de surto de dengue no Rio de Janeiro e em Porto Seguro. Na mesma linha, foi noticiado que “documentos mostram falhas em escolha de agência de publicidade que vai gerir conta do Ministério da Saúde”, e que a maior licitação de publicidade de 2010 tem indício de fraude.31 Ainda do mês de janeiro de 2011 é a notícia de que Ministros e Procuradores do Tribunal de Contas utilizam verba pública para viajar aos seus Estados de origem. De todas as passagens emitidas em 2010, 68% foram usadas em fins de semana e feriados. Foram emitidas no ano 334 passagens aéreas. Somente um Ministro utilizou 65 passagens, das quais 54 foram para a sua cidade natal, Recife.32 Também os jornais dão conta de que “cliente do governo vende curso de presidente do Tribunal de Contas da União, chegando o valor, nos últimos dois anos, a R$ 2,1 milhões”.33 Estudo realizado pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostra que o Poder Executivo brasileiro dispõe de número exagerado de cargos de livre nomeação em comparação com outros países. São 22 mil,34 cerca do dobro dos existentes nos Estados Unidos. Para essas vagas não há critérios transparentes de escolha, tampouco descrição de funções e avaliação dos nomeados. Segundo editorial do jornal Folha de São Paulo, esse quadro é em tudo propício à indicação de apaniguados de políticos e governantes. Para agravar a situação, foi aprovada no ano de 2010 uma lei que aumenta a oferta de cargos em conselhos de administração de empresas estatais. Ministros e funcionários encontram nesses órgãos, em geral ornamentais, uma oportunidade para engordar seus vencimentos. O pagamento a esses “conselheiros” chega ao valor de 9 milhões de reais por ano.35 Há questões que vão do atacado ao varejo. Na verdade, o imaginário patrimonialista está incrustado na administração pública a ponto de ninguém se surpreender com o fato de a esposa de um secretário da Saúde do Distrito Federal, proprietária de uma clínica médica, receber 1,1 milhão de reais – do próprio Estado onde ele, o marido, é secretário – por serviços prestados.36 Não há limites, efetivamente, para a “invasão do público pelo privado”. Os deputados dos Estados de Goiás e Rondônia receberam, ao custo de R$ 506 mil no primeiro e R$ 217 mil no segundo, para uma sessão extra.37 Legislar em causa própria é forte sintoma da prevalência de um imaginário estamental. Exemplo disso é um deputado estadual que, por ter governado um Estado da federação por dez dias, passou a receber pensão vitalícia de R$ 15 mil. Na verdade, somente em pensão para ex-governadores o Estado brasileiro gasta anualmente mais de R$ 30 milhões, o equivalente ao pagamento do benefício de Bolsa- Família para mais de 30 mil famílias ou construir 800 casas populares (para acrescentar: somente no Estado de São Paulo são gastos mais de R$ 35 milhões para o pagamento de pensões a ex-deputados estaduais). Em 2010, o governo federal38 gastou R$ 80 milhões com cartões corporativos, dos quais R$ 11,2 milhões são com “gastos secretos”, volume que cresceu 67% em relação ao ano anterior. O Estado acaba sendo o lócus da apropriação privada, sob as mais variadas “rubricas”. Veja-se um dado curioso: durante doze meses, entre 2008 e 2009, a Petrobrás gastou R$ 609 milhões com patrocínios, festas, ONGs e congressos. E as cinco maiores empresas estatais doaram, entre os anos de 2006 e 2010, o montante de R$ 7,4 milhões para a comemoração do dia do trabalho, ocasião, aliás, em que são feitos sempre vigorosos discursos a favor da transparência, da ética e da função social do capital público...! Veja-se que se trata de uma pequeníssima amostra. Deliberadamente pequena para mostrar o conjunto de notícias transmitidas diariamente no país. Poder-se-ia acrescentar ainda outra faceta do imaginário estamental,39 por exemplo, noticiando que, de 1998 – ano que entrou em vigor a Lei de Lavagem de Dinheiro – até 2010, não mais de 17 processos tiveram resultado condenatório (paradoxalmente, mantemos presos em terrae brasilis mais de 80.000 pessoas pelo crime de furto...!). Também não podemos olvidar da sonegação de tributos (somente no ano de 2010 o valor apontado pela Receita Federal, apenas em multas, chegou quase à casa dos 100 bilhões de reais). Na verdade, os índices mais otimistas acerca da sonegação dão conta de que, para cada real arrecadado, um é sonegado. Tudo isso, à evidência, somente se mantém a partir de um forte componente ideológico. Ou seja, a maior parte da sociedade passa a acreditar que existe uma ordem de verdade, na qual cada um tem o seu “lugar (de)marcado”.40 Vejamos a complexidade do problema da formação do Brasil. Em muitos pontos há concordância dos pesquisadores. Segundo Antonio Houaiss e Roberto Amaral, o pressuposto é aceito de forma geral: 1) um território precioso, 2) flora, fauna e clima esplêndidos, 3) um autoctonato de fácil superação, 4) uma consolidação linguística quase miraculosa, 5) a gestação de uma cultura popular e ágrafa rica e emocionante, 6) uma expansão demográfica rara, pela multiplicação, pela miscigenação tolerante e pela democracia empírica convivial. Eliminando os pontos positivos, restam, ao cabo dos quase cinco séculos de operação Brasil, os enigmas: a dívida social crescente – fome, ensino miserável, ausência de terra (guardada como “poupança”) para os aptos a trabalhá-la, trabalho no campo preferentemente para a exportação, a importação preferentemente para gáudio dos exportadores. As chamadas elites brasileiras, bem pensadas, parecem ter tido, excelente ou sobre-excelentemente, o mais puro sentido de autodefesa e sobrevivência: 1) aos trancos e barrancos, embora souberam reter para si o máximo dos bens materiais;2) souberam harmonizar-se com os donos do mundo; conseguiram manter “seu” povo admiravelmente manietado, pela escravidão, pelo genocídio, pela ignorância, pela superstição – já que a terra lhes foi compensatoriamente tão generosa, que raros foram os Palmares e os Canudos e os Caldeirões em que criaram, embora efêmeras, suas pátrias de eleição possível.41 É nesse contexto que cada um “assume” o “seu” lugar. E estes compõem a maioria. Essa maioria, porém, não se dá conta de que essa “ordem”, esse “cada-um-tem-o-seu-lugar” engendra a verdadeira violência simbólica42 da ordem social, bem para além de todas as correlações de forças que não são mais do que a sua configuração movente e indiferente na consciência moral e política. O sistema cultural engendra exatamente um imaginário no qual, principalmente através dos meios de comunicação de massa, se faz uma amálgama do que não é amalgamável.43 Por isso, por exemplo, é possível – e observe-se a relevância dessa questão no plano simbólico – que o país mantenha impunemente um apartheid em elevadores sociais e de serviço, o que legitima o preconceito social! Não causa espanto, assim, em nossa “pós-modernidade” midiática, que, a exemplo de tantas pessoas, a dublê de atriz e modelo Carolina Ferraz justifique o apartheid nos elevadores de forma bastante solene: “As coisas estão tão misturadas, confusas, na sociedade moderna. Algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas. É importante haver hierarquia”. Já a promoter paulista Daniela Diniz, assídua frequentadora das colunas sociais, não “nos deixa esquecer” que “... cada um deve ter o seu espaço. Não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Ou seja, para elas – e para quantos mais (!?) – a patuleia deve (continuar a) “saber-o-seu- lugar”...44 Discursos deste quilate não podem (e não devem) nos surpreender, até porque nada mais são do que reproduções do que ocorre cotidianamente ao nosso redor, reforçados pelos estereótipos produzidos pela mídia em larga escala.45 Daí que, usando como pano de fundo essa discussão, Contardo Calegaris46 procura explicar a atitude e o discurso das classes médias e médio-superiores brasileiras acerca desta problemática: “No Brasil, talvez por ele ter sido e talvez por ser ainda o maior sistema escravagista do mundo ocidental, a modernização aconteceu pela metade. Nas classes médias, geralmente a regra é o poder moderno sobre e pelas coisas. Podemos comprar o trabalho de um outro, seus serviços, mas não dispomos de seu corpo. Mas na relação entre as classes médias e as classes ditas eufemisticamente não favorecidas o poder ainda é poder sobre os corpos, construído no modelo da escravatura. As classes médias brasileiras não abriram as portas do poder sobre as coisas para metade da população do país. Não por razões econômicas: a manutenção do escravagismo caseiro é um péssimo negócio que estrangula o mercado interno. Foi por tradição ou por gosto atávico escravocrata”. Por isso, diz Calegaris, tanta violência no Brasil: o ladrão brasileiro não está só pedindo posse de mais coisas. Quer mais! Quer os corpos...!47 São eles que (os corpos) “é bom possuir”. E (de forma irônica) Calegaris acrescenta: “a violência (na sociedade) já reverte se os elevadores de serviço forem suprimidos”. A “aceitação” da exclusão social é cotidianamente reforçada/justificada pelos meios de comunicação. Veja-se, a propósito – e a crítica foi magnificamente feita pelo jornalista Vinícius Torres Freire em matéria intitulada “Carro grande e senzala” –,48 comercial veiculado em rede nacional de televisão, para lançamento de um certo automóvel “classe A”, onde um casal branco e bem vestido escorrega pelo piso ensaboado de uma garagem, em direção ao carro apregoado. Três faxineiros, morenos e miúdos como quase todo o povo, fazem pilhéria dos ricos à beira do tombo. Mas o casal classe “A” chega ao carro “A” e sai zunindo da garagem escorregadia – o carro é estável, é o que se vende. Os faxineiros ficam para trás com cara de besta. Um deles escorrega e cai feito um pateta. Em outro anúncio, novamente aparece a dualidade “elite branca e elegante” versus “plebe rude e ignara”: desta vez um engravatado regateia com um mendigo flanelinha a lavagem do mesmo carro “classe A”. Condescende com riso senhorial da esperteza do pedinte, que quer “dez real”, pois o carro aquele é grande por dentro. Como bem complementa Torres Freire, os aludidos anúncios reproduzem um clichê clássico do imaginário subdesenvolvido, em que os pobres são espertos, sensuais e marotos... “O Brasil jamais foi uma república de fato, ex-escravos continuaram pobres, pobres não têm direitos e são demais. O comercial de carro ‘A’ não os fará mais pobres, mas a naturalidade inconsciente com que mofa da patuleia é um sintoma. ‘Os nativos estão inquietos’, eles assaltam, mas são uma classe de gente diferente, que ficou para trás naturalmente, ridícula como um escravo ou um primitivo pateta”. Outro exemplo interessante é de um anúncio publicitário (premiado) que conseguiu transformar a exploração em “glamour” (ou consegue “justificar” a semiescravidão dos “velhos e bons tempos”). O cenário era uma antiga fazenda de café. Os personagens são dois recém-casados, que, ao acordarem, se encaminham ao café da manhã. Entrementes, a câmera mostra os empregados da Fazenda se encaminhando para a plantação, com ferramentas rudimentares (típicas “daqueles tempos”). Enquanto os campesinos se afastam, o casal senta- se à mesa, ornada com toalha rendada e com xícaras de fino porcelanato. A cena culminante é o café sendo servido, fumegante, denso, saboroso... e uma voz em off anunciando: Café “Pindorama Casagrande”:49 a volta dos bons tempos! Faltou apenas uma frase: bons tempos para quem? Tudo isto se encaixa, pois, em uma espécie de razão cínica brasileira. Invertendo a famosa frase de Marx dita em o Capital: “Sie wissen das nicht, aber sie tun es”, que significa “disso eles não sabem, mas o fazem”, Peter Sloterdijk nos ajuda a explicar a fórmula dessa razão cínica traduzida no comportamento de nossas classes dirigentes: “eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo”.50 Nossas classes dirigentes e o establishment jurídico sabem o que está ocorrendo, mas continuam a fazer as mesmas coisas que historicamente vêm fazendo. Não nos damos conta das questões mais prosaicas que nos rodeiam e que permeiam o nosso imaginário, problemática já analisada anteriormente. Esse estado da arte do binômio estamentos-patrimonialismo (além da razão cínica) pode ser ainda melhor ilustrado. Vejamos. Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa. Na primeira cena, o Rei e a Rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. Alguém reclama, dizendo que a Revolução deve ser contada de outro modo. Na nova cena, aparece uma bacia com água quente, uma camponesa pronta para dar à luz e a parteira. Na sequência, entra um aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida, lava as suas botas sujas na bacia destinada ao parto. Desdém, deboche e desprezo! Pronto: é assim que se conta a origem da Revolução. É assim que se resgata a capacidade de indignação. Pois examinando o projeto de lei federal (Dep. José Mentor) pretendendo conceder anistia a quem tenha remetido dinheiro ao exterior de forma ilegal (criminosa), penso no despudor do caçador aristocrata e, consequentemente, na nossa herança patrimonialista. É impossível não fazê-lo. Explico: nos últimos anos, bilhões de dólares foram sonegados, lavados e remetidos, à socapae à sorrelfa, ao exterior.51 Não se sabe o quantum, mas se estima em mais de U$ 150 bilhões. É tanto dinheiro para retornar, que, se viesse mesmo, poderia, segundo alguns empresários do ramo exportador, provocar uma queda no câmbio em face da enxurrada de moeda estrangeira. O que não está dito é que a pesada máquina pública se mostrou ineficiente para punir os criminosos (afinal, la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos..., e, é claro, as leis disfuncionais colaboraram para esse mau resultado). Então, qual é a solução? Ora, segundo o projeto de lei, devemos anistiar os criminosos do colarinho branco; e, na sequência, um bom discurso para criarmos mais cargos públicos para o combate à sonegação e à evasão de divisas; e, na sequência, outra anistia...! Lembremos sempre do Dr. Pangloss, do Cândido (Voltaire): vivemos no melhor dos mundos! Na verdade, somos eficientes nisso. De há muito perseguimos com êxito ladrões de galinha e de sabonetes, mas não somos tão bons para “pegar” sonegadores e lavadores de dinheiro. Por todos, lembremos de um dos personagens mais marcantes da criminalidade do colarinho branco dos últimos tempos, Marcos Valério, que, no ano de 2008, mesmo já condenado à prisão, pagou o valor sonegado e teve extinta a sua punibilidade (a seu favor, a bondosa Lei 10.684 e uma generosa interpretação dada ao artigo 9º). Se não fosse trágico, seria engraçado, porque, ao mesmo tempo, milhares de ladrões (sic) continuam encarcerados (lembremos que temos mais de trezentos mil presos no Brasil por crimes contra o patrimônio individual e pouquíssimos por crimes de sonegação ou evasão de divisas). Veja-se: pelo projeto “anistiador”, que teve aprovação no Senado, basta que o “cidadão” declare o valor que remeteu ao exterior, pague o imposto de 6% e estará anistiado. Portanto, “vale a pena” remeter dinheiro ilegal para o exterior. Ou seja: o crime compensa. E, atenção: o sigilo será preservado (ainda bem... imagine-se que o povo saiba o nome dessas pessoas...!)! Trata-se da institucionalização da impunidade do “andar de cima”, para usar uma expressão de Elio Gaspari. É a “função social do crime!”. A questão é saber se o deputado autor do projeto concorda em fazer uma emenda, com base nos princípios da isonomia e igualdade, concedendo anistia também a todos aqueles que devolverem o valor produto de furtos, estelionatos e apropriações indébitas. Afinal, se vale para o “estamenteiros”, por que não estender a benesse à “patuleia”?52 Numa palavra final, vem bem a propósito disso o dizer de Jurandir Freire Costa,53 para quem “hoje aposentamos os Rousseau. Em vez de utopias, (existem os) manuais de autoajuda, psicofármacos, cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem”. Notas 6 Segundo O’Donnell, a transição de regimes autoritários para governos eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição, até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários – particularmente da América Latina – caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, denominada pelo autor de democracia delegativa, fortemente individualista, com um corte mais hobbesiano do que lockiano. Consultar O’Donnell, Guillermo. Democracia delegativa? In: Novos Estudos Cebrap, n.31, out/91, p. 25 e segs. 7 Cf. Pereira e Silva, Reinaldo. O mercado de trabalho humano. São Paulo: LTr, 1998, p. 45. 8 Idem, ibidem. Ver também Carvalhosa, Modesto. Direito Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 100. 9 Sobre Estado Social, sua crise e suas transformações, ver: García-Pelayo, Manuel. Las transformaciones del Estado contemporáneo. Madrid: Alianza Editorial, 1997; Capella, Juan Ramón. Fruta prohibida. Una aproximación histórico-teorética al estudio del derecho y del Estado. Madrid: Editorial Trotta, 1997. Sempre é bom registrar que a República de Weimar, na “fase experimental” após a Primeira Grande Guerra, iniciou a implantação dos direitos sociais, também chamados de direitos de segunda geração. Em outros países, explica Capella, como Grã-Bretanha, França e Itália, teriam que aguardar ainda um quarto de século. Nos anos trinta, nos EUA, mediante métodos não legislativos, foi dado um passo para o reconhecimento dos direitos dos mais fracos, porém, apesar de ser a pátria do New Deal, os trabalhadores norte-americanos nunca tiveram a cobertura de direitos sociais dos trabalhadores da Europa ocidental (se aproximaram dos trabalhadores europeus por um brevíssimo momento, durante a administração Johnson, no final dos anos setenta). Em contrapartida, outros aspectos das políticas keynesianas se iniciaram nos Estados Unidos nos anos trinta, enquanto na Europa os trabalhadores tiveram que esperar até o final da segunda guerra mundial. Cf. Capella, op. cit., p. 172. Também Rosanvallon, Pierre. A crise do estado- providência. Goiania, Editora UNB, 1997, p. 38 e segs. 10 Até mesmo Richard Posner, o arauto do Law and Economics admitiu que a macroeconomia foi pensada tendo poucas interseções com o direito e, por isso, segundo ele, os teóricos da Análise Econômica do Direito – AED – não tinham conhecimentos de macroeconomia suficientes e, assim, não avaliaram bem o lado negativo da desregulamentação financeira. Admitiu que errou em suas previsões quanto à crise de 2008. Cf. Posner, Richard. On the Receipt of the Ronald H. Coase Medal: Uncertainty, the Economic Crisis, and the Future of Law and Economics. In American Law & Economics Review, Vol. 12 Issue 2, 2010, p. 268. Para Posner, a AED se tornou muito acadêmica e incapaz, assim, de prover uma resposta rápida para a crise econômica. Cf. Ibidem, p. 270. Mas, na verdade, a crise rompeu com o discurso neoliberal e da AED. Isto é, liberalismo só quando interessa. Depois reconheceu que a crise surpreendeu até mesmo os analistas econômicos, gerando dúvidas até mesmo sobre alguns pressupostos que norteiam a pesquisa econômica sobre o sistema legal. Para ele, seria preciso prestar atenção no fato de que a economia tem riscos que são racionalmente escolhidos economicamente. Seriam riscos incalculáveis, em alguns casos. Cf. Ibidem, p. 272. 11 Cf. GM, 1908-2009. In: Carta Capital. 10.06.2009, p. 50-52. 12 A intervenção do Estado para salvar determinado setor envolvido em crise é de longa data na História do Brasil, como o caso da compra de café na República Velha em 1906 devido a superprodução de café. Segundo o Convênio de Taubaté, o governo brasileiro compraria o excedente da produção para que a quantidade disponível no mercado fosse suficiente para garantir o preço aos cafeicultores. 13 Cf. O Capital é Vermelho. In: Carta Capital. 04.03.2009, p. 60/64. Nos termos da manchete: “salvar o sistema financeiro capitalista exigirá a estatização dos que já foram os maiores bancos do mundo”. 14 Cf. Carvalho, Fernando Cardim de. O Retorno a Keynes. In: Novos Estudos – CEBRAP, nº 83, março de 2009, p. 100. 15 Cf. Bresser-Pereira, Luiz Carlos. A Crise Financeira Global e depois: um novo capitalismo? In: Novos Estudos – CEBRAP, nº 86, março de 2010, p. 51. 16 A propósito, veja-se o documentário “Inside Job”, que conta a históriada crise de 2008/09 (vencedor do Oscar), mostrando “o comportamento dos agentes de mercado, com sua insolência, leviandade, irresponsabilidade e arrogância. Capazes até de roubar as próprias firmas para as quais trabalham, ao lançar como despesas de serviço gastos com cocaína e com prostitutas de luxo. É o mercado, enfim. Dá náusea ver a omissão dos governantes, a promiscuidade com os negócios dessa gente. A começar de Ronald Reagan, com o qual se inicia o trabalho de desmanche da regulação que acaba, passados vários presidentes, montando o palco para os ‘senhores do universo’ provocarem o colapso que custou ao mundo dois anos de crescimento zero. (...) O sistema financeiro instalou portas giratórias no governo. Funcionários saem da banca para o governo, nada fazem para controlar o sistema de que saíram e voltam a ele, ganhando fábulas”. O documentário denuncia, com toda a razão, a “colonização” da academia pelos agentes de mercado. Professores de economia, das melhores grifes, têm empregos muito bem remunerados em conselhos e passam a produzir apenas a ideologia dos que lhes pagam, não a compilar informações e analisá-las de maneira tão objetiva quanto possível em se tratando de algo, a economia, que não é ciência exata. Revoltante, por fim, é saber que nada mudou, depois da tentativa inicial de que a política governasse os mercados, e não o contrário (...). Cf. Rossi, Clóvis. Wall Street e a praça Tahir. In: Folha de São Paulo, 6 fev 2011, p.A-2. 17 Cf. Reis, Fábio Wanderlei. As reformas e o mandato. In Folha de São Paulo, 28 mar 98, p. 1-3. Sobre globalização, ver, também, Metáforas de la globalización, de Otavio Ianni. In: Revista de Ciencias Sociales. Quilmes: Universidad Nacional, Mayo de 1995, p. 9-19. 18 Cf. Roth, André-Noël. O direito em crise: fim do Estado Moderno? In: Direito e globalização econômica – implicações e perspectivas. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros, 1996, p. 16 e segs. Veja-se: embora esse texto tenha sido escrito no início da década de 90, ainda se mostra atual. 19 Segundo Bonavides, baseado em Werner Kägi, in Die Verfassungsals Rechtliche Grundordnung des Staates, 1948, p. 94 e segs., “sendo o Estado social a expressão política por excelência da sociedade industrial e do mesmo passo a configuração da sobrevivência democrática na crise entre o Estado e a antecedente forma de sociedade (a do liberalismo), observa-se que nas sociedades em desenvolvimento, porfiando ainda por implantá-lo, sua moldura jurídica fica exposta a toda ordem de contestações, pela dificuldade em harmonizá-la com as correntes copiosas de interesses sociais antagônicos, arvorados por grupos e classes, em busca de afirmação e eficácia. Interesses ordinariamente rebeldes, transbordam eles do leito da Constituição, até fazer inevitável o conflito e a tensão entre o estado social e o Estado de Direito, entre a Constituição dos textos e a Constituição da realidade, entre a forma jurídica e o seu conteúdo material. Disso nasce não raro a desintegração da Constituição, com o sacrifício das normas a uma dinâmica de relações políticas instáveis e cambiantes”. Cf. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 435. 20 Cf. Sousa Santos, Boaventura. Boaventura defende o Estado forte. In: Correio do Povo. Secção Geral. Porto Alegre, 6 de abril de 1998, p. 9. 21 Ver, para tanto, Folha de São Paulo, 2 de abril de 2004, p. B1, comentando dados retirados do Atlas da Exclusão Social – Os ricos no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2004. Mais recentemente, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou ser 28,8% a proporção de brasileiros em pobreza absoluta. O número é expressivamente maior porque, segundo a regra adotada pelo IPEA, estão em pobreza absoluta os membros de famílias com rendimento médio por pessoa de até meio salário mínimo mensal (Novo índice aponta menos pobres no Brasil do que o governo. BBC Brasil. 14 jul. 2010. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100714_pobreza_multidimensional_indice_rw.shtml). Como há parâmetros diferentes entre as pesquisas, é extremamente difícil mensurar a miséria no país: “Como cada instituto adota uma metodologia diferente, o número total de miseráveis difere um do outro. Para o Ipea, o Brasil tem 13,5 milhões de pessoas na extrema pobreza. Para a FGV, são 28,8 milhões. O IBGE – que adota o valor per capita de um quarto de salário mínimo (R$ 135, atualmente) – considera que, de acordo com dados de 2007, havia 11,2% da população nessa condição (20,6 milhões). Para o Banco Mundial, seriam 9,6 milhões” (Institutos econômicos e governamentais divergem sobre a linha de miséria no país. Extra, 10 jan. 2011, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php? option=com_content&view=article&id=6733:extra-rj-institutos-economicos-e-governamentais-divergem-sobre-linha-de- miseria-no-pais&catid=159:clipping&Itemid=75.). Outro dado importante: no início da década, o Brasil conseguiu colocar todas as crianças na escola (Instituto Teutonio Vilela. Anos Lula trazem avanços tímidos nos indicadores sociais. Brasil Real – Cartas da Conjuntura ITV, n.15, dezembro, 2007, Publicação Quinzenal, Senado Federal, Brasília. Disponível em: http://www.itv.org.br/arquivos/upload/Brasil_Real_15_social_1.pdf.). O desafio, a partir daí, era manter os estudantes na sala de aula, além de melhorar a qualidade de ensino prestado. A julgar pelos resultados recentes, o país tem falhado nesta tarefa. Entre os itens medidos pelo MPI, a educação aparece como o ponto fraco do Brasil. Segundo o relatório do OPHI, 20,2% da população brasileira tem algum tipo de privação nessa área, contra 5,2% no setor de saúde e 2,8% nos itens de padrão de vida. Em dezembro de 2007, a Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou o relatório do Pisa (sigla em inglês para o Programa Internacional de Avaliação de Alunos) relativo a 2006. O Brasil figura entre as últimas posições no ranking mundial concernente ao desempenho dos adolescentes nas provas de matemática, leitura e ciência. Em matemática, por exemplo, em que conseguimos melhorar seu desempenho em relação a 2003 (figurava na última colocação), ficamos na frente apenas da Tunísia, Catar e Quirguistão (numa lista de 57 países). 22 Cf. Neves, Marcelo. Teoria do direito na modernidade tardia. In: Direito e democracia. Kátie Arguello (org.). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996, p. 110. 23 Cf. Faoro, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1995, p. 824. 24 Veja-se também essa questão “estamental” na previsão do “assistente de acusação”, tanto no Código de Processo Penal de 1940, como no Projeto que trata de sua reformulação. A propósito, o Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, referia-se, na ocasião, ao ex-Presidente José Sarney. 25 Cf. Gaspari, Elio. O “Capitalismo de Laços” da privataria. In: Folha de São Paulo, A-18, 28.11.2010. 26 Cf. Todos pela Educação. Disponível em: <http://www.todospelaeducacao.org.br/educacao-no-brasil/numeros-do- brasil/brasil/.> 27 Para se ter uma ideia desse quadro de desigualdades, há no Brasil 7.223.000 trabalhadores domésticos, assim catalogados, fora os que trabalham sem documentação trabalhista. Do total de trabalhadores, 90% são mulheres. No Brasil, empregada doméstica ainda é sinônimo de status, conforme lembra o professor Cassio Casagrande, da Universidade Federal Fluminense: “As pessoas não querem fazer seu próprio trabalho doméstico. Mesmo alguém de classe média baixa quer ter uma empregada e as contratam sem condições de pagar pelos direitos” (In: Folha de São Paulo,Cotidiano, C1). Esse é o imaginário que permeou a discussão para barrar a “PEC das domésticas” que aprovou os mesmos direitos dos trabalhadores comuns aos trabalhadores domésticos. Discorro mais sobre isso no minha coluna do Conjur, 11 abril de 2013, ”A PEC das Domésticas e a saudade dos “bons tempos”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas- saudade-bons-tempos.> 28 Folha de São Paulo, 17 jan 2011, p. A-4. 29 Saúde sem leito – colapso na emergência hospitalar. In: Zero Hora, 21 jan 2011, p. 26. 30 O Diretor-Presidente da Agência Nacional de Saúde, André Longo Araújo de Melo, reconheceu a “forte resistência” das operadoras privadas de saúde em fazer o ressarcimento ao SUS. Outra ponderação do dirigente foi no sentido de que, mesmo que a agência fizesse todas as cobranças devidas ao sistema, a arrecadação seria insuficiente para satisfazer as necessidades do SUS. Conforme assinalou, estes recursos não cobririam nem 1% do orçamento da saúde pública. Segundo o diretor, se a ANS conseguisse cobrar a dívida das operadoras privadas com o SUS entre 2008 e 2010, arrecadaria quase R$ 663 milhões. Além disso, André Longo acrescentou que, em 2012, mais de R$ 110 milhões foram inscritos na dívida ativa e que 464 operadoras estão nesta condição por se recusarem a fazer o ressarcimento à saúde pública. In: Portal de Notícias do Senado, 25. de maio 2013. Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/05/23/humberto-costa-nega- ressarcimento-como-saida-para-reforcar-caixa-do-sus>. 31 Licitação de R$ 120 milhões apresenta indício de fraude. In: Folha de São Paulo, 28 de Nov 2010, p. A4. 32 TCU paga por viagens de ministros a Estado natal. In: Folha de São, 18 jan 2011, p. A4. Tb: Ministros do TCU têm fim de semana de cinco dias, 19 jan 2011, p. A4. 33 In: Folha de São Paulo, 28 jan 2011, p.A-4. O jornal noticia que inclusive a Advocacia-Geral da União consta no rol dos contratadores da empresa que ministra cursos. A empresa é de propriedade do Presidente do TCU. 34 Observe-se o modo como essa questão é discutida em reportagem especial do jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul (6 fev 2011, p. 4): “Cobiça por 21 mil cargos – a caça ao tesouro do segundo escalão: ameaças, chantagens e traições marcam disputa entre aliados de Dilma por cargos de segundo escalão que controlam investimentos de R$ 108 bilhões”. 35 Folha de São Paulo, 18 jan 2011, editorial. 36 Mulher de secretário tem contrato com o DF. In: Folha de São Paulo, 14 jan 2011. A notícia dá conta, ainda, de que esse serviço é prestado desde 2007, tendo já o Instituto, do qual o secretário é sócio, recebido mais de 13 milhões de reais. 37 Sessão extra rende 14º Salário a deputados de Goiás e Rondônia. In: Folha de São Paulo, 14 jan 2011, p. A6. 38 Portal da Transparência do governo federal. 39 Calha aqui um olhar a partir da pena de Roberto DaMatta, em texto denominado “Legitimidade e vilezas” (in: O estado de São Paulo, 26 jan 2011, p. 7). Segundo o autor, um traço visível, insofismável e indelével de nosso patriarcalismo escravista que curiosamente Gilberto Freire não associava ao estado, mas somente à sociedade, é – em toda a tentativa de modernização – uma profunda crise de legitimidade. As regras não se encaixam aos comportamentos ou sequer com as suas implicações jurídicas. Essa incongruência surge em quase todos os domínios do chamado “estado”, que confundimos (propositalmente ou não) com o seu lado mais personificado, o “governo” (que sempre é de alguém). No momento, chama a atenção a questão da aposentadoria dos governadores. Nesse caso, diz DaMatta, os “patrões do estado” transformam a administração num mecanismo de enriquecimento pessoal a competir com o altruístico e “social”. Neste processo, o Estado deixa de ser um sistema destinado a prestar serviços à sociedade. “Só há grana para pessoal, não há como investir em educação, saúde, transporte e segurança”. E complementa: “Estou convencido que tal modelo nasceu na matriz aristocrática imperial somada ao neo-estalinismo”: tais engenheiros, chamados nos governos militares de “tecnocratas”, sempre foram travestis nos velhos letrados ibéricos, bacharéis de Coimbra e crentes num platonismo jurídico que até hoje proclama a letra da lei como tendo o poder (tal qual uma fórmula mágica) de modificar a realidade, resolvendo suas contradições. Por isso, tivemos uma República, mas jamais o republicanismo: de um lado, os milionários vitaliciamente mantidos; do outro, os milhões de pobres e desvalidos que vibram quando recebem uma bolsa de pobreza, conclui. 40 Exemplo disso é a “PEC das domésticas” que causa um mal-estar pela quebra das expectativas e da violação do arquétipo. Algo não estaria no lugar. No lugar de sempre. No lugar-comum. Ou seja, alguém, a partir da PEC, poderá “não mais saber o seu lugar”...! Ver: A PEC das Domésticas e a saudade dos “bons tempos”, op. cit. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos>. 41 Cf. Houaiss, Antonio e Amaral, Roberto. Modernidade no Brasil: conciliação ou ruptura. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 56. 42 “A repressão jamais pode confessar-se como tal: ela tem sempre a necessidade de ser legitimada para exercer-se sem encontrar oposição. Eis por que ela usará as bandeiras da manutenção da ordem social, da consciência moral universal, do bem-estar e do progresso de todos os cidadãos. Ela se negará enquanto violência, visto que a violência é sempre a expressão da força nua e não da lei – e como fundar uma ordem a não ser sobre uma lei aceita e interiorizada? A relação de força vai então desaparecer enquanto tal, será sempre coberta por uma armadura jurídica e ideológica”. Cf. Katz e Kahn, s.d, p. 386. 43 Para se ter uma ideia do “poder das religiões”, em 2005 já existiam mais de 83 mil instituições religiosas registradas no país. “No período de 2002 a 2005, foram criadas 13,3 mil entidades que se dedicam as atividades confessionais”. (Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil: Estudo identifica 338 mil Fundações Privadas e Associações. Comunicação Social – 07 de agosto de 2008. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=1205). Parcela destas ocupa espaço nos meios de comunicação de massa (rádio e televisão), com apresentações diárias em horário nobre. Além do crescente número de programas religiosos, cresce sobretudo o número de emissoras religiosas (mais de 15 redes). (Ver: Kauffmann, Daniel. Religiosidade na TV. Rio de Janeiro: Multifoco, 2008). Sem contar que muitos desses programas são apresentados em emissoras públicas, como a TV Câmara e a TV Brasil, envolvendo-se esta última em grande polêmica ao tentar tirar a programação religiosa de seu canal. (Jornal O Estado de São Paulo. Proposta pode tirar programação religiosa da TV Brasil. 28 jul. 2010. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,proposta-pode-tirar-programacao-religiosa-da-tv- brasil,587172,0.htm). 44 Cf. A PEC das Domésticas e a saudade dos “bons tempos”. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso- incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos>. 45 Exemplo marcante disto é o “momento cultural” ocorrido no programa Hebe Camargo no dia 21 de setembro de 1998, no Sistema Brasileiro de Televisão – SBT –, tão bem relatado pelo jornalista Fernando Barros Silva, no Caderno de TV da Folha de São Paulo: um determinado grupo musical chamado “Fat Family” (Família Gorda). Eram sete integrantes, todos negros, gordos, imensos e felizes. A apresentadora Hebe Camargo, depois de puxar a barba de um deles e alardear (maravilhada!?)para todo o Brasil que o pêlo (da barba) era duro, pediu a todos que exibissem os dentes diante da plateia (e para milhões de telespectadores), porque os dentes dos negros eram lindos, uma gracinha (bordão característico da apresentadora). Imediatamente, todos obedeceram e, docilmente, mostraram suas gengivas para o público, como se estivéssemos nos tempos da escravidão. Como bem conclui o citado jornalista: “Herança colonial também é isso. Lembranças da senzala. Vindo de quem vem, não é novidade”. Ver, para tanto, Folha de São Paulo, TV Folha, 27 de setembro de 1998, p. 2. (grifei) 46 Cf. Calegaris, Contardo. A praga escravagista brasileira. In: Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 5. 47 Para se ter uma ideia, o tráfico de entorpecentes no Brasil emprega mais que a Petrobrás. Somente no Rio de Janeiro, o tráfico emprega 16.000 pessoas, arrecadando 400 milhões de dólares/ano (que é o que arrecada o setor têxtil no Rio de Janeiro). Cf. Folha de São Paulo de 28 nov 2010, Caderno C, p.4. 48 Conferir Freire, Vinícius Torres. “Carro grande e senzala”. In: Folha de São Paulo. 17.01.2000, p. 1-2. 49 O nome “Pindorama Casagrande” (sic) é, obviamente, fictício, substituindo a marca do café objeto do “reclame”. 50 Ver, para isso, Sloterdijk, Peter. Kritik der zynischen Vernunft. Frankfurt, 1983, citado por Zizek, Slavoj. Como Marx inventou o sintoma? In: Um mapa da ideologia. Zizek, Slavoj (org.). Rio de Janeiro: Contraponto, p. 312 e 313. Registre-se que Zizek alerta para o fato de que é necessário fazer uma distinção entre “sintoma” e “fantasia”, para mostrar como a ideia de estarmos vivendo numa sociedade pós-ideológica é um pouco apressada demais. E explica: “A razão cínica, com todo o seu desprendimento irônico, deixa intacto o nível fundamental da fantasia ideológica, o nível em que a ideologia estrutura a própria realidade social”. 51 Para ver mais sobre a questão de evasão de divisas e o exemplo da circular que absolveu Duda Mendonça no julgamento do Mensalão, ver: Conjur, 8 nov 2008, “Como assim ‘prisão é só para quem precisa’?”. <Disponível: http://www.conjur.com.br/2012-nov-08/senso-incomum-assim-prisao-quem.> 52 De registrar que, acaso aprovada a anistia, cabe a declaração de sua inconstitucionalidade (tenho a convicção de que ainda há juízes nas “Berlins” de terrae brasilis). Com efeito, assim como já propus várias vezes (embora derrotado) em relação à benesse dada aos sonegadores (pagamento em troca da extinção do crime, previsto no art. 9º da Lei n. 10.684), penso que esse tipo de anistia é absolutamente inconstitucional, porque fere o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) e à isonomia (é claro que a extinção da punibilidade de que trata a Lei 10.684 não é uma “anistia”; o que estou a tratar é de tratamentos equânimes na República!). Parece evidente que o Estado não pode discriminar na descriminalização... (ou o nome que se dê a essa extinção de punibilidade)! 53 Cf. Costa, Jurandir Freire. A devoração da esperança no próximo. In: Folha de São Paulo, 22.09.96, Caderno Mais, p. 8. 2. O Estado Democrático de Direito e a (dis)funcionalidade do Direito 2.1. Da interindividualidade à transindividualidade – a transição de modelos de Direito Em nosso país, não há dúvida de que, sob a ótica do Estado Democrático de Direito – em que o Direito deve ser visto como instrumento de transformação social –, ocorre uma disfuncionalidade do Direito e das Instituições encarregadas de aplicar a lei. O Direito brasileiro – e a dogmática jurídica54 que o instrumentaliza – está assentado em um paradigma liberal-individualista que sustenta essa disfuncionalidade, que, paradoxalmente, vem a ser a sua própria funcionalidade! Ou seja, não houve ainda, no plano hermenêutico, a devida filtragem – em face da emergência de um novo modo de produção de Direito representado pelo Estado Democrático de Direito – desse (velho/defasado) Direito, produto de um modo liberal-individualista-normativista de produção de direito, entendendo-se como modo de produção de Direito, para os limites desta abordagem, a política econômica de regulamentação, proteção e legitimação num dado espaço nacional, num momento específico, que inclui: a) o modo com que a profissão jurídica e a prestação de seus serviços são organizados; b) a localização de papéis entre as várias posições no campo jurídico (praticantes, aplicadores da lei, guardiões da doutrina, acadêmicos etc.); c) o modo com que o campo produz o habitus, incluindo variações na educação e a importância das vantagens sociais (antecedentes e relações pessoais) para o recrutamento no campo; d) as modalidades para a articulação da doutrina preponderante e os modos com que estas incidem em relações entre jogadores e posições; e) o papel que os advogados, juntamente com os protagonistas globais e regimes transnacionais, representam num dado campo jurídico; f) a relação entre regulamentação e proteção; g) o modo dominante de legitimação.55 Assim, a partir disso, pode-se dizer que, no Brasil, predomina/prevalece (ainda) o modo de produção de Direito instituído/forjado para resolver disputas interindividuais, ou, como se pode perceber nos manuais de Direito, disputas entre Caio e Tício56 ou onde Caio é o agente/autor e Tício (ou Mévio), o réu/vítima. Assim, se Caio (sic) invadir (ocupar) a propriedade de Tício (sic), ou Caio (sic) furtar um botijão de gás ou o automóvel de Tício (sic), é fácil para o operador do Direito “resolver” o problema. No primeiro caso, a resposta é singela: é esbulho, passível de imediata reintegração de posse, mecanismo jurídico de pronta e eficaz atuação, absolutamente eficiente para a proteção dos direitos reais de garantia. No segundo caso, a resposta igualmente é singela: é furto (simples, no caso de um botijão; qualificado, com uma pena que pode alcançar 8 anos de reclusão, se o automóvel de Tício [sic] for levado para outra unidade da federação). Ou seja, nos casos apontados – que, embora possam parecer caricatos, são reproduzidos na cotidianidade dos fóruns e Tribunais da República – a dogmática jurídica coloca à disposição do operador um prêt-à-porter significativo contendo uma resposta pronta e rápida! Aliás, é para isso que cresce a indústria de manuais e compêndios. Mas, quando Caio (sic) e milhares de pessoas sem teto ou sem terra invadem/ocupam a propriedade de Tício (sic), ou quando Caio (sic) participa de uma “quebradeira” de bancos, causando desfalques de bilhões de dólares (como nos casos ocorridos em 1995 do Banco Nacional, Bamerindus, Econômico, Coroa-Brastel etc.), os juristas só conseguem “pensar” o problema a partir da ótica forjada no modo liberal-individualista-normativista de produção de Direito. Como respondem os juristas a esses problemas, produtos de uma sociedade complexa, em que os conflitos (cada vez mais) têm um cunho transindividual? Na primeira hipótese, se a justiça tratar da invasão/ocupação de terras do mesmo modo que trata os conflitos de vizinhança, as consequências são gravíssimas (e de todos conhecidas...!). Na segunda hipótese (crimes de colarinho branco e similares), os resultados são assustadores, bastando, para tanto, examinar a pesquisa realizada pela Procuradora da República Ela Castilho,57 cujos dados dão conta de que, de 1986 a 1995, somente 5 dos 682 supostos crimes financeiros apurados pelo Banco Central resultaram em condenações em primeira instância na Justiça Federal. A pesquisa revela, ainda, que 9 dos 682 casos apurados pelo Banco Central também sofreram condenações nos tribunaissuperiores. Porém – e isso é de extrema relevância – nenhum dos 19 réus condenados (verificar este número) por crime do colarinho branco foi para a cadeia! Esse quadro, no que tange ao número de condenações, passados mais de 15 anos, não apresenta alterações significativas. Em recente pesquisa58 a respeito dos crimes de lavagem de dinheiro, entre os anos 2000 e 2012, verifica-se, de um modo geral, que as condenações perfazem um percentual inferior a 10% do total dos processos criminais. Nesse sentido, Francis Rafael Beck apresenta os seguintes dados: 9 condenações dos 116 processos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; 79 condenações em 1017 julgados no âmbito dos Tribunais Regionais Federais; 14 condenações dos 471 casos julgados no Superior Tribunal de Justiça; e apenas uma condenação entre as 94 ações julgadas pelo Supremo Tribunal Federal. E os crimes contra o meio ambiente, como são tratados? Como funciona o Direito nas relações de consumo, mormente quando se percebe que a televisão brasileira, que deveria ser um veículo para transmitir cultura e educação (art. 221 da Constituição Federal), transformou-se em um “bingo pós-moderno”? Não é temerário afirmar que, a partir de um exame cuidadoso, pouquíssimas concessões de canais de televisão e de rádio passariam pelo crivo das disposições elencadas no aludido art. 221. Sob pretexto e ao abrigo da liberdade de crença, diversas Igrejas vendem “indulgências” de manhã à noite, no rádio e na televisão. Os SACs – Serviços de Atendimento ao Consumidor – não passam de simulacros. Somente uma das companhias de telefonia móvel tem contra si 110.000 ações por falhas nos atendimentos, cobranças indevidas etc. O Direito não consegue atender a tais demandas não porque tal “complexidade” não estaria prevista no sistema jurídico, mas, sim, porque há uma crise de modelo (que não deixa de ser uma espécie de “modo de produção de Direito”) que se instala justamente porque a dogmática jurídica, em plena sociedade transmoderna e repleta de conflitos transindividuais, continua trabalhando com a perspectiva de um Direito cunhado para enfrentar conflitos interindividuais, bem nítidos em nossos Códigos (civil, comercial, pena, processual penal e processual civil etc.). Esta é a crise de modelo (ou modo de produção) de Direito, dominante nas práticas jurídicas de nossos tribunais, fóruns e na doutrina. No âmbito da magistratura – e creio que o raciocínio pode ser estendido às demais instâncias de administração da justiça –, Faria59 aponta dois fatores que contribuem para o agravamento dessa problemática: “o excessivo individualismo e o formalismo na visão de mundo: esse individualismo se traduz pela convicção de que a parte precede o todo, ou seja, de que os direitos do indivíduo estão acima dos direitos da comunidade; como o que importa é o mercado, espaço onde as relações sociais e econômicas são travadas, o individualismo tende a transbordar em atomismo: a magistratura é treinada para lidar com as diferentes formas de ação, mas não consegue ter um entendimento preciso das estruturas socioeconômicas onde elas são travadas. Já o formalismo decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e impessoais, justificados em norma da certeza jurídica e da ‘segurança do processo’. Não preparada técnica e doutrinariamente para compreender os aspectos substantivos dos pleitos a ela submetidos, ela enfrenta dificuldades para interpretar os novos conceitos dos textos legais típicos da sociedade industrial, principalmente os que estabelecem direitos coletivos, protegem os direitos difusos e dispensam tratamento preferencial aos segmentos economicamente desfavorecidos”. Não surpreende, pois, que institutos jurídicos importantes como o mandado de injunção e a substituição processual, previstos na nova Constituição, tenham sido redefinidos e tornados ineficazes pelo establishment jurídico-dogmático durante tantos anos. Na verdade, o mandamus injuntivo “adquiriu” uma maior efetividade a partir do julgamento do MI nº 107/DF, quando o STF, apreciando Questão de Ordem, considerou-o autoaplicável; na sequência, alguns julgamentos (p. ex., MI nos 95/RR, 369/DF e 304/DF) declararam a mora do Congresso Nacional; mais recentemente foi julgado o MI nº 670/ES, em que o STF adotou a lei de greve da iniciativa privada para suprir a omissão da não regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Muito pouco, se considerarmos as expectativas geradas em torno desse writ desde o processo constituinte. Estamos, assim, em face de um sério problema: de um lado temos uma sociedade carente de realização de direitos e, de outro, uma Constituição Federal que garante estes direitos da forma mais ampla possível. Este é o contraponto. Daí a necessária indagação: qual é o papel do Direito e da dogmática jurídica neste contexto? Segundo Morais, o Estado Democrático de Direito, teria (tem?) a característica de ultrapassar não só a formulação do Estado Liberal de Direito, como também a do Estado Social de Direito – vinculado ao Welfare State neocapitalista – impondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo utópico de transformação da realidade. O Estado Democrático de Direito, ao lado do núcleo liberal agregado à questão social, tem como questão fundamental a incorporação efetiva da questão da igualdade como um conteúdo próprio a ser buscado garantir através do asseguramento mínimo de condições mínimas de vida ao cidadão e à comunidade. Ou seja, no Estado Democrático de Direito a lei passa a ser, privilegiadamente, um instrumento de ação concreta do Estado, tendo como método assecuratório de sua efetividade a promoção de determinadas ações pretendidas pela ordem jurídica.60 Entretanto, isso não foi ainda suficientemente assimilado pelos juristas. O Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado Social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem, no plano normativo, como consequência ou fazendo parte da própria crise do Estado Providência. Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentos para buscar/resgatar os direitos de segunda e terceira dimensões, via institutos como substituição processual, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção (individual e coletivo) e tantas outras formas, é porque no contrato social – do qual a Constituição é a explicitação – há uma confissão de que as promessas da realização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas. 2.2. “O Direito importa e por isso é que nos incomodamos com essa história” Não esqueçamos o que estabelece o ordenamento constitucional brasileiro, que aponta para um Estado forte, intervencionista e regulador, na esteira daquilo que, contemporaneamente, se entende como Estado Democrático de Direito. O Direito recupera, pois, sua especificidade e seu acentuado grau de autonomia. Desse modo, é razoável afirmar que o Direito, enquanto legado da modernidade – até porque temos uma Constituição democrática – deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas. A toda evidência, não se está, com isso, abrindo mão das lutas políticas, via Executivo e Legislativo, e dos movimentos sociais. Aliás, as lutas políticas somente são legítimas se estiverem em conformidade com o Direito. Éimportante observar, no meio de tudo isso, que, em nosso país, há até mesmo uma crise de legalidade, uma vez que – por vezes – nem sequer esta é cumprida, bastando, para tanto, ver a inefetividade dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, mesmo passadas mais de duas décadas desde a instalação da nova ordem constitucional. De pronto, deve ficar claro que não se pode confundir Direito positivo com positivismo, e dogmática jurídica com dogmatismo, e tampouco se pode cair no erro de opor a crítica (ou “o” discurso crítico) à dogmática jurídica. Por isso, não tenho dúvidas em concordar com Warat quando afirma que a dogmática jurídica pode indagar, criar e construir. Dito de outro modo, o Direito não pode (mais) ser visto como sendo tão somente uma racionalidade instrumental. Como diz o historiador inglês E.P. Thompson,61 o direito importa e é por isso que nos incomodamos com toda essa história. Explico: parece que, no Brasil, compreendemos de forma inadequada o sentido da produção democrática do direito e o papel da jurisdição constitucional. Tenho ouvido em palestras e seminários que “hoje possuímos dois tipos de juízes”: aquele que se “apega” à letra fria (sic) da lei (e esse deve “desaparecer”, segundo alguns juristas) e aquele que julga conforme os “princípios” (esse é o juiz que traduziria os “valores” – sic – da sociedade, que estariam “por baixo” da “letra fria da lei”). Pergunto: cumprir princípios significa descumprir a lei? Cumprir a lei significa descumprir princípios? Existem regras (leis ou dispositivos legais) desindexados de princípios? Cumprir a “letra da lei” é dar mostras de positivismo? Mas, o que é ser um positivista? Permito-me explicar melhor isso: por vezes, cumprir a “letra da lei” é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las é nosso dever. Levemos o texto jurídico – quando este estiver conforme a Constituição – a sério, pois! E, por favor, que não se venha com a velha história de que “cumprir a letra ‘fria’ (sic) da lei” é assumir uma postura positivista...! Aliás, o que seria essa “letra fria da lei”? Haveria um sentido em-si-mesmo da lei? Na verdade, confundem-se conceitos. As diversas formas de positivismo não podem ser colocadas no mesmo patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as duas mais conhecidas) com a sua superação pelo e no interior do paradigma da linguagem. Mais pacientemente: positivismo exegético (que era a forma do positivismo primitivo) separava direito e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, ou seja, tratava-se da velha crença – ainda muito presente no imaginário dos juristas – em torno da proibição de interpretar, corolário da vetusta separação entre fato e direito, algo que nos remete ao período pós-revolução francesa e todas as consequências políticas que dali se seguiram. Depois veio o positivismo normativista, seguido das mais variadas formas e fórmulas que – identificando (arbitrariamente) a impossibilidade de um “fechamento semântico” do direito – relegou o problema da interpretação jurídica a uma “questão menor” (lembremos, aqui, de Kelsen). Atente-se: nessa nova formulação do positivismo, o problema do direito não está(va) no modo como os juízes decidem, mas, simplesmente, nas condições lógico-deônticas de validade das “normas jurídicas”. Entretanto, uma coisa todos esses positivismos têm até hoje em comum: a discricionariedade (que acaba não se fixando sequer nos limites da “moldura” semântica). E tenho a convicção de que isso se deve a um motivo muito simples: a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-guerra, não havia conhecido uma Constituição normativa, invasora da legalidade e fundadora do espaço público democrático. Isso tem consequências drásticas para a concepção do direito como um todo! Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro, que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato- universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia de direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal – e me recordo aqui de Elías Díaz –, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser evidente! Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer “à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda antiga (positivismo primitivo). No primeiro caso, a moral ficava de fora; agora, no Estado Democrático de Direito, ela é cooriginária. Portanto, hoje quando falamos em “legalidade” estamos nos referindo a outra legalidade, uma legalidade constituída a partir dos princípios que são o marco da história institucional do direito; uma legalidade, enfim, que se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido pelo texto constitucional (não esqueçamos que o direito deve ser visto a partir da revolução copernicana que o atravessou depois do segundo pós-guerra). Repito: “cumprir a letra (sic) da lei” significa sim, nos marcos de um regime democrático como o nosso, um avanço considerável. A isso, deve-se agregar a seguinte consequência: é positivista tanto aquele que diz que texto e norma (ou vigência e validade) são a mesma coisa, como aquele que diz que “texto e norma estão descolados” (no caso, as posturas axiologistas, realistas, pragmaticistas etc.). Não esqueçamos: Kelsen, Hart e Ross foram todos positivistas. E disso todos sabemos as consequências. Ou seja: apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista ou pode não ser. Do mesmo modo, não se apegar à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista. Por vezes, “trabalhar” com princípios (e aqui vai a denúncia do pamprincipiologismo que tomou conta do “campo” jurídico de terrae brasilis) pode representar uma atitude (deveras) positivista. Utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais – sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) – é uma forma de prestigiar tanto a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen, quanto homenagear, tardiamente, o positivismo discricionarista de Herbert Hart. Não é desse modo, pois, que escapamos do positivismo. Dito de outro modo, o que sempre caracterizou o positivismo é o fato de que a postura metodológica por intermédio da qual se analisa o fenômeno jurídico é marcada pela restrição à análise das fontes sociais, a cisão/separação – epistemológica – entre direito e moral (o que faz com que alguns autores – p. ex., Robert Alexy – lancem mão da razão prática, eivada de solipsismo, para “corrigir” o direito) e a ausência de uma teoria da interpretação, que acarreta uma aposta na discricionariedade (ou seja, não se conseguiu superar a herança – ou maldição – kelseniana da cisão entre ciência do direito e direito ou entre observador e participante, no caso hartiano). Em linha diversa – e isso será visto na sequência, à saciedade – é preciso dizer que, para a hermenêutica, isso não é bem assim. O elemento interpretativo que caracteriza mais propriamente a experiência jurídica pode, e deve, ser explorado fenomenologicamente. É possível oferecer limites ou anteparos à atividade interpretativa, na medida em queo direito não é concebido a partir de um reducionismo fático. Isso é uma questão de controle democrático das decisões. Daí a pergunta: como pode o Estado – respeitando o Direito – atuar, intervir, para (começar a) resgatar essa imensa dívida social? O quadro é desolador. Com efeito, nossas classes dirigentes continuam na modernidade arcaica. Com uma indústria que só dispõe de mercado se a renda for concentrada para viabilizar a demanda; uma agricultura eficiente, mas voltada para a exportação; megalópoles que são incapazes de oferecer os serviços para os quais elas deveriam existir; estrutura de transporte urbano nos moldes dos países ricos, mas que condena, por falta de dinheiro, milhões de pessoas a caminhar, como andarilhos medievais, os quilômetros entre suas pobres casas e o trabalho; e obriga aqueles que têm acesso à modernidade, ao desperdício de tempo em engarrafamentos que seriam desnecessários em um sistema de transporte eficiente. Enfim, a modernização é vista independentemente do bem-estar coletivo. Obtém-se um imenso poder econômico, mas ele não consegue resolver os problemas da qualidade de vida. Constroem-se estruturas sociais que, ao se fazerem modernas, mantêm todas as características do que há de mais injusto e estúpido. 2.3. Elementos para um debate acerca do papel do Direito e dos Tribunais no Estado Democrático de Direito Importante assinalar que a discussão contemporânea sobre a hermenêutica jurídica passa pelo enfrentamento do problema que envolve o papel dos Tribunais no contexto de um Estado Democrático de Direito. Assim, o papel significativo reservado à jurisdição constitucional em virtude daquilo que podemos chamar “aumento da dimensão hermenêutica do direito” representa, certamente, um elemento decisivo para o enfrentamento dos dilemas atuais da hermenêutica jurídica. Essa questão vem sendo trabalhada, por diversos autores, a partir de dois eixos temáticos, que são chamados procedimentalismo e substancialismo. A grande diferença de cada um destes aportes teóricos está no tipo de atividade que a jurisdição realiza no momento em que interpreta as disposições constitucionais que guarnecem direitos fundamentais. As posturas procedimentalistas não reconhecem um papel concretizador à jurisdição constitucional, reservando para esta apenas a função de controle das “regras do jogo” democrático; já as posturas substancialistas reconhecem o papel concretizador e veem o Judiciário com um locus privilegiado para a garantia do fortalecimento institucional das democracias contemporâneas. Evidentemente, essa posição adotada pelas posturas substancialistas não autoriza a defesa de ativismos judiciais ou protagonismos ad hoc, a pretexto de estar-se concretizando direitos. A concretização só se apresenta como concretização na medida em que se encontra adequada à Constituição, não podendo estar fundada em critérios pessoais de conveniência política e/ou convicções morais.62 O conceito de Estado Democrático de Direito aqui trabalhado pressupõe uma valorização do jurídico, e, fundamentalmente, exige a (re)discussão do papel destinado ao Poder Judiciário (e à justiça constitucional) nesse (novo) panorama estabelecido pelo constitucionalismo do segundo pós-guerra, mormente em países como o Brasil. Nesse sentido, no âmbito das presentes reflexões, entendo que o Estado Democrático de Direito supera as noções anteriores de Estado Liberal e Estado Social de Direito, questão que é bem definida por Elías Díaz: o Estado Liberal de Direito é a institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes privilegiadas do Antigo Regime, em que se produz uma clara distinção entre o político e o econômico, com um Estado formalmente abstencionista, que deixa livres as forças econômicas, adotando uma posição de (mero) policial da sociedade civil que se considera a mais beneficiada para o desenvolvimento do capitalismo em sua fase de acumulação inicial e que vai aproximadamente até o final da primeira grande guerra; já o Estado Social de Direito pode ser caracterizado como institucionalização do capitalismo maduro, no qual o Estado abandona a sua postura abstencionista tomada inicialmente para proteger os interesses da vitoriosa classe burguesa, passando não somente a intervir nas relações econômicas da sociedade civil, como também se converte em fator decisivo nas fases de produção e distribuição de bens;63 finalmente, o Estado Democrático de Direito é o novo modelo que remete a um tipo de Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modo de produção capitalista e sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade no qual se possam implantar superiores níveis reais de igualdades e liberdades. Assim, para Díaz, o qualificativo “democrático” vai muito além de uma simples reduplicação das exigências e valores do Estado Social de Direito e permite uma práxis política e uma atuação dos Poderes públicos que, mantendo as exigências garantísticas e os direitos e liberdades fundamentais, sirva para uma modificação em profundidade da estrutura econômica e social e uma mudança no atual sistema de produção e distribuição dos bens.64 A noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais. A essa noção de Estado se acopla o conteúdo das Constituições, através do ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade. Por isso, como já referido anteriormente, no Estado Democrático de Direito, a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-principiológico. A democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia a partir do segundo pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujo texto positiva os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política. Tais fatores provocam um redimensionamento na clássica relação entre os Poderes do Estado.65 Desse modo, na medida em que a Constituição assume um caráter cimeiro, a partir dessa revolução copernicana (Jorge Miranda) representada pelo advento do Estado Democrático de Direito, inexoravelmente estaremos em face da seguinte pergunta: qual a relação entre o direito e a política? Em que medida o Direito, estabelecido no texto constitucional, pode estabelecer o constituir da sociedade? É nesse contexto que aparecem os dois grandes eixos analíticos:o procedimentalismo e o substancialismo,66 problemática que atravessa o debate contemporâneo acerca do constitucionalismo e da jurisdição constitucional. Muito embora procedimentalistas e substancialistas reconheçam no Poder Judiciário (e, em especial, da justiça constitucional) uma função estratégica nas Constituições do pós-guerra, a corrente procedimentalista, capitaneada por autores como Habermas, Garapon e Ely, apresenta consideráveis divergências com a corrente substancialista, sustentada por autores como Cappelletti, em alguma medida por Dworkin e, no Brasil, por juristas como Paulo Bonavides, Celso Antônio Bandeira de Mello, Ingo Sarlet, José Adércio Sampaio, Fábio Comparato, entre outros. Sustentando a tese procedimentalista, Habermas67 critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo Direito. O paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o do Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da política e do direito à luz da teoria do discurso. Parte da ideia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do Direito. Assim, para Habermas, no Estado Democrático de Direito compete à legislação política a função central.68 Embora essa discussão apareça em outros textos (em especial no meu Jurisdição Constitucional e Decisão Judicial),69 é relevante lembrar que a existência de tribunais constitucionais não é autoevidente para Habermas. E, mesmo onde eles existem há controvérsias sobre o seu lugar na estrutura de competências da ordem constitucional e sobre a legitimidade de suas decisões. Critica, assim, a ideia de concretização dos valores materiais constitucionais, aludindo que, “ao deixar-se conduzir pela ideia da realização de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instância autoritária”. A invasão da esfera de competência dos tribunais, mediante concretizações materiais de valores desestimula o agir orientado para fins cívicos, tornando-se o juiz e a lei as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados.70 Habermas propõe, pois, que o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. O Tribunal Constitucional não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos seus problemas e a forma de sua solução.71 No mesmo diapasão, Antoine Garapon faz duras críticas à invasão da sociedade pelo Judiciário, o que, segundo ele, serviria para o enfraquecimento da democracia representativa.72 Também J. H. Ely compartilha do paradigma procedimentalista, sustentando que o tribunal constitucional só pode conservar sua imparcialidade se resistir à tentação de preencher seu espaço de interpretação com juízos de valores morais. Discorda, assim, não apenas da jurisprudência de valores, como também de uma interpretação dirigida por princípios, no sentido da interpretação construtiva de Dworkin.73 O contraponto é feito pelo outro eixo analítico: o substancialismo. Apesar de se mostrar temerária a dicotomização entre um eixo e outro, é importante estabelecer as suas delimitações. Nesse sentido, embora a postura de Cappelletti tenha sido marcante, para os limites desta obra mais importa apontar as bases mínimas do pensamento de Dworkin, que entende que a criação jurisprudencial do direito encontraria o seu fundamento na primazia da Constituição.74 O modelo substancialista – que, em parte venho subscrevendo (com uma forte dimensão hermenêutica e, portanto, antidecisionista e antiativista) – trabalha na perspectiva de que a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal, a partir do pressuposto de que a Constituição é a explicitação do contrato social.75 É o constitucionalismo-dirigente (Canotilho) que ingressa nos ordenamentos dos países após a segunda guerra. Consequentemente, é inexorável que, com a positivação dos direitos sociais-fundamentais, o Poder Judiciário (e, em especial, a justiça constitucional) passe a ter um papel de relevância, mormente no que pertine à jurisdição constitucional.76 Um dos mais ferrenhos defensores das teses substancialistas – ou, se assim quisermos, das teorias materiais da Constituição – e destas enquanto guia do processo hermenêutico- constitucional, é o norte-americano Laurence Tribe. Para tanto, elabora uma profunda crítica aos fundamentos das teorias dos valores adjetivos ou procedimentalistas, para as quais a Constituição somente garante o acesso aos mecanismos de participação democrática no sistema. Nesse sentido, afirma que o procedimento deve completar-se com uma teoria dos direitos e valores substantivos. Parte do caráter tenazmente substantivo (stubbornly substantive character) da maioria dos mandatos constitucionais mais importantes: a primeira emenda, a décima terceira (abolição da escravidão) ou a cláusula do devido processo legal são bons exemplos disso. Por outro lado, também são substantivos o significado e o propósito das normas que regulam os procedimentos de participação. Certamente, diz Tribe, decidir que classe de participação demanda a Constituição requer uma teoria dos valores e dos direitos plenamente substantiva. Assim, os direitos ao procedimento do devido processo têm em sua base a dignidade pessoal (ser ouvido é parte do que significa ser pessoa); do mesmo modo, a questão de “quem vota” ou a regra “um homem, um voto” possuem caráter substantivo. As teorias procedimentalistas não parecem apreciar que o processo é algo em si mesmo valioso; porém, dizer que o processo é em si mesmo valioso é afirmar que a Constituição é inevitavelmente substantiva. Por tudo isso, a Constituição é inevitavelmente substantiva.77 Mais ainda, Tribe vai dizer que a proteção das minorias isoladas e sem voz, excluídas do processo de participação política, possui também um fundamento substantivo: a legislação que discrimina qualquer categoria de pessoas deve ser rechaçada com base em uma ideia sobre o que significa ser pessoa, e a própria ideia de segregação dos negros ou mulheres somente pode ser rechaçada encontrando uma base constitucional para afirmar que, em nossa sociedade, tais ideias estão substantivamente fora do lugar. Em síntese, para Tribe, circunscrever a interpretação constitucional à ideia de abertura política supõe um círculo fechado. Por isso, as teorias defensoras da Constituição como processo (como garantia de abertura e de participação) supõem um empobrecimento do papel da teoria constitucional: a Constituição pareceria estar dirigida somente aos juízes, porém não aos cidadãos nem aos representantes, em face de sua incapacidade para informar no conteúdo do debate, discussão e decisão política.78 É possível também afirmar que o garantismo proposto por Luigi Ferrajoli se aproxima desse contexto, pelo valor que estabelece à Constituição. A concordância com o substancialismo de Ferrajoli79 não implica anuência a uma certa vinculação do autor com o positivismo, mormente na questão do papel do juiz, que permanece, ao que tudo indica, nos marcos do paradigma da filosofia da consciência. Parece não restarem maiores dúvidas em relação aos temas com os quaisestamos de acordo, Ferrajoli e eu: o neoconstitucionalismo, nos moldes em que se apresenta, apenas representa uma superação dos paleojuspositivismo ou, quando pretende ir além, fragiliza a autonomia do direito mediante a aposta no judicialismo; na mesma linha, as concordâncias em relação às críticas à distinção estrutural regra-princípio, assim como o rechaço da ponderação de valores. Já com relação às minhas discordâncias com Ferrajoli – na especificidade, a separação “direito-moral” e a admissão da discricionariedade – estas nascem porque, no que tange ao modo de organizar o pensamento, nós nos situamos em paradigmas filosóficos diferentes.80 Com efeito, é preciso reconhecer, junto com Ernildo Stein, que só fazemos filosofia – inclusive filosofia no direito – se essa filosofia é uma filosofia de standard de racionalidade. Isso significa que, para que o filosofar tenha resultados profícuos, é necessário que o filósofo (ou jusfilósofo) possa se movimentar no interior de um paradigma filosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar de quadro referencial teórico. É a partir desse quadro referencial teórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções no que tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, uma linguagem e uma ideia de método. Na nossa discussão, fica claro que há dois paradigmas distintos sendo trabalhados. No caso do juspositivismo constitucional de Ferrajoli, temos o trabalho desenvolvido no interior da filosofia analítica; ao passo que, em minha obra, procuro enquadrar o problema do direito no interior de outro paradigma: o da fenomenologia hermenêutica e a hermenêutica filosófica. Daí que minha tese, no que tange à construção de uma teoria do direito adequada aos postulados do Constitucionalismo Contemporâneo, apresente-se de maneira completamente ruptural com relação à tradição constituída sob a égide do positivismo normativista. Não há como compartilhar os mesmos pressupostos no que tange ao modo como o conhecimento é descoberto e o pensamento é organizado. Parece inegável que a proposta teórica de Ferrajoli está assentada no positivismo normativista da tradição, que nasce de uma vertente da filosofia analítica da linguagem, que é o neopositivismo lógico do Círculo de Viena. Ferrajoli não situa a interpretação do direito na viragem ontológico-linguística. A aposta de Ferrajoli na construção de uma “linguagem rigorosa” fala por si só (essa também era a tese dos neopositivistas do Círculo de Viena). Por tais razões é que o mestre florentino considera estranha a tese da resposta correta. Para os objetivos desta abordagem, importa lembrar que, em termos de doutrina brasileira, Paulo Bonavides81 justifica com vigor a tese substancialista, admitindo, por motivos pragmáticos, a judicialização da política em países de terceiro mundo. Dito de outro modo, na esteira das teses substancialistas, entendo que o Poder Judiciário (especialmente a justiça constitucional) deve assumir uma postura diferenciada, longe da postura absenteísta, própria do modelo liberal-individualista-normativista que permeia a dogmática jurídica brasileira.82 Aqui, entretanto, cabe uma advertência: a toda evidência, quando estou falando de uma função diferenciada do Poder Judiciário, não estou propondo uma (simplista) judicialização83 da política e das relações sociais. E isso não é difícil de perceber no exame do transcurso da presente obra. Importa ressaltar, entretanto, que, no plano do agir cotidiano dos juristas no Brasil, nenhuma das duas teses (procedimentalismo e substancialismo) é perceptível. Ou seja, se estamos longe da postura substancialista – e a prática nos tem demonstrado tal assertiva, em face da inefetividade da expressiva maioria dos direitos sociais previstos na Constituição e da postura assumida pelo Poder Judiciário na apreciação de institutos como o mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão, além da falta de uma filtragem hermenêutico-constitucional das normas anteriores a Constituição –, por outro lado, também não se pode afirmar que convivemos com uma prática procedimentalista do tipo proposto por Habermas. Ora, a submissão do Congresso à reiterada utilização indiscriminada de medidas provisórias por parte do Poder Executivo deixa claro o quanto estamos distante de promover o que Habermas denomina de “combinação universal e a mediação recíproca entre a soberania do povo institucionalizada e não institucionalizada”,84 enfim, o quanto estamos distantes da criação democrática de direitos e da garantia da preservação dos procedimentos legislativos aptos a estabelecer a autonomia dos cidadãos. Dito de outro modo, enquanto o procedimentalismo de Ely ancora-se na premissa de que “o controle abstrato de normas deve referir-se, em primeira linha, às condições da gênese democrática das leis, iniciando pelas estruturas comunicativas de uma esfera pública legada pelos meios de massa, passando, a seguir, pelas chances reais de se conseguir espaço para vozes desviantes e de reclamar efetivamente direitos de participação formalmente iguais, chegando até a representação simétrica de todos os grupos relevantes, interesses e orientações axiológicas no nível das corporações parlamentares e atingindo a amplitude dos temas, argumentos e problemas, dos valores e interesses, que têm entrada nas deliberações parlamentares e que são levadas em conta na fundamentação das normas a serem decididas”,85 e o paradigma procedimental habermasiano do Direito “pretende apenas assegurar as condições necessárias, a partir das quais os membros de uma comunidade jurídica, por meios de práticas comunicativas de autodeterminação, interpretam e concretizam os ideais inscritos na Constituição”,86 em que “a função da Corte Constitucional, originária ou não do Poder Judiciário, seria a de zelar pelo respeito aos procedimentos democráticos para a formação da opinião e da vontade política, a partir da própria cidadania, e não a de se arrogar o papel de legislador político”,87 não devendo, portanto, transformar-se (a justiça constitucional) em “guardiã de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais”, reservando-se a intervenção do Judiciário apenas para facultar aos excluídos da participação o acesso direto aos “poderes políticos”.88 Ora, a realidade brasileira aponta em direção contrária: o assim denominado Estado Social não se concretizou no Brasil (foi, pois, um simulacro), onde a função intervencionista do Estado serviu para aumentar ainda mais as desigualdades sociais (pensemos nos Donos do Poder, de Faoro, e no Capitalismo de Laços, de Lazzarini); parcela expressiva dos mínimos direitos individuais e sociais não é cumprida; o controle concentrado de normas apresenta um deficit de eficácia, decorrente de uma “baixa constitucionalidade”;89 os preceitos fundamentais que apontam para o acesso à justiça continuam ineficazes (basta lembrar, exemplificadamente, afora a “crônica de uma morte anunciada” ocorrida com o mandado de injunção, que a arguição de descumprimento de preceito fundamental somente foi regulamentada onze anos depois da promulgação da CF); no âmbito do parlamento, aprovam-se leis por voto de liderança; um voto de um eleitor de uma pequena unidade federada chega a valer dezesseis vezes o voto de um cidadão das unidades maiores, fazendo com que uma estranha matemática transforme a maioria em minoria; tais fatores – entre tantos outros que poderiam aqui ser assinalados e que já foram examinados anteriormente, naquilo que denomino de crise de paradigmasdo Direito e do Estado – denotam a inaplicabilidade das teses procedimentalistas, as quais, por sua especificidade formal, longe estão de estabelecer as condições de possibilidade para a elaboração de um projeto apto à construção de uma concepção substancial de democracia,90 no qual a primazia (ainda) é a de proceder à inclusão social (afinal, ainda existem dezesseis milhões de pessoas vivendo na miséria, ao mesmo tempo em que a Constituição estabelece que o Brasil é uma República que visa a erradicar a miséria e a desigualdade...) e o resgate das promessas da modernidade, exsurgentes da refundação da sociedade proveniente do processo constituinte de 1988. É este o dilema brasileiro: não sufragamos a tese substancialista, porque o Judiciário,91 preparado para lidar com conflitos interindividuais, próprios de um modelo liberal- individualista, não está preparado para o enfrentamento dos problemas decorrentes da transindividualidade, própria do (novo) modelo advindo do Estado Democrático de Direito previsto na Constituição promulgada em 1988; por outro lado, em face da democracia delegativa que vivemos, de cunho hobbesiano (O’Donnell), no interior do qual o Legislativo é atropelado pelo decretismo do Poder Executivo, também não temos garantido o acesso à produção democrática das leis e dos procedimentos que apontam para o exercício dos direitos previstos na Constituição. 2.4. A Constituição e o constituir da sociedade: a superação da crise de paradigmas como condição de possibilidade Por tudo isso, é possível sustentar que, no Estado Democrático de Direito, ocorre certo deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional. Pode-se dizer, nesse sentido, que no Estado Liberal, o centro de decisão apontava para o Legislativo (o que não é proibido é permitido, direitos negativos); no Estado Social, a primazia ficava com o Executivo, em face da necessidade de realizar políticas públicas e sustentar a intervenção do Estado na economia; já no Estado Democrático de Direito, o foco de tensão se volta para o Judiciário. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder – em determinadas circunstâncias – ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Isso, à evidência, exigirá um rigoroso controle das decisões judiciais e dos julgadores. Afinal, se é inexorável que alguém tenha que decidir e se é inexorável o crescimento das demandas por direitos (fundamentais-sociais, principalmente) e com isso aumente o espaço de poder da justiça constitucional, parece evidente que isso não pode vir a comprometer um dos pilares sustentadores do paradigma Constitucionalista: a democracia. Assim, a assertiva de que o Estado Democrático de Direito dependeria muito mais de uma ação concreta do Judiciário do que de procedimentos legislativos e administrativos deve ser deveras relativizada. O Judiciário não pode ser a solução mágica para os problemas dos fracassos e insuficiências de políticas de welfare state. Aliás, em determinadas circunstâncias, corre-se o risco de “criar” cidadãos de segunda classe, que, em vez de reivindicarem seus direitos no campo da política, apostam no paternalismo juridicista.92 Igualmente não se pode apostar em uma “república de juízes”. Tem-se que ter em mente, entretanto, a relevante circunstância de que, se no processo constituinte se optou por um Estado intervencionista, visando a uma sociedade mais justa, com a erradicação da pobreza etc., dever-se-ia esperar que o Poder Executivo e o Legislativo cumprissem tais programas especificados na Constituição. Acontece que, em grande parte, a Constituição não está sendo cumprida. As normas- programa da Lei Maior não estão sendo implementadas. Por isso, na falta de políticas públicas cumpridoras dos ditames do Estado Democrático de Direito, surge o Judiciário como instrumento para o resgate dos direitos não realizados. Por isso a inexorabilidade desse “sensível deslocamento” antes especificado. Com todos os cuidados que isso implica.93 Em face do quadro que se apresenta – ausência de cumprimento da Constituição, mediante a omissão dos Poderes públicos, que não realizam as devidas políticas públicas determinadas pelo pacto constituinte –, a via judiciária se apresenta – por vezes – como a via possível para a realização dos direitos que estão previstos nas leis e na Constituição. É claro que o Judiciário não faz e não fará políticas públicas. Aliás, é nesse sentido que devemos desmitificar algumas ideias que se propagam a respeito do direito e das políticas públicas. Com efeito, política pública é um problema de ação do Poder Executivo. O que o Direito pode fazer é regulamentar a execução dessas políticas e é nesse âmbito regulatório que o Judiciário pode intervir. Isso por um motivo muito simples: o Judiciário jamais poderá executar uma política pública pelo simples fato de que ele não tem a “chave do cofre” etc. O problema do Judiciário é uma questão de regulamentação e adequação constitucional dessas políticas, no âmbito daquilo que Elías Díaz chama de “legalidade constitucional”. Veja-se, por exemplo: o Judiciário pode determinar a continuidade de uma política pública que esteja adequada e funcionando, mas que o Executivo – por motivos político-fisiológicos – decidiu interromper ou substituir por outra (caso, por exemplo, da política de segurança implantada pelo governo Garotinho ao tempo em que o Luiz Eduardo Soares era secretário de segurança e que o governo, um ano depois, por conta de acordos políticos – que viabilizassem a candidatura do governador à presidência da república –, decidiu interromper por conta de novos acordos políticos. Nesta hipótese, o Ministério Público poderia ter provocado o Poder Judiciário, até para evitar o retrocesso social. Há casos limítrofes, em que a decisão judicial evita um desvio de finalidade do orçamento público e das próprias políticas públicas que advêm da Constituição e da Lei Orgânica do Município. Mutatis mutandis, é o exemplo que vem da Comarca de Joinville (SC), em que o juiz Alexandre Morais da Rosa,94 atendendo ação civil pública promovida pelo Ministério Público, determinou à municipalidade a criação de 2.948 vagas de ensino fundamental na rede pública de ensino.95 No caso, a municipalidade havia “preferido” colocar elevada verba em favor de um clube de futebol (Joinville Esporte Clube, que disputa a terceira divisão do Campeonato Brasileiro). De todo modo, o Judiciário sempre atuará nesse sentido regulador, controlando a legalidade constitucional, podendo, no limite, ordenar a execução de determinadas medidas ao Executivo (medidas essas determinadas pelo direito), mas a execução em si sempre caberá ao Executivo. Há um espaço que o Judiciário não alcança. Por isso, uma teoria da decisão é importante para nos assegurar dos limites desse espaço não alcançado pelo Judiciário; um espaço democraticamente garantido, para que nossa democracia não se transforme em uma juristocracia. Assim, naquilo que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle da constitucionalidadedas leis, pode servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a ineficácia dos direitos individuais ou sociais (também aqui pode ser usado o princípio da proibição de proteção insuficiente – a Untermassverbot).96 Dito de outro modo, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade. Veja-se, nesse sentido, a importante decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, que aplicou a cláusula da “proibição do retrocesso social”, inerente/imanente ao Estado Democrático e Social de Direito: “... a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social” (Acórdão n. 39/84 do Tribunal Constitucional da República Portuguesa).97 Evidentemente que isto leva em conta uma concepção de Constituição como espaço de regulação garantidor das relações democráticas entre o Estado e a Sociedade (Ribas Vieira), devendo ser entendida “precisamente como zona más o menos segura de mediación, aparte de la habitual entre legalidad y legitimación, también – más radicalmente y vinculado a todo ello – entre legitimidad y justicia” (Elías Díaz). Há, assim, inúmeros exemplos de ações civis públicas obrigando o fornecimento de remédios a pessoas portadoras de doenças crônicas e a construção de locais condizentes para abrigo de menores. Assim, em alguns pontos, pode-se perceber a atitude do Ministério Público e do Judiciário em sua feição intervencionista. É evidente – e isso já ficou claro anteriormente – que não se pode pretender que o Judiciário passe a ditar políticas públicas “lato sensu” ou que passe a exercer funções executivas e nem a Constituição – com todo o aparato jurídico colocado à disposição do Ministério Público e do Judiciário – permitiria tal situação. Basicamente, a mudança de postura dos operadores jurídicos, agindo em várias áreas de políticas públicas deixadas ao largo pelo Poder Executivo, já por si só provoca(ria) discussões que leva(ria)m os Poderes Legislativo e Executivo à reformulação de suas linhas de atuação, mormente no que concerne às prioridades orçamentárias. Ou seja, o Direito, nessa linha, passa(ria) a ser utilizado não como instrumento de redução de complexidades ou reprodução de uma dada realidade, e sim, como um mecanismo de transformação da sociedade. De todo modo, cabe ressaltar que essa questão não é nova. Com efeito, Leonel Severo Rocha,98 analisando o pensamento político de Rui Barbosa, chama a atenção para o fato de que, já na perspectiva de Rui para a Constituição de 1891, o Judiciário, órgão de controle da constitucionalidade, seria uma espécie de fiador das instituições e propiciador do acesso às demandas individuais. A perspectiva de Rui é chamada por Rocha de “democracia juridicista”, forma política na qual o direito de reivindicar os direitos nos tribunais seja a todos assegurada. Se é correta a tese de um certo deslocamento do centro de decisões antes delineada (relativizada ou não), como explicar o ainda acentuado grau de ineficácia do sistema judiciário no Brasil?99 Ou seja, com todos estes mecanismos à disposição – princípios constitucionais amplos e dirigentes, ações coletivas das mais variadas (ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção coletivo, ação popular etc.) – como justificar a reduzida função social do Direito? Daí o acerto de Ribas Vieira100 em dizer que “a crise do Judiciário deriva do descompasso existente entre sua atuação e as necessidades sociais, considerando-se totalmente insuficiente a afirmação formal da existência de determinados direitos, uma vez que o Direito só tem real existência a partir de uma agência coativa disposta a aplicar as normas jurídicas”. Não é segredo que, historicamente, o Direito tem servido, preponderantemente, muito mais para sonegar direitos do cidadão do que para salvaguardar o cidadão. Para confirmar tal afirmação, basta que olhemos nossos presídios, nossas favelas, nossos índices de mortalidade, nosso coeficiente de impunidade,101 nossas leis que protegem, deliberantemente, as classes médio-superiores, como, v.g, a Lei 10.684/03102 etc., para entendermos a dimensão do problema. À evidência, a simples elaboração de um texto constitucional, por melhor que seja, não é suficiente para que o ideário que o inspirou se introduza efetivamente nas estruturas sociais, passando a reger com preponderância o relacionamento político de seus integrantes.103 Assim, para que alcancemos tal desiderato, necessitamos, primeiro, superar esse paradigma104 normativista (por vezes, ainda exegético), próprio de um modelo (modo de produção) de Direito liberal-individualista. Para tanto, é preciso entender que – sustentando esse modo liberal-individualista de produção de direito – existe um campo jurídico, instituído ao mesmo tempo que instituinte, no interior do qual se trabalha ainda com a perspectiva de que, embora o Estado tenha mudado de feição, o Direito perfaz um caminho a latere, à revelia das transformações advindas de um Estado intervencionista, regulador. Esse campo jurídico se constitui em um conjunto de todos os personagens que fazem, interpretam e aplicam a lei, transmitem conhecimentos jurídicos e socializam jogadores que se encontram no jogo do campo, no interior do qual os conflitos dão-lhe dinamismo, mas também o mantêm, como um campo: os jogadores em competição é que disputam entre si, mas não o campo em si mesmo; portanto, a disputa reafirma e ainda fortalece o campo. Todos os jogadores num campo jurídico têm determinado conjunto de disposições que orientam suas ações. Tais disposições são traçadas através de disputas do campo com outros campos sociais e de conflitos internos, o que constitui o habitus desse campo.105 Por outro lado, é necessário registrar que, na sustentação desse imaginário jurídico prevalecente, encontra-se disseminado ainda o paradigma epistemológico da filosofia da consciência106 – calcada na lógica do sujeito cognoscente, onde as formas de vida e relacionamentos são reificadas e funcionalizadas, ficando tudo comprimido nas relações sujeito-objeto – carente e/ou refratária à viragem linguística de cunho pragmatista- ontológico ocorrida contemporaneamente, no qual a relação ou relações passa(m) a ser sujeito-sujeito. Ou seja, no interior do senso comum teórico dos juristas, consciente ou inconscientemente, o horizonte a partir de onde se pode e deve pensar a linguagem ainda é o do sujeito isolado (ou da consciência do indivíduo) – que tem diante de si o mundo dos objetos e dos outros sujeitos –, característica principal e ponto de referência de toda a filosofia moderna da subjetividade.107 Essa separação entre sujeito eobjeto – tão bem denunciada por Gadamer – busca proporcionar a que o sujeito, de forma objetiva, possa “contemplar o objeto”. Em decorrência, em face da prevalência do paradigma epistemológico da filosofia da consciência (em seus vários desdobramentos de Descartes a Kant, Fichte, Schelling, Hegel, Husserl e Betti – este pela sua importância e direta influência no campo da interpretação jurídica – só para citar os principais), não é temerário afirmar que, no campo jurídico brasileiro, a linguagem ainda tem um caráter secundário, como terceira coisa que se interpõe entre sujeito e objeto, enfim, uma espécie de instrumento ou veículo condutor de essências e corretas exegeses dos textos legais. Essa lógica do sujeito, é dizer, o ser é sempre em função do sujeito, que provém de Descartes, é rompida pela viragem linguística, mormente por Wittgenstein, e pela ontologia heiddegeriana. Lamentavelmente – e aí está assentada uma das faces da crise paradigmática –, o campo jurídico brasileiro continua sendo refratário a essa viragem linguística. Apoiado em Castanheira Neves, é relevante deixar assentado que, com a viragem/reviravolta linguística, fica excluída (aquel) a evidência primeira, seja racional (como em Descartes) ou empírica (como em Locke) e igualmente qualquer pretensa direta e privilegiada representação intencional-objetiva pré-linguística (como na fenomenologia de Husserl108), passando o homem a orientar-se no mundo e nele agir mediante a e pela linguagem, como, no dizer de Quine, “o que há no mundo não depende em geral do nosso uso da linguagem, mas já depende deste uso o que podemos dizer que há”; Heidegger, para quem “a linguagem é a casa do ser”; Gadamer, para quem “ser que pode ser compreendido é linguagem”, e Seiffert, que diz não ser exagero “se designarmos a época da linguagem como a terceira era da filosofia, depois da época do ser (antiguidade e idade média) e da época da consciência (idade moderna até a análise da linguagem)”. Passa-se, enfim, da essência para a significação, no qual o importante e decisivo não está em se saber o que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas, o que queremos dizer com, ou que significado têm as expressões linguísticas (a linguagem) com que manifestamos e comunicamos esse dizer das coisas.109 Notas 54 As críticas deste texto são dirigidas, à evidência, à dogmática jurídica não garantista, que não questiona as vicissitudes do sistema jurídico, reproduzindo esta injusta e desigual ordem social. Ou seja, as críticas aqui feitas ressalvam e reconhecem os importantes contributos críticos – e não são poucos – construídos/elaborados ao longo de décadas em nosso país. 55 O conceito de modo de produção de direito aqui trabalhado é de Dezalay e Trubek, op. cit., que se baseiam, de certo modo, no conceito de modo de produção de direito formulado por Boaventura de Sousa Santos. 56 Uma observação necessária: os personagens “Caio, Tício, Mévio(a)” são aqui utilizados como uma crítica aos manuais de Direito, os quais, embora sejam dirigidos – ou deveriam ser – a um sistema jurídico (brasileiro!) no interior do qual proliferam Joãos, Pedros, Antonios e Josés, Marias, Terezas, teimam (os manuais) em continuar usando personagens “idealistas/idealizados”, desconectados da realidade social. Registre-se que até mesmo no provão do MEC os personagens Caio e Tício (re)apareceram... 57 Consultar Castilho, Ela Volkmer de. O controle penal dos crimes contra o sistema financeiro nacional. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. 58 Cf. BECK, Francis Rafael. A criminalidade de colarinho branco e a necessária investigação contemporânea a partir do Brasil: uma (re)leitura do discurso da impunidade quanto aos delitos do “andar de cima”. Tese (Doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Programa de Pós-Graduação em Direito, São Leopoldo, RS, 2013. 59 Cf. Faria, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil, op. cit., p. 14 e 15. 60 Cf. Morais, Jose Luis Bolzan de. Do Direito Social aos Interesses Transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 67 e segs. (grifei). Ver também, Streck, Lenio Luiz e Morais, Jose Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 61 Ver, para tanto, Thompson, Edward Palmer. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 356 e segs. Segundo o historiador inglês, “a retórica e as regras de uma sociedade são muito mais que meras imposturas. Simultaneamente podem modificar em profundidade o comportamento dos poderosos e mistificar os destituídos do poder. Podem disfarçar as verdadeiras realidades do poder, mas ao mesmo tempo podem refrear esse poder e conter seus excessos. (...) Não sustento nenhum postulado quanto à imparcialidade abstrata e extra-histórica dessas regras. Num contexto de flagrantes desigualdades de classe, a igualdade da lei em alguma parte sempre será uma impostura. Transplantada, tal como era, para contextos ainda mais desigualitários, essa lei podia se converter em instrumento do imperialismo. Mas, mesmo aí, as regras e a retórica eram uma máscara, foi uma máscara que Gandhi e Nehru tiveram de usar à frente de um milhão de adeptos mascarados. De forma alguma meus olhos brilham por causa disso. (...) Insisto apenas no ponto óbvio, negligenciado por alguns marxistas modernos, de que existe uma diferença entre o poder arbitrário e o domínio da lei. Devemos expor as imposturas e injustiças que podem se ocultar sob essa lei. Mas o domínio da lei em si, a imposição de restrições efetivas ao poder e a defesa do cidadão frente às pretensões de total intromissão do poder parecem-me um bem humano incondicional”. 62 Para aprofundar mais sobre o tema, confira: Tassinari, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 63 Em verdade, uma adaptação do capitalismo para conter o avanço do socialismo. Ver: Avelãs Nunes, António José. As voltas que o mundo dá: reflexões a propósito das aventuras e desventuras do estado social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 64 Ver, nesse sentido, Olea, Manuel Alonso. Jurisdición social, penal y contencioso-administrativa. In: Division de poderes, op. cit., p. 102, 103 e 117; com mais especificidade, Díaz, Elías. Estado de Derecho y Sociedad democrática. Madrid: Taurus, 1983; El Estado Democrático de Derecho y sus críticos izquierdistas. Sistema, n. 17-18; Socialismo Democrático y Derechos Humanos, in Legalidad y legitimidad en el socialismo democrático. Madrid: Civitas, 1978. 65 Nesse sentido, consultar Vianna, Luiz Werneck; Carvalho, Maria Alice Rezende de; Cunha Melo, Manuel Palácios; Burgos, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, p. 22 e 23. 66 A divisão entre dois eixos analíticos é proposta por Vianna, et al., op. cit. Deixo de analisar, aqui, o enfoque sistêmico, que, em alguns aspectos, aproxima-se das teses procedimentalistas. Para a teoria dos sistemas, a sociedade é uma rede de comunicações, em que importa muito mais a questão de como opera o sistema jurídico no interior da sociedade do que propriamente a ação individual do jurista. A sociedade, assim, é dividida em vários subsistemas, como o jurídico, o econômico, o político etc., um se distinguindo do outro. O operador jurídico não pode operar fora da característica específica do sistema jurídico. Não se torna relevante, em tal perspectiva, o perfil do operador do Direito. A sociedade será uma rede de comunicações.A identificação das distinções entre o Direito e a Política será feita pela característica de cada comunicação: será comunicação jurídica aquela que lida com a dualidade lícito/ilícito, pertencendo esta somente ao sistema jurídico; o sistema jurídico é que definirá o que é lícito e ilícito; são definidas, desse modo, as distinções entre sistema jurídico e sistema político (no qual ocorre a dualidade governo/oposição, maioria/minoria etc.). Não se admite, então, a transferência da linguagem de um sistema para outro, tornando-se inaceitável, em termos sistêmicos, aquilo que hoje se denomina de judicialização da política. Nesse sentido, adoto, enfaticamente, a crítica habermasiana, para quem, partindo da ideia hobbesiana da autoafirmação naturalista dos indivíduos, Luhmann elimina consequentemente a razão prática através da autopoiese de sistemas dirigidos autorreferencialmente. Os muitos sistemas parciais recursivamente fechados e mantenedores de limites formam mundos circundantes uns para os outros; eles encontram-se situados, de certa forma, em nível horizontal e se estabilizam, na medida em que se observam uns aos outros e refletem sobre sua relação, sem possibilidades de uma intervenção direta. Numa concepção monádica, as capacidades transcendentais das consciências dos sujeitos, delineadas por Husserl, passam para os sistemas de mônadas da consciência, sendo, pois, encapsuladas monadicamente e despidas de subjetividade. Inverte-se, aí, a filosofia do sujeito, transformando-a em um objetivismo radical. Perdem-se, nesse contexto, todos os vestígios hermenêuticos, nos quais uma teoria da sociedade, que parte da autocompreensão dos atores, ainda poderia encontrar acesso à sociedade. O Direito é entendido apenas como funcionalmente estabilizador de expectativas de comportamentos. Ou seja, o sistema jurídico passa a ser um redutor de complexidades, desengatado de todos os demais sistemas de ação. Ver, para tanto, Luhmann, Niklas. Ausdifferenzierung des Rechts. Frankfurt am Main, 1981; Legitimação pelo Procedimento. Brasília, UNB, 1986; Habermas, Jürgen. Direito e Democracia – entre Facticidade e Validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1997. 67 Consultar, para tanto, Habermas, Jürgen. Direito e Democracia – entre facticidade e validade, Vol. I e II, especialmente p. 297 e segs. (I) e 123 e segs. e (II). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 68 Cf. Habermas, Direito e Democracia, vol. I, op. cit. e p. 245 e segs.; ver, também, comentário de Cittadino, op. cit., p. 205, e Vianna et al, op. cit., em especial a apresentação. 69 Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 70 Cf. Habermas, op. cit., vol. I, p. 297 e segs 71 Cf. Habermas, Direito e Democracia I, p. 297 e segs. e II, p. 170 e segs.; tb. Más Allá Del estado Nacional, op. cit., p. 99 e segs. 72 Consultar, para tanto: Habermas, Direito e Democracia, op. cit.; Garapón, Antoine. Le Gardien de Promesses. Paris, Odile Jacob, 1996; especialmente Vianna, Luiz Werneck et al., op. cit. 73 Cf. Habermas, Direito e Democracia I, op. cit., p. 328. Também Ely, J.H. Democracy and Distrust. A theory os Judicial Review. Cambridge/Mass, 1980, p. 133. 74 Consultar Cappelletti, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Fabris, 1988; Dworkin, Ronald. L’empire du Droit. Paris, PUF, 1994; idem Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977; tb. Vianna et al., op. cit. 75 Como contraponto às eventuais críticas ao fato de que aqui se estaria assumindo uma postura (meramente) contratualista, é necessário frisar que a noção de contrato social aqui trabalhada não pode ser entendida no âmbito de uma filosofia do sujeito, mas, sim, no âmbito de uma intersubjetividade (relação sujeito-sujeito), própria do paradigma hermenêutico, no interior do qual o sujeito desde sempre está mergulhado na linguisticidade do mundo. Ou seja, no paradigma hermenêutico a noção de contrato social é imanente, uma vez que não há linguagem privada. O privado somente decorre das inter-relações com o público. Acreditar em linguagem privada é retornar ao paradigma da filosofia da consciência, onde a subjetividade (certeza de si do pensamento pensante) é instauradora do mundo. O homem está inserido em um complexo de significações, traduzidos pela linguagem, que o coloca no mundo. Parte-se da premissa, pois, de que estamos no mundo pela tradição, e que nossos pré-juízos são a condição de possibilidade para falar do mundo. Assim, quando se afirma que a Constituição é a explicitação do contrato social, está-se afirmando o caráter discursivo que assume a noção de Constituição, enquanto produto de um processo constituinte. O conjunto de discursos, portanto, linguagem, construídas na caminhada da elaboração do texto constitucional, significa entender a linguagem como constructo, que estabelece os (novos) limites do mundo jurídico- social. A apropriação de uma nova linguagem (o texto constitucional e tudo o que estiver ao seu redor) significa a introdução de novos significados à realidade. Nesse sentido, a Constituição, entendida como explicitação do contrato, não pode ser entendida como um “contrato” que se estabelece como uma terceira coisa entre o Estado, o Poder, o Governo, com os destinatários; antes disso, a linguagem constituinte passa a ser condição de possibilidade do novo, na medida em que, na tradição do Estado Democrático de Direito, o constitucionalismo não é mais o do paradigma liberal, mas, sim, passa por uma revolução copernicana, mediante o constituir da Sociedade. 76 Cf. Vianna et al, op. cit. 77 Consultar Tribe, L. H. The Puzzling Persistence of Process-Based Constitutional Theories, in The Yale Law Journal, vol. 89, 1073, 1980, p. 1065 e segs.; Ibidem, American Constitutional Law. The Foundation Press, 2. ed., New York: Mineola, 1988; Ibidem Taking Text and Structure Seriously: reflection on free-form method in constitutional interpretation, In: Harvard Law Review, vol. 108, n. 6, 1995. Conferir, também, Diaz Revorio, Francisco Javier. La constitución como orden abierto. Madrid: Estudios Ciencias Jurídicas, 1997, op. cit., p. 161 e segs. 78 Idem, ibidem. 79 Cf. Ferrajoli, Luigi. Jueces y política. Derechos y Libertades. In: Revista del Instituto Bartolomé de las Casas. Año IV. Janeiro de 1999, n. 7. Madrid: Universidad Carlos III, p. 63 e segs.; tb Derecho y Razón. Madrid: Editorial Trotta, 1995. 80 Realizei esse debate com Ferrajoli com ajuda de outros importantes autores no livro Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012. 81 Cf. Bonavides, Paulo. A Constituição Aberta. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 1993, p. 9-10; ver também Siqueira Castro, Carlos Roberto de. A Constituição Aberta e Atualidades dos Direitos Fundamentais do Homem. Rio de Janeiro: UERJ, mimeo, 1995, p. 20-21, além de Vianna, op. cit., p. 40-41. 82 Uma crítica consistente ao papel da dogmática jurídica e o seu atrelamento ao paradigma (neo)liberal vem sendo feita por Alexandre Morais da Rosa (v.g., Diálogo com a Law e Economics, escrito em conjunto com José Manuel Aroso Linhares, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009). Morais da Rosa também faz uma contundente crítica às práticas estandardizadas do judiciário, mostrando, por exemplo, que a verdade real é uma “empulhação ideológica” que serve para “acalmar” a consciência de acusadores e julgadores. Nesse sentido, ver Jurisdição do Real x Controle Penal: Direito e Psicanálise. Disponível em: <http://www.kindlebook.com.br/Amazon> e Decisão Penal: a bricolagede significantes (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006). 83 Para maiores aprofundamentos ver a obra Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da atuação do Judiciário. Nela Clarissa Tassinari faz uma relevante análise à luz da Crítica Hermenêutica do Direito acerca da judicialização da política e, sobretudo, do ativismo. Cf. Tassinari, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial: Limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 84 Cf. Habermas, Direito e Democracia II, op. cit., p. 186. 85 Ver, nesse sentido, Ely, op. cit., p. 133 e segs. 86 Ver, nesse sentido, Habermas, Más Allá, op. cit., p. 99; também Direito e Democracia I, op. cit., p. 297 e segs. 87 Idem, ibidem. 88 Idem, ibidem. 89 Sobre aquilo que denomino de “baixa constitucionalidade”, consultar Streck, Lenio Luiz. A hermenêutica e o acontecer (Ereignen) da Constituição: a tarefa de uma nova crítica do Direito. In: Anuário do Curso de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2000, p. 105 e segs. 90 Um dos grandes problemas decorrentes da contraposição entre o substancialismo e as teorias processuais (procedimentalismo) reside no fato de que alguns autores, ao sobrevalorizarem o procedimento, elevando-o à condição de princípio (epocal) fundante da democracia, deixam de dar a devida importância aos direitos fundamentais sociais, que se constituíram no grande Leitmotiv da revolução copernicana que atravessou o constitucionalismo após a segunda grande guerra. Por isto, Bercovici vai chamar a atenção para o fato de que “a Constituição possui, também, e não exclusivamente, como querem alguns autores, a natureza de uma lei processual para a realização de seus princípios. O processo, assim, torna- se um instrumento para a efetivação da Constituição. Entender a Constituição também enquanto processo significa que a ordem constitucional não é uma ordem totalmente estabelecida, mas que vai sendo criada, por meio da relação entre a Constituição material e os procedimentos de interpretação e concretização. O interesse despertado pelas teorias procedimentais, todavia, deve despertar cautela. As teorias procedimentais, segundo Alexy, caracterizam-se pela plasticidade, ou seja, nelas cabe tudo. Embora deva-se reconhecer a importância do procedimento na concretização constitucional, a adoção de uma teoria procedimental não será a solução para todos os problemas constitucionais.” Cf. Bercovici, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 278. Nesta altura, não é difícil sustentar que a defesa de um substancialismo material-constitucional não prescinde – e não pretende prescindir – do papel fundamental que deve ser exercido pelo procedimento. Na verdade, o problema é exatamente o oposto, ou seja, o problema está na pretensão de autonomização das teorias processuais. Ora – e o alerta vem em boa hora formulado por José Adércio Leite Sampaio –, a Constituição não pode ser meramente procedimental a dispor sobre as regras de formação da vontade política exclusivamente. Entretanto, aduz, também não pode ser uma ordem dura de valores. É, sim, uma simbiose que assume as formas jurídicas e se limita às suas contingências, ao seu tempo e ao seu povo. A Constituição é uma obra inacabada e que tende a se rebelar contra seus criadores. A tarefa do jurista é pôr em marcha essa tendência dispersiva do texto sem permitir que se esvaia o sentido de norma ou que se destrua a engenharia original dos fundadores. É tentar domar o mito e decodificá- lo juridicamente. E é nesse contexto que deve ser analisada a jurisdição constitucional. Cf. Leite Sampaio, José Adércio. A Constituição reinventada. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 19. 91 É evidente que a defesa de certo grau de intervencionismo da justiça constitucional (ou, se se quiser, do Poder Judiciário) – que venho sustentando sem a menor ilusão de que existam apenas “bons ativismos e bons ativistas” – implica o risco, e esta aguda crítica é feita por Bercovici (Desigualdades Regionais, op. cit.), da ocorrência de decisões judiciais emanadas, principalmente, pelo Supremo Tribunal Federal, contra a Constituição, com o consequentemente esvaziamento de seus “valores substanciais”, o que representa – aí sim – usurpação de poderes constituintes (pensemos, aqui, no poder de violência real e simbólica das súmulas vinculantes, que “valem mais” do que a Constituição). De qualquer modo, sem tirar a razão da percuciente observação de Bercovici, tenho que o Tribunal Constitucional (no caso, o STF) sempre faz política. E isto é inexorável. O que ocorre é que, em países de modernidade tardia como o Brasil, na inércia/omissão dos Poderes Legislativo e Executivo (mormente no âmbito do direito à saúde, função social da propriedade, direito ao ensino fundamental, além do controle de constitucionalidade de privatizações irresponsáveis, que contrariam frontalmente o núcleo político-essencial da Constituição), não se pode abrir mão da intervenção da justiça constitucional na busca da concretização dos direitos constitucionais de várias dimensões. Entretanto, uma “intervenção” da justiça constitucional demanda controle. Para tanto, sugiro a leitura de meu O que é isto – decido conforme minha consciência? (4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013), que se constitui em um libelo contra decisionismos e ativismos. 92 Isso, hoje, é facilmente perceptível nos municípios brasileiros, em que os conflitos, na sua maior parte, são levados ao Ministério Público, que os repassa ao Judiciário. A excessiva judicialização das relações sociais acarreta o risco de estarmos criando “cidadãos de segunda classe”, que, em vez de se organizarem e lutarem por seus direitos, delegam essa prerrogativa cidadã a uma espécie de administrativização da sociedade. Esse fenômeno é mais visível nos municípios, em que os vereadores, tais quais os cidadãos, preferem correr ao gabinete do Promotor de Justiça do que lutar politicamente pelos direitos da comunidade. Neste ponto, devemos dar razão a autores como Habermas, que chamaria a isso de “colonização do mundo da vida”. 93 Ver, para tanto, Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 94 Decisão proferida nos autos do Proc. 038.03.008229-0. 95 Essa decisão sofreu críticas agudas de Álvaro Souza Cruz, em Habermas e o Direito Brasileiro, Lumen Juris, 2005. Advogando uma posição procedimentalista, Souza Cruz acusa a decisão do juiz Morais da Rosa de ativista. O caso da “criação de 2.948 vagas de ensino fundamental em Joinville” é mais uma demonstração de que a incorporação que Souza Cruz faz de Habermas ao direito brasileiro acaba colocando na lei e nos atos administrativos os chamados discursos de fundamentação. Isso, em síntese, acaba retomando a tese positivista da discricionariedade administrativa e dos conceitos indeterminados. Ou seja, parte-se de uma pauta e discute-se – no agir comunicativo – a sua aplicação. Ver a lei como discurso de fundamentação (e simplesmente isso) gera outro problema para qualquer habermasiano que queira aplicá-lo ao direito brasileiro. Assim, por exemplo, o orçamento municipal tratado nesse caso teria sido elaborado sob as condições quase- transcendentais necessárias à validade da ação comunicativa? É ele resultado de um “verdadeiro” consenso? Habermas, em uma passagem de Validade e Faticidade, alerta que o direito tem que ser visto como um todo! Isso quer dizer que eu só posso aplicar o direito habermasianamente se o direito foi feito habermasianamente.Se um direito não trava com a moral uma relação de “complementariedade cooriginária”, ele não atende aos princípios U e D, logo, não pode gerar um discurso de fundamentação válido. Deve-se notar que a legitimação procedimental em Habermas tem que atender às condições de validade do discurso, o que o distancia neste ponto de Kelsen. Numa palavra: a “opção” do Prefeito em designar a verba para o Joinville Esporte Clube é fruto de uma decisão discricionária, solipsista, sem consulta à comunidade e tampouco à Constituição da República. Aliás, apenas para ficar no plano do Direito Constitucional, seria de se perguntar: em sendo o orçamento uma lei, não estaria ela submetida aos ditames constitucionais presentes no art. 208, I, da CF, que garante a gratuidade do ensino para todos, estendendo-se, inclusive, para aqueles que não tiveram acesso à educação em idade própria? E mais: o orçamento em questão cumpria o dever constitucional previsto no artigo 212 e parágrafos da CF, que impõe a vinculação de, no mínimo, 25% da receita resultante de impostos no município em investimentos visando à manutenção e ao desenvolvimento do ensino? Afinal, o que vale mais: o ato administrativo/legislativo ou a Constituição? Se a Constituição é uma garantia, esse dispositivo não existe por acaso. Pelo contrário, ele reflete duas constatações básicas: 1º) É preciso maiores investimentos para aperfeiçoar o sistema educacional brasileiro; 2º) Nos casos em que aquele que exerce a função pública – chancelado pelo voto da maioria – deixar de implementar as necessárias melhorias no sistema educacional, a minoria tem a garantia de que um juiz fará cumprir a Constituição. Pois não é esse o caso? Por fim, é preciso entender, de uma vez por todas, que criticar ativismos não significa fazer do Judiciário um Poder “menor”. Significa impingir, cada vez em mais alto grau, a necessidade de decisões fundamentadas que consigam ventilar em sua melhor luz aquilo que nosso modelo constitucional deixou estabelecido. No caso da decisão de Joinville, a resposta adequada à Constituição foi certamente alcançada. 96 Sobre a Untermassverbot (princípio da proibição de proteção insuficiente) e sua aplicação no direito brasileiro, ver Direito Penal e Constituição: a face oculta da proteção dos direitos fundamentais, de Maria Luiza Schäfer Streck (Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008), em que é feito um importante apanhado acerca das diversas facetas desse tipo de inconstitucionalidade, que pode ocorrer tanto no plano da legislação como na aplicação judicial. Na obra, Maria Luiza também analisa julgamentos de tribunais de outros países, como Argentina, Espanha, Portugal e Alemanha (de onde nasceu o princípio). 97 Sobre a cláusula da proibição de retrocesso social no âmbito dos direitos sociais, consultar o excelente artigo “Direitos Fundamentais Sociais e proibição de retrocesso: algumas notas sobre o desafio da sobrevivência dos Direitos Sociais num contexto de crise”, de Ingo Wolfgang Sarlet. In: (Neo)constitucionalismo: ontem, os códigos; hoje, as Constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica n. 2. Porto Alegre: IHJ, 2004, p. 121-168. 98 A respeito, consultar Rocha, Leonel Severo. A democracia em Rui Barbosa. O projeto político liberal-racional. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1995, p. 137 e 153. 99 Refiro como ineficácia o desvio hermenêutico constante na aplicação do Direito. Isto é, embora o elevado grau de intervencionismo do Ministério Público e do Poder Judiciário, este se manifesta muito mais em termos daquilo que se pode denominar de ativismo do que da judicialização. Na verdade, o que é possível constatar é muito mais atitudes ativistas do que de judicialização. Por exemplo, no que tange às decisões que determinam o fornecimento de remédios e internações hospitalares, que representam o maior volume da intervenção do Poder Judiciário, este, por não se dar a partir de uma criteriologia, acabou por ser “adaptado” pelos diversos governos municipais, estaduais e federal. Não é desarrazoado afirmar, nesse contexto, que é mais cômodo para o Poder Executivo fornecer um advogado para o utente do que políticas públicas. Veja-se, como exemplo que simboliza essa problemática, que o Estado de São Paulo vem gastando mais no atendimento às decisões judiciais (que dizem respeito à saúde) do que nas políticas públicas stricto sensu. 100 Cf. Vieira, Ribas, op. cit., p. 111. 101 Ressalve-se que, em face de seu uso constante, inclusive pelo “discurso do movimento Lei e Ordem”, o termo “impunidade” corre o risco de transformar-se em um estereótipo, passando a sofrer, com isso, de anemia significativa (Warat). 102 O art. 9º da Lei 10.684/03 trouxe evidentes benefícios aos sonegadores de impostos e de contribuições sociais, ao introduzir a possibilidade de o sonegador ficar isento do crime em caso de pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia criminal. Enquanto isso, ao “cidadão-comum-não-sonegador”, em caso de crime contra o patrimônio em que não tenha restado prejuízo à vítima (restituição ou recuperação da res), há somente o benefício do desconto da pena (art. 16 do Código Penal). Sobre o assunto, ver Streck, Lenio Luiz. A nova lei do imposto de renda e a proteção das elites: questão de “coerência”. In: Doutrina n. 1. RJ, ID, p. 484-496. 103 Consultar, nesse sentido, Guerra Filho, Willis Santiago. Pós-modernismo, pós-positivismo e o Direito como Filosofia. In: O Poder das Metáforas: homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. José Alcebíades de Oliveira Jr. (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 104 Partindo da premissa de que um paradigma implica uma teoria fundamental reconhecida pela comunidade científica como delimitadora de campos de investigação pertinentes a determinada disciplina (Kuhn), pode-se dizer que o que fornece o status científico de uma ciência vai depender não tanto das teses defendidas pelos manuais científicos, mas sim do consenso da comunidade científica em torno dessas teses, conforme muito bem ensina Celso Campilongo, in: Representação política e ordem jurídica: os dilemas da democracia liberal. São Paulo, 1982, p. 11 e segs. Agregue-se a isso o dizer de Enrique Puceiro, Teoria jurídica y crisis de legitimación. In: Anuario de Filosofia Jurídica y Social. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1982, p. 289 e segs., para quem a dogmática jurídica define e controla a ciência jurídica, indicando, com o poder que o consenso da comunidade científica lhe confere, não só as soluções para seus problemas tradicionais, mas, principalmente, os tipos de problemas que devem fazer parte de suas investigações. Daí que a dogmática jurídica é um nítido exemplo de paradigma. Diz mais, o mestre argentino, que a crise da ciência do Direito é um capítulo da crise mais ampla da racionalidade política que ocorre nas sociedades avançadas. 105 Consultar Bourdieu, Pierre. The force of the Law: toward a Sociology of the juridical field. Também Delazai, Yves e Trubek, David M. A reestruturação global e o Direito. In: Direito e Globalização econômica. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros, 1996, p. 34 e segs. Bourdieu, em Questões de Sociologia, acrescenta que o campo é um sistema competitivo de relações sociais que funciona de acordo com sua lógica interna, composta de instituições ou indivíduos que competem pelos mesmos interesses. Em geral, o que está em jogo nesses campos é a obtenção da máxima predominância dentro deles – uma predominância que permite, aos que a obtêm,conferir legitimidade aos outros participantes. Conquistar essa predominância implica acumular o máximo do tipo particular de “capital simbólico” apropriado ao campo; e, para que esse poder se torne “legítimo”, ele tem que deixar de ser reconhecido pelo que é. Um poder endossado de maneira tácita, e não explícita, é um poder que logrou legitimar-se. Ver, para tanto, Eagleton, Terry. A ideologia e suas vicissitudes no marxismo ocidental. In: Um Mapa da Ideologia, op. cit., p. 224. 106 Já aqui, cabe uma ressalva que já fiz alhures em outros textos e obras: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe chega a poder ser caracterizada como “filosofia da consciência”; trata-se de uma vulgata disso. É verdade que, em meus textos, tenho falado que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discricionariedades se enquadram no “paradigma epistemológico da filosofia da consciência”. Advirto, porém, que é evidente que esse modus decidendi não guarda estrita relação com o “sujeito da modernidade” ou até mesmo com o “solipsismo kantiano”. Esses são muito mais complexos. Venho apontando essas “aproximações” para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja “em paradigma nenhum”, por mais sincrético que seja. Aliás, estou sendo generoso ao falar de “discricionariedades”... O que temos visto vai muito além daquilo que, na tradição, tem sido epitetado de “discricionariedade”. Basta ver o que fazem com a “ponderação”. Mais adiante, abordo aprofundadamente esta questão, especificamente no item 6.3, p. 205 e 207. 107 Ver, para tanto, Oliveira, Manfredo Araujo de. Sobre fundamentação. Porto Alegre: Edipucrs, 1993. 108 “Considerando que a Fenomenologia era o método da crítica do conhecimento, Husserl ainda indagava sobre a possibilidade de que o conhecimento saísse de si mesmo para alcançar ‘um ser que não pode encontrar no quadro da consciência’. Ora, a intencionalidade não justifica semelhante formulação. O sujeito é excêntrico e sai permanentemente fora de si mesmo. Mas é o Dasein que circunscreve, pela compreensão do ser, a relação do sujeito com os objetos concretizada atinge o Eu transcendental, como unidade monádica que existiria em contínua evidência para si mesmo, no qual Husserl, que bem próximo ficou de Kant, e mais ainda de Descartes, reinvestiu, tomando por modelo o Cogito cartesiano, o sujeito transcendental da Filosofia moderna. Colocando entre parênteses o Eu assim concebido, a epoché de Heidegger suspende a certeza do Cogito em que se baseou a Fenomenologia enquanto ciência filosófica rigorosa”. Cf. Nunes, Benedito. Passagem para o poético (filosofia e poesia em Heidegger). São Paulo: Ática, 1995, p. 69. 109 Cf. Castanheira Neves, Antonio. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Coimbra: Coimbra Editores, 1993, p. 89. 3. A não recepção da viragem ontológico-linguística pelo modelo interpretativo (ainda) dominante em terrae brasilis Embora tudo isto – e isto vale para o modo-de-fazer Direito em nosso sistema jurídico brasileiro –, a mudança de paradigma (da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem)110 não teve a devida recepção no campo da filosofia jurídica e da hermenêutica no cotidiano das práticas judiciárias e doutrinárias brasileiras.111 Os juristas não se deram conta do fato de que “o Direito é linguagem e terá de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o Direito o é numa linguagem e como linguagem, propõe-se sê-lo numa linguagem (nas significações linguísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa linguagem, que é”.112 Basta ver, por exemplo, que as teses que tratam da “morte do sujeito” não tiveram qualquer repercussão no domínio da Filosofia do Direito, como bem registra Seixas Meirelles. Aqui, acrescenta o professor português, sob a aparência de um novo fundamento, o que continua a dominar é a filosofia do sujeito-proprietário de mercadorias, com a sua capacidade de autodeterminação, fundamento último da filosofia do Direito. Essa filosofia é a mimesis da “tradicional” filosofia da Liberdade, ou seja, a filosofia do (neo)liberalismo, o que faz com que a existência verdadeira do homem, o seu modo-de-ser, “social” autêntico (Karel Kosik), porque é mediatizada na sociedade mercantil pelo Direito-Positivo-Histórico, permanece, na sociedade do presente, assimptótica.113 O sujeito, invenção/criação da modernidade, continua a funcionar como fundamentum inconcussum absolutum veritatis. No plano da interpretação/aplicação do Direito, isso é facilmente detectado na admissão do poder discricionário dos juízes, no livre convencimento e na livre apreciação das provas. Continuamos com a mesma economia de mercado e a mesma lógica da “reificação”, mediadas pela categoria do sujeito de direito (Seixas Meireles), cuja teorização sustenta-se em um paradigma hermenêutico de cunho metafísico-essencialista, em que os fenômenos têm uma pretensa independência, onde o fenômeno é explicado depois de reduzido à sua essência, é dizer, a um princípio abstrato, criando dois polos em que não há mediação: o individual abstrato, de um lado; e o universal abstrato, de outro (Kosik).114 Na verdade, a dogmática jurídica atua a partir de um sincretismo: ao mesmo tempo em que aposta no mito do dado (metafísica clássica), não abre mão (ou necessita) da mediação do sujeito solipsista, problemática que será melhor especificada no capítulo destinado à discussão entre vontade da lei versus vontade do legislador.115 Essa mixagem encontra um terreno fértil no Direito brasileiro, em que a) o Código Civil é proveniente de uma sociedade pré-liberal e urbana;116 b) o Código Penal é produto de uma sociedade que há pouco saíra de um modelo agrário-exportador, voltado a uma (nova) clientela fruto da mudança da economia ocorrida a partir da revolução liberal de 1930;117 c) o Código Comercial é do século XIX (agora “incorporado” pelo Código Civil); d) o Código de Processo Civil, que estabelece mecanismos que protegem explicitamente os direitos reais em detrimento dos direitos pessoais, além de apostar no instrumentalismo, a partir de uma clara opção em favor do protagonismo judicial, circunstância que se repete no Projeto do novo CPC; e, e) o Código de Processo Penal, que adota nítida matriz inquisitorial, ainda apostando na livre apreciação das provas, explícita opção pelo paradigma da filosofia da consciência. Registre-se que o Projeto do novo CPP “avança” (sic) em direção ao “livre convencimento motivado”, como se isso o livrasse do paradigma filosófico anterior.118 Tudo isso é de suma importância na análise do Direito em nosso país. Como os juristas pensam a sociedade e o Direito? Como se inserem e como têm acesso ao mundo? O jurista não é outsider da sociedade. O Direito não pode mais ser visto como uma (mera) racionalidade instrumental. Ao admitirmos que o Direito “é linguagem”, tampouco podemos cair na armadilha da filosofia analítica, como se antes dos textos não houvesse coisas (faticidade). Dizendo de outro modo: a análise da crise paradigmática do Direito não pode mais ficar restrita à crítica ao velho exegetismo. É bem verdade que, em um primeiro momento, apostávamos na superação do positivismo primitivo (exegético), o que se fazia, no campo da crítica do Direito, através de concepções voluntaristas-axiologistas das mais variadas. Nesse sentido, não se pode olvidar a importância das posturas analíticas,mormente as que, a partir da linguagem, buscavam, nas nesgas da sintaxe e da semântica, enfrentar o dedutivismo dominante no imaginário jurídico. Explico melhor essa importante questão: diversas teorias críticas do direito – como veremos na sequência, uma delas é a teoria da argumentação jurídica – não conseguem fazer mais do que superar o positivismo primitivo (exegético), ultrapassando-o, entretanto, apenas, no que tange ao problema “lei=direito”, isto é, somente alcançam o “sucesso” de dizer que “o texto é diferente da norma” (na verdade, fazem-no a partir não de uma diferença, mas, sim, de uma cisão [semântico-estrutural], cortando qualquer amarra de sentido entre texto e sentido do texto). Para isso, valem-se da linguagem, especialmente calcados na primeira fase do linguistic turn, que conhecemos como o triunfo do neopositivismo lógico. Aqui reside parte importante da problemática: a não recepção do giro ontológico-linguístico. É dizer, na especificidade do campo jurídico, as teorias analíticas tomaram emprestado do próprio Kelsen o elemento superador do positivismo exegético, que funcionava no plano semiótico da sintaxe, indo em direção a um segundo nível, o da semântica, o que se observa ainda hoje na “crítica do direito”. Que a lei não dá conta de tudo, Kelsen já havia percebido, só que, enquanto ele chegava a essa conclusão, a partir da cisão entre ser e dever ser, com a divisão entre linguagem objeto e metalinguagem, as teorias analíticas e seus correlatos chegam à mesma conclusão. Ocorre, entretanto, que essa “mesma conclusão” vem infectada com o vírus do sincretismo filosófico, uma vez que mixaram inadequadamente o nível da metalinguagem com o da linguagem objeto, isto é, o plano da ciência e o do direito (pura) e do direito (eivado do solipsismo próprio da razão prática). Para ser mais específico e para evitar mal-entendidos: Kelsen apostou na discricionariedade do intérprete (no nível da aplicação do direito) como sendo uma fatalidade, exatamente para salvar a pureza metódica, que assim permanecia “a salvo” da subjetividade, da axiologia, da ideologia etc. Veja-se um dos equívocos da leitura que se faz e se fez de Kelsen: ele nunca separou/cindiu Direito e moral e nem o Direito dos “valores”. Na verdade, ele cindiu a ciência do direito da moral (e dos valores lato sensu). Ou seja, se Kelsen faz essa aposta nesse “nível”, as diversas teorias (semânticas e pragmaticistas) apostam na discricionariedade a ser feita “diretamente” pelo intérprete/juiz. Mais ainda, se Kelsen teve o cuidado de construir o seu próprio objeto de conhecimento – e, por isso, é um autêntico positivista –, a teoria pós-kelseniana, que não compreendeu a amplitude e profundidade do neopositivismo lógico, acabou por fazer essa mixagem dos dois níveis (metalinguagem e linguagem-objeto). A partir dessa má compreensão, os juristas pensaram que o juiz seria o sujeito pelo qual, no momento da aplicação do direito (em Kelsen, o juiz faz um ato de vontade, e não de conhecimento), passa(ria) a fazer a “cura dos males do direito”. O que em Kelsen era uma fatalidade (e não uma solução), para as correntes semanticistas, passou a ser a salvação para as “insuficiências” ônticas do direito. E de que modo as teorias analíticas pretendem controlar a “expansão linguística” provocada pela descoberta da cisão da norma em relação ao texto? A resposta é simples: pela metodologia. Algo como “racionalizar” o subjetivismo...! No fundo, um retorno à velha jurisprudência dos conceitos. Ou melhor, em tempos de jurisprudência dos valores, axiologismos etc., nada melhor do que um “retorno” a uma certa racionalidade dedutivista. A diferença é que agora não se realiza mais uma pirâmide formal de conceitos para apurar o sentido do direito positivo; ao revés, utiliza-se o intérprete como “canal” através do qual os valores sociais invadem o direito, como se o sujeito que julga fosse o fiador de que as regras jurídicas não seriam aplicadas de um modo excessivamente formalista. Ocorre que, ao permanecerem no campo da semanticidade, os juristas que se inserem nesse contexto (na verdade, a maioria) são obrigados – sob pena de autodestruição de seu discurso – a admitir múltiplas respostas na hora da decisão. Nada mais do que evidente: se as palavras contêm incertezas designativas/significativas, há que se admitir uma pluralidade de sentidos (no campo da semântica, é claro). Só que isso denuncia a cisão entre interpretar e aplicar. Observemos: o neopositivismo surgiu exatamente para construir uma linguagem artificial, com o fito de superar essa incerteza da linguagem natural com a qual era feita a ciência. Já as diversas teorias analíticas apenas comemoram tardiamente a descoberta dessas incertezas da linguagem, pensando que, se superassem o exegetismo assentado sobre a relação texto- norma, já estariam em um segundo patamar... Ledo engano. No campo jurídico, o “maior avanço” parece – mas apenas parece – ter sido dado por Alexy, que de algum modo pretende conciliar o método analítico da jurisprudência dos conceitos com o axiologismo da jurisprudência dos valores. Com efeito, procurando racionalizar o uso da moral corretiva (p.ex., através da jurisprudência dos valores, que ele buscou “controlar” racionalmente), Alexy contenta-se em dizer, em um primeiro momento, que os casos simples se resolvem por subsunção, o que quer dizer que ele acredita na suficiência ôntica da lei naqueles casos em que haja “clareza” no enunciado legal e na rede conceitual que o compõem. Ou seja, Alexy, em parte, continua apostando no exegetismo, ao menos para a resolução dos casos no âmbito das regras. Para ele, nos casos fáceis (simples), a norma é sempre geral, porque abrange todas as hipóteses de aplicação. Para além dessa “suficiência ôntico-exegética”, quando estiver em face de um caso difícil, apela para o outro nível da semiótica: a pragmática. Mas a palavra final será do sujeito e sua subjetividade. A ponderação alexiana, feita para resolver o problema de colisão de princípios, dependerá, ao fim e ao cabo, da discricionariedade, bastando ver, para tanto, o modo como se “constrói” a regra da ponderação. Portanto, dependerá do sub-jectum, de um solus ipse. Disso exsurge um paradoxo: o que sustenta o arraigamento aos ordenamentos (regras em geral) é, ainda, o positivismo exegético. No fundo, superestimamos as críticas ao positivismo exegético, como se este já estivesse superado. Observe-se que as posturas neoconstitucionalistas, por exemplo, ainda acreditam que casos simples se resolvem por subsunção. Logo, acreditam na tese central do velho positivismo. Ocorre que as críticas à forma primitiva do positivismo abriram duas possibilidades: a permanência do objeto criticado e o escondimento das possibilidades da superação do elemento superador do exegetismo. Quem fica preso ao texto (que se iguala, assim, à norma) só consegue superar o “impasse” apelando ao “novo positivismo”, o normativista. Tem-se, assim, um problema: se o positivismo separava direito e moral, ou seja, afastava a moral (e os valores lato sensu) da lei (portanto, do direito, porque lei e direito eram a mesma coisa), aqueles que buscaram superar o antigo positivismo incorreram em um equívoco, ao cindirem casos fáceis e casos difíceis e apostarem nos princípios como a porta da entrada da moral no direito, dizendo, por exemplo, que “princípios são normas”. Resultado disso é o já serôdio discurso de que o “juiz boca da lei foi superado pelo juiz dos princípios”. E, para agravar essa problemática,setores da comunidade jurídica passaram a se utilizar da ponderação como um “simples” mecanismos de resolução de conflitos ou colisão de princípios. De forma equivocada, passaram a fazer sopesamentos sem qualquer fidelidade à ponderação alexyana. Assim, se a ponderação em Alexy já é problemática porque ainda presa ao paradigma sujeito-objeto, sem escapar do subjetivismo, a vulgata que foi feita, principalmente no Brasil, fez com que esta – a ponderação – não passasse de um simples álibi teórico, com ela podendo ser extraída qualquer decisão. Por isso alguns juristas compreenderam mal o sentido do novo Constitucionalismo. Explicando melhor: por não terem compreendido o problema da diferença entre o velho positivismo exegético (sintático) e o positivismo normativista (semântico), pensaram que o “neoconstitucionalismo” seria a forma de superar o exegetismo. E, para isso, apelaram para a busca de valores que estariam “escondidos” por debaixo dos textos legais. Com isso, não foram além de Kelsen. E esse é o ponto fulcral do problema. Talvez por isso o neoconstitucionalismo seja subdividido em metodológico, ideológico e normativo. Ora, pensar assim é apenas colocar o neoconstitucionalismo como uma continuidade do velho positivismo, e não como autêntica ruptura. Esse problema também se repetiu na equivocada compreensão do sentido dos princípios, conceituados como “positivação de valores” ou a “sofisticação” dos velhos princípios gerais do direito, que, como se sabe, não passavam de axiomas. Portanto, não basta dizer que a lei não contém o direito; não basta dizer que o ôntico não esgota os sentidos se isso for feito sob os pressupostos do positivismo normativista. Isso explica as razões pelas quais a defesa da discricionariedade é feita pela maioria dos juristas. Ou seja, recém estão ultrapassando o velho positivismo exegético. Para tanto, basta ver o que a maioria dos juristas defensores do neoconstitucionalismo fala sobre a discricionariedade, os princípios (tidos como valores) etc. Essa é a pista para identificar os “novos” positivistas (ou neopositivistas). Assim, com a aposta na discricionariedade, efetivamente acreditam que são pós-positivistas. Ora, somente seriam pós-positivistas se o positivismo fosse reduzido a um único bloco teórico: o exegetismo, algo que acabaria por aniquilar dois dos maiores pensadores do positivismo, Kelsen e Hart. O que quero dizer – e venho insistindo nisso de há muito – que “discricionariedade” e “positivismo normativista” são faces da mesma moeda. Não que o positivismo exegético não contasse com algum tipo de discricionariedade. Ela apenas era de outro nível: os juízes é que estavam impedidos (lembremos da serôdia cisão entre questão de fato- questão de direito) pela crença da completude da legislação, dos conceitos legislativos etc. Todavia, existia, no interior do método positivista exegético, um aprisionamento a um voluntarismo, um voluntarismo presente na ideia de mens legis. Note-se como o constitucionalismo ataca essa questão nos dois níveis, uma vez que derruba a ideia de uma confiança absoluta em algo como um legislador racional e, ao mesmo tempo, oferece freios ao voluntarismo judicial. Releva registrar, desse modo, que a discricionariedade e o positivismo normativista buscam fechar as lacunas de racionalidade – ou, no limite, ausência de racionalidade – por uma metodologia teleologicamente dependente do sujeito que concretiza o ato. Tudo isso não permite que eles saiam dos braços da filosofia da consciência. É por isso que venho sustentando que somente é possível superar o positivismo a partir da ruptura com o esquema sujeito-objeto introduzido pela filosofia da consciência, isto porque o positivismo está indissociavelmente dependente do sujeito solipsista. Foi graças a ele – sujeito solipsista – que o positivismo foi superado no sentido de deslocamento do fator de blindagem, antes em relação aos juízes e, depois, sem amarras. Faltou, portanto, compreender que: a) Kelsen superou o positivismo exegético a partir do fato de que o conceito preponderante não é mais a lei, mas sim a norma, que não está contida apenas na lei, mas também nas decisões (portanto, o problema em Kelsen é um problema de decidibilidade); b) Kelsen, uma vez que foi mal entendido, não foi superado pelos teóricos do direito justamente por não terem conseguido compreender o alcance nem da primeira fase da viragem linguística (neopositivismo lógico) e nem de seu sequenciamento/aprimoramento (o giro ontológico-linguístico). Para ser mais simples: o problema do positivismo não é o fato de a lei ser igual ao direito ou do direito ser igual à lei, mas sim do sujeito cognoscente se apoderar da “sacada kelseniana” de separação entre interpretação como ato de conhecimento (esta, sim, exata, objetiva, rígida) e interpretação como ato de vontade (relegada ao alvedrio do órgão competente para a aplicação da norma superior). Por isso tudo é importante lembrar que a “baixa constitucionalidade” está assentada ainda muito mais no velho positivismo exegético do que propriamente no positivismo normativista. Isso pode ser visto nos pequenos detalhes, como na dificuldade em fazer filtragem hermenêutico-constitucional e daí a pergunta: se já superamos o positivismo exegético, porque nos recusamos – com base na diferença entre vigência e validade – a considerar inconstitucionais uma infinidade de dispositivos de leis ordinárias? O que sobraria do Código Penal de 1940 se não continuássemos a ser positivistas exegéticos? O resultado dessa dificuldade teórica é que a aplicação do direito transforma-se em algo ad hoc: por vezes ultrapassa-se a letra da lei; por vezes sustenta-se a “letra fria da lei” (sic).119 Ora, uma Constituição nova – e essa é a questão fundante da ruptura paradigmática que deveria ter sido captada pela comunidade jurídica de terrae brasilis – exige novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria hermenêutica. Entretanto, isso exige um giro paradigmático: dos paradigmas aristotélico- tomista e da filosofia da consciência para o giro ontológico-linguístico (sem nos contentarmos com a simples analítica da linguagem). Em 1988, o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: de que modo poderíamos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição jurídica estava assentada em um modelo liberal-individualista (que opera com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não havia uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico. Essas carências jogaram os juristas brasileiros nos braços das teorias alienígenas. Consequentemente, as recepções dessas teorias foram realizadas, no mais das vezes, de modo acrítico, sendo a aposta no protagonismo dos juízes o ponto comum da maior parte das teorias. Com efeito, houve um efetivo “incentivo” doutrinário a partir de três principais posturas ou teorias: a jurisprudência dos valores, o realismo norte-americano (com ênfase no ativismo judicial) e a teoria da argumentação de Robert Alexy.120 Observe-se, pois, a complexidade da crise aqui discutida/analisada. Nos limites desta obra, preocupo-me em abordar a assim denominada crise do paradigma liberal-individualistade produção de direito, agregada à crise do Estado e à crise decorrente da não superação, pela dogmática jurídica, do paradigma da prevalência da lógica do sujeito cognoscente e, ao mesmo tempo, um certo arraigamento às posturas essencialistas (ontologia clássica). Portanto, não se está a falar da (ou de uma) crise de paradigmas lato sensu. Portanto, uma crítica do direito que se reduza a denunciar a atividade judicial, no sentido de que esta não pode ser vista como simples “administração da lei por uma instituição tida como ‘neutra’, ‘imparcial’ e ‘objetiva’”, ficando o intérprete/aplicador convertido num mero técnico do Direito positivo, não é mais suficiente, porque ataca apenas o modo-exegético-de- fazer-interpretar-e-aplicar o Direito.121 As recepções das teorias voluntaristas – em especial as que colocam a Constituição como “ordem concreta de valores” (portanto, com filiação na jurisprudência dos valores e com tendências à incorporação das teses do realismo jurídico), ultrapassaram esse “modelo de aplicação do Direito”. Na verdade, ocorreu uma troca: do modelo que apostava na estrutura do Direito (objetivismo), passou-se a adotar uma postura de perfil subjetivista, que deu – e dá – azo não somente ao decisionismo stricto sensu, mas também ao instrumentalismo (processo civil) e ao inquisitivismo (processo penal). Enfrentar esse “novo” protagonismo será o papel de uma hermenêutica preocupada com a democracia, para impedir que a produção democrática do Direito seja substituída pelo Poder Judiciário. 3.1. A crise de paradigma (de dupla face) e o senso comum teórico dos juristas como horizonte de sentido da dogmática jurídica No plano do imaginário dos juristas, essa (dupla) crise de paradigma se sustenta em um emaranhado de crenças, fetiches, valores e justificativas por meio de disciplinas específicas, denominado por Warat de senso comum teórico dos juristas, que são legitimados mediante discursos produzidos pelo órgãos institucionais, tais como os parlamentos, os tribunais, as escolas de direito, as associações profissionais e a administração pública. Tal conceito traduz um complexo de saberes acumulados, apresentados pelas práticas jurídicas institucionais, expressando, destarte, um conjunto de representações funcionais provenientes de conhecimentos morais, teológicos, metafísicos, estéticos, políticos, tecnológicos, científicos, epistemológicos, profissionais e familiares, que os juristas aceitam em suas atividades por intermédio da dogmática jurídica.122 O senso comum teórico “coisifica” o mundo e compensa as lacunas da ciência jurídica. Interioriza – ideologicamente – convenções linguísticas acerca do Direito e da sociedade. Refere-se à produção, à circulação e à “consumação” das verdades nas diversas práticas de enunciação e de escritura do Direito, designando o conjunto das representações, crenças e ficções que influenciam, despercebidamente, os operadores do Direito. Traduz-se em uma “paralinguagem”, situada depois dos significantes e dos sistemas de significação dominantes, que ele serve de forma sutil, para estabelecer a “realidade” jurídica dominante. É o local dos “segredos”.123 Difusamente, o senso comum teórico é o conhecimento que se encontra na base de todos os discursos científicos e epistemológicos do Direito. O senso comum teórico institui uma espécie de habitus (Bourdieu), ou seja, predisposições compartidas, no âmbito do imaginário dos juristas. Isso porque, segundo Bourdieu, há, na verdade, um conjunto de crenças e práticas que, mascaradas e ocultadas pela communis opinio doctorum, propiciam que os juristas conheçam de modo confortável e acrítico o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades jurídicas, o que faz do exercício do operador jurídico um mero habitus, ou seja, um modo rotinizado, banalizado e trivializado de compreender, julgar e agir com relação aos problemas jurídicos, e converte o seu saber profissional em uma espécie de “capital simbólico”, isto é, numa riqueza reprodutiva a partir de uma intrincada combinatória entre conhecimento, prestígio, reputação, autoridade e graus acadêmicos.124 Quatro são as funções do senso comum teórico dos juristas especificadas por Warat: a função normativa, por intermédio da qual os juristas atribuem significação aos textos legais, estabelecem critérios redefinitórios e disciplinam a ação institucional dos próprios juristas. A segunda função é ideológica, uma vez que o senso comum teórico cumpre importante tarefa de socialização, homogeneizando valores sociais e jurídicos, de silenciamento do papel social e histórico do Direito, de projeção e de legitimação axiológica, ao apresentar como ética e socialmente necessários os deveres jurídicos. Num terceiro momento, o senso comum teórico cumpre uma função retórica, que complementa a função ideológica, pois sua missão é efetivá- la. Neste caso, o senso comum teórico opera como condição retórica de sentido, proporcionando um complexo de argumentos (lugares ideológico-teóricos para o raciocínio jurídico). Por último, o senso comum teórico cumpre uma função política, como derivativa das demais. Essa função se expressa pela tendência do saber acumulado em reassegurar as relações de poder. Por isso, acrescenta, é fácil perceber como o conhecimento jurídico acumulado consegue apresentar os dispositivos do poder – plurais, dispersos e dependentes de tendências – como um conjunto unívoco e bem ordenado aos fins propostos. A partir de tais premissas waratianas, é possível afirmar que a realidade do cotidiano dos juristas – a sua relação com a lei (texto normativo) e o Direito – por si só não é significativa. Porém, ela se apresenta dessa maneira graças ao senso comum teórico no ato de conhecer. O que determina a significação dessa realidade é toda a faculdade cognoscitiva, institucionalmente conformada com todos os seus elementos fáticos, lógicos, científicos, epistemológicos, éticos e de qualquer outra índole ou espécie. A significação dada ou construída via senso comum teórico contém um conhecimento axiológico que reproduz os valores sem, porém, explicá-los. Consequentemente, essa reprodução (inautêntica dos pré- juízos, no sentido de Gadamer, como veremos mais adiante) conduz a uma espécie de conformismo dos operadores jurídicos (o que denomino de habitus dogmaticus). O senso comum teórico sufoca as possibilidades interpretativas. Quando submetido à pressão do novo, (re)age institucionalizando (ou banalizando) a crítica. Para tanto, abre possibilidades de dissidências apenas possíveis (delimitadas previamente). Ou seja, no interior do senso comum teórico, permite-se, difusamente, (apenas) o debate periférico, mediante a elaboração de respostas que não ultrapassem o teto hermenêutico prefixado (horizonte do sentido). Daí a dificuldade para a obtenção de algumas respostas que exsurgem de perguntas do tipo “o que significa o dispositivo constitucional da igualdade de todos perante a lei” para a imensa maioria da população brasileira? O que significa pacta sunt servanda em um conflito sociojurídico entre incluídos e excluídos (socialmente)? Nesse sentido, não é difícil ou temerário dizer que os paradoxos originários da sociedade repleta de conflitos e contradições acabam sendo, exatamente, diluídos no interior desse corpus denominado por Warat de senso comum teórico do saber jurídico. Segundo Warat, o senso comum teórico é instrumentalizado por uma racionalidade positivista, que atua como fetiche de sua razão cotidiana, alémde atuar como mediadora dos conflitos sociais. Exatamente por isso que os “operadores” (sic) do Direito trabalham em uma instância de julgamento e censura – uma espécie de “superego da cultura jurídica”125 – que os impede de produzir decisões autônomas em relação a esse nível censor. Não conseguem se dar conta do fumus ideológico que, de forma inexorável, está por detrás de cada interpretação da lei, de cada sentença, enfim, de cada discurso acerca do Direito. Assim, o jurista tradicional, inserido nesse habitus, não se dá conta dessa problemática. E o Judiciário e as instituições encarregadas de aplicar e administrar a justiça dela não escapam. Tem o Judiciário (e o Direito) uma função social, nesse contexto? Não se deve olvidar que o Poder Judiciário (e isto se aplica ao Ministério Público) vive uma crise que tem três matrizes, bem detectadas por Diogo de Figueiredo Moreira Neto: a crise estrutural (deficiência de juízes, falta de controle efetivo), uma crise funcional (inadequação das leis, problema de acesso à justiça) e uma crise individual,126 que pode ser chamada de crise de imaginário. Essa crise de imaginário é fortíssima, porque, de certo modo, faz uma amálgama das outras duas. Cada vez que a crise do Judiciário se agudiza – através da inefetividade, inacesso à justiça, lentidão da máquina etc. –, o establishment responde com soluções ad hoc, como por exemplo, uma sequência de reformas ad hoc do processo civil, a lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais127 e o efeito (de poder) representado pelas súmulas vinculantes.128 Com o Juizado Especial Criminal, instituído pela Lei 9.099/95, por exemplo, e a nova lei da arbitragem, o Estado “sai” cada vez mais das relações sociais. No fundo, a lei dos juizados criminais institucionalizou a agressão física, com a transformação do delito de lesões corporais de ação pública incondicionada em ação pública condicionada. Portanto, não impressiona e nem causa surpresa a edição da Lei 9.099/95 (“sofisticada” pela Lei 10.259 que aumentou o conjunto de tipos penais passíveis de “barganha” e pagamento de cestas básicas), que instituiu os Juizados Especiais Criminais. Entre outras críticas que podem ser feitas à Lei, registre-se que, na prática, pela simplificação de seu procedimento na fase policial (o fato vai narrado, resumidamente, em um boletim) e seu imediato envio ao Judiciário, vários delitos que já estavam sepultados no imaginário social, foram “repristinados” pela Lei (embora parte não tenha sido recepcionada pela atual Constituição), como uma série de contravenções penais e outros pequenos crimes, o que, indiscutivelmente, evidencia um retrocesso. Além disso, com a necessidade de representação (provocação prévia do cidadão para que o Estado processe o autor do delito), pode-se afirmar, com uma certa dose de sarcasmo, que a nova Lei permite “o duelo” nos limites das lesões. Explicando: se duas pessoas resolvem brigar, e os ferimentos disso decorrentes forem leves, o Estado não interfere na “relação” belicosa... (a não ser que um deles faça a “representação”!) Ou seja, a Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099, alterada pela 10.259) não mais coloca o Estado como interventor necessário nas contendas vis-à-vis entre pessoas, desde que os ferimentos não ultrapassem o âmbito das lesões leves (que, como se sabe, pelas exigências do art. 129, e seus parágrafos, podem não ser tão leves assim). O Estado assiste de camarote e diz: batam-se que eu não tenho nada com isto. É o “neoliberalismo” no Direito, agudizando a própria crise da denominada “teoria do bem jurídico”, própria do modelo liberal-individualista de Direito. Não pode surpreender o fato de que o Código Penal “protege-pune” com mais rigor os crimes contra a propriedade do que os contra a vida. As comparações chegam a ser teratológicas, por exemplo, entre lesões culposas (crimes de trânsito) e furto, estelionato e omissão de socorro...129 Entretanto, o jurista, inserido em um habitus dogmaticus, não se dá conta das contradições do sistema jurídico. As contradições do Direito e da dogmática jurídica que o instrumentaliza não “aparecem” aos olhos do jurista, uma vez que há um processo de justificação/fundamentação da “coerência” do seu próprio discurso. Esse processo de justificação não prescinde, para sua elucidação, do entendimento acerca do funcionamento da ideologia. Isto porque, como ensina Zizek, a eficácia de uma ideologia pode ser apreendida pelos mecanismos da identificação imaginária e da identificação simbólica. E, à primeira vista se poderia dizer que o que é pertinente numa análise da ideologia é somente a maneira pela qual ela funciona como discurso, em suma, pela maneira como os mecanismos discursivos constituem o campo da significação ideológica. No entanto, o derradeiro suporte do efeito ideológico (ou seja, a maneira como uma rede ideológica nos “prende”) é o núcleo fora de sentido, pré-ideológico do gozo. Na ideologia “nem tudo é ideologia (isto é, sentido ideológico), mas é precisamente esse excesso que constitui o derradeiro esteio da ideologia”.130 O ideológico não pode ser simbolizado enquanto ideológico, ou seja, usando as palavras de Zizek, o indivíduo submetido à ideologia nunca pode dizer por si mesmo “estou na ideologia”. Esse não-poder-dizer é decorrente do fato de que o discurso do Outro o aliena dessa possibilidade simbolizante. É possível dizer assim que o discurso ideológico enquanto tal não é realidade para o indivíduo submetido/assujeitado. Se simbolizar é tratar pela linguagem e se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o discurso ideológico só pode vir à tona no sujeito se este não tiver as condições de possibilidade de dizê-lo, de nomeá-lo, isto é, de estabelecer a surgição de que fala Lacan no Seminário II. Nesse sentido, é possível fazer uma analogia do discurso ideológico com o discurso do mito. A ideologia – vista/entendida segundo os parâmetros aqui estabelecidos – permite que se diga que o mito só é mito para quem não sabe que é mito, ou seja, o mito só é mito para quem nele acredita. O desvelar do mito é a instituição de uma ruptura, através de um simbólico não atravessado/sitiado pelo discurso mitológico. O simbólico dos registros do Real, Imaginário e Simbólico, não deve ser entendido (aqui) como simbólico ideológico/ideologizado. Se é verdade o que disse Lacan131 que “nunca se sabe o que pode acontecer com uma realidade até o momento em que se a reduziu definitivamente a inscrever-se numa linguagem”, então o espectro ideológico da sociedade sofre um atravessamento, isto é, um atalho que impede que a realidade – não ideológica – se inscreva numa linguagem, é dizer, que possa ser simbolizada. Isso porque há um atalho na simbolização; uma ce(n)sura significativa. Logo, onde há uma interdição, há um “curador” que se substitui ao discurso. Esse atravessamento/atalho, ou seja, essa interdição (de sentido) institui uma espécie de narcisismo discursivo, no interior do qual o discurso ideológico/alienado/alienante é narcísico, como por exemplo a frase “veja você (a realidade!) com seus próprios olhos”, como bem exemplifica o mesmo Zizek. O simbólico está colonizado por um discurso ideológico que não permite a possibilidade de o sujeito dar-se conta do mundo. No plano dessa justificação discursiva, objetivando a perenização desse corpus ideologicus, a dogmática jurídica utiliza-se de um artifício que Ferraz Jr. denomina de astúcia da razão dogmática, que atua mediante mecanismos de deslocamentos ideológico-discursivos. Esta astúcia da razão dogmática “põe-se, assim, a serviço do enfraquecimento das tensões sociais, namedida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição de poder, de recursos e de benefícios escassos. E o faz, ao torná-los, conflitos abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos e em termos juridicamente interpretáveis e decidíveis”.132 Ou seja, a partir desse deslocamento, não se discute, por exemplo, o problema dos direitos humanos e da cidadania, mas sim, sobre (e a partir) deles. Uma das operações fundamentais do processo ideológico consiste na passagem do discurso de ao discurso sobre (Claude Lefort): “é assim que podemos quase detectar os momentos nos quais ocorre o surgimento de um discurso ideológico: por exemplo, quando o discurso da unidade social se tornou realmente impossível em virtude da divisão social, surgiu o discurso sobre a unidade; quando o discurso da loucura tem que ser silenciado, em seu lugar surge um discurso sobre a loucura; onde não pode haver um discurso da revolução, surge um outro, sobre a revolução; ali onde não pode haver o discurso da mulher, surge um discurso sobre a mulher etc.”.133 Graças a isso, no contexto da dogmática jurídica, os fenômenos sociais que chegam ao Judiciário passam a ser analisados como meras abstrações jurídicas, e as pessoas, protagonistas do processo, são transformadas em autor e réu, reclamante e reclamado, e, não raras vezes, “suplicante e suplicado”, expressões estas que, convenhamos, deveriam envergonhar (sobremodo) a todos nós. Mutatis mutandis, isto significa dizer que os conflitos sociais não entram nos fóruns e nos tribunais graças às barreiras criadas pelo discurso (censor) produzido pela dogmática jurídica dominante. Nesse sentido, pode-se dizer que ocorre uma espécie de “coisificação” (objetificação) das relações jurídicas. Embora esse processo ocorra cotidiana e difusamente no interior do imaginário dos juristas (senso comum teórico), alguns exemplos mais contundentes põem à prova até mesmo a relação “senso comum teórico dos juristas” versus “senso comum da sociedade”. Assim, v.g, graças ao modo de fazer/interpretar o Direito balizado pelo senso comum teórico e pelo habitus por ele instituído, é “permitido” que, no âmbito do direito penal, em face de um conflito de dispositivos legais (Lei 8.069 v. Lei 8.072), defenda-se a tese de que quem estupra uma criança pode ter uma pena mais branda do que aquele que estupra uma mulher adulta (existiram posições doutrinárias e até mesmo julgamentos nesse sentido, sim!). Explicando: o art. 263 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispôs sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentou um parágrafo único aos arts. 213 (estupro) e 214 do Código Penal (atentado violento ao pudor), agravando a pena quando cometido o crime contra pessoa menor de catorze anos (a pena estabelecida foi de 4 a 10 anos). Entretanto, a Lei 8.072, do mesmo ano, que classificou os crimes hediondos, além de agravar a pena de estupro, criou uma causa de aumento de pena, aumentando-a da metade quando praticado o crime contra pessoa menor de catorze anos. No caso em tela, criou-se, destarte, o seguinte impasse: na ocasião, o art. 213, v.g, passou a estabelecer que quem praticasse estupro contra pessoa maior (caput do artigo), receberia uma pena de 6 a 10 anos; já no parágrafo único tinha-se que quem praticasse o crime contra pessoa menor de 14 anos, a pena seria menor, ou seja, de 4 a 10 anos. Duas correntes doutrinárias e jurisprudenciais se formaram: uma defendendo a validade do parágrafo único, é dizer, admitiam que quem praticasse estupro contra criança poderia receber pena menor que quem estuprasse uma pessoa adulta, e a outra defendendo a tese de que o citado parágrafo único era inadmissível. Na verdade, nesse caso, em vez de discutirem a lei, os juristas discutiram sobre a e a partir da lei, como se esta (a lei) fosse fruto de um legislador racional. Esse deslocamento discursivo, de cunho ideológico, é próprio do senso comum teórico dos juristas, que produz os standards a serem utilizados pela comunidade jurídica. Resulta disso uma interpretação totalmente alienada/afastada das relações sociais. Ou seja, pouco importa ao jurista, inserido no senso comum teórico, o conteúdo das relações sociais. Pouco importa a teratologia resultante do paradoxo que é a imposição de uma pena mais branda a quem estupra uma criança em comparação com aquele que estupra uma mulher adulta... O que importa é fazer uma “boa hermenêutica”; o importante é “resolver, com competência dogmática, ‘neutralmente’, as antinomias” do sistema...134 Enfim, tamanha é a dimensão da crise, que o establishment jurídico-dogmático não conseguiu “resolver o problema” no plano da hermenêutica. Ou seja, tão forte é o corpus introduzido pelo senso comum teórico, que, na impossibilidade de ver resolvido o “problema hermenêutico”, o “sistema” teve que recorrer ao “legislador racional” que, mediante a edição da lei federal n. 9.291, de 4 de junho de 1996, revogou os parágrafos únicos em questão. Registre-se que, com a minirreforma de 2009, o art. 214 foi revogado. Também não se discutem no âmbito da dogmática, ficando, por conseguinte, escondidas nas brumas do senso comum teórico, as condições de possibilidade que tem o juiz para avaliar a personalidade do réu por ocasião da aplicação da pena, em conformidade dos ditames do art. 59 do Código Penal. Diz esse dispositivo que o juiz, ao aplicar a pena, entre outras coisas, deve atentar para a personalidade do réu... Diante da – evidente – dificuldade da aferição do que seja “personalidade do delinquente”, é possível colher subsídios na dogmática jurídica tradicional, do tipo “personalidade é todo complexo, porção herdada e porção adquirida, com o jogo de todas as forças que determinam ou influenciam o comportamento humano”.135 Ou seja, os problemas do universo fenomênico dão lugar e passagem para a abstração jurídico- conceitual-objetificante que utiliza jargões, como “personalidade voltada para o crime”. Outro exemplo que ilustra bem a problemática aqui examinada decorre do episódio envolvendo o advento da Lei 9.639/98. Com efeito, o Poder Executivo enviou projeto de lei ao Congresso Nacional concedendo anistia aos agentes políticos que tenham sido responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei 8.212/91 e no art. 86 da Lei 3.807/60 (retenção de contribuições previdenciárias dos segurados da previdência social, sem que fosse atribuição legal sua). Tal matéria constou do art. 11 da Lei que levou o nº 9.639/98. O projeto foi votado, aprovado e enviado para sanção do Presidente da República. Ocorre que, de forma “fantasmagórica”, foi introduzido um parágrafo único “pirata” ao citado art. 11, estendendo a anistia aos demais responsabilizados pela prática dos crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei 8.212/91 e no art. 86 da Lei 3.807/60, isto é, o dispositivo “acrescentado” estendia de forma irrestrita a citada anistia. Surpreendentemente, a Lei foi sancionada com a inclusão do parágrafo único “pirata”. Ora, parece desnecessário dizer que um dispositivo não votado e não aprovado pelo parlamento jamais existiu no mundo jurídico. Constatado o manifesto equívoco, de imediato foi enviada mensagem ao Presidente da República comunicando o fato, o que ensejou a republicação da lei, o que veio a ocorrer no dia seguinte ao da publicação original. Pois bem: com base na “vigência” do aludido parágrafo único do art. 11, começaram a ser concedidas anistias a todas as pessoas envolvidas nos crimes de retenção de contribuições sociais, sob os mais variadosargumentos, tais como “em nome da segurança jurídica, o texto publicado, apesar de erro, existe e entra em vigor, devendo ser protegidos os direitos decorrentes dessa vigência...” etc., aduzindo-se, ainda, citações doutrinárias acerca da interpretação do art. 1º, § 4º, da Lei de Introdução do Código Civil... Em face disso, o Ministério Público Federal passou a recorrer das (centenas de) decisões judiciais concessivas das anistias irrestritas baseadas no inexistente parágrafo único, tendo que a matéria ser, finalmente, decidida pelo Supremo Tribunal Federal, que, em decisão plenária de 4.11.98 (HC n. 77724-3, rel. Min. Marco Aurélio), julgou inconstitucional o citado parágrafo único do art. 11 da Lei 9.639, em sua publicação no Diário Oficial da União de 26.5.98, explicitando o STF que a decisão tinha caráter ex tunc, atingindo todas as decisões concessivas anteriores. A argumentação do Supremo Tribunal Federal foi singela – porque singela era a questão, sem dúvida –, baseando o acórdão no fato de que o parágrafo único em tela não cumpriu, no Congresso Nacional, o rito de discussão e votação de projeto de lei, previsto no art. 65 da CF. Ou seja, a publicação por engano do parágrafo único não poderia gerar efeitos no mundo jurídico. O episódio sob comento demonstra bem a dimensão da crise existente no plano da hermenêutica brasileira, comprovando aquilo que Ferraz Jr. tão bem chamou de astúcia da razão dogmática, mediante o deslocamento discursivo do plano do mundo da vida para o plano das abstrações jurídicas. As decisões concessivas da anistia irrestrita não levaram em conta a gravidade do crime de retenção de tributos no Estado Democrático de Direito. Poder-se-ia, inclusive, discutir, desde logo, a própria constitucionalidade do caput do art. 11, porque o “legislador” não é livre para conceder anistias, devendo seguir os ditames da principiologia do Estado Democrático de Direito. Não se olvide que os delitos de retenção tributária põem em xeque o Estado fiscal, ínsito ao Estado social-intervencionista-promovedor. Daí que, em face do princípio da isonomia, poder-se-ia perguntar, por exemplo, do porquê em não anistiar também os autores de pequenos delitos contra o patrimônio, os quais, sem dúvida, não colocam em risco o Estado fiscal... Por outro lado, não fosse o parágrafo único do art. 11 inconstitucional por vício de forma, também o seria pela matéria, na medida em que não tinha qualquer relação com o caput. Ou seja, se o caput do art. 11 concedia anistia aos agentes políticos que foram responsabilizados sem que fosse atribuição legal sua, é porque não tinham agido com dolo e tampouco se poderia falar do necessário nexo de causalidade entre a conduta e o fato. Já o parágrafo único, ao estender a anistia às demais pessoas que cometeram os crimes previstos na alínea d do art. 95 da Lei 8.212/91 e no art. 86 da Lei 3.807/60, por si só padecia do vício da inconstitucionalidade material. Isto porque “os demais responsabilizados” de que falava o parágrafo único são os agentes privados (responsáveis por empresas) que fazem retenção de contribuições da previdência social, onde, à evidência, não se colocou, jamais, a questão acerca de quem é a atribuição legal de repassar as contribuições ao Estado! Enfim, vários argumentos existiam para afastar a incidência do texto normativo “fantasma”. Entretanto, no interior do senso comum teórico, o problema não se colocou..., até porque um problema só é (ou se torna) um problema, quando se tem possibilidade de apreendê-lo (nomeá-lo, dizê-lo, simbolizá-lo) como problema (etwas als etwas – algo como algo –, como veremos adiante, por ocasião da abordagem da hermenêutica filosófica). Frise-se, ademais, que, no caso sob análise, mergulhados no senso comum teórico, os operadores do direito sequer fizeram a distinção entre vigência e validade da lei... Notas 110 Embora essa discussão apareça na sequência da presente obra a todo momento, já de pronto é importante referir que a reviravolta linguística vai se concretizar como uma nova concepção da constituição do sentido. Esse sentido não pode mais ser pensado como algo que uma consciência produz para si independentemente de um processo de comunicação, mas deve ser compreendido como algo que nós, enquanto participantes de uma práxis real e de comunidades linguísticas, sempre comunicamos reciprocamente, assinala D. Böhler, citado por Manfredo Araujo de Oliveira, que acrescenta que essa virada rumo à explicitação de um caráter prático, intersubjetivo e histórico da linguagem humana tem forte sustentação em Wittgenstein, cuja posição é próxima da nova hermenêutica de matriz heideggeriana. Tanto em Wittgenstein como em Heidegger, a linguagem passa a ser entendida, em primeiro lugar, como ação humana, ou seja, a linguagem é o dado último enquanto é uma ação fática, prática. Precisamente enquanto práxis interativa, ela não pode ser explicada como produto de um sujeito solitário, como ação social, mediação necessária no processo intersubjetivo de compreensão. É justamente aí, diz Araújo, que ocorre a mudança de paradigma: “o horizonte a partir de onde se pode e deve pensar a linguagem não é o do sujeito isolado, ou da consciência do indivíduo, que é o ponto de referência de toda a filosofia moderna da subjetividade, mas a comunidade de sujeitos em interação. A linguagem, enquanto práxis, é sempre uma práxis comum realizada de acordo com regras determinadas. Estas regras não são, contudo, convenções arbitrárias, mas são originadas historicamente a partir do uso das comunidades linguísticas; são, portanto, costumes que chegam a tornar-se fatos sociais reguladores, ou seja, instituições. Tantas são as formas de vida existentes, tantos são os contextos praxeológicos, tantos são, por consequência, os modos de uso de linguagem, numa palavra, os jogos de linguagem. As palavras estão, pois, sempre inseridas numa situação global, que norma seu uso e é precisamente por esta razão que o problema semântico, o problema da significação das palavras, não se resolve sem a pragmática, ou seja, sem a consideração dos diversos contextos de uso. Poder falar significa ser capaz de inserir-se um processo de interação social simbólica de acordo com os diferentes modos de sua realização”. Cf. Oliveira, Sobre fundamentação, op. cit., p. 53 e 54. (grifei) 111 Não se pode deixar de notar/registrar os avanços ocorridos no campo “não jurídico”, como na AD – análise de discurso –, baseada no trabalho de Michel Pêcheux –, assumindo destaque a obra de Eni Puccineli Orlandi, à qual pode ser atribuído um caráter de universalidade, na medida em que seu instrumental pode ser aplicado a outras áreas do conhecimento. Refiro- me especialmente ao livro Interpretação – autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico (op. cit.), no qual a autora diz que a interpretação é uma injunção; face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de “dar” sentido; dar sentido, para o sujeito que fala, é construir sítios de significância (delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação. Para ela, o homem está condenado a significar. Daí, acrescenta, “é necessário repor como trabalho a própria interpretação, o que resulta em compreender de outra maneira também a história: não como sucessão de fatos com sentidos já dados, dispostos em sequência cronológica, mas como fatos que reclamam sentidos, cuja materialidade não é possível de ser apreendida em si, mas no discurso”. A AD caminha no entremeio das ciências humanas e sociais, diz Bethania,em obra que utiliza a AD como pressuposto teórico. Explica, ali, que a tese central da AD encontra-se nas definições de discurso – “efeito de sentidos (e não transmissão de informação) entre interlocutores” – e de discursivo – processo social cuja especificidade reside no tipo de materialidade de sua base, a saber, a materialidade linguística (Pêcheux, 1990 e Pêcheux & Fuchs, 1990, respectivamente)” (Mariani, Bethania. O PCB e a imprensa. Rio de Janeiro: Renovar: Revan; Campinas, UNICAMP, 1998, p. 24). Sua importância para o campo do Direito reside também pela ênfase que dá a historicidade, isto é, “na produção simbólica ininterrupta que na linguagem organiza sentidos para as relações de poder presentes em uma formação social, produção esta sempre afetada pela memória do dizer e sempre sujeita à possibilidade de rupturas no dizer – como um dos elementos constitutivos dos processos sociais e, por conseguinte, constitutivo da materialidade linguística” (ibidem). Como se pode perceber, a AD pode-se tornar um importante contributo para a reflexão em torno da interpretação dos textos legais. 112 Cf. Castanheira Neves, op. cit., p. 90. 113 Para tanto, consultar Seixas Meireles, Henrique da Silva. Marx e o direito civil. Coimbra, 1990, p. 441 e 442. 114 Consultar Kosik, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 115 Esse problema estrutural decorre de outro problema paradigmático: o atrelamento da concepção de direito (ainda dominante) aos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência. Assim, se, de um lado, os juízes ainda acreditam na possibilidade da busca da verdade real (sic) – como se existissem essências (sim, existe ainda parcela considerável de juízes – doutrinadores, é claro – que acredita nisso!); ao mesmo tempo, tomam para si a condução da prova no processo, como se a produção da prova pudesse ser gerida a partir de sua consciência (atenção: consciência entendida no sentido do paradigma da filosofia da consciência). Ora, por detrás desse “vício de origem”, está a velha discricionariedade, que, não por acaso, é o que sustenta outro inimigo do direito democrático: o positivismo jurídico. 116 Em janeiro de 2003 entrou em vigor o “novo” Código Civil. Mas a crítica permanece. 117 Isso foi melhor abordado no meu artigo, “Crime e sociedade estamental no Brasil – De como la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos”. Cadernos IHU Idéias (UNISINOS), v. 178, p. 3-35, 2012. 118 Desenvolvi mais essa questão no livro que escrevi em conjunto com Rafael Tomaz de Oliveira, O que é isto – as garantias processuais penais? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 119 Ver Streck, Crime e sociedade estamental no Brasil – De como la ley es como la serpiente, solo pica a los descalzos, op. cit. 120 Para tanto, ver Streck, Verdade e Consenso, 4. ed., op. cit., p. 47-56. 121 Essa crítica foi feita, v.g., por José Eduardo Faria (O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos, desafios, alternativas. Brasília, Conselho de Justiça Federal, 1995, p. 29 e 30). 122 Cf. Warat, Luis Alberto. Introdução geral ao direito I. Porto Alegre: Fabris, 1994, p. 57. 123 Cf. Rocha, Leonel Severo. Sens commun théorique des juristes. In: Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit. André-Jean Arnaud (org.). Paris: LGDJ-UNB, 1990, p. 372 e segs. 124 Cf. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. Também, Faria, José Eduardo. Justiça e conflito. São Paulo: RT, 1991, p. 91. 125 Cf. Warat, Introdução geral ao direito II, op. cit., p. 82. 126 Ver Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Uma política alternativa para o sistema judiciário brasileiro. Rio de Janeiro, mimeo. Observe-se que este é um dos modos de detectar a crise que atravessa o Direito. Evidentemente que, à luz de outras matrizes teóricas, outros modos de desocultação da crise exsurgirão. 127 A crítica de Kant de Lima, feita em 1996, continua atual. Com efeito, para ele, os juizados especiais se constituem em uma espécie de lenitivo produzido pelo establishment para não precisar “abrir mão de seus princípios, criando agências e/ou instâncias, onde se possa fazer justiça mais rápida e menos elaborada, para certos tipos de pessoas e certos tipos de causas. A criação dos juizados especiais e de pequenas causas, por exemplo, nada mais é do que o estabelecimento de mais uma instância preliminar, que parece pretender oferecer alternativas rápidas, mas por isso mesmo imperfeitas do ponto de vista do Judiciário, à justiça das organizações comunitárias, dos traficantes e, até, da polícia. Esta última, mais propriamente atingida em suas funções judiciárias tradicionais, mas não oficiais, devido ao crescente descrédito da instituição policial. Dificilmente, porém, as outras camadas do Judiciário se modificarão”. Cf. Kant de Lima, Roberto. A administração dos conflitos no Brasil: a lógica da punição. In: Cidadania e violência. Gilberto e Marcos Alvito (org.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Editora FGV, 1996, p. 176. 128 As súmulas, sejam “comuns” ou vinculantes, não podem ser consideradas precedentes stricto sensu, por várias razões. Talvez a principal delas é porque o texto é diferente da norma. Não deveria haver uma confusão entre as funções de criar um texto e de concretizar uma norma. Talvez por isso as súmulas vinculantes (SV) representem uma contradição do sistema: o STF é, ao mesmo tempo, o criador do texto e seu aplicador no momento em que julga as reclamações em virtude da não aplicação das SV. São, pois, “quase ordenanças” com valor de lei. Agregue-se que há uma diferença entre caso julgado, precedente e súmulas (ou enunciados jurisprudenciais, que é o que são, em síntese, as súmulas). Também não devemos fazer confusões com o common law. a regra do precedente (ou stare decisis) se explica pelo adágio stare decisis et non quieta movere, que quer dizer continuar com as coisas decididas e não mover as “coisas quietas”. O precedente possui uma holding, que irradia o efeito vinculante para todo o sistema. Isso não está na Constituição, nem na lei, e, sim, na tradição. Para a vinculação, a matéria (o caso) deve ser similar. A aplicação não se dá automaticamente. Nesse sistema, sempre se deve examinar se o princípio que se pode extrair do precedente constitui a fundamentação da decisão ou tão somente um dictum. Portanto, também nos EUA – e não poderia ser diferente – texto e norma não são a mesma coisa. De todo modo, vai uma advertência: como venho sustentando, as súmulas não são um problema ou um “mal em si”. Podem ser importantes para colocar o “selo jurídico” em conquistas hermenêuticas. Também podem contribuir para a formação de uma cultura jurídica que respeite a integridade do direito. Na verdade, quem transforma a SV em um “mal em si” são as suas equivocadas compreensão e aplicação. Explico: pensa-se, cada vez mais, que, com a edição de uma súmula, o enunciado se autonomiza da faticidade que lhe deu origem. É como se, na própria common law, a ratio decidendi pudesse ser exclusivamente uma proposição de direito, abstraída da “questão de fato” (v.g., por todos, Neil McCormick). Se isso é crível, então realmente a súmula e qualquer enunciado ou verbete (e como gostamos de verbetes, não?) será um problema. E dos grandes. E como respondo a isso? Com uma “exigência hermenêutica” que se traduz na frase de Gadamer: só podemos “compreender o que diz o texto a partir da situação concreta na qual foi produzido”. Desenvolvi mais sobre o tema das súmulas no Direito brasileiro no livro em coautoria com Georges Abboud, O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 129 Mais algumas distorções: adulterar númerode chassi é crime punido com 3 a 6 anos de reclusão e multa, pena mínima maior que a de, por exemplo: a) lesão corporal grave em que a vítima perde, por exemplo, um dos olhos. Nesse caso, a punição é de 1 a 5 anos de reclusão; b) instigação ao suicídio, se vier a ocorrer a morte. Neste caso, a pena é de 2 a 6 anos de reclusão; c) infanticídio é castigado com 2 a 6 anos de detenção. Mais: homicídio doloso simples é punido de 6 a 20 anos de reclusão, pena mínima inferior à de, por exemplo: a) roubo com lesão corporal grave culposa, em que a pena é de 7 a 15 anos de reclusão; b) extorsão mediante sequestro simples, em que a pena é a de 8 a 15 anos de reclusão. Se este crime durar mais de 24 horas, a pena subirá para 12 a 20 anos de reclusão, igual à do homicídio qualificado (considerado hediondo). Ainda: homicídio simples contra criança tem pena mínima de 8 anos e máxima de 26 anos e 6 meses de prisão. Essa pena mínima é inferior à do atentado violento ao pudor contra criança, que é de 9 anos de reclusão. Aqui, a pena máxima é de 15 anos. Cf. Nunes, Eunice. “Reforma pontual torna código colcha de retalhos”. In: Folha de São Paulo, 26.07.97, 3-2. 130 Cf. Zizek, Slavoj. Eles não sabem o que fazem. O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 122. 131 Cf. Lacan, Jacques. O Seminário. Livro 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 118. 132 Consultar Ferraz Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1987, p. 280. 133 Ver, para tanto, Chauí, Marilena de Souza. Ideologia e educação. In: Educação & sociedade n.5. São Paulo: CEDES, Cortez Editores e Autores Associados, 1980, p. 26. Ver também o conceito de ideologia trabalhado por Mariani, a partir de Pêcheux: “um mecanismo imaginário através do qual coloca-se para o sujeito, conforme as posições sociais que ocupa, um dizer já dado, um sentido que lhe aparece como evidente, isto é, natural para ele enunciar daquele lugar. O sujeito se imagina uno, fonte do dizer e senhor de sua língua; do mesmo modo, parece-lhe normal ocupar a posição social em que se encontra. O funcionamento ideológico provoca as ilusões descritas: apaga-se para o sujeito o fato de ele entrar nessas práticas histórico-discursivas já existentes.” Cf. Mariani, op. cit., p. 24 (grifei). 134 Vale lembrar, nesse contexto, o dizer de Russo: qualquer estudante sabe que a verdade, em lógica formal, se adquire ao preço de renunciar ao conhecimento do mundo. Cf. Russo, Eduardo Angel. Sobre ciertos abusos de la analiticidad. In: Warat, Luis Alberto e Russo, Eduardo A. Interpretación de la ley. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1987. p. 14. 135 Cf. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Alberto Franco et alli, p. 276, citando Aníbal Bruno. 4. Dogmática e ensino jurídico: o dito e o não dito do senso comum teórico – o universo do silêncio (eloquente) do imaginário dos juristas O senso comum que domina o imaginário jurídico – tão bem denunciado por Luis Alberto Warat – também pode ser visto sob outro olhar. Assim, o senso comum teórico – e busco aqui socorro no texto O Neutro, de Roland Barthes – é construído a partir de um discurso que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, óbvio, cuja tipicidade não é percebida e com relação ao qual todo “exterior” é relegado à categoria de margem ou desvio: discurso-lei que não é percebido como lei. Com Barthes, pode-se chamá-lo de “ideosfera”: círculo, sistema de ideias-frases, de ideias fraseadas, de argumentos-fórmulas, portanto objeto linguageiro essencialmente copiável e/ou repetível, portanto fenômenos muito importantes de mimetismo. Pode haver um mimetismo (de uma determinada ideosfera) consciente, deliberado, quer por maquiavelismo, no nível dos Estados, quer por conformismo prudente, no nível dos indivíduos, cada vez que a ideosfera está ligada a um poder. Mas há também um mimetismo não consciente: a ideosfera é inextricavelmente ligada a uma fé. Enfim, diz o mestre francês, ideosfera é palavra criada a partir de ideologia: sistema linguageiro de uma ideologia, precisando imediatamente, o que já torna inexata a definição: toda ideologia é linguagem; é um discurso, um tipo de discurso. Em face do que foi analisado anteriormente, uma pergunta se torna inevitável: que tipo de visão têm os operadores jurídicos – mergulhados no senso comum teórico – sobre a aplicação e a eficácia das leis existentes no Brasil? Por exemplo, um funcionário público de alto escalão engaveta um processo (administrativo ou judicial) durante 3 ou 4 anos. Dentro dos cânones estabelecidos pela dogmática jurídica, para processá-lo pelo crime de prevaricação é muito difícil, em face da exigência do dolo, uma vez que o “legislador” não previu a hipótese de prevaricação culposa. Desse modo, se o acusado alegar, em sua defesa, que “o processo ficou parado tanto tempo” porque foi preguiçoso, desleixado ou até mesmo negligente, fatalmente será absolvido (isso no caso de chegar a ser denunciado, e a denúncia ser recebida). Tudo porque a preguiça, a negligência ou o desleixo são consideradas circunstâncias (sic) que excluem o dolo (aliás, como se diria na dogmática tradicional, “nesse sentido a jurisprudência é mansa e pacífica”: RT 451/414; 486/356; 565/344; 543/342...). Como contraponto, veja-se o caso de um indivíduo que furta uma galinha e a leva para sua casa, neste caso, esteja caracterizado o crime de furto (cuja pena, aliás, é várias vezes maior do que a da prevaricação). Isso porque, “nessa linha existe copiosa jurisprudência”, dando conta de que “o furto atinge a consumação no momento em que o objeto material é retirado da esfera de posse e disponibilidade do sujeito passivo, ingressando na livre disponibilidade do autor, ainda que este não obtenha a posse tranquila”.136 Evidentemente, esses exemplos apontam apenas em direção à ponta do iceberg. Paradoxos como estes deveriam colocar em xeque a dogmática jurídica, chamando a atenção dos juristas para a crise. Porém, envolvidos no interior do senso comum teórico, não se dão conta dos paradoxos, até porque, como um mito – que só o é para quem nele acredita – também o paradoxo só é “paradoxal” para quem tem consciência de sua existência. É também evidente que a formação desse sentido (senso) comum teórico tem uma relação direta com o processo de aprendizagem nas escolas de Direito. Com efeito, o ensino jurídico continua preso às velhas práticas. Por mais que a pesquisa jurídica tenha evoluído a partir do crescimento do número de programas de pós-graduação, estes influxos reflexivos ainda estão distantes das salas de aula dos cursos de graduação, não se podendo olvidar, nesse contexto, que o crescimento da pós-graduação é infinitamente inferior à explosão do número de faculdades instaladas nos últimos anos. A cultura calcada em manuais, muitos de duvidosa cientificidade, ainda predomina na maioria das faculdades de Direito. Forma-se, assim, um imaginário que “simplifica” o ensino jurídico, a partir da construção de standards e lugares comuns, repetidos nas salas de aula e posteriormente nos cursos de preparação para concursos,137 bem como nos fóruns e tribunais. Essa cultura alicerça-se em casuísmos didáticos. O positivismo (exegético) ainda é a regra e quando se quer superá-lo, apela-se a alguma corrente voluntarista. Resultado disso é a já famosa “era dos princípios”, pela qual são construídos novos princípios a todo momento, gerando o fenômeno que venho denominando de “pamprincipiologismo”. A dogmática jurídica trabalhada nas salas de aula (e reproduzida em boa parte dos manuais e compêndios) considera o Direito como sendo uma mera racionalidade instrumental. De um modo ou de outro, a regra máxima é a “simplificação do Direito”.Em termos metodológicos, predomina o dedutivismo, a partir da reprodução inconsciente da metafísica relação sujeito-objeto. Nesse contexto, o próprio ensino jurídico138 é encarado como uma terceira coisa,139 no interior da qual o professor é um outsider do sistema. A doutrina que sustenta o saber jurídico resume-se a um conjunto de comentários resumidos de ementários de jurisprudência, desacompanhados dos respectivos contextos. Cada vez mais a doutrina doutrina menos; isto é, a doutrina não mais doutrina; é, sim, doutrinada pelos tribunais. É nisto que se baseia o casuísmo didático: a partir da construção de “categorias”, produzem-se raciocínios “dedutivos”, como se a realidade pudesse ser aprisionada no “paraíso dos conceitos do pragmatismo positivista dominante”. A hermenêutica praticada nas salas de aula continua absolutamente refratária ao giro linguístico (linguistic turn); em regra, continua-se a estudar os métodos tradicionais de interpretação (gramatical, teleológico etc.), como se o processo de interpretação pudesse ser feito em partes ou em fatias. A teoria do Estado, condição de possibilidade para o estudo do Direito Constitucional (para ficar nesta disciplina fundamental, que, aliás, não ocupa, na maioria dos cursos jurídicos, mais do que dois semestres), não vem acompanhada da necessária interdisciplinariedade. Em síntese: é preciso compreender – e isto ficará mais claro nos capítulos posteriores – que a crise do ensino jurídico é, antes de tudo, uma crise do Direito, que na realidade é uma crise de paradigmas, assentada em uma dupla face: uma crise de modelo e uma crise de caráter epistemológico. De um lado, os operadores do Direito continuam reféns de uma crise emanada da tradição liberal-individualista-normativista (e iluminista, em alguns aspectos); e, de outro, a crise do paradigma epistemológico da filosofia da consciência. O resultado dessa(s) crise(s) é um Direito alienado da sociedade, questão que assume foros de dramaticidade se compararmos o texto da Constituição com as promessas da modernidade incumpridas. Nesse contexto, e para demonstrar uma certa razão cínica que atravessa o imaginário dos juristas em terrae brasilis, não surpreende que até há poucos anos, alguns tribunais, avalizados por renomados penalistas pátrios, ainda sustentavam, por exemplo, que o marido não podia ser sujeito ativo de estupro cometido contra a esposa, por “lhe caber o exercício regular de um direito...”. Seguindo essa linha, alguns tribunais brindavam a comunidade jurídica com decisões do tipo “A cópula intra matrimonium é dever recíproco dos cônjuges e aquele que usa de força física contra o outro, a quem não socorre recusa razoável (verbi gratia, moléstia, inclusive venérea, ou cópula contra a natureza), tem por si a excludente da criminalidade prevista no Código Penal – exercício regular de um direito” (RT 461-444). Julgados como esse se embasavam em doutrinadores mais antigos ainda, como Nelson Hungria,140 para quem “o marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma”. Não se olvide que o assim denominado “direito” à conjunção carnal é eufemisticamente referido pelo Código Civil, na medida em que, no artigo 1.566, II, aponta como dever dos cônjuges a “vida em comum, no domicílio conjugal”. É nesse dever que se “encontra incluído”, consoante Silvio Rodrigues,141 o de manter relacionamento carnal. Tal tese civilista pode ter levado Damásio de Jesus,142 expoente da doutrina penal, a um equívoco, eis que, ao comentar o antigo artigo 213 do Código Penal, assim se pronuncia: “(A mulher) não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato, desde que tal negativa não se revista de caráter mesquinho. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal, e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”. Deve-se frisar que, atualmente, os tribunais e a própria doutrina já assimilaram conceitos mais modernos a respeito do tema, entendendo que, em verdade, o marido que força a esposa à prática sexual não está exercitando um direito, e sim, incorrendo em crime de estupro... Os próprios exemplos utilizados em sala de aula ou em determinadas obras jurídicas estão descontectados do que acontece no cotidiano da sociedade. Isso decorre de uma cultura estandardizada, no interior da qual a dogmática jurídica trabalha com prêt-à-porters significativos. Há uma proliferação de manuais, que procuram “explicar” o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais a-históricos e atemporais (portanto, metafísicos). Ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo jurídico, como se a realidade social pudesse ser procustianamente aprisionada/moldada/explicada através de verbetes e exemplos com pretensões universalizantes. Alguns exemplos beiram ao folclórico, como no caso da explicação do “estado de necessidade” constante no art. 24 do Código Penal, não sendo incomum encontrar professores (ainda hoje) usando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos manuais) “sobem em uma tábua”, e na disputa por ela, um deles é morto (em estado de necessidade, uma vez que a tábua suportava apenas o peso de um deles...!) Cabe, pois, a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de necessidade, não usa um exemplo do tipo “menino pobre entra no Supermercado Carrefour e subtrai um pacote de bolacha a mando de sua mãe, que não tem o que comer em casa?”. Mas isto seria exigir demais da dogmática tradicional. Afinal de contas, exemplos deste tipo aproximariam perigosamente a ciência jurídica da realidade social...! Na mesma linha: em importante concurso público realizado no Rio Grande do Sul, perguntou-se: Caio quer matar Tício, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de como o personagem Tício – com certeza um idiota –, bebe as duas porções de veneno). Em consequência da ingestão das meias-doses, Tício vem a perecer... Encerrando, a questão do aludido concurso indagava: Caio e Mévio respondem por qual tipo penal??? Em outro concurso, de âmbito nacional, a pergunta dizia respeito à solução jurídica a ser dada ao caso de um gêmeo xifópago ferir o outro (com certeza, gêmeos xifópagos andam armados, e em cada esquina encontramos vários deles...!). Dito de outro modo: dessa forma, a cultura standard fornecida pelos manuais é reproduzida nas salas de aula e nos concursos públicos. A propósito, há um manual que, para explicar a diferença entre culpa consciente e dolo eventual, utiliza um exemplo a partir do ato de um jardineiro que quer cortar as ervas daninhas e corta o caule da flor...! Não se olvide o “clássico” exemplo da macieira de Caio, cujos galhos (e frutas) pendem sobre a propriedade de Tício, explicando-se, a partir daí, o direito de propriedade (em um país eivado de conflitos de terras, e onde dois por cento da população possui cinquenta por cento das terras). Não podemos esquecer, finalmente, o igualmente “clássico” exemplo do açúcar e do arsênico, utilizado, há várias décadas, para explicar o conceito de crime impossível...! Esta é apenas a ponta do iceberg e que retrata a dura face do idealismo que permeia o discurso jurídico, que pode ser retratada pela seguinte anedota envolvendo o filósofoHegel. Conta-se que, no auge de uma abstração filosófica, o filósofo foi interrompido por um de seus alunos, que lhe perguntou: “Mestre, tudo isto que o senhor está dizendo não tem absolutamente nada a ver com a realidade”. Ao que Hegel teria respondido: “Pior para a realidade”... Tudo isso serve para demonstrar/ilustrar a histórica dificuldade da dogmática jurídica em lidar com os fenômenos sociais. Vários fatores tiveram e têm influência nessa problemática. Como muito bem diz Ferraz Jr., “é preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se fala em Ciência do Direito, no sentido do estudo que se processa nas Faculdades de Direito, há uma tendência em identificá-la com um tipo de produção técnica, destinada apenas a atender às necessidades do profissional (o juiz, o promotor, o advogado) no desempenho imediato de suas funções. Na verdade, nos últimos cem anos, o jurista teórico, pela sua formação universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização, fechada e formalista”.143 Em outras palavras, estabeleceu-se uma cultura jurídica standard, no interior da qual o operador do Direito vai trabalhar no seu cotidiano com soluções e conceitos lexicográficos, recheando, desse modo, suas petições, pareceres e sentenças com ementas jurisprudenciais, citadas, no mais das vezes, de forma descontextualizada, afora sua atemporalidade e a- historicidade. Para tanto, os manuais jurídicos põem à disposição dos operadores uma coletânea de prêts-à-porter significativos, representados por citações de resumos de ementas e verbetes doutrinários (extraídos, na sua maioria, de acórdãos), normalmente uma a favor e outra contra determinada tese... Com um pouco de atenção e acuidade, pode-se perceber que grande parte de sentenças, pareceres, petições e acórdãos é resolvida a partir de citações do tipo Nessa linha, a jurisprudência é pacífica (e seguem-se várias citações padronizadas de número de ementários), ou Já decidiu o Tribunal tal que legítima defesa não se mede milimetricamente (RT 604/327) (sic), ou ainda que abraço configurava o crime de atentado violento ao pudor, cuja pena – ressalte-se, variava de seis a dez anos de reclusão, além de ser crime hediondo (RT 567/293; RJTJSP 81/351) (sic).144 São citados, geralmente, tão somente os ementários,145 produtos, em expressivo número, de outros ementários (ou da fusão destes). Raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto histórico-temporal que cercou o processo originário. Este problema agravou-se com a aprovação do efeito vinculante das súmulas (muito embora o problema já existisse antes!). Ora, os fatos não cabem na “ementa” ou no “precedente”. Um exemplo interessante pode nos ajudar a compreender melhor essa problemática da estandardização do Direito. Imaginemos uma súmula com o seguinte enunciado: “para a aferição do conteúdo do art. 23, II, do Código Penal, a legítima defesa não se mede milimetricamente”. Embora não seja uma súmula (mas, vamos fazer de conta que seja), esse enunciado foi/é utilizado como uma “protossúmula” (afinal, consta na RT 604/327, e nos principais manuais de direito penal) servindo, nas práticas dos juristas, como um álibi para provar as mais diversas teses. Como toda cultura prêt-à-portêr que se preze, o referido enunciado tem sido simplesmente citado como se fosse uma proposição assertórica, como se nele mesmo estivesse contida a substância de “todas as legítimas defesas que não podem ser medidas com um esquadro”. Fosse um precedente no sentido norte-americano, essa holding somente poderia ser utilizada com força vinculativa se ficassem comprovadas as especificidades do leading case, e seu abandono seria possível apenas a partir de uma distinguishing. Não esqueçamos: lá, o precedente serve para resolver um caso passado; aqui, as súmulas (ou os demais ementários jurisprudenciais) “servem” indevidamente para resolver uma infinidade de casos futuros (novamente, mais um elemento que aponta para a não similitude entre precedente e súmula!). Também nesse exemplo é irrelevante a discussão acerca da vagueza ou clareza do enunciado. As legítimas defesas e suas densificações “não cabem no enunciado”. A sua aplicação depende de cada caso concreto, cujo sentido exsurgirá da reconstrução institucional dos casos que levaram à edição da súmula, como já especificado nos exemplos anteriores. A propósito: o leading case que sustenta o verbete “legítima defesa não se mede milimetricamente” é produto de um acórdão assim ementado: “Legítima Defesa – Proporcionalidade entre a agressão da vítima e a reação do acusado – Inexistência de excesso no uso da excludente – Absolvição mantida” (AP. 35.248-3 – 2ª Câmara, 23.9.1985). E qual é o caso, em suas peculiaridades? O acusado, ao vislumbrar sua mulher conversando com outro homem, foi-lhes pedir explicações; segundo os autos, disse o acusado “que fora ao local apenas para conversar com sua mulher, a quem segurou pelo braço e já atravessavam a rua, sendo que ele falava alto para a mulher que ela lhe deveria explicar o que estava ocorrendo. Aproximou-se o ofendido e disse-lhe inicialmente ‘cala a boca, não faça escândalo’. Discutiram e o ofendido deu-lhe um safanão e um empurrão, depois de chamá-lo de idiota e ‘cornudo’. Foi nesse momento que o réu reagiu descarregando sua arma contra a vítima, tendo um dos tiros atingido as costas da vítima”. Observemos: desse julgado surgiu o enunciado “legítima defesa não se mede milimetricamente...” (sic), que passou a ser aplicado aos casos concretos dos mais variados, que vão desde “faca contra revólver”, “pedaço de pau contra espingarda”, “um simples puxar de um pente para justificar a legítima defesa putativa” e até mesmo para justificar a “legítima defesa da honra” – sic, para citar apenas algumas das hipóteses.146 Mais uma vez, veja-se o problema da diferença entre a aplicação de um “precedente jurisprudencial” e uma súmula, que deve ser produto de uma sucessão de casos. Esse também é um tema que deve ser pautado para as discussões acerca do “direito sumular- jurisprudencial”. No caso, um verbete vem funcionando há mais de vinte anos como uma “quase-súmula”, sendo sua ratio decidendi (sic) construída à revelia das pecualiaríssimas situações do fato (na verdade, sequer houve desproporcionalidade de armas, na medida em que a vítima não portava arma de espécie alguma). Fosse uma súmula, sua futura aplicação dependeria exatamente da aferição desse DNA factual; desse caso e de outros que, em uma cadeia de casos, formataria e justificaria a edição do verbete sumular. O mais grave é que essa situação se repete no cotidiano das práticas dos tribunais, circunstância que venho denunciando há vários anos: verbetes transformados em enunciados assertóricos, com caráter universalizante. Exemplo marcante dessa espécie de (mau) uso de verbetes é o que certifica que “nos crimes sexuais, a palavra da vítima é de fundamental importância”. E alguém duvidaria disso? Mas o que ocorre na prática? O seu uso para condenar e para absolver (muito mais para condenar...). O que menos se perquire é se, de fato, naquele caso, a palavra da vítima teve especial relevância. Na verdade, tanto no plano da dogmática jurídica mais tradicional como na dogmática que vem assumindo posturas mais críticas, é possível ainda detectar uma questão aparadigmática, representada pelo uso sincrético das mais diversas teorias jurídicas. Assim, mesmo em algumas obras consideradas críticas, isto é, aquelas que procuram superar o senso comum teórico mais estandardizado, pode-se verificar uma recaídaem velhos clichês, como a busca da verdade real, a vontade da lei, a intenção do legislador, o apelo à metodologia de Savigny e, mais contemporaneamente, a adesão ao fenômeno da ponderação de valores, fruto de uma equivocada importação da teoria da argumentação de Robert Alexy. Em um mesmo texto ou em um mesmo julgamento, é possível vislumbrar o uso concomitante de teses absolutamente exegéticas e teses voluntaristas, sendo que, no caso destas, é lugar comum a transformação do julgador em “ponderador”. Essa questão não é nova, já tendo sido denunciada há mais de três décadas por autores como Tércio Sampaio Ferraz Jr, Nilo Bairros de Brum, Luis Alberto Warat e José Eduardo Faria (e, antes deles, por Roberto Lyra Filho). Foi se construindo, assim, um universo no interior do qual a interpretação da lei passa a ser um jogo de cartas (re)marcadas. Aliás, quando se fala em vontade do legislador, espírito do legislador, vontade da norma, cabe a pergunta: de que “legislador” falam os comentadores? Santiago Nino, citado por Ferraz Jr., ironiza as “propriedades que caracterizam o legislador racional”, uma vez que “ele” é uma figura singular, não obstante os colegiados etc.; é permanente, pois não desaparece com a passagem do tempo; é único como se todo o ordenamento obedecesse a uma única vontade; é consciente, porque conhece todas as normas que emana; é finalista, pois tem sempre uma intenção; é onisciente, pois nada lhe escapa, sejam eventos passados, futuros ou presentes; é onipotente, porque suas normas vigem até que ele mesmo as substitua; é justo, pois jamais quer uma injustiça; é coerente, ainda que se contradiga na prática; é onicompreensivo, pois o ordenamento tudo regula, explícita ou implicitamente; é econômico, ou seja, nunca é redundante; é operativo, pois todas as normas têm aplicabilidade, não havendo normas nem palavras inúteis; e, por último, o legislador é preciso, pois apesar de se valer de palavras da linguagem natural, vagas e ambíguas, sempre lhes confere um sentido rigorosamente técnico...147 É de se perguntar: pode alguém, ainda, acreditar em tais “propriedades” ou “características” do “legislador”? Lamentavelmente, parece que a resposta é afirmativa! Há, na verdade, um conjunto de crenças e práticas que, mascaradas e ocultadas pela communis opinio doctorum, propiciam que os juristas conheçam de modo confortável e acrítico o significado das palavras, das categorias e das próprias atividades jurídicas – o que faz do exercício de sua profissão, como muito bem diz Pierre Bourdieu, um mero habitus, ou seja, um modo rotinizado, banalizado e trivializado de compreender, julgar e agir com relação aos problemas jurídicos, e converte o seu saber profissional numa espécie de “capital simbólico”, isto é, numa “riqueza” reprodutiva a partir de uma intrincada combinatória entre conhecimento, prestígio, reputação, autoridade e graus acadêmicos, conforme já ressaltado.148 Assim, pode-se dizer, com Guibourg, que o Direito é a disciplina na qual a autoridade ainda conserva uma parte substancial de seu prestígio. Desde antigamente, continua o autor, os juristas têm considerado a autoridade dos estudiosos (quer dizer, deles próprios) como um elemento fundamental para conhecer o direito, até o ponto que é comum considerar a doutrina dos autores como “fontes do direito”, junto à lei e à jurisprudência. Nos países de direito codificado, a doutrina já não tem, como fonte, a importância que teve em outras épocas, porém igualmente as alusões a tal ou qual autor são comuns, tanto nos textos dos advogados, como nas sentenças judiciais.149 Isto permite, na arguta observação de Alf Ross,150 que os autores de textos jurídicos façam política jurídica encoberta, ao apresentar como meras descrições do direito positivo suas interpretações pessoais baseadas em valorações. Tais interpretações, complementa, são usadas logo por advogados, juízes e promotores como argumentos retóricos em favor da solução jurídica para o caso em que atuam. Nesse sentido, alerta Guibourg, asignar demasiada importancia a la autoridad en materia científica o filosófica engendra estancamiento y termina matando al conocimiento. É relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja no interior do que se pode chamar de establishment jurídico, que atua de forma difusa, buscando uma espécie de “uniformização de sentido”, que tem uma relação direta com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica.151 Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. Entretanto, não nos enganemos quanto ao sentido deste poder. Como bem diz Ferraz Jr., não se trata de coação, pois pelo poder de violência simbólica o emissor não coage, isto é, não se substitui ao outro. Quem age é o receptor. Poder aqui é controle. Para que haja controle, é preciso que o receptor conserve as suas possibilidades de ação, mas aja conforme o sentido, isto é, o esquema de ação do emissor. Por isso, ao controlar, o emissor não elimina as alternativas de ação do receptor, mas as neutraliza. Assim, conclui o jusfilósofo paulista, controlar é neutralizar, fazer com que, embora conservadas como possíveis, certas alternativas não sejam levadas em consideração.152 O resultado é o aparecimento de um arbitrário juridicamente prevalecente,153 traduzido através da busca do “correto e fiel sentido da lei”. Daí a força das assim denominadas “jurisprudências dominantes” e as famosas “correntes doutrinárias mananciosas”. Desse modo, toda vez que surge uma nova lei, os operadores do Direito – inseridos nesse habitus tão bem definido por Bourdieu – tornam-se órfãos científicos,154 esperando que o processo hermenêutico-dogmático lhes aponte o caminho, dizendo para eles o que é que a lei diz (ou quis dizer)... De um trabalho de um aluno de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, do longínquo ano de 1981, extrai-se a seguinte denúncia: “O ensino do Direito como está posto favorece o imobilismo de alunos e professores. No esforço de renovação, uns atingem o grau de doutrinadores e o prestígio da cadeira universitária. Os outros, além do mítico título de ‘doutor’, obtêm a habilitação profissional que lhes permite viver de um trabalho não braçal (white collar). A tarefa do ensino para o aluno é cumprida nestes termos: aprendido o abc do Processo e do Direito Civil, já está habilitado a viver de inventários e cobranças sem maior indagação. [...] É claro que este operário anônimo do Direito é necessário, mas por que deve ser inconsciente? [...] Sua atividade passa a ser meramente formal, sem influência no processo de tomada de decisão e no planejamento. O jurista formado por escolas, convém lembrar, não será apenas advogado: será também o juiz que fará parte, afinal de contas, de um dos poderes políticos do estado. A alienação do jurista, deste modo, colabora também na supressão das garantias de direitos. É que o centro de equilíbrio social (ou de legitimação) é colocado na eficiência, não no bem do homem. Começa-se a falar em um bem comum que só existe nas estatísticas dos planejadores, mas que a pobreza dos centros urbanos desmente. E, em nome desse bem comum, alcançável pela eficiência, sacrificam-se alguns valores que talvez não fosse inútil preservar”.155 Repito a pergunta feita anteriormente: o que mudou de lá para cá? Apesar de tudo isso, o Direito, instrumentalizado pelo discurso dogmático, consegue (ainda) aparecer, aos olhos do usuário/operador do Direito, como, ao mesmo tempo, seguro, justo,abrangente, sem fissuras, e, acima de tudo, técnico e funcional. Em contrapartida, o preço que se paga é alto, uma vez que ingressamos, assim “num universo de silêncio: um universo do texto, do texto que sabe tudo, que diz tudo, que faz as perguntas e dá as respostas”. Nestes termos, conclui Legendre, os juristas fazem um trabalho doutoral no sentido escolástico da palavra. Em outras palavras, fazendo seu trabalho, eles não fazem o Direito; apenas entretêm o mistério divino do Direito, ou seja, o princípio de uma autoridade eterna fora do tempo e mistificante, conforme as exigências dos mecanismos de controle burocrático num contexto centralista.156 Disso tudo é possível extrair a seguinte assertiva: ou se acaba com a estandardização do direito, ou ela acaba com o que resta da ciência jurídica.157 Afinal, passados tantos anos e em pleno paradigma do Estado Democrático de Direito, do giro ontológico-linguístico e do novo constitucionalismo, a) ainda não se construiu um modelo de ensino que “supere” a leitura de leis e códigos comentados (na maioria das vezes, reproduzindo conceitos lexicográficos e sem nenhuma sofisticação teórica). É impressionante ver que até mesmo docentes com formação em mestrado e doutorado, na hora de ministrarem as aulas, não conseguem fazê-lo sem o recurso aos standards manualescos; b) a doutrina – que a cada dia doutrina menos – está dominada por produções que buscam, nos repositórios jurisprudenciais, ementas que descrevem, de forma muito breve, o conceito do texto enquanto “enunciado linguístico”. Uma simples decisão de tribunal vira referência – plenipotenciária – para a atribuição de sentido do texto, perdendo-se a especificidade da situação concreta que a gerou; em muitos casos, interpretam-se as leis e os códigos com base em julgados anteriores à Constituição, o que faz com que determinados dispositivos, mesmo que sob um novo fundamento de validade, sejam interpretados de acordo com a ordem jurídica anterior; a doutrina especializada em comentários de legislação não tem efetuado uma filtragem hermenêutico-constitucional dos Códigos e leis, com o que casos nítidos de aplicação direta da Constituição acabam soçobrando em face de legislação produzida há mais de cinquenta anos, como foi o caso da presença (obrigatória) do advogado no interrogatório do acusado, a qual a doutrina e os tribunais resistiram até o advento da lei no ano de 2004;158 c) a proliferação da cultura estandardizada (ementários e comentários simplificados) vem acompanhada por um fenômeno que pode ser denominado de “neopentecostalismo jurídico”, cuja função é “vender” facilidades aos estudantes e aos profissionais que pretendem passar em concursos públicos, com publicações que já no título expõem o seu objetivo: esquematizações e simplificações. Virou “moda” a publicação das simplificações por intermédio de textos plastificados. Por todas, cito S.O.S. Hermenêutica Jurídica, n.32, ano 2009, na qual nos é dito que a filosofia reinante no liberalismo, apresentado como vigorante no século XVII, era o “absolutismo de Schleiermacher...(sic); o modelo interpretativo do neoliberalismo (final do século XX e início do século XXI) é o tópico-indutivo (sic); a “visão do direito” (sic) no liberalismo era a partir de um “sistema de lógica pura”, no welfare state, tem- se o “sistema de natureza social” e, no neoliberalismo, o “sistema de direitos humanos”...; as escolas de interpretação, segundo o S.O.S Hermenêutica Jurídica, seriam a “dogmática”, a “histórico-evolutiva”, a “livre criação do direito” (sic); entre as advertências da publicação plastificada, lê-se como “importante” o leitor não esquecer que “parte da doutrina entende que nenhuma das duas teorias (subjetiva e objetiva) é suficiente e absoluta”, porque a subjetiva “favorece o autoritarismo por preponderância da vontade do legislador” e a objetiva “retira a responsabilidade do legislador e favorece o anarquismo”(...) – sic. Por outro lado, a aluno/leitor é alertado para o fato de que “o STF retira a eficácia da norma (controle difuso) e remete ao Senado Federal para que este retire a validade da lei”...(sic). Trata-se, efetivamente, de uma importante “dica” acerca da diferença entre vigência, validade e eficácia..., contanto – permito-me dizer – que o “consumidor” não a siga, para que não responda de forma equivocada eventual questão em concurso público...! De todo modo, há uma esperança: na parte em que o S.O.S. trata das antinomias no Código Civil de 2002, os autores assinalam que, se alguma norma civil confrontar com a Constituição, “por certo prevalecerá o texto constitucional”. Alvíssaras! d) até mesmo em determinados setores da pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) continua-se a fazer descrições de leis e casos (há dissertações e teses tratando de temáticas monográficas, mais apropriadas para cursos de especialização, para dizer o menos) – a maior parte desvinculada das linhas de pesquisa dos cursos, como, v. g., limitação de fim de semana na lei de execução penal, cheque pré-datado, saídas temporárias na lei de execução penal, inquérito policial, recurso de ofício, perda de bagagem em transporte aéreo, sistema postal, análise jurídica do lixo, o papel do oficial de justiça, o papel do árbitro, suspensão condicional da pena em ação penal privada, embargos infringentes, embargos declaratórios, união homoafetiva (em um programa de pós-graduação que trata de meio ambiente), embargos de execução, agravo de instrumento, exceção de pré-executividade, infanticídio, além de uma tese que, em pleno Estado Democrático de Direito, arrasa com o poder constituinte e uma outra que propõe a “inversão do ônus da prova penal” em crimes do colarinho branco etc.; e) por outro lado, nem sequer conseguimos elaborar um novo modelo de provas de concursos públicos, continuando com a tradicional múltipla escolha – espaço (indispensável) para personagens fictícios como Caio, Tício e Mévio – e com questões dissertativas sobre casos jurídicos (no mais das vezes, sem qualquer sentido “prático”) ou sobre conceitualizações jurídicas. Registre-se, no entanto, que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça editou resolução determinando que os concursos para magistrados passassem a exigir conhecimentos denominados de “formação humanista”.159 Embora a orientação seja meritória, não se pode deixar de notar alguns pontos que apenas confirmam aqui o que venho denunciado de há muito. Vejamos: para a filosofia do direito, são indicados Kelsen, Reale e Ross; para a área da interpretação (hermenêutica), o “carro chefe” é Recaséns Siches. Pergunto: não é estranhável que os autores selecionados/indicados sejam todos positivistas, desde Kelsen, um positivista normativista, a Alf Ross, um positivista fático (espécie de pai do realismo jurídico), chegando a um axiologista (ou seja, igualmente positivista) como Recaséns Siches, jusfilósofo cuja doutrina se mostra incompatível com os avanços da teoria do direito na contemporaneidade? Assim, onde pode estar o avanço, pode também estar o retrocesso; f) o modelo de decisão judicial continua o mesmo há mais de um século: a fundamentação restringe-se à citação da lei, da súmula ou do verbete, problemática que se agrava com a institucionalização da súmula vinculante. Daí a (correta) exigência de Dworkin: uma “responsabilidade política” dos juízes. Os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões, porque com elas afetam os direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado Democrático de Direito,a adequada justificação da decisão constitui-se em um direito fundamental. O sentido da obrigação de fundamentar as decisões previsto no art. 93, IX, da Constituição do Brasil implica, necessariamente, a justificação dessas decisões. g) as decisões devem estar justificadas, e tal justificação deve ser feita a partir da invocação de razões e oferecendo argumentos de caráter jurídico, como bem assinala David Ordónez Solís.160 O limite mais importante das decisões judiciais reside precisamente na necessidade da motivação/justificação do que foi dito. O juiz, por exemplo, deve expor as razões que lhe conduziram a eleger uma solução determinada em sua tarefa de dirimir conflitos. A motivação/justificação está vinculada ao direito à efetiva intervenção do juiz, ao direito dos cidadãos a obter uma tutela judicial, sendo que, por esta razão, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos considera que a motivação se integra ao direito fundamental a um processo equitativo, de modo que “as decisões judiciais devem indicar de maneira suficiente os motivos em que se fundam. A extensão deste dever pode variar segundo a natureza da decisão e deve ser analisada à luz das circunstâncias de cada caso particular”.161 Para além da crise aqui denunciada e procurando permanecer fiel às coisas mesmas, à intersubjetividade, ao mundo prático, à faticidade, à busca da construção de um “comportamento constitucional” já referido anteriormente, torna-se necessário superar as diversas posturas que ainda percebem o direito a partir de hipóteses, categorias e enunciados assertóricos-perfomativos. Eis aí mais um grande desafio. Notas 136 Consultar JTACrimSP 78/423 e 81/348, apud Jesus, Damásio E. de. Código Penal Anotado. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 462. 137 Indico a leitura do artigo O Triste Fim das Ciências Jurídicas em Terrae Brasilis. Neste, faço a anamnese de parte de uma obra para concursos que abrange o conteúdo inserido pela resolução 75/2009 do CNJ (“Noções Gerais de Direito e Formação Humanística”). Desta análise, observa-se a sedimentação de uma série de equívocos teóricos decorrentes de uma simplificação do jurídico, tornando-o adaptado ao mundo dos concursos. Cf. Streck, Lenio Luiz. Compreender Direito: desvelando as obviedades do discurso jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 185-192. 138 Como um novo modo de ver a teoria do direito, o ensino jurídico e uma crítica à dogmática, vale a pensa consultar o livro de Abboud, Georges; Carnio, Henrique Garbellini; Oliveira, Rafael Tomaz. Introdução à Teoria e a Filosofia do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, com posfácio de minha autoria. Na obra, leem-se preciosas lições acerca do conceito de direito, da crítica ao positivismos, além de noções elementares sobre epistemologia, validade e legitimidade do direito, a relação entre direito e justiça, o desenvolvimento da teoria da norma e, por fim, da necessidade de uma teoria da decisão. 139 Uma consistente crítica ao ensino jurídico pode ser visto na obra de Hupffer, Haide Maria. Ensino jurídico: um novo caminho a partir da hermenêutica filosófica. Viamão: Entremeios, 2008, utilizando para tal a matriz teórica da hermenêutica filosófica. 140 Cf. Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 126. 141 Ver Rodrigues, Silvio. Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 126. 142 Cf. Jesus, Damásio E. de. Código Penal Comentado, op. cit., p. 605. 143 Cf. Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito, op. cit., p. 49. 144 O crime de atentado violento ao pudor foi extinto pela Lei 12.015/09. A partir dessa lei, o tipo de atentado violento ao pudor e estupro foram unificados e reunidos no art. 213 do CP, que assim dispõe: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele outro se pratique outro ato libidinoso”. 145 Tais verbetes sofrem de evidente “anemia significativa”, sem falar no predomínio de definições óbvias e simplistas, encontráveis em inúmeros manuais, como, por exemplo, “agressão atual é a presente, a que está acontecendo; iminente é a que está prestes a ocorrer”; “casa de prostituição é o local onde as prostitutas exercem o comércio carnal” (para tanto, consultar Damásio de Jesus, Código Penal Anotado, Saraiva, p. 83 e 609); “para caracterização de quadrilha, são necessárias 4 pessoas”; “ordinário se presume, só o extraordinário se prova”, invocando Malatesta. Ou, do mesmo Malatesta, “prova para condenar tem que ser robusta”. Ora, alguém tem dúvida de que a prova para condenar tem que ser robusta? Comentando o art. 24 do Código Penal, que estabelece o conceito de estado de necessidade, pelo qual “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, quem não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se”, o doutrinador Celso Delmanto leciona que “Estado de necessidade é a situação de perigo atual, não provocado voluntariamente pelo agente, em que este lesa bem de outrem, para não sacrificar direito seu ou alheio, cujo sacrifício não podia ser razoavelmente exigido” (In: C. P. Comentado, Renovar, 1998, p. 44). Observa-se que o comentário tão somente reproduz o conteúdo da lei. Para aferição do “conceito de mulher honesta” de que trata o art. 217 do CP, Damásio de Jesus traz à colação – via verbetes jurisprudenciais – a discussão acerca de se “moça de dezessete anos que trabalha fora em escritório é ou não é ingênua”, colocando à disposição do intérprete/operador do Direito duas posições: uma no sentido de que a moça é ingênua (RT 524/338) e outra de que não é ingênua (RJTJSP 50/365)... No mesmo diapasão (e na mesma obra), encontramos a informação de “a vítima que frequenta bailes e dorme fora de casa não é ingênua e inexperiente”. (idem, ibidem, p. 586); já para a configuração do crime de sedução, a vítima deve ser virgem e casta, sendo citado, para tanto, julgado publicado na RT 543/350. Não é necessário muito esforço para encontrar, na doutrina lato sensu e na jurisprudência, definições como “chave falsa é um instrumento, sob a forma de chave ou não, que se destina a abrir fechaduras”. Ou “pedaço de cabo de talher não é chave falsa (JTACrimSP 92/52)”; ao mesmo tempo, há informação de que “clips é chave falsa” (RJDTACrimSP 6/95 e, especificamente, Damásio de Jesus, op. cit., p. 560). Para contrabalançar a referida tese acerca da qualificadora da chave falsa, há outro “significante primordial- fundante” dando conta de que “micha é chave falsa” (ao que se poderia objetar: se micha não é chave, falsa não pode ser!). Compulsando a literatura jurídico-penal, descobre-se também que “se da agressão resulta para a vítima o arrancamento de dentes já irremediavelmente estragados, não é de ser reconhecida a agravante especial da lesão, mas sim o delito de lesões corporais de natureza leve” (RT 612/297), Mirabete, Julio F. C. P. Interpretado, 2001, p. 823. A contrario sensu, se os dentes arrancados não estiverem estragados, a lesão será grave... No terreno dos crimes contra a administração pública, descobre-se que “a preguiça e o desleixo excluem o dolo do crime de prevaricação...” (RT 451/414, 486/356, in: Damásio de Jesus, op. cit., 2. ed., p. 285). Por outro lado, é pacífico que “vestir-se só de calção em público” não configura o delito de ato obsceno (art. 233) (RT 355/328 in: Damásio, op. cit., p. 616). É evidente que as hipóteses jurídicas constantes nas aludidas ementas podem vir a assumir relevância em determinada situação (a prova disto é que as respectivas discussões em seu entorno chegaram até os tribunaisda República). A crítica que aqui se faz decorre do (ab)uso metafísico daí resultante. Não se pode esquecer que Direito é história, é tempo, é faticidade, e que, portanto, cada caso tem a sua singularidade. Tentar aprisionar os fatos em verbetes é sequestrar o tempo do Direito. Em suma: pode-se extrair, desta (pequena) amostragem, a problemática exsurgente desse universo (construído) a partir de definições metafísicas, que pré-dominam o imaginário gnosiológico dos juristas inseridos no senso comum teórico (habitus dogmaticus). 146 Para um desdobramento dessas questões, ver: Ramires, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 46-7, em cuja obra, na linha de uma Crítica Hermenêutica do Direito, o autor denuncia que “No Brasil, o ensino jurídico e a prática do direito são historicamente preocupados com a norma e, com a completa ausência de análise pedagógica dos casos, os intérpretes desenvolveram um distanciamento dos fatos aos quais as normas se destinam. (...) O que no mais das vezes ocorre é a pretensa ‘separação cirúrgica’ entre o fato e o direito, com o esquecimento ou o encobrimento da realidade, quando se insiste em trabalhar apenas com os institutos ou Standards jurídicos como se fossem as categorias abstratas da matemática”. Também essa problemática é desenvolvida em Streck, L. L. e Abboud, Georges. O que é isto – os precedentes e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. 147 Cf. Ferraz Jr., op. cit., p. 254 e 255. 148 Ver Faria, José Eduardo. Justiça e conflito, op. cit., p. 91. Também, Bourdieu, Pierre. O poder simbólico, op. cit. 149 Cf. Guibourg, Ricardo A. et. alli. Introdución al conocimiento jurídico. Buenos Aires: Astrea, 1984, p. 147. 150 Cf. Ross, Alf. Sobre el derecho y la justicia. Buenos Aires: Eudeba, 1963, p. 45. 151 Cf. Bourdieu, Pierre e Passeron, Jean Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. São Paulo: Francisco Alves, 1975, p. 19-24. 152 Cf. Ferraz Jr., Introdução ao estudo do Direito, op. cit., p. 251. 153 Expressão adaptada de Ferraz Jr., op. cit., que fala na formação de um arbitrário socialmente prevalecente. 154 No interior desse habitus, engendra-se uma espécie de “síndrome de Abdula”, que faz com que a expressiva maioria dos juristas não se dê conta de sua força e de seu papel no processo de construção do discurso jurídico. Isso será demonstrado na sequência. 155 Consultar Faria, José Eduardo. A reforma do ensino jurídico, op. cit., p. 37. 156 Cf. Ferraz Jr., Função Social da Dogmática Jurídica, op. cit., p. 178. 157 É evidente que estou me referindo à cotidianidade das práticas jurídicas, representado pelo universo das centenas de faculdades de direito, os inúmeros cursos de preparação para concursos e a operacionalidade do direito massificada e sufocada pelo excesso de processos e pela disfuncionalidade do sistema processual. Despiciendo registrar a importância da crescente produção teórica (também em qualidade) ocorrida nos últimos anos, mormente no campo do direito constitucional, fruto principalmente da expansão da pós-graduação stricto sensu (há, hoje, 81 programas de mestrado, 31 programas de doutorado e 1 mestrado profissional em funcionamento). Essa benéfica influência já se faz notar nas decisões judiciais, proporcionando relevantes avanços doutrinários e jurisprudenciais. 158 A 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, junto à qual tenho assento como Procurador de Justiça, foi a pioneira na aplicação da tese da obrigatoriedade da presença do defensor no interrogatório, antes mesmo da edição da nova lei. 159 Após a aprovação da Resolução 75, começaram a venda de livros para descomplicar o ensino dos conhecimentos humanísticos. No entanto, a maior parte desses livros não aprofunda o tema e serve somente para responder as perguntas dos concursos. Nesse sentido, ver o exemplo de um livro em terrae brasilis que realizou uma verdadeira “salada de frutas” das teorias. Descrevo essa situação na coluna publicada na revista Conjur, 20 set 2012, intitulado: O triste fim da ciência jurídica em terrae brasilis. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-set-20/senso-incomum-triste-fim-ciencia-juridica-terrae- brasilis>. 160 Cf. Ordónez Solis, David. Derecho y Política. Navarra: Aranzadi, 2004, p. 98 e segs. 161 Sentenças de 9.12.1994 – TEDH 1994, 4, Ruiz Torija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; de 19.02.1998 – TEDH 1998,3, Higgins e outros – Fr, parágrafo 42; e de 21.01.99 – TEDH 1999,1, Garcia Ruiz-ES. No mesmo sentido, ressalte-se a posição do Tribunal Constitucional da Espanha (sentença 20/2003, de 10 de febrero). 5. A fetichização do discurso e o discurso da fetichização: a dogmática jurídica, o discurso jurídico e a interpretação da lei 5.1. A fetichização do discurso jurídico e os obstáculos à realização dos direitos: uma censura significativa É neste contexto – crise de paradigma do Direito e da dogmática jurídica – que devemos permear a discussão acerca dos obstáculos que impedem a realização dos direitos em nossa sociedade. Se é verdade a afirmação de Clève de que a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental e auxiliar da solução dos conflitos, individuais e coletivos, de interesses e que não há direito sem doutrina e, portanto, sem dogmática,162 então é também razoável afirmar que o discurso jurídico-dogmático, instrumentalizador do Direito, é importante fator impeditivo/obstaculizante do Estado Democrático de Direito em nosso país – e portanto, da realização da função social do Direito –, traduzindo-se em uma espécie de censura significativa. À evidência, o Judiciário e as demais instâncias de administração da justiça são atingidos diretamente por essa crise. Com efeito, o sistema de administração da justiça (Magistratura, Ministério Público, Advocacia de Estado, Defensoria Pública e Polícia) consegue enfrentar, de forma mais ou menos eficiente, os problemas que se apresentam rotinizados, sob a forma de problemas estandardizados. Quando, porém, surgem questões macrossociais, transindividuais, e que envolvem, por exemplo, a interpretação das ditas “normas programáticas” constitucionais, tais instâncias, mormente o Judiciário, procuram, nas brumas do senso comum teórico dos juristas, interpretações despistadoras, tornando inócuo/ineficaz o texto constitucional. Isto porque o “discurso-tipo” (Veron) da dogmática jurídica estabelece os limites do sentido e o sentido dos limites do processo hermenêutico. Consequentemente, estabelece-se um enorme hiato que separa os problemas sociais do conteúdo dos textos jurídicos que definem/asseguram os direitos individuais e sociais/fundamentais. Por isso, insisto na importância da relação entre o modo-de-fazer-Direito e a concepção de Estado vigente/dominante. Isso porque a inefetividade de inúmeros dispositivos constitucionais e a constante redefinição das conquistas sociais através de interpretações despistadoras/redefinitórias feitas pelos Tribunais brasileiros têm uma direta relação com o modelo de hermenêutica jurídica que informa a atividade interpretativa da comunidade jurídica. Celso Campilongo,163 apoiado em Ferraz Jr., dá algumas pistas sobre o problema, ao dizer que “a hermenêutica jurídica do Estado Liberal, vale dizer, de uma concepção de Estado de Direito exclusivamente preocupada com a preservação da liberdade jurídica, tinha uma orientação de bloqueio – interpretação de bloqueio – conforme princípios de legalidade e estrita legalidade como peças fundantes da constitucionalidade”. Ora, continua, “a passagem do Estado Liberal para o EstadoSocial revelará, constantemente, os limites da ‘ideologia da fidelidade à lei’. A ‘complicada convivência’ do Estado de Direito com o chamado Estado de Bem-Estar Social fica evidenciada pelo necessário recurso a novas categorias cognitivas da parte do intérprete. Caminha-se, assim, da hermenêutica de bloqueio para a hermenêutica de ‘legitimação de aspirações sociais’”. Claro que essa questão não se resume à contraposição de dois modelos interpretativos. Campilongo tem razão apenas em parte. De todo modo, é de suma importância explicitar duas perspectivas hermenêuticas: o exegetismo e o pós-exegetismo, problemática, aliás, que ainda não foi bem compreendida em terras brasileiras, como busco explicar no decorrer desta obra. Efetivamente, há um hiato (hermenêutico) entre a concepção de Direito vigorante no modelo de Estado Liberal e no modelo que busca a sua superação. É possível perceber que esse problema se agrava em países que tardiamente ingressaram na esfera do Estado Democrático de Direito. Ou seja, a (consequente) crise de paradigma de dupla face (crise do paradigma liberal-individualista-normativista e crise do paradigma epistemológico da filosofia da consciência) retrata a incapacidade histórica da dogmática jurídica em lidar com os problemas decorrentes de uma sociedade díspar/excludente como a brasileira.164 Na verdade, tais problemas são deslocados no e pelo discurso dogmático. Cria-se uma espécie de transparência discursiva. Como decorrência, pode-se dizer, a partir das lições de Sercovich,165 que o discurso dogmático se torna transparente, gerando uma cadeia significativa no interior da qual as sequências discursivas remetem o usuário/operador jurídico diretamente à realidade, mediante o processo de ocultamento das condições de produção do sentido do discurso. A este fenômeno podemos denominar de “fetichização do discurso jurídico”, é dizer, através do discurso dogmático, a lei passa a ser vista como sendo uma-lei-em-si, abstraída das condições (de produção) que a engendraram, como se a sua condição-de-lei fosse uma propriedade “natural”. Consequentemente, complementando com o mesmo Sercovich, o discurso dogmático transforma-se em uma imagem, na tentativa (ilusória) de expressar a realidade-social-de-forma-imediata. No fundo, o discurso jurídico transforma-se em um “texto sem sujeito”, para usar a terminologia de Pierre Legendre. 5.2. O processo de (re)produção do sentido jurídico e a busca do “significante primeiro” ou de como a dogmática jurídica ainda não superou os paradigmas que se sustentam no esquema sujeito-objeto O processo interpretativo/hermenêutico tem (deveria ter) um caráter produtivo, e não meramente reprodutivo. Essa produção de sentido não pode, pois, ser guardada sob um hermético segredo, como se sua holding fosse uma abadia do medievo. Isto porque o que rege o processo de interpretação dos textos legais são as suas condições de produção, as quais, devidamente difusas e oculta(da)s, aparecem – no âmbito do discurso jurídico-dogmático permeado pelo respectivo campo jurídico – como se fossem provenientes de um “lugar virtual”, ou de um “lugar fundamental”. É preciso ter claro que as palavras da lei não são unívocas, mas plurívocas. O “elo” (imanência) que “vinculava” significante e significado está irremediavelmente superado pela viragem linguística ocorrida no campo da filosofia. Isto porque – como veremos mais adiante – alterou-se radicalmente a noção de conhecimento como relação entre pessoas (sujeitos) e objetos, percebendo-se agora na relação entre pessoas (atores sociais) e proposições.166 Ainda assim, não obstante os avanços das teses antimetafísicas de cunho linguístico- fenomenológicos, não é temerário dizer que a dogmática jurídica sofre ainda de uma compulsiva lógica da aparência de sentidos, que opera como uma espécie de garantia de obtenção, em forma retroativa, de um significado que já estava na lei desde sua promulgação.167 Insisto que essa problemática é mais visível no âmbito dos juristas inseridos no senso comum teórico, porque seus trabalhos refletem atitudes sincretistas. Acredita-se, ao mesmo tempo e sob variações teóricas, no legislador como sendo uma espécie de onomaturgo platônico168 e que o Direito permite verdades apofânticas. Como demonstrarei a seguir, há uma constante busca do “correto sentido da norma” (em uma análise autossuficiente, que prescinde da diferença ontológica), um sentido “dado”, um “sentido-em-si”, enfim, uma espécie de “sentido-primevo-fundante”. Mas, atenção, porque, ao mesmo tempo, forjou-se um imaginário no interior do qual, sob pretexto de superar a figura do juiz-boca-da-lei – que era o protótipo do juiz do positivismo primitivo-exegético-sintático – passou-se a apostar no protagonismo judicial. Com isso, sentença viria de “sentire”, e as decisões seriam proferidas a partir da consciência do juiz. Enfim, o triunfo do juiz solipsista, que coloca o sujeito da relação Sujeito-Objeto como o “senhor dos sentidos”. Ou seja, do objetismo os juristas passa(ra)m rapidamente para o subjetivismo (na verdade, um voluntarismo, como explicitado no decorrer desta obra). De registrar que, na maior parte dos casos – mormente no âmbito do senso comum teórico dos juristas – ocorre uma fusão dos paradigmas aristotélico-tomista com as concepções baseadas no paradigma epistemológico da filosofia da consciência. Mixagem desse jaez, v.g., é feita por Marco Antonio de Barros, quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade “a adequação ou conformidade entre o intelecto e a realidade”, sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque “moldada pelo juízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa”. Entretanto, no plano da avaliação das provas, diz que a “convicção do juiz é livre, submete-se a sua própria consciência; porém, a sua decisão deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo”.169 Veja-se que a ressalva no sentido de que a decisão, embora “de livre convicção”, deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo, seria relevante, não fosse exatamente a contradição entre “a livre convicção” (solipsismo judicial) e a “fundamentação nas provas processuais”. Mais contemporaneamente, a dogmática jurídica vem apostando no paradigma epistemológico que tem como escopo o esquema sujeito-objeto, no qual um sujeito observador está situado em frente a um mundo, mundo este por ele “objetivável e descritível”, a partir de seu cogito (filosofia da consciência). Acredita-se, pois, na possibilidade da existência de um sujeito cognoscente, que estabelece, de forma objetificante, condições de interpretação e aplicação. O jurista, de certo modo, percorre a antiga estrada do historicismo. Não se considera já e sempre no mundo, mas, sim, considera-se como estando-em-frente-a-esse- mundo, o qual ele pode conhecer, utilizando-se do “instrumento” (terceira coisa) que é a linguagem jurídica...! 5.3. O sentido da interpretação e a interpretação do sentido ou de como a dogmática jurídica (continua) interpreta(ndo) a lei: no centro do debate, a história do positivismo jurídico e as tentativas de sua superação – do exegetismo (e pandectismo) à jurisprudência dos valores (isto é, da “razão” à “vontade”) Para uma melhor compreensão do acima exposto, faz-se necessária uma análise acerca do modus interpretativo vigente/dominante no cotidiano dos juristas. Inúmeros autores e teses pode(ria)m, aqui, ser esmiuçadas.Algumas, porém, pela sua importância (que têm e que tiveram) na dogmática jurídica, merecem destaque. Assim, começando por Aníbal Bruno,170 interpretar a lei é penetrar-lhe o verdadeiro e exclusivo sentido, sendo que, quando a lei é clara (in claris non fit interpretatio), a interpretação é instantânea. Conhecido o texto, complementa o autor, aprende-se imediatamente o seu conteúdo. De certo modo, Bruno acreditava na busca do sentido primevo da norma (texto jurídico), na medida em que falava da possibilidade de o intérprete apreender “o sentido das palavras em si mesmas”. Por trás (e/ou próximo) da concepção defendida por Bruno – que ainda impera no âmbito do senso comum teórico dos juristas – estão, entre outras questões, a teoria correspondencial da verdade e a crença de que existe uma natureza intrínseca da realidade. Neste caso, a linguagem tem um papel secundário, qual seja, a de servir de veículo para a busca de verdadeira “essência” do Direito ou do texto jurídico-normativo. Na mesma linha, Paulo Nader171 entende que interpretar a lei é fixar o sentido de uma norma e descobrir a sua finalidade, pondo a descoberto os valores consagrados pelo legislador. Para ele, todo subjetivismo deve ser evitado durante a interpretação, devendo o intérprete visar sempre à realização dos valores magistrais do Direito: justiça e segurança, que promovem o bem comum. Carlos Maximiliano,172 autor da clássica obra sobre hermenêutica, entendia que interpretar é a busca do esclarecimento, do significado verdadeiro de uma expressão; é extrair de uma frase, de uma sentença, de uma norma, tudo o que na mesma se contém. Aproximava-se – e não é temerário afirmar isto – da tese objetivo-idealista defendida por Emilio Betti, pela qual era possível a reprodução do sentido originário da norma. A tradição hermenêutica inaugurada por Maximiliano no Brasil tem uma similitude com a hermenêutica normativa de Betti, isto é, uma hermenêutica que dá regras para a interpretação, as quais dizem respeito tanto ao objeto como ao sujeito da interpretação. Mais contemporaneamente, Maria Helena Diniz entende que interpretar é descobrir o sentido e o alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos. Para ela, interpretar é explicar, esclarecer; dar o verdadeiro significado do vocábulo; extrair, da norma, tudo o que nela se contém, revelando seu sentido apropriado para a vida real e conducente a uma decisão.173 É possível perceber nessa “busca do verdadeiro sentido da norma” e na “revelação” que deve ser feita pelo intérprete, a (forte) presença da dicotomia sujeito-objeto, própria da filosofia da consciência, em que a linguagem é um tertius apto a buscar “verdades silentes”. Tal concepção é ainda dominante na doutrina brasileira. Não discordante é a posição de José Eduardo Soares de Melo,174 que sustenta que “todo e qualquer aplicador do Direito (magistrado, autoridade pública, particular etc.) deve, sempre, descobrir o real sentido da regra jurídica, apreender o seu significado e extensão”. Embora chame a atenção para o fato de que “o juiz julga segundo a lei, não julga a lei”, Ronaldo Poletti175 rende-se para a relevante circunstância de que, “por mais que o jurista busque a expressão clara de uma linguagem precisa e que o formulador da norma a manifeste de forma escorreita, sempre haverá dúvidas e necessidade de interpretar, até porque o direito é um conjunto integrado de normas e de institutos. Não prescindem eles de uma interpretação, como já foi dito, para a sua aplicação. Na verdade, o direito é também uma arte e os juristas são artistas que o interpretam”. A posição de Paulo Dourado de Gusmão176 não distoa do que, de forma predominante, a doutrina brasileira entende como processo hermenêutico. Para Gusmão, pelo processo interpretativo se estabelece o exato sentido da norma, o seu alcance, as suas consequências jurídicas e os elementos constitutivos do caso típico previsto pela norma. Também Arnoldo Wald,177 na mesma linha, acredita na possibilidade da existência do sentido exato da norma. Registre-se que, apesar das críticas que podem ser feitas à hermenêutica de Maximiliano, esse autor, em toda a sua trajetória, sustentou que a interpretação de um texto é sempre necessária, rejeitando a tese do in claris cessat interpretatio. No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira, que diz que toda lei está sujeita a interpretação. Toda norma jurídica tem de ser interpretada, porque o direito objetivo, qualquer que seja a sua roupagem exterior, exige seja entendido para ser aplicado, e neste entendimento vem consignada a sua interpretação.178 Na mesma linha, no Brasil, Arnoldo Wald, Eduardo Espínola, Virgílio de Sá Pereira e Paulo de Lacerda; na doutrina alemã, Savigny, Windscheid, Biermann, Kiss, Bierling e Gmür; na doutrina italiana, entre outros, Coviello, Chironi e Abbello, Lomonaco, Pacifici-Mazzoni, Filomusi-Guelfi, Caldara, De Filipis, Gianturco, Degni e Mario Rotondi; na França, Planiol e Aubry e Rau.179 Em sentido contrário, defendendo uma posição (que pode ser considerada ortodoxa), podem ser encontrados autores como Washington de Barros Monteiro,180 que entende que “a lei quase sempre é clara, hipótese em que descabe qualquer trabalho interpretativo (lex clara non indiget interpretatione)”. Antes dele, Paula Baptista181 dizia que “interpretação é a exposição do verdadeiro sentido de uma lei obscura por defeito de sua redação, ou duvidosa com relação aos fatos ocorrentes, ou silenciosa. Por conseguinte, não tem lugar sempre que a lei, em relação aos fatos sujeitos ao seu domínio, é clara e precisa”. Concordando com Monteiro, outro expoente da doutrina jurídica brasileira, o civilista Sílvio Rodrigues182 acentua que “a necessidade da interpretação é indiscutível e, exceto naqueles casos em que o sentido da norma salta em sua absoluta evidência, o trabalho de exegese se apresenta continuamente ao jurista”. No mesmo sentido, sustentado no doutrinador belga Laurent, José Paulo Cavalcanti183 sufraga a tese da desnecessidade da interpretação das leis claras, aduzindo que a tese de que todas as leis necessitam ser interpretadas é simplista, uma vez que qualquer pretendida interpretação de uma lei clara somente pode levar ou a transgredi-la (“sob o pretexto de penetrar-lhe o espírito”), como observou Laurent, ou a repetir com outras palavras seu evidente significado. Por trás de todas essas concepções está o desenvolvimento histórico do positivismo e a busca de sua superação. O positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos (lembremos que o neopositivismo lógico também teve a denominação de “empirismo lógico”). Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a uma determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. No âmbito do Direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, num determinado tipo de lei: os Códigos. É preciso destacar que esse legalismo apresenta notas distintas, na medida em que se olha esse fenômeno numa determinada tradição jurídica (como exemplo, podemos nos referir ao positivismo inglês – perspectiva analítica, de cunho utilitarista; ao positivismo francês, no qual predominava o exegetismoda legislação; e ao alemão, no interior do qual é possível perceber o florescimento do chamado formalismo conceitual que se encontra na raiz da chamada jurisprudência dos conceitos – pandectismo). No que tange às experiências francesas e alemãs, isso pode ser debitado à forte influência que o direito romano exerceu na formação de seus respectivos direitos privados. Não em virtude do que comumente se pensa – de que os romanos “criaram as leis escritas” –, mas sim, em virtude do modo como o direito romano era estudado e ensinado. Isso que se chama de exegetismo tem sua origem aí: havia um texto específico em torno do qual giravam os mais sofisticados estudos sobre o direito. Este texto era – no período pré-codificação – o Corpus Juris Civilis. A codificação efetua a seguinte “marcha”: antes dos códigos, havia uma espécie de função complementar atribuída ao Direito Romano. Aquilo que não poderia ser resolvido pelo Direito Comum seria resolvido segundo critérios oriundos da autoridade dos estudos sobre o Direito Romano – dos comentadores ou glosadores. O movimento codificador incorpora, de alguma forma, todas as discussões romanísticas e acaba “criando” um novo dado: os Códigos Civis (França, 1804, e Alemanha, 1900). Neste contexto, a função de complementaridade do direito romano desaparece completamente. Toda argumentação jurídica deveria tributar seus méritos aos Códigos, que passaram a possuir, a partir de então, a estatura de verdadeiros “textos sagrados”. Isso porque eles seriam o dado positivo com o qual deveria lidar a Ciência do Direito. É claro que, já nesse período, apareceram problemas relativos à interpretação desses “textos sagrados”. Com o passar do tempo, desenvolveu-se a percepção acerca da incapacidade dos Códigos abarcarem toda a realidade circundante, principalmente em virtude dos embates teóricos acerca da existência de lacunas legislativas. Mas, então, como controlar o exercício da interpretação do direito para que essa obra não fosse “destruída”? E, juntamente, como excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos que não eram bem quistos pelo modo positivista de ler a realidade? Num primeiro momento, a resposta será dada a partir de uma análise da própria codificação: a Escola da Exegese, na França, e a Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha. Esse primeiro quadro eu apresento, em minhas pesquisas – e aqui talvez resida parte do “criptograma do positivismo” –, como positivismo primevo ou positivismo exegético, também denominado de “positivismo legalista” (Castanheira Neves). A principal característica desse “primeiro momento” do positivismo jurídico, no que tange ao problema da interpretação do direito, será a realização de uma análise que, nos termos propostos por Rudolf Carnap,184 poderíamos chamar de sintático. Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a “obra sagrada” (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito. Assim, consequentemente, conceitos como o de analogia e princípios gerais do direito devem ser encarados também nessa perspectiva de construção de um quadro conceitual rigoroso que representariam as hipóteses – extremamente excepcionais – de inadequação dos casos às hipóteses legislativas.185 Num segundo momento, aparecem propostas de aperfeiçoamento desse “rigor” lógico do trabalho científico proposto pelo positivismo. É esse segundo momento que podemos chamar de positivismo normativista. Aqui há uma modificação significativa com relação ao modo de trabalhar e aos pontos de partida do “positivo”, do “fato”. As primeiras décadas do século XX viram crescer, de um modo avassalador, o poder regulatório do Estado – que se intensificará nas décadas de 30 e 40 – e a falência dos modelos sintático-semânticos de interpretação da codificação se apresentaram completamente frouxos e desgastados.186 O problema da indeterminação do sentido do Direito aparece, então, em primeiro plano. É nesse ambiente, nas primeiras décadas do século XX, que aparece Hans Kelsen.187 Certamente, Kelsen não quer destruir a tradição positivista que foi construída pela Jurisprudência dos Conceitos. Pelo contrário, é possível afirmar que seu principal objetivo era reforçar o método analítico proposto pelos conceitualistas de modo a responder ao crescente desfalecimento do rigor jurídico que estava sendo propagado pelo crescimento da Jurisprudência dos Interesses e da Escola do Direito Livre – que favoreciam, sobremedida, o aparecimento de argumentos psicológicos, políticos e ideológicos na interpretação do direito. Isso é feito por Kelsen a partir de uma radical constatação: o problema da interpretação do direito é muito mais semântico do que sintático. Desse modo, temos aqui uma ênfase na semântica. Aqui, importante registrar um esclarecimento: quando falo em uma ênfase semântica, estou me referindo explicitamente ao problema da interpretação do direito tal qual é descrito por Kelsen no fatídico capítulo VIII de sua Reine Rechtslehre. Para compreendermos bem essa questão, é preciso insistir em um ponto: há uma cisão em Kelsen entre direito e ciência do direito que irá determinar, de maneira crucial, seu conceito de interpretação. De fato, também a interpretação, em Kelsen, será fruto de uma cisão: interpretação como ato de vontade e interpretação como ato de conhecimento. A interpretação como ato de vontade produz, no momento de sua “aplicação”, normas. Esta interpretação, denominada de autêntica, seria a única capaz de criar direito, não por intermédio de um conhecimento puro, mas no exercício de política jurídica, influenciada por noções de justiça, moral dentre outras.188 Já a descrição dessas normas deveria ocorrer de forma objetiva e neutral – interpretação como ato de conhecimento – produzindo apenas proposições, que não possuiriam obrigatoriedade. Kelsen não intentava fazer uma ciência do direito puro, esta perspectiva impediria qualquer empreendimento científico, já que esta pureza estaria ligada a ideia de um direito justo, correto, e, obviamente, eivada de juízos de valor e perspectivas políticas, todas para ele contingenciais.189 De modo diverso, intentava construir uma ciência pura do direito por intermédio de um processo de despolitização, não do direito, mas de sua ciência, que deveria estudar e descrever o jurídico naquilo que lhe é fundamental e geral, constante em qualquer tempo e espaço.190 A TPD é uma metalinguagem da linguagem objeto, um modo de corrigir a inevitável indeterminação do sentido do direito, seja decorrente da plurivocidade das palavras ou dos juízos políticos, morais, ideológicos etc. Seria uma terapia lógica – da ordem do a priori – que garantisse que a ciência do Direito se movimentasse em um solo lógico rigoroso. Isso evidencia uma relação direta com os resultados das pesquisas levadas a cabo pelo Círculo de Viena. No que tange a aplicação do Direito, Kelsen, ciente da polissemia dos signos linguísticos, conclui que sempre haverá um espaço de mobilidade para o intérprete.191 A aplicatio – que está fora da ciência do direito – sempre será um ato de vontade, uma escolha de qualquer das possibilidades normativas elencadas pela ciência do direito na moldura normativa. Nesta área, a atividade da ciência do direito estaria limitada à apresentar os vários significados possíveis de uma determinada norma, contudo, sem jamais indicar uma ou outra como a correta. Deste modo, caberia à volição do intérprete a decisão. Na segundaedição da TPD, Kelsen defende que o órgão julgador pode decidir de modo completamente diverso de todas as significações enunciadas pela ciência jurídica.192 Neste caso, produz direito novo, que se não reformado, será também objeto da análise do conhecimento científico do Direito. O voluntarismo de Kelsen e a consequente discricionariedade, não são resultantes de um tratamento superficial dado à interpretação, ao contrário, refletem sua visão de mundo e uma incapacidade constitutiva de suas premissas teóricas, sobretudo, a construção neopositivista de ciência. Kelsen era uma relativista moral e acreditava que o positivismo jurídico estava necessariamente relacionado com o relativismo. Defendia que a ideia de valores absolutos estaria além do conhecimento racional193 e que a moralidade social seria mutável de indivíduo para indivíduo. Consequentemente, o direito passível da elaboração científica somente poderia ser o positivo, produzido por atos humanos, pela vontade. Esta, inexoravelmente sofreria influências diversas, por isso, seria necessário um processo de purificação científica seja do material legislado ou da norma de decisão por intermédio de um ato de conhecimento. A aplicação do direito, por ser um ato de vontade, de política jurídica, fatalmente, em sua manifestação, não seria passível de controle. A interpretação autêntica estaria eivada de subjetivismos provenientes de uma razão prática solipsista. Para o autor austríaco esse “desvio” é impossível de ser corrigido. Sendo bem incisivo e usando as palavras do próprio Kelsen: “La teoría pura del derecho es positivismo jurídico, es simplesmente la teoría del positivismo jurídíco; y el positivismo jurídico está intimamente vinculado con el relativismo”(sic).194 Sem dúvida, absolutamente esclarecedor. Kelsen vai à raiz de um problema pouco compreendido pelos estudiosos do positivismo jurídico. Ou seja, é evidente que todo o positivismo é relativista. Positivismo está relacionado a convencionalismo. Por isso, os sofistas foram os primeiros positivistas, porque fizeram a desindexação entre palavras e coisas. Logo, para os sofistas – na exata linha do lema de Protágoras – o homem é a medida de todas as coisas. Desse modo, Hobbes foi um autêntico positivista, porque o direito é produto do soberano, sem que esse direito esteja ligado a qualquer ontologia, valores ou ontoteologia. Essa questão pode ser vista de forma mais sofisticada na vontade de poder (Wille zur Macht) nietzchiana. Do mesmo modo, o legislador do novo regime (Revolução Francesa) tem total liberdade para dizer o que é direito. Logo, o elemento central é a discrionariedade. Essa discricionariedade, com o crescimento da jurisdição constitucional, é deslocada para o Poder Judiciário ou os Tribunais Constitucionais, sob o pálio dos princípios, que, segundo as correntes axiologistas contemporâneas (e nisso se inclui, naturalmente, o neoconstitucionalismo), representa(ria)m a introdução dos “valores” no direito. Ora, como se as regras não traduzissem valores, ética ou política. Por trás disso está a cisão estrutural regra-princípio. Assim, a admissão da discricionariedade no atual estágio do Direito é, sim, uma forma de positivismo, na esteira do denunciado por Dworkin no seu debate com Hart. Relativismo e convencionalismo são formas de pragmiti(ci)smo, todas ligadas, de algum modo, ao nominalismo filosófico, denúncia, aliás, já feita por Michel Villey, em sua obra Formação do Pensamento Jurídico Moderno. Numa palavra: a afirmação kelseniana apenas reflete algo que eu já vinha afirmando há tempos, antes de ter contato com essa específica obra do mestre de Viena. Ora, o pessimismo moral, a discricionariedade da moldura da norma e o fatalismo sistêmico (que chega a considerar como direito mesmo normas criadas fora da moldura, desde que definitivas no sistema, v.g., uma sentença acobertada pela coisa julgada) já colocavam a teoria kelseniana dentro do relativismo. A novidade da afirmação reside, talvez, no fato de ser sacramentado por Kelsen, dizendo que uma característica comum a todo positivismo é, exatamente, o relativismo. E essa característica persegue o positivismo desde Hobbes, na linha defendida por Villey. A discrionariedade no positivismo normativista de Kelsen reside no fato de que o órgão aplicador poderia escolher por qualquer possibilidade de significado presente na moldura normativa, ou por algo absolutamente diverso, que senão reformado tornar-se-ia direito novo. Neste aspecto, aproxima-se do Realismo Jurídico ou Positivismo Fático no qual o Direito seria aquilo que os tribunais dizem que é. Nesse sentido, aliás, caminha Oliver Jouanjan, que sustenta que não se encontra em Kelsen uma metodologia acerca de como seria formada a moldura normativa tampouco o modus operandi do arbítrio. Isto é, ao final, recai tão somente na vontade do intérprete tanto as significações normativas possíveis quando a definição da norma. Citando Michel Troper, conclui que a interpretação em Kelsen transforma-se em um realismo jurídico radical. “Em resumo, a partir do momento em que esta autoridade escolhe o texto, ao olhar dos fatos que ele qualifica livremente, e insere ela própria neste texto a norma que ela haverá criado livremente, quase não há mais espaço para a ideia de uma aplicação de normas, se este termo deve ter um sentido. A interpretação torna-se uma operação puramente volitiva desde o instante em que se mostra impossível fixar o momento cognitivo. A motivação da decisão de ‘aplicação’ pode ter como único objetivo mascarar o processo real de decisão: um remendo a posteriori. O ‘normativismo’ Kelseniano abre em realidade a porta para um puro ‘decisionismo’”.195 E, na mesma linha: “Ahora bien, hemos visto Kelsen atacar esta tesis de Gray, cuando su propia teoria de la interpretación, presentada en un apéndice de la Teoría Pura, en su segunda edición, debería conducir a conclusiones análogas a de los realistas. (...) Pero, en realidad, la tesis realista no implica en absoluto la idea de una substutición de una norma por otra. Se basa, al contrario, en la proposición según la cual no existe un significado verdadero de la ley, distinto del determinado por la interpretación auténtica. Por lo tanto, no pode haber ninguna contradición entre la ley y la interpretación del juiz. Es significado de la ley y la interpretación del juez. El significado de la ley o, en otros términos, la norma legislativa, es determinada por el juez”.196 Esses pontos são fundamentais para podermos compreender o positivismo que se desenvolveu no século XX e o modo como encaminho minhas críticas nessa área da teoria do direito. Sendo mais claro: falo desse positivismo normativista, não de um exegetismo que, como pôde ser demonstrado, já havia dado sinais de exaustão no início do século passado. Numa palavra: Kelsen já havia superado o positivismo exegético, mas abandonou o principal problema do direito – a interpretação concreta, no nível da “aplicação”. E nisso reside a “maldição” de sua tese. Não foi bem entendido, quando ainda hoje se pensa que, para ele, o juiz deve fazer uma interpretação “pura da lei”...! Têm-se, assim, dois entendimentos equivocados acerca da obra de Kelsen: de um lado, aqueles que acreditam que ele, Kelsen, pregava a “pureza hermenêutica” da lei; de outro, aqueles, sustentados no oitavo capítulo da TPD, descobriram que a interpretação “é um ato de vontade”. Nenhum dos grupos tem razão. Em resumo, nas diversas tentativas de superaçãodo positivismo primitivo (nas suas variadas tradições “nacionais”), construíram-se teses voluntaristas-axiologistas, passando da “razão” para a “vontade”. É possível dizer que cada um dos “positivismos nacionais” teve sua antítese: o movimento do direito livre, na França, o realismo norte-americano e escandinavo, no direito do common law, e a Jurisprudência dos Interesses, na Alemanha. Aliás, com Losano é possível afirmar que o chamado movimento do direito livre se encontra na raiz de todas essas posturas teóricas que tinham como pano de fundo a libertação do julgador das rígidas estruturas formais que o conceitualismo do século XVIII havia legado à moderna e agitada sociedade do século XIX. Assim, já no final dos novecentos aparece na França a obra de François Gény sobre a interpretação (1889), que marcará o início desse movimento pretensamente “libertário”. Muitos dos postulados de Gény estarão presentes de forma aproximada tanto nas posturas dos realistas estadunidenses (tais quais: Cardozo e Holmes) e também na Alemanha e na Áustria. Esse caráter “internacional” desses postulados teóricos é que levará a nomeá-los como “movimento”197. Na Alemanha, onde os estudos sobre o direito livre foram mais vigorosos, destaca-se a figura de Hermman Kantorowicz que, inspirado no segundo Ihering – o Ihering da “finalidade do direito”, vale dizer –, publica em 1905, sob o pseudônimo Gnaeus Flavius, o famigerado panfleto intitulado Der Kampf um die Rechtswissenschaft (A luta pela Ciência do Direito) que pretendia unificar, em um único movimento, as posições teóricas que sublinhavam a função criativa, e não apenas declarativa do juiz. Gustav Radbruch, que à época também perfilava as fileiras do movimento do direito livre, afirma que a opção pelo pseudônimo deu ao panfleto do jovem Kantorowicz grande notoriedade, na medida em que passava a impressão de ser um escrito de um escritor maduro e experimentado, tendo influenciado juristas como Bülow, Unger e Klein. Todos eles, de alguma forma, reivindicavam um papel protagonista da magistratura na aplicação do direito198. Também em 1905, e também na Alemanha, haverá um desligamento de alguns importantes autores do movimento do direito livre. O principal articulista dessa secessão será Philipp Heck, inaugurando a chamada jurisprudência dos interesses (Interessenjurisprudenz). Nessa nova roupagem, os postulados do direito livre apareceram mais contidos, principalmente no que tange à polêmica da interpretação contra legem (admitida pela versão mais radical do direito livre). A jurisprudência dos interesses continuará a pregar a crítica à “falácia conceitual” que o direito livre identificava na jurisprudência dos conceitos. Essa crítica advogava a tese de que o excessivo conceitualismo levava o juiz para um terreno abstrato, muito distante das tensões sociais que, naquele tempo, se mostravam cada vez mais agudas (são os anos que gestaram as condições para a eclosão da 1ª Guerra Mundial). O mote principal da jurisprudência dos interesses encontra-se circunscrito na premissa de que a norma jurídica tem por finalidade resolver conflitos de interesses. Esses interesses em conflito condicionam tanto o ambiente legislativo quanto o jurisdicional. Na tarefa interpretativa, cabe ao juiz recompor os interesses em conflito que estavam presentes na gestação da lei e, nos casos de lacuna, proceder ao seu preenchimento a partir de uma ponderação (Abwägung) dos interesses que estão em situação de tensão no caso que lhe é apresentado. Portanto, pelo menos duas são as diferenças entre a jurisprudência dos interesses e o movimento do direito livre: 1) por um lado, a jurisprudência dos interesses não admite decisões contra legem, pregando a vinculação do juiz à lei quando as situações da vida que são levadas à sua jurisdição encontrem previsão legislativa; 2) por outro, a jurisprudência do interesses desenvolve um método que procura guiar a atividade criativa do intérprete/juiz: a ponderação (Abwägung) dos interesses em conflito. Bem antes de Alexy, registre-se. Após a segunda guerra mundial, surge a Jurisprudência dos Valores, tentativa voluntarista de encontrar/descobrir, para além do direito escrito, os valores da sociedade. Essa tese – que tem um delicado contexto histórico na sua origem – teve profícuo desenvolvimento no Tribunal Constitucional da Alemanha. Da confluência axiologista da Jurisprudência dos Interesses – especialmente a partir de Philipe Heck (que, aliás, inventou a expressão “Abwägung” – ponderação) – e da Jurisprudência dos Valores exsurge a Teoria da Argumentação Jurídica, de Robert Alexy, que busca, com sua tese, racionalizar a Wertungsjurisprudenz, tida como irracional. Interessante notar como o imaginário que suportava as teses do direito livre a da jurisprudência dos interesses aparece, difusamente, ainda hoje no âmbito do pensamento jurídico brasileiro. Veja-se, por exemplo, a concepção amplamente difundida que afirma serem os princípios constitucionais a consagração de valores éticos e morais que o desenvolvimento social legou ao Direito. Nessa toada, afirmam, equivocadamente, que o juiz não pode mais ficar inerte e simplesmente “reproduzir” (sic) o discurso legislativo, e que ele deve valorar as circunstâncias do caso de modo a encontrar a “melhor solução” com base na ponderação dos princípios colidentes. Essa menção a valores – cujo ranço neokantiano parece evidente – já aparecia nos movimentos antissistemáticos do início do século XX como fica claro nessa passagem de Losano: “É efetivamente a alma da filosofia neokantiana que plasma suas ideias, como específica Radbruch em 1905: o problema da influência dos juízos de valor sobre as sentenças pode hoje ser indicado como a questão mais candente da filosofia do direito”.199 Esse terreno também é fértil para o surgimento, nos anos 90 do século XX, do assim denominado “neoconstitucionalismo”, que, embora tenha proprocionado alguns avanços, deu azo, no Brasil, ao pamprincipiologismo.200 Destarte, passados um quarto de século da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse “neoconstitucionalismo” acabaram por provocar condições patológicas que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da constituição. Ora, sob a bandeira “neoconstitucionalista” defende-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado pela ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, tais quais: neoprocessualismo (sic) e neopositivismo (sic). Tudo por que, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores” que definem o direito justo (vide, nesse sentido, as posturas decorrentes do instrumentalismo processual). Desse modo, fica claro que o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação parcial – no plano teórico-interpretativo – do paleo-juspositivismo (Ferrajoli) na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da escola do direito livre, da jurisprudência dos interesses e, daquilo que é a versão mais contemporânea desta última: da jurisprudência dos valores. Portanto, é possível dizer que, nos termos em que oneoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara contradição, isto é, se ele expressa um movimento teórico para lidar com um direito “novo” (poder-se-ia dizer, um direito “pós-Auschwitz” ou “pós- bélico” como quer Mário Losano201), fica sem sentido depositar todas as esperanças de realização desse direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalência, no campo jurídico, do paradigma epistemológico da filosofia da consciência).202 5.3.1. Sobre (alguns) mal-entendidos acerca do positivismo Todavia, acredito ainda ser necessário estabelecer o “lugar de fala” quando discorro acerca do Positivismo Jurídico,203 buscando minorar certa algaravia doutrinária sobre o tema e uma série de incompreensões a respeito da crítica por mim formulada. De início é importante destacar que o Juspositivismo é um paradigma complexo e que sofreu várias (re)adaptações desde seu surgimento no séc. XIX até os dias de hoje. Assim, deve-se ter cautela quanto a leituras apressadas e/ou reducionistas que apenas circunscrevem parte do problema. Ademais, por ter sofrido mutações, tem-se uma dificuldade de caracterização por albergar concepções de mundo, até mesmo, diametralmente opostas. Por isso, em muitos espaços o debate ainda continua centrado no dualismo juspostivismo/jusnaturalismo. Não obstante, é possível observar que o Juspostivismo (em suas mais variadas faces) se fundou na relação moderna sujeito-objeto, alternando entre objetivismo e subjetivismo, razão teórica e razão prática, e em cosmovisões filosóficas anacrônicas que mantém a discricionariedade, tornando este paradigma inadequado para esta quadra da história, sobretudo diante das exigências da democracia. A grande questão, porém, é que muitos teóricos ao discorrer sobre o tema passam ao largo da questão da interpretação. Ficam aquém do hermeneutic turn. No positivismo jurídico clássico, exegético ou legalista, acredita(va-se) que o mundo podia (pode) ser abarcado pela linguagem e que a regra – no plano do direito – abarca(va) essa “suficiência do mundo”, isto é, a parte do mundo que deposita(va) na regra as universalidades conceituais que pretendem esgotar a descrição da realidade. Assim, é positivista quem ainda defende que a norma e texto coincidem, ou que são a mesma coisa; que o sentido está nas coisas (realismo filosófico), o mito do dado; que a lei teria um sentido em si. Desta forma, a norma já estaria pronta para o uso por intermédio da subsunção e dos raciocínios silogísticos no predomínio de uma razão teórica asfixiante. A enunciação da lei é descolada da faticidade, tornando uma razão autônoma atemporal (por isso digo que positivismo é cronofóbico e factumfóbico). Neste contexto, estamos diante de uma discricionariedade legislativa, o direito já possui as respostas antes do surgimento das perguntas, assim, a jurisdição seria a emanação de uma vontade (mens legis ou mens legislatoris) que se impõe independentemente de uma inserção em um contexto compartilhado de significâncias. Em outro momento, no positivismo normativista, descobertas as insuficiências do exegetismo, passou-se a chamar à colação a subjetividade do intérprete, que, de forma solipsista (lembremos, sempre, do problema da dicotomia “vontade-razão” e o “produto” da superação do segundo pela primeira), levanta o véu que “encobre” a resposta que a regra não pôde dar. Trata-se de uma visão simplista do direito, pela qual, do “aprisionamento” dos fatos na “racionalidade da lei”, salta-se para o triunfo da vontade sobre essa razão plenipotenciária. Destarte, é também positivista quem defende que a norma e texto estão absolutamente descolados, que diante da plurivocidade dos signos linguísticos o sentido estaria na subjetividade do intérprete; que a partir da vontade o sujeito solopista teria livre espaço para dizer o direito e buscar o justo, mesmo que contra legem, no predomínio de uma razão pragmaticista incontrolável. O direito seria aquilo que os juízes dizem que é. Ou seja, se no exegetismo lato sensu as respostas antes das perguntas estavam na norma geral,204 no positivismo normativista e variantes axiologistas as respostas estão já de antemão na vontade do inter- prete. Nestes termos, a discricionariedade muda de polo, agora está no sujeito que assujeita as coisas e se assenhora dos sentidos. A jurisdição seria o resultado de uma volição que estaria para além da mundanidade, seria a representação da subjetividade que existe por si só, independentemente da historicidade. Há algumas décadas observa-se uma tentativa de aprimoramento do positivismo normativista por algo que pode ser denominado como positivismo axiológico, e aqui se insere parcela considerável dos neoconstitucionalistas ou pós-positivistas. Partindo da cisão entre casos fáceis e casos difíceis, misturam exegetismo com um normativismo kelseniano ou (pseudo)racionalizado pelo método, que em muitas vezes apenas encobre/justifica decisões solipsistas. Os easy cases seriam resolvidos por intermédio da subsunção, e os hard cases abririam espaço para o papel criativo do juiz em decidir a partir de princípios ou valores imanentes à lei, ou provenientes do ideal de justiça ou da própria sociedade, utilizando-se da ponderação e/ou a argumentação jurídica. Diante da insuficiência de uma razão teórica a razão prática surge como um corretivo moral ao direito. A discricionariedade, aqui, opera em ambos os lados, é legislativa na manutenção do método subsuntivo, e é jurisdicional diante da falibilidade das posturas racionalizantes da vontade e pelo caráter retórico, em geral, primeiro decide e depois a argumentação ou ponderação servem como meros álibis interpretativos. O que não é compreendido pela expressiva maioria da comunidade jurídica é que o Juspositivimo é um paradigma embasado na relação sujeito/objeto e imerso no objetivismo filosófico e/ou na filosofia da consciência, mas precisamente na vontade de poder de Nietzsche. Do exposto, pode-se concluir que: a) apegar-se à letra da lei pode ser uma atitude positivista... ou pode não ser, depende do modo como entendemos a linguagem; b) do mesmo modo, não apegar-se à letra da lei pode caracterizar uma atitude positivista ou antipositivista (ou, se quisermos, pós-positivista ou não positivista); c) por vezes, “trabalhar” com princípios (e aqui vai, mais uma vez, meu libelo contra o pamprincipiologismo que tomou conta do “campo” jurídico de terrae brasilis) pode representar uma atitude (deveras) positivista; d) utilizar os princípios para contornar a Constituição ou ignorar dispositivos legais – sem lançar mão da jurisdição constitucional (difusa ou concentrada) ou de uma interpretação que guarde fidelidade à Constituição – é uma forma de prestigiar tanto a irracionalidade constante no oitavo capítulo da TPD de Kelsen, quanto homenagear, tardiamente, o positivismo discricionário de Herbert Hart (e de seus sucedâneos mais radicais, como os “neoconstitucionalismos”). Não é desse modo, pois, que escapa(re)mos do Juspositivismo. Não é mais possível continuar com a dicotomia “juiz boca da lei” versus “juiz dos princípios” ou verberar “axiomas” como “não é mais possível defender a letra da lei” e que “aqueles que invocam a literalidade da Constituição ou da lei lato sensu buscam repristinar o positivismo exegético”. A explicação acima busca exatamente esclarecer esses dilemas. Nessalinha, é importante esclarecer que quando trato de “literalidade normativa”, não o faço sob aportes exegéticos ou objetivistas. Atenção: a literalidade é muito mais uma questão da compreensão e da inserção do intérprete no mundo, do que uma característica, por assim dizer, “natural” dos textos jurídicos. Como diz Dworkin, o direito é uma questão interpretativa. A realidade é interpretativa. E o direito é “alográfico”, como sustentam Grau e Müller. Aqui, no meio dessa discussão, está a viragem ontológico-linguística, queiramos ou não. Não há mais textos com sentidos em si e tampouco interpretações niilistas (grau zero). Além disso, não há textos sem contextos. O texto não (r)existe na sua “textitude”. Ele só “é” na sua norma. Mas essa norma tem limites. Muitos. E, por quê? Pela simples razão de que não se pode atribuir qualquer norma a um texto ou, o que já se transformou em bordão que inventei há algum tempo, “não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”. Para explicitar melhor: a partir da hermenêutica (CHD), é possível perceber que – quando se defende limites semânticos ou algo do gênero – não se está a afirmar uma volta ao exegetismo literalista... O sentido se dá em um a priori compartilhado. Esse processo não é arbitrário (e tampouco refém do “mito do dado”). E, ao mesmo tempo, não representa um processo de representação de um objeto (nem é a sua “fotografia”...). A questão se coloca a partir de um acontecer, que transcende o “sujeito” e o atira no mundo. Daí que, diante dos extremos positivistas de um lado, literalidade, de outro, discricionariedade ou livre convencimento, estamos situados no meio, ou seja, no sentido que se constitui no ser humano enquanto ser-no-mundo. Deste modo, entendo ser possível, de fato, uma ruptura paradigmática com o positivismo jurídico. 5.3.2. Voluntas legis versus voluntas legislatoris: uma discussão ultrapassada Muito se tem discutido acerca das teses da voluntas legis versus voluntas legislatoris. Têm-se perguntado os juristas de todos os escalões: afinal, o que vale mais: a vontade da lei ou a vontade do legislador? Tem importância saber/descobrir o que é que o “legislador” quis dizer ao elaborar o texto normativo? Qual era a sua intenção? É possível descobrir “a vontade da lei”? Pode uma norma querer alguma coisa? É possível descobrir o “espírito” de uma lei? Muito embora existirem, como veremos, defensores de ambos os lados, na grande maioria das vezes a adesão a uma corrente ou a outra é feita de maneira ad hoc, ocorrendo, frequentemente, uma imbricação entre ambas. Observe-se que, de certo modo, o conteúdo do art. 111 do Código Tributário Nacional (re)ascende a controvérsia acima, além de, por consequência, dar azo ao velho debate entre objetivistas e subjetivistas. Conforme o aludido dispositivo legal, “Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – outorga de isenção; III – dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias”. Afinal, o que é interpretar um texto na sua literalidade? Tércio Ferraz Jr.205 critica o dispositivo, dizendo que “o método literal, gramatical ou lógico-gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir do texto. Tem por objetivo compatibilizar a letra com o espírito da lei. Depende, por isso mesmo, das próprias concepções linguísticas acerca da adequação entre pensamento e linguagem”. Já Paulo de Barros Carvalho206 assevera que “o desprestígio da chamada interpretação literal, como critério isolado da exegese, é algo que dispensa meditações mais sérias, bastando arguir que, prevalecendo como método interpretativo do Direito, seríamos forçados a admitir que os meramente alfabetizados, quem sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia, estariam credenciados a descobrir as substâncias das ordens legisladas, explicitando as proporções do significado da lei. O reconhecimento de tal possibilidade roubaria à Ciência do Direito todo o teor de suas conquistas, relegando o ensino universitário, ministrado nas faculdades, a um esforço inútil, sem expressão e sentido prático de existência”. De todo modo, é importante lembrar que essa discussão acerca da “literalidade” tem relação com o velho debate entre “lei” e “direito”, “texto” e “norma” (na contemporaneidade). Na verdade, os juristas em geral costumam se apegar à literalidade quando esta lhes é “útil”. Logo, a discussão é meramente retórica. Ora, é irrelevante discutirmos a “literalidade”, até porque esbarraríamos na seguinte questão: devemos sempre buscar o conteúdo “literal”? Ou somente quando nos interessa? E o que é isto – a literalidade? O que é isto – o texto jurídico? Em face da vagueza e da ambiguidade que cerca a linguagem, de que modo é possível sustentar o discurso jurídico numa pretensa literalidade? Somente poderemos discutir “literalidades” se estivermos conscientes da situação hermenêutica que ocupamos: o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito. E nos lembrarmos que a discussão sintático-semântica ficou para trás. Para a hermenêutica de cariz filosófico é irrelevante discutir simplesmente “textos”, pela simples razão de que, como já bem lembrava Gadamer, “textos são eventos” ou, como diz Stein, “textos são fatos”. Não há “conceitos” sem “coisas”! 5.3.2.1. Subjetivismo e objetivismo e o problema dos paradigmas filosóficos De início, é importante anotar que a questão que se coloca a partir da discussão entre objetivistas e subjetivistas pode ter um enquadramento diverso no âmbito da Teoria do Direito. Isso se dá pelo fato de que os recortes teóricos e as diversas intencionalidades que movem os autores podem levar a formas distintas de apresentação da questão. No caso específico das questões hermenêuticas, o problema objetivismo v.s. subjetivismo está ligado intimamente aos paradigmas filosóficos da filosofia clássica (ou realismo filosófico) e da filosofia da consciência. Esses paradigmas atuam de forma subterrânea e acabam por condicionar a interpretação oficial do direito professada em uma determinada época por um determinado grupo de teóricos. Entretanto, vai aqui uma advertência: quando me refiro ao objetivismo na interpretação ou ao subjetivismo interpretativo, não estabeleço relações intertemporais com a clássica dicotomia objetivismo-subjetivismo representado pelo debate que se estabeleceu a partir do século XIX acerca da vontade da lei versus vontade do legislador. Antes de analisarmos mais amiúde essa questão do modo como a hermenêutica a enfrenta, é importante fazermos uma referência aqui à clássica construção do problema oferecida por Tércio Sampaio Ferraz Jr. 5.3.2.1.1. Objetivismo e subjetivismo na perspectiva epistêmica de Ferraz Jr. A polêmica “intenção do legislador” versus “vontade da lei” também suscita debates no âmbito da operacionalidade do Direito. Ferraz Jr. foi muito feliz ao resumir a polêmica na dicotomia “subjetivistas versus objetivistas”. Assim, embora as duas correntes não possam ser distinguidas com grande nitidez, didaticamente podem ser separadas, conforme o reconhecimento da vontade do legislador (doutrina subjetivista) ou da vontade da lei (doutrina objetivista) como sede do sentido das normas. A primeira insiste em que, sendo a ciência jurídica um saber dogmático (a noção de dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado de vontade do emissor de norma lhe é fundamental) é, basicamente, uma compreensão do pensamento do legislador; portanto, interpretaçãoex tunc (desde então), ressaltando-se, em consonância, o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas que lhe são apropriadas (método histórico). Para a segunda (objetivista), a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (o dogma é um arbítrio social), independente até certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde agora), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas à sua captação.207 Traços fortes de voluntarismo estão presentes nas teses subjetivistas, renovado no século XX pelas concepções que substituem o voluntarismo do legislador pelo voluntarismo do juiz, o que se pode ver na “livre investigação científica” proposta por Gény, pelo “direito livre” de Kantorowicz e pela Teoria Pura do Direito, de Kelsen. Veja-se, aqui, o eterno retorno à história do positivismo jurídico e as tentativas de sua superação, temática à qual me referi anteriormente. Bonavides,208 nesse sentido, alerta para o fato de que os subjetivistas, aparentemente exaltando a função judicial, em verdade debilitam as estruturas clássicas do Estado de Direito, assentadas numa valoração dogmática da lei, expressão prestigiosa e objetiva da racionalidade. Não é à toa, diz o mestre, que o subjetivismo faz parte da concepção professada na Alemanha pelo nacional-socialismo, no qual algumas teses fundamentais dos juristas da escola do direito livre alcançaram, à sombra desse movimento político, uma acolhida extremamente favorável. Já o objetivismo na interpretação da lei e da Constituição tem-se constituído na posição predileta dos positivistas formais. No campo do Direito Público, Bonavides209 aponta para o fato de que, nomeadamente no Direito Constitucional moderno, os objetivistas formam já uma corrente respeitável de intérpretes, talvez a que mais pese entre os constitucionalistas: “na Europa inclinam-se pela aplicação do método objetivista constitucionalistas do porte de Mauz, Duerig, Forsthoff, Hans J. Wolff e von Turegg”. É claro que – e isso deve ser dito para que não se confunda posições distantes no tempo - que esse objetivismo detectado nos referidos constitucionalistas não é similar ao objetivismo professado no século XIX, do tipo “da palavra que se fez vontade”. Esse objetivismo não é uma definição exegética e tampouco representa uma filiação destes a um objetivismo filosófico (veja-se, de novo, a importância de desindexarmos a polêmica do século XIX da contemporânea discussão acerca da importância dos textos constitucionais, cujos limites semânticos têm uma importância ímpar, mas que não se confundem com a velha exegese). A dicotomia proposta por Tércio, entretanto, aponta para um modelo de análise que se fixa em um âmbito puramente epistemológico, com ênfase na relação sujeito-objeto. Nesse caso, a aplicação do direito ora é um problema a ser solucionado a partir da descoberta da vontade do legislador (sujeito); ora deixa-se para trás o problema do sujeito criador e fixação do problema se dá em torno do sentido finalístico presente na lei (objeto). Daí que a construção do mestre paulista fale em subjetivismo quando o enfoque que se dá é para a atividade do criador da lei e em objetivismo, quando a ênfase recai sobre a aplicação da lei às situações fáticas. Entretanto, sem embargo da utilidade didática da tese de Ferraz Jr., é possível afirmar que, hermeneuticamente, o problema aqui está ligado aos paradigmas filosóficos que comandam a interpretação. 5.3.2.1.2. O que são paradigmas filosóficos? De que modo eles condicionam a interpretação? As posições teóricas que assumimos refletem, muitas vezes, apenas a superfície de um processo compreensivo muito mais complexo. Na verdade, em inúmeros casos, elas acabam por espelhar um conjunto de elementos que conformam o modo de se organizar o pensamento e de determinação do processo de conhecimento que rege uma determinada época. Esse dimensão profunda, organizadora de nossa racionalidade, não pode ser acessada através dos instrumentos teóricos desenvolvidos por uma ciência qualquer. Essa dimensão é filosófica. Para termos acesso a ela, necessitamos nos envolver em um processo catártico, de des-construção da história da filosofia. Um processo no qual, desde Heidegger, nós mesmos estamos envolvidos em face de nossa facticidade. Assim, no caso do direito, por exemplo, é muito comum encontrarmos teorias que apresentam determinados postulados epistemológicos que, se olhados mais de perto, representam apenas a consequência da projeção desse modo de organização – filosófica – do pensamento predominante no interior daquele tempo histórico. Esse fator ordenador, que condiciona o enquadramento do conhecimento em uma determinada época, nós chamamos, com Ernildo Stein, de paradigmas filosóficos. Na formulação do Filósofo gaúcho, esses paradigmas filosóficos funcionam como “princípios organizadores” que exercem uma função no conhecimento científico. Para ele, esse elemento organizador “pode ser considerado como um vetor da racionalidade científica, isto é, como um princípio com o qual se pode examinar aquilo que é implicitamente carregado pelo discurso científico”.210 Nesse sentido, a noção de paradigma filosófico funciona como um transcendental não clássico, ou seja, não ligado às amarras da subjetividade. Exerce ele uma função de fundamentação, no sentido de ser um elemento organizador, estruturante e abrangente.211 Essa investigação, por exemplo, funciona a partir do paradigma da fenomenologia hermenêutica e da hermenêutica filosófica. A partir desse eixo fundamental, opera-se o trabalho de desconstrução e de reconstrução do pensamento jurídico, mormente aquele ligado ao elemento interpretativo que reveste a experiência jurídica. Nesse processo desconstrutivo/construtivo é possível observar a ocorrência de posturas científicas/interpretativas no direito que professavam outros paradigmas filosóficos. No caso, podemos mencionar dois grandes paradigmas filosóficos: a) o da filosofia clássica, também nomeado como realismo filosófico, em que o fator organizacional de toda a racionalidade gira em torno dos “objetos” ou daquilo que é “dado” ao conhecimento (daí que Sellars e seus seguidores passarão a nomear uma tal postura como “mito do dado”212). Nesse aspecto, o tipo de atividade interpretativa que terá lugar no contexto desse paradigma será objetivista, porque presa ao objeto conhecido, ou, ainda, objeto cognoscível; b) o da filosofia da consciência, que coloca como fator de organização, que se antecipa em todo processo de conhecimento, a subjetividade que conhece as coisas. Nesse âmbito, o conhecimento não é “dado”. Aqui, o conhecimento é “construído” por um sujeito que emprega um método específico de análise e passa a estabelecer os sentidos. Daí que, nesse contexto, teremos um tipo de interpretação que podemos nomear como subjetivista. Em resumo: tendo em conta os paradigmas filosóficos que dirigem a interpretação, é possível dizer que objetivista é a postura hermenêutico-interpretativa que organiza o seu processo de determinação do sentido a partir de um aprisionamento do sujeito que conhece ao objeto que é conhecido; ao passo que subjetivista é a postura hermenêutico-interpretativa que espelha o paradigma da filosofia da consciência, no interior do qual o intérprete é o dono dos sentidos. Nesses termos,como o fator determinante da interpretação do direito acaba por ser a Lei, objetivistas são as posturas que entendem a lei como um dado jurídico pronto e acabado tendo o intérprete a tarefa de simples revelação do sentido, nela alocado por alguma autoridade externa a ele, intérprete, que pode ser a vontade divina, o sentido cosmológico das coisas ou, simplesmente, a ação de um legislador Racional. Já as posturas subjetivistas são aquelas que desprendem o intérprete desse invólucro legal e o apresenta como um verdadeiro criador de sentidos. Nesse caso, o sentido originário da lei e a autoridade de quem a emite cede lugar para a sensibilidade do intérprete que deverá interpretá-la segundo, por exemplo, as finalidades para as quais ela fora criada; os interesses sociais que levaram à sua edição dentre outras coisas. Haverá, inclusive os mais extremados que defenderão que a interpretação é um ato de vontade livre daquele que a profere, sendo o direito o resultado de suas ações interpretativas. Em todo caso, é possível afirmar que posturas hermenêutico-interpretativas professadas pela escola da exegese, da Jurisprudência dos Conceitos, da Jurisprudência Analítica, são – do ponto de vista do paradigma filosófico que as guia – objetivistas; ao passo que o movimento do direito livre, o realismo jurídico e a jurisprudência dos interesses representam posturas subjetivistas. 5.3.2.2. O dilema Objetivismo v.s. Subjetivismo no âmbito (hermenêutico) da aplicação do direito: o problema dos “cruzamentos fundacionais” A aplicação do direito, como venho afirmando há tempos, está assentada num tipo muito curioso de sincretismo que podemos nomear aqui por “cruzamentos fundacionais”. Valeu dizer, no direito o paradigma objetivista, da filosofia clássica, encontra-se por vezes associado ao paradigma subjetivista, da filosofia da consciência. Na verdade, levando a questão às últimas consequências, o problema retratado acaba por desaguar na própria relação entre direito e política. Posturas aplicativas e/ou metodológicas como a escola da exegese e a jurisprudência dos conceitos – e, nalgum sentido, a jurisprudência analítica – são expressões de uma movimentação filosófica que se encontra situada no interior do paradigma da filosofia da consciência, mas, ao mesmo tempo, produzem um modelo de aplicação do direito que retira a possibilidade de participação da subjetividade do julgador no momento da formação normativa. Professa-se uma espécie de “mito do dado”: os sentidos das normas jurídicas já estão postos pelo legislador; é um dado que não pode sofrer modelação por parte do intérprete/julgador. Onde estaria, então, a subjetividade de que tanto falamos? Onde estaria a consciência que poderia colocar ordem de sistema - logicamente rigorosa - no caos normativo da lei humana? Ora, a subjetividade está espelhada na ação do legislador, seja ele um corpo legislativo determinado (um parlamento); seja ele a expressão da sabedoria de especialistas/professores que constroem a lei a partir das descobertas da ciência jurídica. A filosofia da consciência (ou, por vezes, em uma vulgata desta, o simples voluntarismo judicial) se manifesta aqui como um tipo de vontade política que limita a ação do julgador. Trata-se de uma vontade de sistema que se manifesta de forma mais esplendorosa na experiência da codificação. Como afirma Losano, a partir do caráter indiscutivelmente racional (portanto, expressão de uma consciência; a consciência legislativa) que revestia a obra do legislador ou dos professores, o que poderia o intérprete – seja a doutrina seja a jurisprudência – fazer além de espelhar – ou revelar – aquela ordem racional já posta pela vontade do legislador. Daí que, no momento da aplicação, o mito do dado é o que prevalece. Todavia, no momento da formação do direito, da efetiva planificação legislativa da sociedade, dá-se a manifestação da subjetividade do legislador: sua obra é fruto de uma construção – arbitrariamente – racional. Ora, não existe mais Deus ou a Cosmologia para afiançar o conteúdo do direito humano concreto. O que sobra, então? Sobra a Razão – com “R”– o principal fundamento da filosofia da consciência. Quando a razão legislativa não consegue mais segurar em si todos os sentidos, a vontade – o elemento determinante da filosofia da consciência; a manifestação mais decisiva da subjetividade – salta do nível político para o nível judicial. Não é a toa que Kelsen chama o âmbito das práticas jurídicas de política jurídica e diz que ali se pratica a interpretação como um ato de vontade: trata-se da consagração disso que aqui estou a me referir: a filosofia da consciência sempre está presente nos fundamentos do positivismo jurídico e da experiência do direito moderno. Em um primeiro momento, ela se manifesta na vontade do legislador que, no momento de sua aplicação judicial, é articulada a partir do mito do dado, da ideia objetivista de que a lei carrega consigo todos os seus sentidos; no momento seguinte (do direito livre, da jurisprudência dos interesses e do realismo jurídico) o que se tem é uma fragmentação completa das estratégias objetivistas para uma afirmação cabal de que a vontade – que caracteriza a ação política – é também um atributo do Poder Judiciário que possui como dever a tarefa de afirmar – e não revelar – a vontade da lei que, ao fim e ao cabo, se converte em vontade do juízo que afirma o sentido da lei. Podemos analisar essa mesma questão a partir de um problema mais propriamente aplicativo do direito, associado ao dogma da subsunção. No contexto de predomínio objetivista – que, nos termos de Ferraz Jr. chamaríamos de subjetivistas, se atentássemos para o papel do legislador no processo de afirmação concreta do direito – a subsunção é a forma privilegiada de se retratar o modo como o direito deveria ser aplicado. Os movimentos críticos, que instalaram os primeiros passos do subjetivismo hermenêutico – objetivismo, se quisermos olhar pela lente da predominância do fato social no momento da determinação normativa – começam a apontar para uma necessária ultrapassagem do dogma da subsunção a partir da criação de outras formas de representação da aplicação do direito. Falando especificamente sobre o dogma da subsunção, é possível dizer que ele opera em dois níveis distintos. Em primeiro lugar, há que se destacar um aspecto político-jurídico, de justificação. Em um segundo momento, existe uma determinação técnico-operacional. a) do ponto de vista político-jurídico, o dogma da subsunção efetua – através de uma série de justificativas que são articuladas a partir de argumentos retirados de um horizonte cultural determinado – uma redução epistemológica do problema do conceito de direito. Concebe-se, nesse sentido, o direito como sendo o conjunto das disposições que compõem as leis de um determinado Estado nacional. O conceito de direito é equiparado, nesse sentido, ao conceito de lei. Como já mencionado, essa equiparação entre direito (jus) e lei (lex) deve-se a uma série de elementos culturais que emergiram em um determinado tempo histórico. A principal consequência política da manifestação desse fenômeno é que ela abre espaço para a exclusão do problema da justiça no campo do direito. Um desses elementos, embora não seja o único, pode ser pensado a partir de alguns argumentos de rousseaunianos que causariam impacto nas concepções desse movimento. De fato, é conhecida a afirmação do genebrino – presente em seu Do Contrato Social – de que a ideia de uma lei injusta seria contraditória uma vez que não seria possível que o povo – que fez a lei – pudesse ser injusto consigomesmo.213 Ou seja, em sendo a lei produto da deliberação da vontade geral; em sendo ela a manifestação da soberania popular – uma vez que, para Rousseau, o povo é que manda, e o governo é que obedece – não poderia haver leis injustas ou mesmo, poderíamos dizer, contrárias ao direito. Logo, a lei seria igual ao direito. Por outro lado, os movimentos de recepção do direito romano preparam as condições para o processo que culminou com a codificação do direito privado. De fato, a autoridade dos estudos universitários acerca da formação dos conceitos jurídicos e sua respectiva aplicação às relações jurídicas de direito privado que surgiam a partir do advento do Estado Liberal contribuíram, significativamente, com a consolidação desse elemento cultural que produziu a equiparação entre lei e direito. b) Desse elemento político decorre logicamente uma consequência técnica: se o conhecimento do universal, da generalidade do direito, já está dado pelo conhecimento da lei, então o trabalho do agente jurídico que exara a decisão judicial será aplicar esse conteúdo universal aos casos concretos apreciados. A técnica inicial de decisão que servirá como mecanismo de aplicação do direito será a conhecida subsunção. Nesse caso, opera-se dedutivamente da premissa maior que é a Lei em direção à premissa menor, o caso. Esse aspecto lógico abstrato – que será apelidado depois de conceitualista – está na base de movimentos culturais como a escola da exegese francesa e a Jurisprudência dos conceitos, alemã. Os grandes códigos civis do século XIX serão operacionalizados (no caso da escola da exegese) e pensados (no caso da Jurisprudência dos conceitos) tendo a decisão judicial como resultado desse procedimento estritamente subsuntivo de acomodação do caso judicial ao suporte fático previsto na legislação. Evidentemente, esse aspecto metodológico da questão gera, por sua vez, consequências políticas que podem, igualmente, ser pensadas a partir do horizonte cultural da época. Em primeiro lugar, acaba por concentrar o monopólio da decisão efetiva no plano da política e não, propriamente, da juridicidade. Quem decide de forma, digamos, soberana, são as instâncias legislativas ou os espaços da erudição universitária. O corpo judiciário – que, nesse mesmo momento, passa a se formar enquanto organização burocrática desprendida do personalismo monárquico – agiria aqui com uma função “farmacêutica” de identificação de uma patologia que inquine a relação jurídica examinada, com a consequente determinação do remédio jurídico adequado, previsto, desde logo, pelos sistemas codificados. Um código unificador de leis claras, por sua vez, permite experimentar a sensação de que o ideal de planificação e planejamento social presente no âmago das doutrinas iluministas poderia ser alcançado. Vale dizer, é uma expectativa própria deste tempo histórico que decisões tomadas no passado possam antecipar consequências futuras. Antecipar, no caso, decisões futuras. Ou seja, há uma expectativa clara no sentido de que, se alguém descumpre alguma regra jurídica, cometa um ato ilícito etc., seja possível prever qual será a decisão que será tomada pelo agente estatal que ficará incumbido de tomar a decisão. Há, também, uma consequência econômica muito clara, uma vez que a previsão antecipada a respeito das decisões que serão tomadas no futuro permitiria aos agentes econômicos planejar melhor suas ações, bem como visualizar a consequência de seus atos. Criar-se-ia, assim, um elevado grau de certeza quanto ao resultado jurídico das relações econômicas. Nesse momento, o mercado é o grande interessado na afirmação da segurança jurídica. Do mesmo modo, podemos destacar, ainda, aspectos sociais importantes. No caso, a planificação jurídica estabelecida pela codificação funcionava como uma garantia de que os interesses burgueses, no caso francês, e que os interesses da aristocracia, no caso germânico, seriam, de alguma forma, preservados. Ainda no século XIX, uma série de tensionamentos culturais começaram a impor algumas mudanças nas configurações conceituais da decisão jurídica. Em alguns casos, a própria pressão política da magistratura – que, já no final do século, começa a se fortalecer ganhando cada vez mais autonomia com a radicalização do Estado de Direito e o desligamento do processo civil do âmbito do direito material – levará a essa “mudança de rota”. Esse dado pode ser visualizado, por exemplo, na obra de Oskar von Bülow que reivindicava maior espaço para a magistratura no processo de formação do direito. Para ele, a verdadeira “recepção do direito romano” não teria ocorrido no seio da universidade, mas, sim, através das decisões tomadas pela magistratura que embalavam o direito vivo, o direito do caso.214 Com efeito, a obra de Bülow pode ser considerada a mais remota manifestação crítica contra o dogma da subsunção; um primeiro, e ainda tímido, ataque ao conceitualismo da pandectística. Por outro lado, no ambiente do direito francês, François Gény escreve, senão a primeira, certamente a mais famosa, crítica metodológica ao modelo de decisão estabelecido pelo exegetismo. Gény atacava exatamente esse aspecto predominantemente lógico-formal que o paradigma do dogma da subsunção carregava consigo. Sua grande intenção, como é sabido, era oferecer uma alternativa metodológica a esse “paradigma dominante” e que incorporasse um tipo de método científico mais adequado para o estudo do direito. No caso, o método adequado teria inspirações sociológicas – em vez de lógico-filosóficas – e teria suas atenções voltadas para o fato jurídico em detrimento do entendimento meramente conceitual. Essa investigação sociológica permitiria demonstrar a existência de determinadas relações sociais que, apesar de necessitarem de uma regração normativa, ficavam fora da zona de cobertura da estrutura codificada do Direito. Haveria, portanto, zonas “livres de direito” no seio da sociedade. Portanto, eis a explicitação dessa controvérsia entre objetivistas e subjetivistas à luz da hermenêutica. Portanto, há que se ter muito cuidado, para que não ocorram mal-entendidos acerca dessa complexa questão. 5.3.2.3. Objetivismo e Subjetivismo – voluntas legis v.s. voluntas legislatoris e o senso comum teórico dos juristas É acertado dizer que as duas correntes estão arraigadas no plano das práticas cotidianas dos operadores jurídicos, podendo ambas – muito embora as suas diferenças – serem encontradas em quantidade considerável de manuais e textos jurídicos. Para identificá-los, basta que se encontrem alusões “ao espírito do legislador”, “à vontade do legislador”, “ao processo de formação da lei”, “o espírito da lei”, para que se esteja diante de um adepto da corrente subjetivista; por outro lado, a invocação da “vontade da norma”, da “intenção da lei”, é indício da presença de um “objetivista”, muito embora essas diferenciações necessitem de uma explicitação mais detalhada a partir da Crítica Hermenêutica do Direito. Entretanto, em não raros casos, é possível encontrar, em um mesmo texto jurídico, a busca concomitante do espírito do legislador e da vontade da norma, como, por exemplo, em Paulo Dourado de Gusmão,215 o qual, embora sustente que a lei se torna independente do pensamento do seu autor a partir do momento em que é publicada, admite que, para descobrir o sentido objetivo da lei, o intérprete procede por etapas, percorrendo o que se convencionou chamar fases ou momentos da interpretação. Nessas etapasou fases, o autor inclui desde a interpretação gramatical ou literal até a interpretação histórica, na qual “muitas vezes nessa interpretação são usados os chamados trabalhos preparatórios, isto é, projetos de lei, debates nas comissões técnicas das assembleias legislativas e no plenário das mesmas, pareceres, emendas e justificações dos mesmos”. Também é possível observar uma imbricação entre a doutrina objetivista e a subjetivista (no sentido hermenêutico da discussão) em Aníbal Bruno,216 que admite tanto alguns critérios da primeira quanto da segunda doutrina. Já Paulo Nader,217 depois de comentar as duas teorias, inclina-se, citando Maximiliano, pela doutrina objetivista, porque o intérprete deve “determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva”. Entretanto, a seguir, ao examinar a interpretação do Direito quanto ao resultado, admite um exame do “passado” legislativo, quando descreve os distintos resultados a que o exegeta pode chegar: interpretação declarativa, necessária porque “nem sempre o legislador bem se utiliza dos vocábulos, ao compor os atos legislativos”; interpretação restritiva, quando o legislador é infeliz ao redigir o ato normativo, dizendo mais do que queria dizer, sendo a missão do exegeta a eliminação da amplitude das palavras; e, finalmente, a interpretação extensiva, que ocorre nas hipóteses contrárias à anterior, ou seja, quando o legislador diz menos do que queria afirmar. Vê-se, pois, que os métodos em questão não prescindem de uma atitude subjetivista, conclui. Veja- se, aqui, a algaravia conceitual que foi sendo produzida ao longo dos anos no plano da dogmática jurídica. De qualquer sorte, a polêmica – seja ou não relevante a sua continuidade em nossos dias – longe está – no plano da dogmática jurídica – de ser resolvida. Nesse sentido, com Ferraz Jr., identificando uma conotação ideológica na raiz da discussão, isto é, levado a um extremo, é possível dizer que o subjetivismo (que, no plano hermenêutico, deve ser entendido como objetivismo) favorece um certo autoritarismo personalista, ao privilegiar a figura do “legislador”, pondo sua “vontade” em relevo. Por exemplo, a exigência, na época do nazismo, de que as normas fossem interpretadas, em ultima ratio, de acordo com a vontade do Führer (era o Führerprinzip) é bastante elucidativa/significativa.218 Por outro lado, continua Ferraz Jr., o objetivismo (que, no plano hermenêutico, pode ser entendido como subjetivismo, porque o sentido depende da subjetividade do intérprete, que irá “definir” o sentido originário do produto do legislador), levado também ao extremo, favorece um certo anarquismo, pois estabelece o predomínio de uma equidade duvidosa dos intérpretes sobre a própria norma ou, pelo menos, desloca a responsabilidade do legislador para os intérpretes, chegando-se a afirmar, como fazem alguns realistas americanos, que direito é “o que decidem os tribunais”. Além disso, acrescenta, não deixa de ser curioso que, nos movimentos revolucionários, o direito anterior à revolução é relativizado e atualizado em função da nova situação, predominando aí a doutrina objetivista, muito embora, quanto ao direito novo, pós- revolucionário, tende-se a privilegiar a vontade do legislador e a fazer prevalecer as soluções legislativas sobre as judiciais que, a todo custo e no máximo possível, devem a elas se conformar. De todo modo, é importante insistir que essa dicotomia não tem (mais) sentido no âmbito da superação dos paradigmas tradicionais da filosofia (metafísica clássica e metafísica moderna ou, se quisermos, os paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência). Colocar o locus do sentido na coisa-objeto (lei) ou no sujeito (intérprete) é sucumbir à ultrapassada dicotomia sujeito-objeto. Ora, dizer que o sentido está na lei ou sustentar que aquilo que o legislador quis dizer é mais importante do que aquilo que “ele disse”, não resiste a uma discussão filosófica mais aprofundada. Do mesmo modo, não passa de uma vulgata da filosofia da consciência dizer que é o intérprete quem estabelece o sentido segundo sua subjetividade. O que pode ser relevante é, exatamente, desmontar as estruturas das posturas que sustentam os voluntarismos interpretativos. É nesse sentido que ocorre um salto na discussão acerca do sentido de um texto jurídico. Na era do Constitucionalismo Contemporâneo, sustentar a importância dos limites semânticos da Constituição e, em consequência, aferir a validade das leis em conformidade com a Constituição constitui, sim, um efetivo avanço no plano hermenêutico. Não se trata, por óbvio, de um retorno a qualquer postura exegetista operante no passado. Defender, hoje, os limites semânticos da Constituição – naquilo que entendemos por “limites” no plano hermenêutico, é claro – não quer dizer “objetivismo” (nem no sentido do positivismo “clássico”, nem no sentido filosófico do termo). Se o Direito tem um sentido interpretativo, um texto jurídico (lei, Constituição) não possui um sentido meramente analítico. Um texto só é na sua norma, para reproduzir a clássica assertiva de Müller e ratificar minha adaptação da diferença ontológica entre texto e norma. Por isso, não há sentidos em si. Consequentemente, não há conceitos sem coisas. E não há respostas antes das perguntas. Não há “normas gerais” que contenham os sentidos de forma antecipada. Estes somente acontecem de forma aplicativa. Daí a noção de applicatio. Por ela, ficam superadas quaisquer dicotomias entre objetivismos e subjetivimos, seja no plano “clássico” entre vontade da lei e vontade do legislador, seja no plano filosófico. 5.3.3. As lacunas (hermenêuticas) do Direito Outra questão (sempre) presente nos debates acerca do processo hermenêutico no campo jurídico diz respeito à integração e ao preenchimento das lacunas do Direito. Embora colocados como diferentes, são espécies do mesmo gênero, subsumindo-se na amplitude do senso comum teórico dos juristas, em que se insere a discussão das diferentes maneiras admitidas/permitidas para o processo argumentativo e hermenêutico do Direito. Com efeito, o sistema jurídico brasileiro coloca-se como formalmente cerrado, é dizer, a combinação dos artigos 4º da LINDB com o art. 126 do Código de Processo Civil reproduz o princípio do non liquet. O problema da lacuna surge a partir do século XIX, juntamente com o fenômeno da positivação do Direito, estando a ideia de lacuna ligada à de sistema, visto este como uma totalidade ordenada, um conjunto de entes, entre os quais existe uma certa ordem (Bobbio). O conceito de lacuna, em verdade, veio alargar o campo da positividade do Direito a partir dele mesmo, exatamente porque é uma construção da dogmática jurídica, que tanto assegura a eventuais critérios transcendentes uma coloração positivante, como dá força e serve de sustentáculo à argumentação do intérprete do Direito.219 Uma das fontes principais da discussão acerca da problemática das lacunas está em Kelsen, que, de forma taxativa, classifica a tese das lacunas do Direito e a omissão do legislador como sendo “ficções”. Para Kelsen, se, em alguns casos, se fala de uma lacuna do Direito, não é porque uma decisão seja logicamente impossível ante a falta de disposições aplicáveis, e sim, simplesmente, porque a decisão logicamente possível aparece ao órgão aplicador como inoportuna ou injusta, e,