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Sumário
Sumário
Ficha	catalográfica
Créditos
Agradecimentos
Epígrafe
Prefácio
Apresentação
Nota
Notas	introdutórias:	mais	de	uma	década	de	Hermenêutica	e(m)	Crise
Notas
1.	A	Modernidade	tardia	no	Brasil:	o	papel	do	Direito	e	as	promessas	da	modernidade	–	da	necessidade	de	uma	crítica
da	razão	ínica	no	Brasil	e	o	binômio	“estamentos-patrimonialismo”
Notas
2.	O	Estado	Democrático	de	Direito	e	a	(dis)funcionalidade	do	Direito
2.1.	Da	interindividualidade	à	transindividualidade	–	a	transição	de	modelos	de	Direito
2.2.	“O	Direito	importa	e	por	isso	é	que	nos	incomodamos	com	essa	história”
2.3.	Elementos	para	um	debate	acerca	do	papel	do	Direito	e	dos	Tribunais	no	Estado	Democrático	de	Direito
2.4.	A	Constituição	e	o	constituir	da	sociedade:	a	superação	da	crise	de	paradigmas	como	condição	de	possibilidade
Notas
3.	A	não	recepção	da	viragem	ontológico-linguística	pelo	modelo	interpretativo	(ainda)	dominante	em	terrae	brasilis
3.1.	A	crise	de	paradigma	(de	dupla	face)	e	o	senso	comum	teórico	dos	juristas	como	horizonte	de	sentido	da	dogmática
jurídica
Notas
4.	Dogmática	e	ensino	jurídico:	o	dito	e	o	não	dito	do	senso	comum	teórico	–	o	universo	do	silêncio	(eloquente)	do
imaginário	dos	juristas
Notas
5.	A	fetichização	do	discurso	e	o	discurso	da	fetichização:	a	dogmática	jurídica,	o	discurso	jurídico	e	a	interpretação	da
lei
5.1.	A	fetichização	do	discurso	jurídico	e	os	obstáculos	à	realização	dos	direitos:	uma	censura	significativa
5.2.	O	processo	de	(re)produção	do	sentido	jurídico	e	a	busca	do	“significante	primeiro”	ou	de	como	a	dogmática	jurídica
ainda	não	superou	os	paradigmas	que	se	sustentam	no	esquema	sujeito-objeto
5.3.	O	sentido	da	interpretação	e	a	interpretação	do	sentido	ou	de	como	a	dogmática	jurídica	(continua)	interpreta(ndo)	a
lei:	no	centro	do	debate,	a	história	do	positivismo	jurídico	e	as	tentativas	de	sua	superação	–	do	exegetismo	(e
pandectismo)	à	jurisprudência	dos	valores	(isto	é,	da	“razão”	à	“vontade”)
5.3.1.	Sobre	(alguns)	mal-entendidos	acerca	do	positivismo
5.3.2.	Voluntas	legis	versus	voluntas	legislatoris:	uma	discussão	ultrapassada
5.3.2.1.	Subjetivismo	e	objetivismo	e	o	problema	dos	paradigmas	filosóficos
5.3.2.1.1.	Objetivismo	e	subjetivismo	na	perspectiva	epistêmica	de	Ferraz	Jr.
5.3.2.1.2.	O	que	são	paradigmas	filosóficos?	De	que	modo	eles	condicionam	a	interpretação?
5.3.2.2.	O	dilema	Objetivismo	v.s.	Subjetivismo	no	âmbito	(hermenêutico)	da	aplicação	do	direito:	o	problema	dos
“cruzamentos	fundacionais”
5.3.2.3.	Objetivismo	e	Subjetivismo	–	voluntas	legis	v.s.	voluntas	legislatoris	e	o	senso	comum	teórico	dos	juristas
5.3.3.	As	lacunas	(hermenêuticas)	do	Direito
5.3.4.	As	técnicas	de	interpretação:	a	hermenêutica	normativa	bettiana	e	a	preocupação	na	fixação	de	regras
interpretativas.	O	método	em	debate
5.3.5.	Os	princípios	constitucionais	e	a	superação	dos	princípios	gerais	do	Direito	–	o	problema	do	pamprincipiologismo
Notas
6.	A	filosofia	e	a	linguagem	ou	de	como	tudo	começou	com	“o	Crátilo”
6.1.	A	primeira	filosofia	de	Aristóteles:	o	nascimento	da	metafísica	e	o	surgimento	de	seu	maior	adversário
6.2.	O	longo	caminho	até	o	século	XX	–	a	continuidade	da	tradição	metafísica	e	as	reações	à	busca	da	essência	e	da	coisa	em
si
6.3.	O	grande	acontecimento	ruptural:	o	surgimento	do	sujeito	–	a	modernidade	e	seu	legado
Notas
7.	Hamann-Herder-Humboldt	e	o	“primeiro”	giro	linguístico	–	as	fontes	gadamerianas	do	século	XIX	e	a	linguagem
como	abertura	e	acesso	ao	mundo
Notas
8.	Saussure	e	o	(re)nascimento	da	linguística.	Peirce	e	seu	projeto	semiótico	–	primeiridade	secundidade	e	terceiridade.
Os	caminhos	para	a	invasão	da	filosofia	pela	linguagem.	Rumo	à	linguagem	como	abertura	do	mundo.
8.1.	O	projeto	semiológico	de	Saussure
8.2.	O	projeto	semiótico-pragmático	de	Charles	S.	Peirce
8.3.	A	Semiótica	jurídica
Notas
9.	A	viragem	linguística	da	filosofia	e	o	rompimento	com	a	metafísica	ou	de	como	a	linguagem	não	é	uma	terceira	coisa
que	se	interpõe	entre	o	sujeito	e	o	objeto
9.1.	A	constituição	de	uma	razão	linguística	como	condição	de	possibilidade	para	o	rompimento	com	a	filosofia	da
consciência
9.2.	A	generalização	do	“giro”:	em	busca	de	superação	dos	Eingenschaften	(atributos)	dos	paradigmas	anteriores
Notas
10.	A	interpretação	do	Direito	no	interior	da	viragem	linguística	(lato	sensu)
10.1.	A	hermenêutica	como	uma	“questão	moderna”
10.2.	A	hermenêutica	e	seus	três	estágios:	técnica	especial	para	interpretação;	teoria	geral	da	interpretação	e	hermenêutica
fundamental
10.2.1.	Hermenêutica	especial
10.2.2.	Teoria	geral	da	interpretação
10.2.3.	Hermenêutica	fundamental
10.3.	A	hermenêutica	jurídica	diante	dessa	intrincada	tessitura
10.4.	A	hermenêutica	filosófica:	abrindo	caminho	para	uma	hermenêutica	jurídica	crítica
10.4.1.	Da	filosofia	hermenêutica	(Heidegger)	à	hermenêutica	filosófica	(Gadamer)
10.4.2.	A	hermenêutica	jurídica	gadameriana:	a	tarefa	criativa	e	produtiva	do	Direito
10.5.	A	diferença	(ontológica)	entre	“texto	e	norma”	e	“vigência	e	validade”:	a	ruptura	com	a	tradição	(metafísica)	da
dogmática	jurídica	–	o	necessário	combate	ao	solipsismo
10.5.1.	Hermenêutica	versus	crítica:	uma	questão	secundária
10.5.2.	A	hermenêutica	jurídico-filosófica,	e	o	rompimento	hermenêutico	com	os	”conceitos-em-si-mesmos-das-normas”	e
o	crime	de	“porte	ilegal	da	fala”
10.5.3.	A	hermenêutica	e	o	combate	ao	solipsismo
Notas
11.	Hermenêutica	jurídica	e(m)	crise:	caminhando	na	direção	de	novos	paradigmas
11.1.	A	modernidade,	seu	legado	e	seu	resgate
11.2.	O	labor	dogmático:	uma	(nova)	forma	de	divisão	do	trabalho?
11.3.	Dogmática	e	Hermenêutica:	a	tarefa	da	(razão)	crítica	do	Direito
11.4.	Hermenêutica	jurídica	e	a	relevância	do	horizonte	de	sentido	proporcionado	pela	Constituição	e	sua	principiologia
11.5.	A	proposição	da	nova	postura	hermenêutica:	um	modo-de-ser	(condição	de	possibilidade)	para	a	exploração
hermenêutica	da	construção	jurídica
Notas
12.	O	abrir	de	uma	clareira	e	a	busca	do	acontecer	do	Direito:	a	hermenêutica	e	a	resistência	constitucional	–	um
(necessário)	posfácio
12.1.	A	abertura	para	a	claridade
12.2.	A	busca	do	acontecimento	(Ereignis)	do	Direito
12.3.	A	necessária	ruptura	com	a	tradição	inautêntica
12.4.	Como	enfrentar	a	crise?	O	“estranho”	representado	pela	Constituição
12.5.	Pode	o	novo	(o	estranho)	triunfar?	A	tarefa	do	des-vela-	mento	hermenêutico
12.6.	O	caráter	não	relativista	da	hermenêutica
12.7.	A	surgência	constitucionalizante:	o-vir-à-presença-do-fenômeno-do-Direito
Notas
Pós-posfácio	–	A	resistência	do	positivismo	–	ainda	o	problema	da	discricionariedade	interpretativa
I.	Uma	advertência	necessária:	a	necessidade	da	preservação	da	Constituição.	A	democracia	como	condição	de
possibilidade.
II.	O	velho	e	o	novo	na	hermenêutica:	o	problema	da	efetividade	da	Constituição	em	um	país	de	modernidade	tardia
III.	Hermenêutica	e	democracia:	discricionariedades	interpretativas,	suas	decorrências	e	consequências.	De	como	o
problema	é	paradigmático
IV.	O	necessário	repto	à	discricionariedade	e	aos	decisionismos.	De	como	as	súmulas	não	devem	ser	entendidas	como	um
“mal	em	si”.
V.	A	resposta	correta	(adequada	à	Constituição)	como	direito	fundamental	do	cidadão
VI.	Fazendo	justiça	a	Dworkin	e	Gadamer.	De	como	o	juiz	Hércules	não	é	subjetivista	(solipsista).	As	razões	pelas	quais
“não	se	pode	dizer	qualquer	coisa	sobre	qualquer	coisa”
Notas
Bibliografia
Lenio	Luiz	Streck
	
Procurador	de	Justiça	–	RS
Doutor	em	Direito	pela	Universidade	Federal	de	Santa	Catarina	–	UFSC
Pós-Doutor	em	Direito	Constitucional	e	Hermenêutica	pela	Universidade	de	Lisboa
Professor	Titular	da	Unisinos	-	RS	(Mestrado	e	Doutorado)	e	Unesa-RJ;	Professor	Visitante	e
Convidado	de	Universidades	brasileiras	e	estrangeiras	(Faculdade	de	Direito	de	Coimbra-PT;	Faculdade	de
Direito	de	Lisboa-PT;	Universidad	Javeriana-CO);	membro	catedrático	da	Academia	Brasileira	de
Direito	Constitucional;	Presidentede	Honra	do	IHJ	–	Instituto	de	Hermenêutica	Jurídica.
	
	
	
	
	
HERMENÊUTICA	JURÍDICA	E(M)	CRISE
	
Uma	exploração	hermenêutica	da	construção	do	Direito
	
	
	
	
11ª	EDIÇÃO
revista,	atualizada	e	ampliada
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
Ficha	catalográfica
Conselho	Editorial
André	Luís	Callegari
Carlos	Alberto	Alvaro	de	Oliveira
Carlos	Alberto	Molinaro
Daniel	Francisco	Mitidiero
Darci	Guimarães	Ribeiro
Draiton	Gonzaga	de	Souza
Elaine	Harzheim	Macedo
Eugênio	Facchini	Neto
Giovani	Agostini	Saavedra
Ingo	Wolfgang	Sarlet
Jose	Luis	Bolzan	de	Morais
José	Maria	Rosa	Tesheiner
Leandro	Paulsen
Lenio	Luiz	Streck
Paulo	Antônio	Caliendo	Velloso	da	Silveira
	
	
	
___________________________________________________________________
	
	
	
S914h	Streck,	Lenio	Luiz
Hermenêutica	jurídica	e(m)	crise:	uma	exploração	hermenêutica	da	construção	do	Direito	/	Lenio	Luiz	Streck.	11.	ed.	rev.,	atual.	e
ampl.	–	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado	Editora,	2014.
	
ISBN	978-85-7350-139-1
	
1.	Direito.	2.	Dogmática	jurídica
	
(Bibliotecária	responsável:	Marta	Roberto,	CRB-10/652)
	
	
	
Créditos
©	Lenio	Luiz	Streck,	2014
	
	
	
	
Revisão
Rosane	Marques	Borba
	
	
Projeto	gráfico	e	diagramação
Livraria	do	Advogado	Editora
	
	
Gravura	da	capa
Honoré	Daumier	–	Advogado	de	Lesender
	
	
	
	
	
	
Direitos	desta	edição	reservados	por
Livraria	do	Advogado	Editora	Ltda.
Rua	Riachuelo,	1300
90010-273	Porto	Alegre	RS
Fone/fax:	0800-51-7522
editora@livrariadoadvogado.com.br
www.doadvogado.com.br
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
Impresso	no	Brasil	/	Printed	in	Brazil
Agradecimentos
O	presente	livro,	já	em	sua	décima	primeira	edição,	é	resultado	de	projeto	de	pesquisa
patrocinado	pela	UNISINOS	–	Universidade	do	Vale	do	Rio	dos	Sinos	–,	 através	do
Programa	de	Pós-Graduação	em	Direito	–	Mestrado	e	Doutorado,	ligado	ao	Centro	de
Ciências	 Jurídicas	 e	 Sociais.	 Também	 foram	 fundamentais	 os	 diálogos	 com	 meus
amigos	Ernildo	Stein	(Porto	Alegre)	e	Albano	Marcos	Bastos	Pepe	(Recife).
Não	posso	 olvidar	 a	 colaboração	dos	meus	 alunos	dos	 Seminários	de	Hermenêutica
Jurídica,	dos	Cursos	de	Mestrado	e	Doutorado	em	Direito,	além	dos	participantes	do
DASEIN	 –	 Núcleo	 de	 Estudos	 Hermenêuticos	 (Rafael	 Tomaz	 de	 Oliveira,	 André
Karam	Trindade,	 Clarissa	 Tassinari,	 Rafael	 Köche,	 Fabiano	Müller	 e	 Santiago	Artur
Berger	 Sito).	 Nesta	 11ª	 edição,	 colaboraram	 Adriano	 Obach	 Lepper,	 André	 Karam
Trindade,	Clarissa	Tassinari,	Daniel	Ortiz	Matos,	Danilo	Pereira	Lima,	Fabiano	Müller,
Edson	 Vieira,	 Guilherme	 Mariani,	 Luis	 Henrique	 Braga	 Madalena,	 Rafael	 Giorgio
Dalla	Barba,	Rafael	Köche,	Rafael	Tomaz	de	Oliveira,	Rosivaldo	Toscano	dos	 Santos
Júnior,	Santiago	Artur	Berger	Sito,	Saulo	Salvador	Salomão,	Vinicius	de	Melo	Lima,
Marcelo	Cacinotti	e	Victoria	Santos	de	Azevedo.	Coaches	do	projeto:	Clarissa,	Daniel	e
Adriano.
	
E	para	Rosane	e	Malu,	que	sabem	por	quê!
	
Lenio	Luiz	Streck
lenios@globo.com
http://www.leniostreck.com.br
http://www.facebook.com/LenioStreck
Epígrafe
Quando	as	águas	da	enchente	derrubam	as	ca-
sas,	e	o	rio	transborda	arrasando	tudo,	quer
dizer	que	há	muitos	dias	começou	a	chover	na
serra,	ainda	que	não	nos	déssemos	conta.
	
ERACLIO	ZEPEDA
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
	
Prefácio
Sobre	 certos	 temas	 só	 deveríamos	 escrever	 quando	 com	 nossas	 análises	 conseguíssemos
abrir	um	espaço	novo.	Caso	contrário,	caímos	na	repetição,	na	glosa	ou	mesmo	na	paródia.
No	campo	do	direito,	tal	situação	tem	acontecido	com	escandalosa	frequência.	Por	isso	nos
alegramos	 sempre	 que	 uma	 perspectiva	 nova	 se	 apresenta,	 quer	 seja	 para	 ampliar	 a	 visão
teórica,	 quer	 seja	 para	 levantar	 hipóteses	 sobre	 casuística,	 quer	 seja	 para	 trazer	 um	 aporte
novo	no	universo	epistêmico.
Com	o	 livro	Hermenêutica	 jurídica	 e(m)	 crise:	 uma	 exploração	 hermenêutica	 da	 construção	 do
Direito,	 foram	ultrapassadas	muitas	expectativas	que	poderíamos	alimentar	entre	nós	neste
setor.	LENIO	 STRECK	não	 se	 limitou	 àquilo	 que	poderia	 trazer	 um	bom	 livro	de	 teoria	 ou	de
crítica.	A	análise	que	nos	é	apresentada	inaugura	um	universo	teórico	que	certamente	nos	traz
novos	parâmetros	para	o	exame	da	crise	do	direito	e	sua	superação.	Mas	a	moldura	teórica
não	se	constitui	simplesmente	de	uma	apresentação	brilhante	de	argumentos	contra	diversos
grupos	de	autores.	Nem	se	resume	em	introduzir	uma	nova	alternativa	para	alguma	área	da
ciência	do	direito	ou	da	filosofia,	partindo	de	determinados	grupos	de	autores	clássicos.
Temos	diante	de	nós	um	livro	que	revoluciona	a	própria	concepção	do	direito	positivo	atual	e	da
história	do	direito.	Tal	obra	exige	uma	base	muito	ampla,	uma	arquitetônica	inovadora	e	uma
combinação	de	conceitos	 filosóficos	novos	e	atuais.	A	obra	de	LENIO	 STRECK	 traz	 tudo	 isso	e
acrescenta	ainda	três	dimensões	absolutamente	raras	a	se	combinar:	uma	visão	das	questões
concretas	de	direito	e	 sua	aplicação	no	conflituado	 terreno	entre	o	 social	 e	o	 jurídico;	uma
análise	 crítica	 das	 teorias	 jurídicas	 principais	 que	 foram	 produzidas	 durante	 séculos,	 no
empenho	 de	 encontrar	 soluções	 novas	 que,	 combinando	 o	 social,	 o	 político	 e	 o	 jurídico,
afirmaram	 ter	 descoberto	 uma	 nova	 coordenação	 teórica	 harmônica	 num	 estado
democrático;	e	os	contornos	de	uma	matriz	teórica	que	permita	situar	todo	o	debate	em	torno
da	crise	do	direito,	no	contexto	de	um	novo	paradigma.
O	autor	desenvolve	em	seu	livro	elementos	centrais	para	uma	hermenêutica	jurídica	que
sirva	de	vetor	e	de	moldura	para	todo	o	debate	sobre	a	mudança	de	paradigma	no	universo
jurídico.	 Hermenêutica	 perde	 aqui	 seu	 significado	 de	 rotina	 e	 de	 capa	 formal	 que	 vinha
reforçar	 a	 aplicação	 conservadora	da	dogmática	 jurídica.	Hermenêutica	 passa	 a	 nos	 remeter	 a
uma	nova	matriz	de	racionalidade,	em	que	se	possa	desenvolver	toda	crítica	ao	direito	vigente	e
todo	 esforço	 na	 construção	 de	 um	 horizonte	 novo	 para	 pensarmos	 os	 fundamentos	 do
conhecimento	jurídico.
Quem	acompanhou	o	nascimento	do	paradigma	hermenêutico	seguiu	em	muitos	passos	o
desenvolvimento	 da	 hermenêutica	 clássica	 e	 se	 deixou	 empolgar	 pelo	 novo	 trazido	 pela
filosofia	hermenêutica	de	Heidegger	e	pela	hermenêutica	filosófica	de	Gadamer,	de	um	lado,
e	 quem	 se	 aprofundou	 nas	 teorias	 contemporâneas	 do	 significado	 e	 da	 linguagem	 e	 nas
diversas	direções	desenvolvidas	pelas	discussões	linguísticas	e	da	pragmática,	de	outro	lado,
pode	 avaliar	 o	 que	 o	 autor	 conseguiu	 articular	 no	 seu	 livro,	 a	 partir	 da	 filosofia	 atual	 da
linguagem,	na	exploração	da	construção	do	direito.
Não	é	simplesmente	repetir	o	autor	quando	se	procura	ver	na	sua	hermenêutica	crítica	o
instrumento	de	ruptura	do	objetivismo	ingênuo	em	que	se	funda	toda	construção	jurídica	na
sua	visão	positivista,	partindo	da	relação	sujeito-objeto	na	fundamentação	do	conhecimento.
A	 grande	 novidade	 da	 obra	 de	 STRECK	nos	 leva	 para	 um	 território	 situado	 além	 das	 ontologias
ingênuas	que	em	geral	sustentam	a	dogmática	jurídica	até	hoje	e	lhe	dão,	assim,	um	irrenunciável
caráter	ideológico.
Somente	quando	percebemos	que	tudo	se	 funda	na	 linguagem,	que	direito	é	 linguagem,
que	seu	funcionamento	desliza	sobre	pressupostos	linguísticos,	é	que	começamos	a	perceber
os	 contornos	da	profunda	 inovação	que	 traz	para	a	 ciência	e	a	 filosofia	do	direito	e	para	a
hermenêutica	jurídica,	essa	obra	surpreendente.
Mas	o	autor	nos	leva	um	passo	adiante	e	com	ele	nos	situa	diante	do	desafio	mais	criativo:
no	 direito,	 a	 hermenêutica	 filosófica	 nos	 leva	 a	 uma	 resolução	 da	 crise	 da	 representação
através	da	superação	das	 teorias	da	consciência.	Todo	o	conteúdo	epistêmico	do	direito	 até
agora	era	apresentado	através	de	múltiplas	e	aleatórias	epistemologiasjurídicas	baseadas	nas
teorias	 da	 representação	 e	 orientadas	 na	 fundamentação,	 no	 esquema	 da	 relação	 sujeito-
objeto.
LENIO	STRECK	nos	remete	a	um	universo	em	que	a	hermenêutica	se	refere	ao	mundo	prático,	o
mundo	 da	 pré-compreensão,	 em	 que	 já	 sempre	 somos	 no	 mundo	 e	 nos	 compreendemos
como	ser-no-mundo	a	partir	e	na	estrutura	prévia	de	sentido.	É	ela	que	nos	carrega	e	é	dela
que	surgimos	enquanto	estrutura	que	nos	precede,	e	toda	teoria	da	consciência	chega	tarde
com	sua	pretensão	de	fundar.	A	linguagem	torna-se	aí	o	meio	especulativo	a	partir	do	qual	se
determina	a	linguisticidade	de	todo	o	nosso	conhecimento.
Uma	vez	estabelecida	 tal	matriz	 linguística	que,	ao	mesmo	 tempo,	nos	sustenta,	na	qual
nos	movemos	e	de	quem	nunca	somos	proprietários,	temos	as	condições	para	a	instauração
do	 diálogo.	 Todo	 conhecimento	 jurídico	 é	 situado	 inovadoramente	 pelo	 autor	 no	 quadro
dessa	matriz.
É	nesse	contexto	que	o	livro	passa	a	definir	sua	forma	e	sua	dinâmica	interna.	É	no	quadro
da	 matriz	 hermenêutico-linguística	 que	 então	 terá	 que	 ser	 compreendida	 a	 condição
essencial	 do	 direito	 na	 sua	 relação	 com	 a	 sociedade.	 Só	 assim	 a	 solução	 para	 sua	 crise	 se
apresentará	com	um	potencial	de	constante	revisão	e	ajustamento.
A	 crise	do	direito	 é	 crise	de	 fundamento,	 e	 STRECK	 nos	mostra	 isso	 através	da	 crítica	do
paradigma	 que	 sustentou	 o	 direito	 até	 agora,	 introduzindo	 o	 paradigma	 hermenêutico-
linguístico	em	que	situa	o	direito	e	a	todos	os	que	com	ele	trabalham,	no	universo	do	sentido	e
da	compreensão.
O	direito	não	trabalha	com	objetos,	não	opera	com	normas	objetificadas,	não	se	confronta
com	pessoas	 coaguladas	 em	 coisas,	 nem	maneja	 a	 linguagem	 como	 instrumental	 rígido	de
retórica.	 O	 direito	 se	 sustenta	 na	 palavra	 plena,	 produz	 sentido,	 dialoga	 na	 sua	 aplicação,
desde	que	a	hermenêutica	nos	mostrou	que	“somos	um	diálogo”.
O	autor	não	nos	apresenta	simplesmente	as	teorias	da	compreensão	e	da	interpretação,	e
filósofos	como	Heidegger	e	Gadamer,	que	estão,	entre	outros,	na	base	de	sua	discussão.	Ele
luta	 por	 encontrar	 um	 caminho	 para	 o	 problema	 da	 hermenêutica	 jurídica	 que	 circule	 no
discurso	 contemporâneo.	Ele	 sabe	da	 tarefa	da	 filosofia	 que	 consiste	 em	 clarear	 expressões
linguísticas	 e	 manter	 uma	 visão	 sobre	 o	 todo	 de	 nosso	 compreender,	 que	 também	 é
autocompreensão	e	autocrítica.
Mas,	para	além	duma	simples	questão	 linguística,	o	 autor	 redescobriu	 o	 lugar	 propriamente
filosófico	 –	 que	 é	 a	 questão	 do	 sentido	 e	 do	 significado	 –	 e	 que	 se	 estabelece,	 não	 desde	 um	 sujeito
soberano	e	um	discurso	dogmático,	mas	assume	a	sua	historicidade	como	um	acontecimento.	É	desse
acontecimento	 que	 nos	 fala	 a	 hermenêutica	 existencial	 quando	 fala	 na	 história	 do	 ser.	 É	 a
partir	 dela	 que	 podemos	 compreender	 os	 limites	 da	 interpretação	 e,	 ao	mesmo	 tempo,	 as
condições	da	filosofia	hermenêutica	que	nos	dá	as	bases	para	a	hermenêutica	filosófica,	em
que	 aprendemos	 a	 escutar	 aquilo	 “que	 para	 além	 de	 nós,	 para	 além	 do	 que	 queremos	 e
fazemos,	acontece	conosco”.
	
	
ERNILDO	STEIN
	
Apresentação
LENIO	 LUIZ	 STRECK	 faz	 a	 autêntica	 crítica	 do	 Direito	 neste	 livro	 que	 tenho	 a	 honra	 de
apresentar.	Ademais,	o	fenômeno	jurídico	nele	se	apresenta	como	força	viva,	como	um	plano
da	realidade	social	que	é.	Por	isso	mesmo	se	pode	dizer	que	o	ritmo	da	linguagem	do	autor,
solta	e	livre,	assim	se	manifesta	porque	referida	a	essa	força	viva,	plena	de	movimento.
Muito	se	escreveu,	e	ainda	se	escreve,	nesta	última	década	do	século,	a	propósito	da	crise
do	Direito,	apresentada	agora,	definidamente	–	e	sobretudo	entre	nós,	brasileiros	–	sob	feição
particular,	vale	dizer,	como	crise	do	Poder	Judiciário.
É	 inegável	 a	 existência	 dessa	 crise.	 Não	 podemos	 deixar	 de	 apontar,	 contudo,	 duas
evidências.	Uma,	a	de	que	essa	peculiar	“crise	do	Direito”	não	é,	originariamente,	dele,	senão
de	 que	 o	 produz,	 o	 Estado.	 Vivemos,	 nesta	 última	 década,	 sob	 deliberado	 processo	 de
enfraquecimento	 do	 Estado,	 patrocinado	 pelos	 governos	 neoliberais	 globalizantes	 dos
Presidentes	Collor	 e	Cardoso.	O	 exame	das	 propostas	 frustradas	de	 reforma	 constitucional
pretendidas	 pelo	 primeiro	 e	 daquelas	 logradas	 pelo	 segundo	 evidencia	 a	 identidade	 de
valores	nos	programas	de	um	e	de	outro.	Ora,	obtida	a	fragilização	do	Estado,	todos	os	seus
produtos	 passam	 a	 exibir	 as	 marcas	 dessa	 fragilização.	 O	 Direito	 que	 imediatamente
conhecemos	e	aplicamos,	posto	pelo	Estado,	dele	dizemos	ser	“posto”	pelo	Estado	não	apenas
porque	 seus	 textos	 são	 escritos	 pelo	 Legislativo,	 mas	 também	 porque	 suas	 normas	 são
produzidas	pelo	Judiciário.1
Em	 segundo	 lugar,	 cumpre	 observar	 que	 a	 fragilização	 do	 Poder	 Judiciário	 atende	 a
interesses	 bem	marcados	dos	Executivos	 fortes,	 que	 se	 nutrem	de	projetos	desdobrados	de
uma	nítida	transposição,	hoje,	dos	quadros	do	privado	para	os	do	público,	do	individualismo
possessivo.	Penso	podermos	afirmar	que,	se	de	um	lado	o	capitalismo	já	não	padece	do	temor
da	contestação	social,	os	executivos	já	não	têm	pejo	de	violar	as	Constituições	e	de	violentar
as	exigências	de	harmonia	entre	os	Poderes.	A	América	Latina	tem	sido	profusa	e	generosa
em	exemplos...
O	desconforto	provocado	por	essa	 crise	 coloca	os	 estudiosos	do	Direito	 sob	o	desafio	do
descobrimento	de	caminhos	que	conduzem	à	produção	de	justiça	material,	no	mínimo	a	uma
reeticização	do	Direito.
LENIO	 STRECK	 cria	 suas	 próprias	 trilhas	 nessa	 busca,	 penetrando	 fundo	 pela	 análise	 da
linguagem,	 especialmente	da	 “viragem	 linguística	 da	 filosofia”,	 até	 alcançar,	 intensamente
também,	 a	 semiótica	 e	 a	 hermenêutica	 filosófica,	 que	 abrem	 o	 caminho	 para	 uma
hermenêutica	 jurídica	 crítica,	 no	 bojo	 da	 qual	 se	 põe	 em	 dinamismo	 uma	 razão	 crítica	 do
Direito.
Visualizada	 como	 processo	 de	 produção	 de	 sentido,	 a	 interpretação	 apresenta-se	 então
como	 ponto	 de	 partida	 desde	 o	 qual	 não	 apenas	 a	 crítica	 é	 feita,	 mas	 também	 se	 pode
empreender	a	construção	de	uma	razão	emancipatória	para	o	Direito.	O	Direito,	note-se	bem,
é	um	discurso	constitutivo	na	medida	em	que	designa/atribui	significados	a	fatos	e	palavras,
como	mostra	CARLOS	CÁRCOVA.
A	 concepção	 da	 interpretação	 como	 um	 processo	 criativo	 –	 que,	 de	 outra	 forma,	 tomo
quando	a	qualifico	de	alográfica	–	conduz	não	apenas	a	uma	nova	hermenêutica,	mas	a	um
novo	conjunto	de	possibilidades	de	produção	de	justiça	material.
Daí	 a	 importância	 deste	 livro.	 Necessitamos	 de	 novas	 trilhas,	 voltadas	 à	 reconstrução	 de
conceitos,	 critérios	 e	princípios,	 indispensáveis	 à	 superação	da	 crise	 –	 o	 livro	de	 LENIO	 LUIZ
STRECK	abre	caminhos	que	devem,	necessariamente,	ser	percorridos.
Tiradentes,	janeiro	de	2004.
	
	
EROS	ROBERTO	GRAU
	
	
Nota
1	 Permito-me	 remeter	 o	 leitor	 aos	 meus	Direito	 posto	 e	 direito	 pressuposto,	 2.	 ed.	 São	 Paulo:	 Malheiros,	 1998,	 e	 La	 doble
desestructuración	y	la	interpretación	del	derecho,	mencionado	na	bibliografia	indicativa	por	LENIO	STRECK.
Notas	introdutórias:	mais	de	uma	década	de	Hermenêutica	e(m)
Crise
Há	mais	de	uma	década	resolvi	 fazer	uma	viragem	na	 interpretação	do	Direito.	De	uma
trajetória	 inicial	 ligada	 às	 teorias	 analíticas,	 iniciei	 a	 incursão	 nas	 trilhas	 da	 hermenêutica
filosófica,	pavimentada	pela	filosofia	hermenêutica.	Isto	porque	me	convenci,	ainda	nos	anos
90,	que	perscrutar	a	linguagem	no	plano	de	um	semantic	sense	não	era	suficiente	para	albergar
a	complexidade	do	Direito	em	terrae	brasilis.
O	ponto	central	–	 inicial	–	 foi	a	discussão	da	crise	do	Direito,	do	Estado	e	da	dogmática
jurídica,	e	seus	reflexos	na	sociedade.	Dizia	então	que	o	Direito	e	a	dogmática	jurídica	(que	oinstrumentaliza),	 preparado/engendrado	 para	 o	 enfrentamento	 dos	 conflitos
interindividuais,	 não	 conseguiam	 atender	 as	 especificidades	 das	 demandas	 originadas	 de
uma	sociedade	complexa	e	conflituosa	(J.	E.	Faria).	O	paradigma	(modelo/modo	de	produção
de	 Direito)	 liberal-individualista-normativista	 estava	 esgotado.	 O	 crescimento	 dos	 direitos
transindividuais	 e	 a	 crescente	 complexidade	 social	 reclama(va)m	 novas	 posturas	 dos
operadores	jurídicos.
Passados	 tantos	 anos,	 penso	 que	 isso,	 em	 grande	 medida,	 continua	 atual.	 A	 crise	 do
modelo	 liberal-individualista	 não	 foi	 superada.	 Entretanto,	 o	 decorrer	 do	 tempo	 foi
mostrando	que	o	problema	da	 inefetividade	do	Direito	–	 compreendido	a	partir	do	Estado
Democrático	 de	 Direito	 –	 não	 estava	 apenas	 na	 umbilical	 ligação	 do	 modelo	 liberal-
individualista	com	o	exegetismo	ainda	fortemente	presente	na	doutrina	e	na	jurisprudência,
mas	 também	 no	 fenômeno	 que	 foi	 crescendo	 especialmente	 na	 última	 década:	 as	 teorias
voluntaristas,	 que,	 sob	 pretexto	 de	 superar	 o	 “juiz	 boca	 da	 lei”,	 apostaram	 na	 liberdade
interpretativa	dos	juízes	e	tribunais.	Resultado:	o	establishment	passou	a	investir	em	projetos
de	vinculação	jurisprudencial.
Essas	novas	questões	foram	recebendo	atenção	na	presente	obra,	na	medida	em	que	novas
edições	 foram	surgindo.	Pode-se	dizer,	 assim,	que	a	presente	 edição	busca	 reunir	os	vários
elementos	 da	 crise	 que	 atravessa	 o	 Direito,	 especialmente	 nestes	 vinte	 e	 cinco	 anos	 de
Constituição	compromissória	e	dirigente.
O	caminho	passa	pela	(re)discussão	das	práticas	discursivas/argumentativas	dos	juristas,	a
partir	do	questionamento	das	suas	condições	de	produção,	circulação	e	consumo.	Isto	porque,
como	diz	Veron,	“entre	as	lições	de	Marx,	uma	é	mister	não	abandonar:	ele	nos	ensinou	que,
se	se	souber	olhar	bem,	todo	produto	traz	os	traços	do	sistema	produtivo	que	o	engendrou.
Esses	 traços	 lá	 estão,	mas	não	 são	vistos,	 por	 ‘invisíveis’.	Uma	 certa	 análise	pode	 torná-los
visíveis:	a	que	consiste	em	postular	que	a	natureza	de	um	produto	só	é	 inteligível	em	relação	às
regras	sociais	de	seu	engendramento”.
O	enorme	fosso	ainda	existente	entre	o	Direito	e	a	sociedade,	que	é	instituído	e	instituinte
da/dessa	 crise	 de	 paradigmas,	 retrata	 a	 incapacidade	 histórica	 da	 dogmática	 jurídica
(discurso	oficial	do	Direito)	em	lidar	com	a	realidade	social.	Afinal,	o	establishment	 jurídico-
dogmático	brasileiro	produz	doutrina	e	jurisprudência	para	que	tipo	de	país?	Para	que	e	para
quem	 o	 Direito	 tem	 servido?	 Para	 se	 ter	 uma	 ideia	 da	 dimensão	 do	 problema,	 ainda	 não
conseguimos	 sequer	 entender	 que	 Kelsen	 não	 foi	 um	 positivista	 exegético	 e,	 sim,	 um
positivista	normativista...!
Esse	hiato	e	a	crise	de	paradigma	do	modelo	liberal-individualista-normativista	retratam	a
incapacidade	histórica	da	dogmática	jurídica	em	lidar	com	os	problemas	decorrentes	de	uma
sociedade	díspar	como	a	nossa.	Na	verdade,	tais	problemas	são	deslocados	no	e	pelo	discurso
dogmático,	estabelecendo-se	uma	espécie	de	transparência	discursiva.	Pode-se	dizer,	a	partir
das	 lições	 de	A.	 Sercovich,	 que	 o	 discurso	 dogmático	 dominante	 é	 transparente	 porque	 as
sequências	discursivas	remetem	diretamente	à	“realidade”,	ocultando	as	condições	de	produção
do	sentido	do	discurso.	A	este	fenômeno	podemos	denominar	de	fetichização	do	discurso	jurídico,
é	 dizer,	 através	 do	 discurso	 dogmático,	 a	 lei	 passa	 a	 ser	 vista	 como	 sendo	 uma-lei-em-si,
abstraída	das	condições	(histórico-sociais)	que	a	engendra(ra)m,	como	se	a	sua	condição-de-
lei	fosse	uma	propriedade	“natural”.
Parte-se,	pois,	da	premissa	de	que	as	práticas	argumentativas	do	Judiciário,	da	dogmática
jurídica	e	das	escolas	de	Direito	são	consubstanciadas	pelo	que	se	pode	denominar	de	senso
comum	teórico	dos	juristas	ou	campo	jurídico	(Warat-Bourdieu),	o	qual	se	insere	no	contexto
da	crise	do	modelo	de	Direito	de	cunho	liberal-individualista.	Para	tanto,	basta	um	passar	d’olhos
no	Direito	penal	e	a	cultura	manualesca-estandartizada	que	domina	a	aplicação	desse	ramo
do	Direito.	Essa	crise	do	modelo	(dominante)	de	Direito	(ou	modo	de	produção	de	Direito)
institui	 e	 é	 instituída	 por	 uma	 outra	 crise,	 aqui	 denominada/trabalhada	 como	 crise	 dos
paradigmas	 aristotélico-tomista	 e	 da	 filosofia	 da	 consciência,	 bases	 desse	 modelo	 liberal-
individualista	de	 interpretação/aplicação	do	Direito	 ainda	dominante	no	 “campo	 jurídico”
vigorante	no	Brasil.
Isto	 porque	 as	 práticas	 hermenêutico-interpretativas	 vigorantes/hegemônicas	 no	 campo
da	operacionalidade	–	incluindo	aí	doutrina	e	jurisprudência	–	ainda	estão	presas	à	dicotomia
sujeito-objeto,	 carentes	 e/ou	 refratárias	 à	 viragem	 linguística	 de	 cunho	 pragmatista-ontológico
ocorrida	contemporaneamente,	em	que	a	relação	passa	a	ser	sujeito-sujeito.	Dito	de	outro	modo,
no	campo	jurídico	brasileiro,	a	linguagem	ainda	tem	um	caráter	secundário,	uma	terceira	coisa
que	se	interpõe	entre	o	sujeito	e	o	objeto,	enfim,	uma	espécie	de	instrumento	ou	veículo	condutor
de	“essências”	e	“corretas	exegeses”	dos	textos	legais.	Ou,	na	outra	ponta	do	problema,	sob
pretexto	da	superação	das	posturas	objetivistas,vê-se	o	surgimento	das	diversas	(neo)teorias,
como	o	neoconstitucionalismo	e	o	neoprocessualismo,	que	apostam	no	protagonismo	judicial
e	 no	 instrumentalismo	 processual,	 dando	 azo	 a	 uma	 verdadeira	 fábrica	 de	 princípios.	 Isso
para	dizer	o	mínimo.
Daí	a	necessidade	da	elaboração	de	uma	crítica	à	hermenêutica	jurídica	tradicional	–	ainda
(fortemente)	 assentada	 nesses	 dois	 paradigmas	 filosóficos	 (metafísica	 clássica	 e	 filosofia	 da
consciência)	 –	 através	da	 fenomenologia	hermenêutica,	 pela	 qual	 o	horizonte	do	 sentido	 é
dado	 pela	 compreensão	 (Heidegger)	 e	 ser	 que	 pode	 ser	 compreendido	 é	 linguagem
(Gadamer),	onde	a	 linguagem	não	é	 simplesmente	objeto,	 e	 sim,	horizonte	aberto	e	 estruturado	e	a
interpretação	faz	surgir	o	sentido.
Por	isso,	o	processo	de	produção	do	sentido	(daquilo	que	é	sentido/pensado/apreendido
pelo	sujeito)	do	discurso	jurídico,	sua	circulação	e	seu	consumo	não	podem	ser	guardados	sob
um	hermético	segredo,	como	se	sua	holding	fosse	uma	abadia	do	medievo.	Isto	porque	o	que
rege	o	processo	de	interpretação	dos	textos	legais	são	as	suas	condições	de	produção,	as	quais,
devidamente	difusas	e	oculta(da)s,	 “aparecem”	como	se	 fossem	provenientes	de	um	“lugar
virtual”,	ou	de	um	“lugar	 fundamental”.	Esse	é	o	problema	fulcral	da	dogmática	 jurídica	e
que	procuro	desmi(s)tificar	 ao	 longo	destes	 anos.	Ora,	 as	palavras	da	 lei	 não	 são	unívocas;
são,	 sim,	 plurívocas,	 questão	 que	 o	 próprio	Kelsen	 já	 detectara	 de	 há	muito.	Mas	 isso	 não
significa	que	o	processo	hermenêutico	admita	discricionariedades	e	decisionismos.	É	possível
encontrar	 respostas	 corretas	 em	 direito,	 justamente	 pelo	 caráter	 antirrelativista	 da
hermenêutica	filosófica,	que	retrabalho	na	obra	como	uma	Nova	Crítica	do	Direito	ou	Crítica
Hermenêutica	do	Direito.
Venho	procurando	demonstrar,	enfim,	que	a	lei	e	o	saber	do	Direito	constituem	um	nível
de	 relações	 simbólicas	 de	 poder	 (Warat).	 Consequentemente,	 visando	 a	 superar	 a	 crise	 de
paradigma	de	dupla	face	antes	delineada,	faz-se	necessário	um	trabalho	de	interrogação	sobre	o
discurso	jurídico,	utilizando	a	lei	e	o	saber	contra	eles	mesmos,	fazendo	deles	um	lugar	vazio,
onde	 o	 sujeito	 necessariamente	 não	 seja	 (ou	 necessite	 ser)	 um	 transgressor,	 mas,	 sim,	 o
protagonista	que	legitima	a	democracia	(Warat).
Buscando	 apresentar	 um	 ferramental	 para	 a	 interpretação	 do	 Direito,	 desde	 a	 primeira
edição,	 venho	 utilizando,	 como	 fio	 condutor,	 o	 “método”	 fenomenológico-hermenêutico,
visto,	a	partir	de	Heidegger,2	como	“interpretação	ou	hermenêutica	universal”,	é	dizer,	como
revisão	crítica	dos	temascentrais	transmitidos	pela	tradição	filosófica	através	da	linguagem,
como	destruição	e	revolvimento	do	chão	linguístico	da	metafísica	ocidental,	mediante	o	qual
é	 possível	 descobrir	 um	 indisfarçável	 projeto	 de	 analítica	 da	 linguagem,	 numa	 imediata
proximidade	com	a	praxis	humana,	como	existência	e	faticidade,	em	que	a	linguagem	–	o	sentido,	a
denotação	 –	 não	 é	 analisada	 num	 sistema	 fechado	 de	 referências,	 mas,	 sim,	 no	 plano	 da
historicidade.	Enquanto	baseado	no	método	hermenêutico-linguístico,	o	texto	procura	não	se
desligar	da	existência	concreta,	nem	da	carga	pré-ontológica	que	na	existência	 já	vem	sempre
antecipada.
Nesse	 período,	 construí	 as	 bases	 daquilo	 que	 chamei	 inicialmente	 de	 Nova	 Crítica	 do
Direito	 (NCD)	–	e	que	está	desenvolvida	 também	no	meu	 Jurisdição	Constitucional	 e	Decisão
Jurídica	–,	e	que	deve	ser	entendida	como	processo	de	desconstrução	da	metafísica	vigorante
no	 pensamento	 dogmático	 do	 direito	 (senso	 comum	 teórico).	A	 tarefa	 da	Nova	Crítica	 do
Direito,	que	doravante	passo	a	denominar	de	Crítica	Hermenêutica	do	Direito	–	CHD	–,	é	a
de	“desenraizar	aquilo	que	tendencialmente	encobrimos”	(Heidegger-Stein).
É,	 em	 síntese,	 o	 desenrolar	 do	 método	 hermenêutico	 de	 que	 falei	 anteriormente.	 A
metafísica	pensa	o	ser	e	se	detém	no	ente;	ao	equiparar	o	ser	ao	ente,	entifica	o	ser,	através	de
um	pensamento	objetificador.3	Ou	seja,	a	metafísica,	que	na	modernidade	recebeu	o	nome	de
teoria	 do	 conhecimento	 (filosofia	 da	 consciência),	 faz	 com	 que	 se	 esqueça	 justamente	 da
diferença	que	separa	ser	e	ente.	No	campo	jurídico,	esse	esquecimento	corrompe	a	atividade
interpretativa,	mediante	uma	espécie	de	extração	de	mais-valia	do	ser	(sentido)	do	Direito.	O
resultado	 disso	 é	 o	 predomínio	 do	 método,	 do	 dispositivo,	 da	 tecnicização	 e	 da
especialização,	 que	 na	 sua	 forma	 simplificada	 redundou	 em	 uma	 cultura	 jurídica
estandardizada,	na	qual	o	direito	não	é	mais	pensado	em	seu	acontecer.	Há	que	se	retomar,
assim,	 a	 crítica	 ao	 pensamento	 jurídico	 objetificador,	 refém	 de	 uma	 prática	 dedutivista	 e
subsuntiva,	rompendo-se	com	o	paradigma	metafísico-objetificante	(aristotélico-tomista	e	da
subjetividade),	 que	 impede	 o	 aparecer	 do	 direito	 naquilo	 que	 ele	 tem	 (deve	 ter)	 de
transformador.
A	 Crítica	 Hermenêutica	 do	 Direito,	 fincada	 na	 matriz	 teórica	 originária	 da	 ontologia
fundamental,	 busca,	 através	 de	 uma	 análise	 fenomenológica,	 o	 des-velamento
(Unverborgenheit)	 daquilo	 que,	 no	 comportamento	 cotidiano,	 ocultamos	 de	 nós	 mesmos
(Heidegger):	o	exercício	da	transcendência,	no	qual	não	apenas	somos,	mas	percebemos	que
somos	(Dasein)	e	somos	aquilo	que	nos	tornamos	através	da	tradição	(pré-juízos	que	abarcam
a	 faticidade	 e	 historicidade	 de	 nosso	 ser-no-mundo,	 no	 interior	 do	 qual	 não	 se	 separa	 o
direito	da	sociedade,	 isto	porque	o	ser	é	sempre	o	ser	de	um	ente,	e	o	ente	só	é	no	seu	ser,
sendo	 o	 direito	 entendido	 como	 a	 sociedade	 em	 movimento),	 e	 onde	 o	 sentido	 já	 vem
antecipado	 (círculo	 hermenêutico).	 Afinal,	 conforme	 ensina	 Heidegger,	 “o	 ente	 somente
pode	 ser	 descoberto	 seja	 pelo	 caminho	 da	 percepção,	 seja	 por	 qualquer	 outro	 caminho	 de
acesso,	quando	o	ser	do	ente	já	está	revelado”.
Trata-se,	 enfim,	 da	 elaboração	 de	 uma	 análise	 antimetafísica,	 isto	 porque,	 a	 partir	 da
viragem	linguística	e	do	rompimento	com	o	paradigma	metafísico	aristotélico-tomista	e	da
filosofia	da	consciência,	a	linguagem	deixa	de	ser	uma	terceira	coisa	que	se	interpõe	entre	um
sujeito	e	um	objeto,	passando	a	ser	condição	de	possibilidade.	Melhor	dizendo,	a	linguagem,
mais	do	que	condição	de	possibilidade,	é,	como	bem	assinala	Luiz	Rohden,4	“constituinte	e
constituidora	do	nosso	saber,	conhecer	e	agir”.	Ao	mesmo	tempo,	o	processo	interpretativo
deixa	de	 ser	 reprodutivo	 (Auslegung)	 e	passa	 a	 ser	produtivo	 (Sinngebung).	 É	 impossível	 ao
intérprete	 desprender-se	 da	 circularidade	 da	 compreensão,	 isto	 é,	 como	 aduz	 com
pertinência	Stein,	nós,	que	dizemos	o	ser,	devemos	primeiro	escutar	o	que	diz	a	linguagem.	A
compreensão	e	explicitação	do	ser	já	exige	uma	compreensão	anterior.	Há	sempre	um	sentido
que	 nos	 é	 antecipado.	 Opta-se,	 desse	modo,	 por	 adotar	 a	matriz	 heideggeriana,	 enquanto
superação	do	esquema	sujeito-objeto,	representada	pela	busca	na	filosofia	de	um	fundamento
para	 o	 conhecimento,	 a	 partir	 do	 discurso	 em	 que	 impera	 a	 ideia	 de	 juízo	 (Stein).	 O
privilegiamento	da	ontologia	fundamental	heideggeriana	radica	na	construção	das	condições
de	 possibilidades	 que	 esse	 ferramental	 representa	 para	 uma	 crítica	 ao	 pensamento
objetificador	 que	 domina	 o	 pensamento	 dogmático	 do	 direito.	 A	 ontologia	 fundamental
rompe	com	o	processo	de	entificação	do	ser	próprio	do	pensamento	dogmático-jurídico.	Dito
de	outro	modo,	enquanto	a	dogmática	 jurídica	 tenta	explicar	o	direito,	a	partir	da	 ideia	de
que	o	ser	 (o	sentido)	é	um	ente	 (isto	é,	 como	se	o	conceito	de	“coisa	 julgada”	ou	“legítima
defesa”	fosse	um	ente	apreensível	como	ente),	a	partir	de	Heidegger	pretendo	mostrar	que
há	 uma	 clivagem	 entre	 nós	 e	 o	mundo,	 porque	 nunca	 atingimos	 o	mundo	 dos	 objetos	 de
maneira	direta,	mas,	sim,	sempre	pelo	discurso.5
A	Crítica	Hermenêutica	do	Direito	 (CHD)	sustenta-se	na	noção	de	“método”	 formulado
por	 Heidegger,	 pelo	 qual	 a	 linguagem	 é	 comandada	 pela	 coisa	 mesma,	 torna-se
absolutamente	relevante	sua	inserção	no	direito,	exatamente	pelo	fato	de	que	o	pensamento
dogmático	 do	 direito,	 por	 ser	 objetificador	 e	 pensar	 o	 direito	 metafisicamente,	 esconde	 a
coisa	 mesma,	 obnubilando	 o	 processo	 de	 interpretação	 jurídica.	 Essa	 coisa	 mesma	 que
Heidegger	persegue	é	a	questão	do	ser	no	horizonte	da	diferença	ontológica	(Stein).	Por	isso,
todo	o	trabalho	de	desconstrução	do	pensamento	dogmático-objetificador	do	direito	é	feito,
no	 interior	 da	 Crítica	 Hermenêutica	 do	 Direito,	 sob	 o	 signo	 desse	 fundamental	 teorema
heideggeriano:	a	diferença	ontológica.
Assim,	 é	para	 esta	 incursão	hermenêutica	 que	o	 leitor	 é	 convidado.	Numa	palavra:	 esta
edição	 tem	 também	 um	 caráter	 comemorativo.	 Mas,	 fundamentalmente,	 a	 pretensão	 é
atualizar	o	meu	próprio	pensamento	e	a	minha	trajetória.
Da	Dacha	de	São	José	do	Herval,	no	verão	tórrido	de	2010/2011	e	no	início	do	inverno	de
2013.
	
Notas
2	Para	tanto,	ver	Stein,	Ernildo.	A	questão	do	método	na	filosofia.	Um	estudo	do	modelo	heideggeriano.	Porto	Alegre:	Movimento,
1983,	p.	100	e	101.
3	Cf.	Stein,	Ernildo.	Diferença	e	Metafísica:	ensaios	sobre	a	desconstrução.	Porto	Alegre:	Edipucrs,	2000,	p.	67	e	segs.
4	Cf.	Rohden,	Luis.	Hermenêutica	e	Linguagem.	In:	Hermenêutica	Filosófica	nas	Trilhas	de	Hans-Georg	Gadamer.	Porto	Alegre:
Edipucrs,	2000,	p.	160.
5	Cf	Stein,	Diferença,	op.	cit.,	p.	48.
1.	A	Modernidade	tardia	no	Brasil:	o	papel	do	Direito	e	as
promessas	da	modernidade	–	da	necessidade	de	uma	crítica	da
razão	ínica	no	Brasil	e	o	binômio	“estamentos-
patrimonialismo”
	
Em	tempos	de	globalização,	é	inexorável	que	a	questão	da	função	do	Estado	e	do	Direito
seja	(re)discutida,	 assim	 como	 as	 condições	 de	 possibilidade	da	 realização	da	democracia	 e
dos	direitos	fundamentais	em	países	saídos	de	regimes	autoritários,	carentes,	talvez,	de	uma
segunda	transição	(Guillermo	O’Donnell).
O	 (dominante)	discurso	desregulamentador	 –	 atravessado/impulsionado	pelo	 fenômeno
da	democracia	delegativa6	–	adjudica	sentidos	em	nosso	cotidiano,	tentando	nos	convencer	de
que	a	modernidade	acabou.	Pois	é	justamente	neste	contexto	que	estas	reflexões	se	inserem,
buscando	 a	 construção	 de	 um	 discurso	 que	 aborde	 criticamente	 o	 papel	 do	 Direito,	 do
discurso	 jurídico	 e	 a	 justificação	do	poder	oficial	por	meio	do	discurso	 jurídico	 em	 face	da
problemática	da	relação	Direito-Estado-DogmáticaJurídica.
Para	grande	parte	das	elites	brasileiras,	a	modernidade	acabou.	Tudo	isto	parece	estranho
e	 ao	 mesmo	 tempo	 paradoxal.	 A	 modernidade	 nos	 legou	 a	 noção	 de	 sujeito,	 o	 Estado,	 o
Direito	 e	 as	 instituições.	 Rompendo	 com	 o	 medievo,	 o	 Estado	 Moderno	 surge	 como	 um
avanço.	 Em	um	primeiro	momento,	 como	 absolutista	 e,	 depois,	 como	 liberal;	mais	 tarde	 o
Estado	se	transforma,	surgindo	o	Estado	Contemporâneo	sob	as	suas	mais	variadas	faces.	Essa
transformação	 decorre	 justamente	 do	 acirramento	 das	 contradições	 sociais	 proporcionadas
pelo	 liberalismo	 (ou	 aquilo	que	 representava	um	modelo	de	Estado	que	 atravessa	o	 século
XIX	 e,	 no	 século	 XX,	 “dá	 de	 frente	 com	 as	 revoluções”).	 Veja-se	 que	 esse	 “Estado
intervencionista	não	 é	uma	 concessão	do	 capital,	mas	 a	 única	 forma	 de	 a	 sociedade	 capitalista
preservar-se,	 necessariamente	 mediante	 empenho	 na	 promoção	 da	 diminuição	 das	 desigualdades
socioeconômicas.	A	ampliação	das	funções	do	Estado,	tornando-o	tutor	e	suporte	da	economia,
agora	sob	conotação	pública,	presta-se	a	objetivos	contraditórios:	a	defesa	da	acumulação	do
capital,	em	conformidade	com	os	propósitos	da	classe	burguesa,	e	a	proteção	dos	interesses
dos	 trabalhadores”.7	 Além	 disto,	 é	 bom	 frisar	 que	 “o	 intervencionismo	 estatal	 também	 se
constitui	 em	 defesa	 do	 capital	 contra	 as	 insurreições	 operárias,	 opondo-se	 à	 ilusão	 de
igualdade	de	todos	os	indivíduos	diante	da	lei”.8
Nessa	linha,	vem	bem	a	propósito	o	dizer	de	Boaventura	de	Sousa	Santos,	para	quem	esse
Estado,	também	chamado	de	Estado	Providência	ou	Social,	foi	a	instituição	política	inventada
nas	 sociedades	 capitalistas	 para	 compatibilizar	 as	 promessas	 da	 Modernidade	 com	 o
desenvolvimento	capitalista.	Este	tipo	de	Estado,9	segundo	as	perspectivas	“desreguladoras”,
foi	algo	que	passou,	desapareceu,	 e	o	Estado	simplesmente	 tem,	agora,	de	 se	enxugar	 cada
vez	mais	(embora	–	lembremos	–	na	crise	do	setor	financeiro	mundial	de	2008,	quem	tenha
salvado	 a	 economia	 tenha	 sido	 justamente	 o	 “malsinado”	 Estado).	 Alguns	 dados	 podem
auxiliar	 na	 compreensão	 desse	 fenômeno:	 em	 junho	 de	 2009,	 a	 General	 Motors	 (GM),
empresa	que	–	ainda	na	década	de	1970	–	criou	o	ideal	de	“obsolecência	programada”,	dando
início	a	uma	nova	fase	do	capitalismo,	 teve	sua	concordata	decretada	pelo	Poder	 Judiciário
estadunidense.	A	crise	econômica	gerada	pela	“bolha	especulativa”	que	estourou	em	2008	–	a
chamada	 “crise	 do	 sub	 prime”	 que	 contaminou	 as	 principais	 economias	 do	mundo	 –10,	 fez
com	que	a	GM	chegasse	ao	fim	com	uma	dívida	acumulada	em	176	bilhões	de	dólares.	Para
que	o	desastre	não	fosse	ainda	maior,	o	governo	dos	Estados	Unidos	decidiu	comprar	60%	das
ações	 da	 empresa.	 Ironicamente,	 uma	 das	 empresas	 responsáveis	 pela	 fustigante	 onda
daquilo	que,	com	Michel	Foucault,	podemos	chamar	de	“fobia	de	Estado”,	tem	agora	como
efetivo	“dono”	o	Estado	estadunidense.11	Pouco	antes,	em	março	de	2009,	importante	revista
brasileira	 (Carta	Capital)	 trazia	 como	matéria	de	 capa	a	notícia	de	que	havia	aumentado	o
consenso	entre	os	economistas	no	sentido	de	que	o	“resgate”	do	sistema	bancário12	–	o	campo
econômico	afetado	diretamente	pela	atual	 crise	–	passaria	 inevitavelmente	por	políticas	de
estatização.13
Essa	 fenomenologia	 pode	 ser	 corroborada	 por	 uma	 série	 de	 autores	 que	 também
vislumbram	o	momento	da	crise	econômica	mundial	–	provocada	por	um	excessivo	ímpeto
desregulamentador	 por	 parte	 dos	 agentes	 econômicos	 –	 como	 um	 retorno	 às	 propostas
keynesianas.	Nesse	sentido,	Fernando	Cardim	de	Carvalho	afirma	que	“a	crise	que	começou
como	financeira	no	início	de	2007	e	transformou-se	em	uma	crise	da	economia	real	ao	final
de	 2008	 e	 cuja	 resolução	 ainda	 se	 mostra	 extremamente	 incerta	 tem	 dado	 novo	 eco	 a
proposições	feitas	por	Keynes	e	lembradas	por	praticantes	dessa	nas	muitas	décadas	em	que
ela	ficou	relegada	ao	submundo	dos	heréticos”.14	Em	linha	similar,	também	Bresser	Pereira15
entende	 que	 essa	 crise	 enseja	 uma	 remodelação	 do	 capitalismo	 que	 deverá	 trazer	 consigo
uma	retomada	das	tendências	econômicas	presentes	nos	anos	dourados	do	capitalismo	–	que
vão	do	final	da	Segunda	Guerra	até	o	rompimento	do	acordo	de	Bretton	Woods,	que	acabou
com	a	paridade	ouro-dólar	–	quando	o	domínio	das	políticas	macroeconômicas	propostas	por
Keynes	fazia	parte	da	cartilha	dos	economistas.
Observe-se	 que,	 para	 os	 mesmos	 que,	 quando	 precisam,	 buscam	 socorro	 no	 Estado	 –
inclusive	por	 intermédio	de	políticas	de	welfare	state	ou,	porque	não	dizer,	keynesianas	–	o
Estado	continua	sendo	uma	 instituição	anacrônica	 (sic),	porque	é	uma	entidade	nacional,	 e
tudo	o	mais	está	globalizado.	Ora,	paradoxalmente,	a	globalização	sempre	se	colocou	como	o
contraponto	 das	 políticas	 de	 intervenção	 do	 Estado	 e,	 principalmente,	 das	 políticas	 de
regulação	da	economia.	Nesse	 sentido,	não	 surpreende	que	a	 falta	de	 regula(menta)ção	do
sistema	financeiro	nos	Estados	Unidos	tenha	sido	o	principal	motivo	do	desencadeamento	da
crise	de	2008.16
Não	 é	 possível	 ainda	 saber	 se	 o	 capitalismo	 globalizado	 tirou	 lições	 dos	 episódios	 que
abalaram	a	primeira	década	do	século	XXI.	De	todo	modo,	é	possível	dizer	que	“a	lógica	geral
da	competição	globalizante	[continua	a	ser]	inequivocamente	concentradora.	Daí	não	apenas
fusões,	mas,	 sobretudo,	 a	 exclusão	de	grandes	massas	de	 trabalhadores	da	possibilidade	de
inserção	 apta	 no	 mundo	 econômico,	 o	 desemprego	 e	 a	 precarização	 do	 trabalho,	 a
desigualdade	social	crescente	mesmo	nos	países	em	que	o	desemprego	é	comparativamente
reduzido,	e	os	indicadores	exibem	saúde	e	pujança	econômica	–	em	suma,	aquilo	que	alguns
têm	chamado	de	‘brasilianização’	do	capitalismo	avançado.	No	caso	brasileiro,	acresce	o	fato
de	 que	 nos	 inserimos	mais	 precariamente	 no	 jogo,	não	 só	 porque	 já	 somos	 o	 Brasil	 da	 pesada
herança	 escravista	 e	 do	 fosso	 social,	 mas	 também	 porque	 nossas	 fragilidades	 nos	 tornam	 vítimas
preferenciais,	 sempre	 prontas	 a	 surgir	 como	 ‘bola	 da	 vez’	 nas	 perversidades	 da	 dinâmica
transnacional”.17
A	globalização	aparece	como	a	nova	face/roupagem	do	capitalismo	internacional.	Nesse
contexto,	André-Noël	Roth18	alerta	para	o	fato	de	que	a	globalização	nos	empurra	rumo	a	um
modelo	 de	 regulação	 social	 neofeudal,	 através	 da	 constatação	 do	 debilitamento	 das
especificidades	que	diferenciam	o	Estado	moderno	do	feudalismo:	a)	a	distinção	entre	esfera
privada	 e	 esfera	 pública;	 b)	 a	 dissociação	 entre	 o	 poderio	 político	 e	 o	 econômico;	 e	 c)	 a
separação	entre	as	funções	administrativas,	políticas	e	a	sociedade	civil.	Para	Roth,	o	caráter
neofeudal	 da	 regulamentação	 social	 reside	 em	 parte	 nessa	 evolução	 e	 em	 parte	 em	 uma
leitura	pessimista	da	forma	decisória	–	a	infinidade	de	foros	de	negociações	descentralizados
–	sugerida	pelo	direito	reflexivo	(de	cunho	autopoiético).
Evidentemente,	 a	minimização	do	Estado	 em	países	que	passaram	pela	 etapa	do	Estado
Providência	 ou	 welfare	 state	 tem	 consequências	 absolutamente	 diversas	 da	 minimização	 do
Estado	 em	 países	 como	 o	 Brasil,	 onde	 não	 houve	 o	 Estado	 Social.19	 O	 Estado	 interventor-
desenvolvimentista-regulador,	 que	 deveria	 fazer	 esta	 função	 social,	 foi	 –	 especialmente	 no
Brasil	–	pródigo	 (somente)	para	com	as	elites,	 enfim,	para	as	camadas	médio-superiores	da
sociedade,	 que	 se	 apropriaram/aproveitaram	 de	 tudo	 desse	 Estado,	 privatizando-o,
dividindo/loteando	com	o	capital	internacional	os	monopólios	e	os	oligopólios	da	economia
e,	entre	outras	coisas,	construindo	empreendimentos	 imobiliários	com	o	dinheiro	do	 fundo
de	 garantia	 (FGTS)	 dos	 trabalhadores,	 fundo	 esse	 que,	 em	 1966,	 custou	 a	 estabilidade	 no
emprego	 para	 os	 milhões	 de	 brasileiros!	 Exemplo	 disto	 éque,	 enquanto	 os	 reais
detentores/destinatários	do	dinheiro	do	FGTS	não	 têm	onde	morar	 (ou	 se	moram,	moram
em	favelas	ou	bairros	distantes),	nossas	classes	médio-superiores	obtiveram	financiamentos
(a	 juros	subsidiados)	do	Banco	Nacional	da	Habitação	 (sic)	–	depositário	dos	recolhimentos
do	 FGTS	 –	 para	 construir	 casas	 e	 apartamentos	 na	 cidade	 e	 na	 praia...	 Isso	 para	 dizer	 o
mínimo!	Desnecessário	 lembrar	 que	parcela	 considerável	dos	 financiamentos	 realizados	na
década	de	 70	do	 século	passado	 sequer	 foram	pagos	 até	 o	 final	 dos	 contratos,	 pela	 singela
circunstância	 de	 que	 as	 prestações	 ficaram	 tão	 baixas	 que	 não	 valia	 a	 pena	 a	 emissão	 dos
carnês	de	cobrança.
Existe,	 ainda,	um	 imenso	défice	 social	 em	nosso	país,	 e,	por	 isso,	 temos	que	defender	as
instituições	 da	 modernidade.	 Por	 isso,	 o	 Estado	 não	 pode	 pretender	 ser	 fraco,	 lembra
Boaventura	Sousa	Santos:20	“Precisamos	de	um	Estado	cada	vez	mais	forte	para	garantir	os
direitos	num	contexto	hostil	de	globalização	neoliberal”.	E	acrescenta:	“Fica	evidente	que	o
conceito	de	um	Estado	fraco	é	um	conceito	fraco.(...)	Hoje,	forças	políticas	se	confrontam	com
diferentes	concepções	de	reforma”.
Como	 resultado,	 temos	 que,	 em	 terrae	 brasilis,	 as	 promessas	 da	 modernidade	 só	 são
aproveitadas	 por	 um	 certo	 tipo	 de	 brasileiros.	 Para	 os	 demais,	 o	 atraso!	O	 apartheid	 social!
Para	exemplificar,	lembremos	que	um	grupo	de	5.000	famílias	“muito	ricas”	–	ou	0,001%	do
total	de	famílias	do	país	–	reúne	um	patrimônio	que	representa	46%	do	PIB.21	Mais:	segundo
dados	divulgados	em	2011	pela	Associação	Brasileira	das	Entidades	dos	Mercados	Financeiro
e	 de	 Capitais	 (ANBIMA),	 os	 brasileiros	 de	 alta	 renda	 –	 aqueles	 (63.000	 pessoas)	 com	 pelo
menos	R$	1	milhão	em	aplicações,	fecharam	o	ano	de	2010	com	R$	371	bilhões	investidos	nos
bancos.	 Por	 isso	 não	 surpreende	 a	 existência	 no	 Brasil	 de	 duas	 espécies	 de	 pessoas:	 o
sobreintegrado	 ou	 sobrecidadão,	 que	 dispõe	 do	 sistema,	 mas	 a	 ele	 não	 se	 subordina,	 e	 o
subintegrado	ou	subcidadão,	que	depende	do	sistema,	mas	a	ele	não	tem	acesso.22
Por	 que	 atingimos	 esse	 grau	 de	 desigualdade?	 E	 por	 que	 o	 Estado	 brasileiro	 é	 lócus	 da
dilapidação	 da	 res	 publica?	 Uma	 das	 formas	 de	 explicar	 esse	 problema	 reside	 no	 binômio
patrimonialismo-estamento,	que	Raymundo	Faoro	apresenta	para	construir	sua	interpretação
do	 Brasil	 (desde	 as	 feitorias	 até	 a	 Era	 Vargas).	 Com	 efeito,	 em	 reduzida	 síntese,	 a	 tese	 de
Faoro	 vai	 no	 sentido	 de	 que	 o	 poder	 político	 no	 Brasil	 se	 articula,	 devido	 a	 uma	 herança
lusitana,	a	partir	de	um	estado	que	é	patrimonialista	em	seu	conteúdo	e	estamental	na	forma.
Patrimonialista	porque	os	titulares	do	poder	se	apoderam	do	aparelhamento	estatal	de	tal
forma	que	acaba	por	gerar	uma	quase	indistinção	entre	o	que	é	bem	público	(Estado)	e	o	que
é	 o	 bem	 privado;	 ou	 seja,	 trata-se	 da	 utilização	 dos	 espaços	 estatais	 para	 realização	 e
administração	de	interesses	de	origem	privada.	Isso	tem	consequências	sérias.	O	estamento,
por	outro	lado,	é	o	que	dá	forma	a	esse	exercício	patrimonialista	do	poder.
Trata-se	 de	 uma	 verdadeira	 casta	 que	 assume	 o	 controle	 do	 Estado,	 governando-o	 de
acordo	 com	 seus	 interesses.	 Portanto,	 os	 estamentos,	 vistos	 a	 partir	 de	Os	 Donos	 do	 Poder,
mostra-nos	que,	em	determinadas	circunstâncias,	o	Brasil	é	ainda	pré-moderno.	Temos	uma
sociedade	de	estamentos,	que	“ficam	de	fora”	da	classificação	tradicional	de	classes	sociais.
Nas	palavras	de	Faoro:	“sobre	a	sociedade,	acima	das	classes,	o	aparelhamento	político	–
uma	 camada	 social,	 comunitária	 embora	 nem	 sempre	 articulada,	 amorfa	 muitas	 vezes	 –
impera,	 rege	 e	 governa,	 em	 nome	 próprio,	 num	 círculo	 impermeável	 de	 comando.	 Esta
camada	muda	e	se	renova,	mas	não	representa	a	nação,	senão	que,	forçada	pela	lei	do	tempo,
substitui	moços	por	velhos,	aptos	por	inaptos,	num	processo	que	cunha	e	nobilita	os	recém-
vindos,	 imprimindo-lhes	 os	 seus	 valores”.23	 Há,	 assim,	 brasileiros	 “diferentes”	 de	 outros
brasileiros,	circunstância	reconhecida	pela	mais	alta	autoridade	da	nação	(o	então	Presidente
Luís	 Inácio	Lula	da	Silva),	ao	sugerir	que	o	Ministério	Público,	antes	de	denunciar	alguém,
examine	antes	o	seu	curriculum...!24
O	 binômio	 estamento-patrimonialismo	 pode	 ser	 detectado	 facilmente	 nos	 processos	 de
privatização	 no	Brasil.	A	partir	 deles,	 pode-se	 ver	 o	modo	 como	 a	 res	 publica	 é	 vista	 pelos
governantes	 e	 pelas	 elites.	 Em	 detalhado	 estudo	 trazido	 a	 lume	 em	 primeira	 mão	 pelo
jornalista	Elio	Gaspari,	Sérgio	Lazzarino	mostra	que	entre	1996	e	2009	a	rede	do	Estado	e	dos
burocratas	 de	 caixas	 de	 pensão	 (Petrobrás,	 Banco	 do	 Brasil,	 Caixa	 Econômica	 Federal	 etc.)
expandiu-se.	Em	1996,	num	universo	de	516	grandes	empresas,	o	BNDES	e	os	fundos	PREVI
(Banco	do	Brasil),	Petros	(Petrobrás)	e	Funcef	(Caixa	Federal)	participaram	de	72	sociedades.
Em	2003,	numa	amostra	de	494	companhias,	o	Estado	fazia-se	presente	em	95.	Em	2009,	num
universo	de	624,	o	Estado	tinha	um	pé	em	199	empresas.	O	livro	de	Lazzarini	leva	o	sugestivo
nome	de	Capitalismo	de	Laços,	mostrando	a	herança	patrimonialista	presente	nas	diversas
camadas	do	establishment.	A	obra	inicia	contando	a	investida	do	Governo	no	fundo	de	pensão
Previ	e	do	empresário	Eike	Batista	sobre	os	administradores	da	Vale	do	Rio	Doce,	empresa
privatizada	no	governo	Fernando	Henrique	Cardoso	por	um	valor	simbólico.	Em	tese,	a	Vale
é	 uma	 empresa	 privada.	 Na	 prática,	 pelo	 “capitalismo	 de	 laços”,	 o	 governo	 é	 seu	 maior
acionista	e,	na	ocasião,	Eike	Batista	era	o	melhor	amigo.	Em	2008,	foi	o	maior	financiador	do
filme	 “Lula,	 o	 Filho	 do	 Brasil”	 e,	 em	 2006,	 o	 maior	 doador	 individual	 da	 campanha	 que
reelegeu	Lula.	E	o	maior	doador	corporativo	foi	a	empresa	“privada”	Vale	do	Rio	Doce.25
O	 mesmo	 estudo	 de	 Lazzarini	 mostra	 que	 o	 governo	 Fernando	 Henrique	 ajudou	 a
sedimentar	 essa	 “capitalismo	de	 laços”	 em	 terrae	brasilis.	Atualmente,	 esse	 “capitalismo	de
laços”	 pode	 ser	 visto,	 por	 exemplo,	 pela	 estrutura	 das	 grandes	 empresas:	 11	 grandes
empresários	participam	de	66	conselhos	de	empresas.
Como	 se	 pode	 perceber,	 não	 bastasse	 o	 modo	 como	 as	 empresas	 estatais	 foram
privatizadas	–	aquilo	que	Gaspari	vem	chamando	de	“privataria”	–	construiu-se	um	segundo
estágio	 nesse	 processo	 de	 “entrelaçamento	 entre	 o	 público	 e	 o	 privado”,	 isto	 é,	 o	 velho
patrimonialismo	tão	bem	denunciado	por	Raymundo	Faoro.
A	 pergunta	 que	 se	 faz	 é:	 em	 que	 medida	 o	 país	 avança	 no	 tocante	 à	 redução	 das
desigualdades?	Se	no	âmbito	do	“andar	de	cima”	as	elites	conseguem	se	agrupar	e	reagrupar
em	 todos	 os	 segmentos	 econômicos	 e	 financeiros,	 no	 “andar	 de	 baixo”	 os	 indicadores,
mormente	os	da	última	década,	de	redução	da	pobreza	e	inclusão	social	decorrem	de	fortes
investimentos	governamentais.	Ou	seja,	parece	haver	dois	“mundos”	separados:	o	“mundo”
dos	estamentos,	para	usar	aqui	a	expressão	de	Raymundo	Faoro,	que	funciona	paralelamente
ao	“mundo”	de	baixo,	que	depende	de	políticas	governamentais	como	o	“bolsa-família”.
Assim,	 paralelamente	 ao	 “capitalismo	 de	 laços”,	 que	 concentra	 mais	 e	 mais	 a	 riqueza
nacional,	não	se	pode	deixar	de	assinalar	uma	melhora	nos	 indicadores	sociais.	Com	efeito,
foram	 divulgados	 resultados	 do	 Censo	 de	 2010,	 realizado	 pelo	 IBGE,	 de	 que	 98,2%	 das
crianças	 e	 adolescentes	 entre	 6	 e	 14	 anos	 frequentam	 regularmente	 escolas,26	 o	 que
representa,	 certamente,	 um	 salto	 decisivo	 em	 direção	 à	 universalização	 do	 ensino
preconizada	no	art.	208	da	CF.	Ao	mesmo	tempo,	também	com	relação	ao	Ensino	Superior,
de	1998	a	2008,	o	número	de	jovens	entre	18	e	24	anos	cursando	alguma	Faculdade	passou	de
6,9%	 para	 13,9%.Porém,	 se	 considerarmos	 o	 índice	 de	 brasileiros	 que	 frequentam	 a
universidade,	independente	da	idade,	o	índice	chega	em	30%.
Assim,	 de	 um	 lado	 temos	 um	 forte	 componente	 estamental,	 fruto	 de	 uma	 herança
patrimonialista	e,	na	mesma	linha,	o	“capitalismo	de	laços”.	Não	é	difícil	perceber	o	quadro
de	desigualdade	social	gerado	no	decorrer	da	história27	e,	de	certo	modo,	“aprimorado”	nos
anos	de	maior	concentração	de	renda	(período	da	ditadura	militar).
Um	dos	maiores	problemas	do	país	–	e	 isso	decorre	da	própria	 tradição	patrimonialista-
estamental	 –	 está	na	 corrupção	 e	nos	desvios	de	dinheiro	público	 lato	 sensu.	 Efetivamente,
basta	 uma	 amostragem	 de	 menos	 de	 dez	 edições	 da	 Folha	 de	 São	 Paulo	 –	 e	 utilizo
deliberadamente	apenas	um	veículo	de	comunicação	e	em	um	curtíssimo	espaço	de	tempo	–
para	se	ter	uma	ideia	do	grau	de	apropriação/privatização	da	res	publica.	Uma	auditoria	na
Funasa,	ligada	ao	Ministério	da	Saúde,	constatou	o	desvio	de	até	R$	500	milhões	(mais	de	300
milhões	de	dólares)	somente	no	período	de	2007	a	2010.28	Ao	mesmo	tempo,	 lê-se	que,	em
Porto	Alegre,	o	atendimento	à	saúde	(hospitais	da	rede	pública)	entrou	em	colapso,	em	um
quadro	 aterrador,	 em	 que	 centenas	 de	 pessoas	 aguardaram	 nos	 corredores,	 em	 macas
improvisadas,	vagas	para	 internação.29	Outro	dado	que	torna	manifesto	a	mixagem	entre	o
público	e	o	privado,	deixando	sempre	para	o	primeiro	(o	Estado)	o	pagamento	da	conta,	diz
respeito	 ao	 fato	 de	 os	 planos	 de	 saúde	 de	 terrae	 brasilis	 não	 restituírem	 ao	 SUS	 os
atendimentos	 feitos	 na	 rede	 pública	 aos	 usuários	 dos	 planos	 privados.30	 O	 valor	 devido	 é
suficiente	 para	 a	 construção	 de	 dezenas	 de	 hospitais	 ou	 para	 equipar	 as	 emergências	 nas
quais	 os	 pacientes	 são	 atendidos	 em	 macas	 improvisadas	 ou	 tomam	 soro	 em	 pé,	 como
ocorreu,	nos	últimos	anos,	nos	casos	de	surto	de	dengue	no	Rio	de	Janeiro	e	em	Porto	Seguro.
Na	mesma	linha,	foi	noticiado	que	“documentos	mostram	falhas	em	escolha	de	agência	de
publicidade	 que	 vai	 gerir	 conta	 do	 Ministério	 da	 Saúde”,	 e	 que	 a	 maior	 licitação	 de
publicidade	de	2010	tem	indício	de	fraude.31	Ainda	do	mês	de	janeiro	de	2011	é	a	notícia	de
que	Ministros	e	Procuradores	do	Tribunal	de	Contas	utilizam	verba	pública	para	viajar	aos
seus	Estados	de	origem.	De	todas	as	passagens	emitidas	em	2010,	68%	foram	usadas	em	fins
de	 semana	 e	 feriados.	 Foram	 emitidas	 no	 ano	 334	passagens	 aéreas.	 Somente	um	Ministro
utilizou	65	passagens,	das	quais	54	foram	para	a	sua	cidade	natal,	Recife.32	Também	os	jornais
dão	conta	de	que	“cliente	do	governo	vende	curso	de	presidente	do	Tribunal	de	Contas	da
União,	chegando	o	valor,	nos	últimos	dois	anos,	a	R$	2,1	milhões”.33
Estudo	 realizado	 pela	 OCDE	 (Organização	 para	 Cooperação	 e	 Desenvolvimento
Econômico)	mostra	que	o	Poder	Executivo	brasileiro	dispõe	de	número	exagerado	de	cargos
de	 livre	 nomeação	 em	 comparação	 com	 outros	 países.	 São	 22	 mil,34	 cerca	 do	 dobro	 dos
existentes	 nos	 Estados	 Unidos.	 Para	 essas	 vagas	 não	 há	 critérios	 transparentes	 de	 escolha,
tampouco	descrição	de	funções	e	avaliação	dos	nomeados.	Segundo	editorial	do	jornal	Folha
de	 São	 Paulo,	 esse	 quadro	 é	 em	 tudo	 propício	 à	 indicação	 de	 apaniguados	 de	 políticos	 e
governantes.	Para	 agravar	 a	 situação,	 foi	 aprovada	no	 ano	de	 2010	uma	 lei	 que	 aumenta	 a
oferta	 de	 cargos	 em	 conselhos	 de	 administração	 de	 empresas	 estatais.	 Ministros	 e
funcionários	 encontram	 nesses	 órgãos,	 em	 geral	 ornamentais,	 uma	 oportunidade	 para
engordar	seus	vencimentos.	O	pagamento	a	esses	“conselheiros”	chega	ao	valor	de	9	milhões
de	reais	por	ano.35
Há	questões	que	vão	do	atacado	ao	varejo.	Na	verdade,	o	imaginário	patrimonialista	está
incrustado	 na	 administração	 pública	 a	 ponto	 de	 ninguém	 se	 surpreender	 com	 o	 fato	 de	 a
esposa	de	um	 secretário	da	 Saúde	do	Distrito	Federal,	 proprietária	de	uma	 clínica	médica,
receber	1,1	milhão	de	reais	–	do	próprio	Estado	onde	ele,	o	marido,	é	secretário	–	por	serviços
prestados.36	 Não	 há	 limites,	 efetivamente,	 para	 a	 “invasão	 do	 público	 pelo	 privado”.	 Os
deputados	dos	Estados	de	Goiás	e	Rondônia	receberam,	ao	custo	de	R$	506	mil	no	primeiro	e
R$	217	mil	no	segundo,	para	uma	sessão	extra.37	Legislar	em	causa	própria	é	forte	sintoma	da
prevalência	de	um	imaginário	estamental.	Exemplo	disso	é	um	deputado	estadual	que,	por
ter	governado	um	Estado	da	federação	por	dez	dias,	passou	a	receber	pensão	vitalícia	de	R$
15	 mil.	 Na	 verdade,	 somente	 em	 pensão	 para	 ex-governadores	 o	 Estado	 brasileiro	 gasta
anualmente	 mais	 de	 R$	 30	 milhões,	 o	 equivalente	 ao	 pagamento	 do	 benefício	 de	 Bolsa-
Família	 para	 mais	 de	 30	 mil	 famílias	 ou	 construir	 800	 casas	 populares	 (para	 acrescentar:
somente	 no	 Estado	 de	 São	 Paulo	 são	 gastos	mais	 de	 R$	 35	milhões	 para	 o	 pagamento	 de
pensões	a	ex-deputados	estaduais).	Em	2010,	o	governo	federal38	gastou	R$	80	milhões	com
cartões	 corporativos,	 dos	 quais	 R$	 11,2	 milhões	 são	 com	 “gastos	 secretos”,	 volume	 que
cresceu	 67%	 em	 relação	 ao	 ano	 anterior.	 O	 Estado	 acaba	 sendo	 o	 lócus	 da	 apropriação
privada,	sob	as	mais	variadas	“rubricas”.	Veja-se	um	dado	curioso:	durante	doze	meses,	entre
2008	e	2009,	a	Petrobrás	gastou	R$	609	milhões	com	patrocínios,	festas,	ONGs	e	congressos.	E
as	cinco	maiores	empresas	estatais	doaram,	entre	os	anos	de	2006	e	2010,	o	montante	de	R$
7,4	milhões	para	a	comemoração	do	dia	do	trabalho,	ocasião,	aliás,	em	que	são	feitos	sempre
vigorosos	discursos	a	favor	da	transparência,	da	ética	e	da	função	social	do	capital	público...!
Veja-se	 que	 se	 trata	 de	 uma	 pequeníssima	 amostra.	 Deliberadamente	 pequena	 para
mostrar	 o	 conjunto	 de	 notícias	 transmitidas	 diariamente	 no	 país.	 Poder-se-ia	 acrescentar
ainda	outra	faceta	do	imaginário	estamental,39	por	exemplo,	noticiando	que,	de	1998	–	ano	que
entrou	em	vigor	a	Lei	de	Lavagem	de	Dinheiro	–	até	2010,	não	mais	de	17	processos	tiveram
resultado	condenatório	(paradoxalmente,	mantemos	presos	em	terrae	brasilis	mais	de	80.000
pessoas	 pelo	 crime	 de	 furto...!).	 Também	 não	 podemos	 olvidar	 da	 sonegação	 de	 tributos
(somente	no	ano	de	2010	o	valor	apontado	pela	Receita	Federal,	apenas	em	multas,	chegou
quase	 à	 casa	 dos	 100	 bilhões	 de	 reais).	 Na	 verdade,	 os	 índices	 mais	 otimistas	 acerca	 da
sonegação	dão	conta	de	que,	para	cada	real	arrecadado,	um	é	sonegado.
Tudo	isso,	à	evidência,	somente	se	mantém	a	partir	de	um	forte	componente	 ideológico.
Ou	seja,	a	maior	parte	da	sociedade	passa	a	acreditar	que	existe	uma	ordem	de	verdade,	na
qual	 cada	 um	 tem	o	 seu	 “lugar	 (de)marcado”.40	 Vejamos	 a	 complexidade	 do	 problema	 da
formação	do	Brasil.	Em	muitos	pontos	há	concordância	dos	pesquisadores.	Segundo	Antonio
Houaiss	e	Roberto	Amaral,	o	pressuposto	é	aceito	de	forma	geral:	1)	um	território	precioso,	2)
flora,	fauna	e	clima	esplêndidos,	3)	um	autoctonato	de	fácil	superação,	4)	uma	consolidação
linguística	 quase	 miraculosa,	 5)	 a	 gestação	 de	 uma	 cultura	 popular	 e	 ágrafa	 rica	 e
emocionante,	 6)	 uma	 expansão	 demográfica	 rara,	 pela	 multiplicação,	 pela	 miscigenação
tolerante	e	pela	democracia	empírica	convivial.	Eliminando	os	pontos	positivos,	restam,	ao	cabo
dos	quase	 cinco	 séculos	de	 operação	Brasil,	 os	 enigmas:	 a	dívida	 social	 crescente	 –	 fome,	 ensino
miserável,	 ausência	 de	 terra	 (guardada	 como	 “poupança”)	 para	 os	 aptos	 a	 trabalhá-la,
trabalho	no	campo	preferentemente	para	a	exportação,	a	 importação	preferentemente	para
gáudio	 dos	 exportadores.	 As	 chamadas	 elites	 brasileiras,	 bem	 pensadas,	 parecem	 ter	 tido,
excelente	ou	sobre-excelentemente,	o	mais	puro	sentido	de	autodefesa	e	sobrevivência:	1)	aos
trancos	 e	 barrancos,	 embora	 souberam	 reter	 para	 si	 o	 máximo	 dos	 bens	 materiais;2)
souberam	 harmonizar-se	 com	 os	 donos	 do	 mundo;	 conseguiram	 manter	 “seu”	 povo
admiravelmente	manietado,	pela	escravidão,	pelo	genocídio,	pela	ignorância,	pela	superstição	–	já	que
a	terra	lhes	foi	compensatoriamente	tão	generosa,	que	raros	foram	os	Palmares	e	os	Canudos	e	os
Caldeirões	em	que	criaram,	embora	efêmeras,	suas	pátrias	de	eleição	possível.41
É	nesse	contexto	que	cada	um	“assume”	o	“seu”	 lugar.	E	estes	compõem	a	maioria.	Essa
maioria,	 porém,	 não	 se	 dá	 conta	 de	 que	 essa	 “ordem”,	 esse	 “cada-um-tem-o-seu-lugar”
engendra	 a	 verdadeira	 violência	 simbólica42	 da	 ordem	 social,	 bem	 para	 além	 de	 todas	 as
correlações	de	forças	que	não	são	mais	do	que	a	sua	configuração	movente	e	indiferente	na
consciência	moral	e	política.
O	sistema	cultural	engendra	exatamente	um	 imaginário	no	qual,	principalmente	através
dos	meios	de	comunicação	de	massa,	se	faz	uma	amálgama	do	que	não	é	amalgamável.43	Por
isso,	por	exemplo,	é	possível	–	e	observe-se	a	relevância	dessa	questão	no	plano	simbólico	–	que	o
país	mantenha	impunemente	um	apartheid	em	elevadores	sociais	e	de	serviço,	o	que	legitima
o	preconceito	social!
Não	 causa	 espanto,	 assim,	 em	 nossa	 “pós-modernidade”	 midiática,	 que,	 a	 exemplo	 de
tantas	pessoas,	a	dublê	de	atriz	e	modelo	Carolina	Ferraz	justifique	o	apartheid	nos	elevadores
de	 forma	 bastante	 solene:	 “As	 coisas	 estão	 tão	 misturadas,	 confusas,	 na	 sociedade	 moderna.
Algumas	coisas,	da	 tradição,	devem	ser	preservadas.	É	 importante	haver	hierarquia”.	 Já	a	promoter
paulista	Daniela	Diniz,	assídua	frequentadora	das	colunas	sociais,	não	“nos	deixa	esquecer”
que	“...	cada	um	deve	 ter	o	 seu	espaço.	Não	é	uma	questão	de	discriminação,	mas	de	respeito”.	Ou
seja,	 para	 elas	 –	 e	 para	 quantos	 mais	 (!?)	 –	 a	 patuleia	 deve	 (continuar	 a)	 “saber-o-seu-
lugar”...44
Discursos	deste	quilate	não	podem	(e	não	devem)	nos	surpreender,	até	porque	nada	mais
são	 do	 que	 reproduções	 do	 que	 ocorre	 cotidianamente	 ao	 nosso	 redor,	 reforçados	 pelos
estereótipos	produzidos	pela	mídia	em	larga	escala.45	Daí	que,	usando	como	pano	de	fundo
essa	 discussão,	 Contardo	 Calegaris46	 procura	 explicar	 a	 atitude	 e	 o	 discurso	 das	 classes
médias	 e	médio-superiores	brasileiras	 acerca	desta	problemática:	 “No	Brasil,	 talvez	por	 ele
ter	 sido	 e	 talvez	 por	 ser	 ainda	 o	 maior	 sistema	 escravagista	 do	 mundo	 ocidental,	 a
modernização	 aconteceu	 pela	 metade.	 Nas	 classes	 médias,	 geralmente	 a	 regra	 é	 o	 poder
moderno	sobre	e	pelas	coisas.	Podemos	comprar	o	trabalho	de	um	outro,	seus	serviços,	mas	não
dispomos	 de	 seu	 corpo.	 Mas	 na	 relação	 entre	 as	 classes	 médias	 e	 as	 classes	 ditas
eufemisticamente	não	favorecidas	o	poder	ainda	é	poder	sobre	os	corpos,	construído	no	modelo
da	escravatura.	As	classes	médias	brasileiras	não	abriram	as	portas	do	poder	sobre	as	coisas
para	metade	da	população	do	país.	Não	por	razões	econômicas:	a	manutenção	do	escravagismo
caseiro	 é	 um	 péssimo	 negócio	 que	 estrangula	 o	 mercado	 interno.	 Foi	 por	 tradição	 ou	 por	 gosto
atávico	escravocrata”.	Por	isso,	diz	Calegaris,	tanta	violência	no	Brasil:	o	ladrão	brasileiro	não
está	só	pedindo	posse	de	mais	coisas.	Quer	mais!	Quer	os	corpos...!47	São	eles	que	(os	corpos)
“é	bom	possuir”.	E	(de	forma	irônica)	Calegaris	acrescenta:	“a	violência	(na	sociedade)	já	reverte
se	os	elevadores	de	serviço	forem	suprimidos”.
A	 “aceitação”	 da	 exclusão	 social	 é	 cotidianamente	 reforçada/justificada	 pelos	meios	 de
comunicação.	 Veja-se,	 a	 propósito	 –	 e	 a	 crítica	 foi	 magnificamente	 feita	 pelo	 jornalista
Vinícius	Torres	Freire	em	matéria	intitulada	“Carro	grande	e	senzala”	–,48	comercial	veiculado
em	rede	nacional	de	televisão,	para	lançamento	de	um	certo	automóvel	“classe	A”,	onde	um
casal	branco	e	bem	vestido	escorrega	pelo	piso	ensaboado	de	uma	garagem,	em	direção	ao
carro	apregoado.	Três	faxineiros,	morenos	e	miúdos	como	quase	todo	o	povo,	fazem	pilhéria
dos	 ricos	 à	 beira	 do	 tombo.	Mas	 o	 casal	 classe	 “A”	 chega	 ao	 carro	 “A”	 e	 sai	 zunindo	 da
garagem	escorregadia	–	o	carro	é	estável,	é	o	que	se	vende.	Os	faxineiros	 ficam	para	trás	com
cara	de	besta.	Um	deles	escorrega	e	cai	feito	um	pateta.	Em	outro	anúncio,	novamente	aparece	a
dualidade	“elite	branca	e	elegante”	versus	“plebe	rude	e	ignara”:	desta	vez	um	engravatado
regateia	 com	um	mendigo	 flanelinha	 a	 lavagem	do	mesmo	 carro	 “classe	A”.	Condescende
com	riso	senhorial	da	esperteza	do	pedinte,	que	quer	“dez	real”,	pois	o	carro	aquele	é	grande
por	 dentro.	 Como	 bem	 complementa	 Torres	 Freire,	 os	 aludidos	 anúncios	 reproduzem	 um
clichê	 clássico	 do	 imaginário	 subdesenvolvido,	 em	 que	 os	 pobres	 são	 espertos,	 sensuais	 e
marotos...	“O	Brasil	jamais	foi	uma	república	de	fato,	ex-escravos	continuaram	pobres,	pobres
não	têm	direitos	e	são	demais.	O	comercial	de	carro	‘A’	não	os	fará	mais	pobres,	mas	a	naturalidade
inconsciente	com	que	mofa	da	patuleia	é	um	sintoma.	 ‘Os	nativos	estão	inquietos’,	eles	assaltam,
mas	são	uma	classe	de	gente	diferente,	que	ficou	para	trás	naturalmente,	ridícula	como	um
escravo	ou	um	primitivo	pateta”.
Outro	 exemplo	 interessante	 é	 de	 um	 anúncio	 publicitário	 (premiado)	 que	 conseguiu
transformar	 a	 exploração	 em	 “glamour”	 (ou	 consegue	 “justificar”	 a	 semiescravidão	 dos
“velhos	e	bons	tempos”).	O	cenário	era	uma	antiga	fazenda	de	café.	Os	personagens	são	dois
recém-casados,	que,	ao	acordarem,	se	encaminham	ao	café	da	manhã.	Entrementes,	a	câmera
mostra	 os	 empregados	 da	 Fazenda	 se	 encaminhando	 para	 a	 plantação,	 com	 ferramentas
rudimentares	(típicas	“daqueles	tempos”).	Enquanto	os	campesinos	se	afastam,	o	casal	senta-
se	à	mesa,	ornada	com	toalha	rendada	e	com	xícaras	de	fino	porcelanato.	A	cena	culminante
é	 o	 café	 sendo	 servido,	 fumegante,	 denso,	 saboroso...	 e	 uma	 voz	 em	 off	 anunciando:	 Café
“Pindorama	Casagrande”:49	a	volta	dos	bons	tempos!	Faltou	apenas	uma	frase:	bons	tempos
para	quem?
Tudo	isto	se	encaixa,	pois,	em	uma	espécie	de	razão	cínica	brasileira.	 Invertendo	a	famosa
frase	de	Marx	dita	em	o	Capital:	“Sie	wissen	das	nicht,	aber	sie	tun	es”,	que	significa	“disso	eles
não	sabem,	mas	o	fazem”,	Peter	Sloterdijk	nos	ajuda	a	explicar	a	fórmula	dessa	razão	cínica
traduzida	no	 comportamento	de	nossas	 classes	dirigentes:	 “eles	 sabem	muito	 bem	 o	 que	 estão
fazendo,	mas	fazem	assim	mesmo”.50	Nossas	classes	dirigentes	e	o	establishment	jurídico	sabem	o
que	 está	 ocorrendo,	 mas	 continuam	 a	 fazer	 as	 mesmas	 coisas	 que	 historicamente	 vêm
fazendo.	Não	nos	damos	conta	das	questões	mais	prosaicas	que	nos	rodeiam	e	que	permeiam
o	nosso	imaginário,	problemática	já	analisada	anteriormente.
Esse	estado	da	arte	do	binômio	estamentos-patrimonialismo	(além	da	razão	cínica)	pode
ser	 ainda	melhor	 ilustrado.	Vejamos.	Há	um	 filme	 sobre	uma	peça	de	 teatro	que	pretende
contar	 a	 Revolução	 Francesa.	 Na	 primeira	 cena,	 o	 Rei	 e	 a	 Rainha	 fogem	 da	 França	 e	 são
recapturados	na	 fronteira.	Alguém	 reclama,	dizendo	que	 a	Revolução	deve	 ser	 contada	de
outro	modo.	Na	nova	cena,	aparece	uma	bacia	com	água	quente,	uma	camponesa	pronta	para
dar	 à	 luz	 e	 a	 parteira.	 Na	 sequência,	 entra	 um	 aristocrata,	 que	 voltava	 da	 caçada.	 Vendo
aquela	água	límpida,	lava	as	suas	botas	sujas	na	bacia	destinada	ao	parto.	Desdém,	deboche	e
desprezo!	 Pronto:	 é	 assim	 que	 se	 conta	 a	 origem	 da	 Revolução.	 É	 assim	 que	 se	 resgata	 a
capacidade	 de	 indignação.	 Pois	 examinando	 o	 projeto	 de	 lei	 federal	 (Dep.	 José	 Mentor)
pretendendo	 conceder	 anistia	 a	 quem	 tenha	 remetido	dinheiro	 ao	 exterior	de	 forma	 ilegal
(criminosa),	 penso	 no	 despudor	 do	 caçador	 aristocrata	 e,	 consequentemente,	 na	 nossa
herança	 patrimonialista.	 É	 impossível	 não	 fazê-lo.	 Explico:	 nos	 últimos	 anos,	 bilhões	 de
dólares	foram	sonegados,	lavados	e	remetidos,	à	socapae	à	sorrelfa,	ao	exterior.51	Não	se	sabe
o	quantum,	mas	se	estima	em	mais	de	U$	150	bilhões.	É	tanto	dinheiro	para	retornar,	que,	se
viesse	 mesmo,	 poderia,	 segundo	 alguns	 empresários	 do	 ramo	 exportador,	 provocar	 uma
queda	no	câmbio	em	face	da	enxurrada	de	moeda	estrangeira.	O	que	não	está	dito	é	que	a
pesada	máquina	pública	se	mostrou	ineficiente	para	punir	os	criminosos	(afinal,	la	ley	es	como
la	serpiente;	solo	pica	a	los	descalzos...,	e,	é	claro,	as	leis	disfuncionais	colaboraram	para	esse	mau
resultado).	 Então,	 qual	 é	 a	 solução?	 Ora,	 segundo	 o	 projeto	 de	 lei,	 devemos	 anistiar	 os
criminosos	do	colarinho	branco;	e,	na	sequência,	um	bom	discurso	para	criarmos	mais	cargos
públicos	para	o	combate	à	sonegação	e	à	evasão	de	divisas;	e,	na	sequência,	outra	anistia...!
Lembremos	sempre	do	Dr.	Pangloss,	do	Cândido	(Voltaire):	vivemos	no	melhor	dos	mundos!
Na	verdade,	somos	eficientes	nisso.	De	há	muito	perseguimos	com	êxito	ladrões	de	galinha
e	de	sabonetes,	mas	não	somos	tão	bons	para	“pegar”	sonegadores	e	lavadores	de	dinheiro.
Por	todos,	lembremos	de	um	dos	personagens	mais	marcantes	da	criminalidade	do	colarinho
branco	 dos	 últimos	 tempos,	Marcos	 Valério,	 que,	 no	 ano	 de	 2008,	mesmo	 já	 condenado	 à
prisão,	pagou	o	valor	sonegado	e	teve	extinta	a	sua	punibilidade	(a	seu	favor,	a	bondosa	Lei
10.684	e	uma	generosa	interpretação	dada	ao	artigo	9º).	Se	não	fosse	trágico,	seria	engraçado,
porque,	ao	mesmo	tempo,	milhares	de	ladrões	(sic)	continuam	encarcerados	(lembremos	que
temos	mais	 de	 trezentos	mil	 presos	 no	 Brasil	 por	 crimes	 contra	 o	 patrimônio	 individual	 e
pouquíssimos	por	crimes	de	sonegação	ou	evasão	de	divisas).
Veja-se:	pelo	projeto	“anistiador”,	que	 teve	aprovação	no	Senado,	basta	que	o	“cidadão”
declare	o	valor	que	remeteu	ao	exterior,	pague	o	imposto	de	6%	e	estará	anistiado.	Portanto,
“vale	a	pena”	remeter	dinheiro	ilegal	para	o	exterior.	Ou	seja:	o	crime	compensa.	E,	atenção:
o	sigilo	será	preservado	(ainda	bem...	imagine-se	que	o	povo	saiba	o	nome	dessas	pessoas...!)!
Trata-se	da	institucionalização	da	impunidade	do	“andar	de	cima”,	para	usar	uma	expressão
de	 Elio	Gaspari.	 É	 a	 “função	 social	 do	 crime!”.	A	 questão	 é	 saber	 se	 o	 deputado	 autor	 do
projeto	concorda	em	fazer	uma	emenda,	com	base	nos	princípios	da	 isonomia	e	 igualdade,
concedendo	 anistia	 também	 a	 todos	 aqueles	 que	 devolverem	 o	 valor	 produto	 de	 furtos,
estelionatos	 e	 apropriações	 indébitas.	 Afinal,	 se	 vale	 para	 o	 “estamenteiros”,	 por	 que	 não
estender	a	benesse	à	“patuleia”?52
Numa	palavra	 final,	vem	bem	a	propósito	disso	o	dizer	de	 Jurandir	Freire	Costa,53	 para
quem	“hoje	aposentamos	os	Rousseau.	Em	vez	de	utopias,	(existem	os)	manuais	de	autoajuda,
psicofármacos,	 cocaína	 e	 terapêuticas	 diversas	 para	 os	 que	 têm	 dinheiro;	 banditismo,
vagabundagem,	mendicância	ou	religiosismo	fanático	para	os	que	apenas	sobrevivem”.
	
Notas
6	Segundo	O’Donnell,	 a	 transição	de	 regimes	 autoritários	para	governos	 eleitos	democraticamente	não	 encerra	 a	 tarefa	de
construção	democrática:	é	necessária	uma	segunda	transição,	até	o	estabelecimento	de	um	regime	democrático.	A	escassez	de
instituições	democráticas	e	o	estilo	de	governo	dos	presidentes	eleitos	em	vários	países	que	saíram	recentemente	de	regimes
autoritários	 –	 particularmente	 da	 América	 Latina	 –	 caracterizam	 uma	 situação	 em	 que,	 mesmo	 não	 havendo	 ameaças
iminentes	de	 regresso	 ao	 autoritarismo,	 é	difícil	 avançar	para	 a	 consolidação	 institucional	da	democracia.	O	 estudo	desses
casos	sugere	a	existência	de	um	tipo	peculiar	de	democracia	em	que	a	delegação	prevalece	sobre	a	representação,	 denominada
pelo	 autor	 de	 democracia	 delegativa,	 fortemente	 individualista,	 com	 um	 corte	 mais	 hobbesiano	 do	 que	 lockiano.	 Consultar
O’Donnell,	Guillermo.	Democracia	delegativa?	In:	Novos	Estudos	Cebrap,	n.31,	out/91,	p.	25	e	segs.
7	Cf.	Pereira	e	Silva,	Reinaldo.	O	mercado	de	trabalho	humano.	São	Paulo:	LTr,	1998,	p.	45.
8	Idem,	ibidem.	Ver	também	Carvalhosa,	Modesto.	Direito	Econômico.	São	Paulo:	Revista	dos	Tribunais,	1973,	p.	100.
9	 Sobre	 Estado	 Social,	 sua	 crise	 e	 suas	 transformações,	 ver:	 García-Pelayo,	 Manuel.	 Las	 transformaciones	 del	 Estado
contemporáneo.	Madrid:	Alianza	Editorial,	1997;	Capella,	Juan	Ramón.	Fruta	prohibida.	Una	aproximación	histórico-teorética	al
estudio	del	derecho	y	del	Estado.	Madrid:	Editorial	Trotta,	1997.	Sempre	é	bom	registrar	que	a	República	de	Weimar,	na	“fase
experimental”	após	a	Primeira	Grande	Guerra,	 iniciou	a	 implantação	dos	direitos	sociais,	 também	chamados	de	direitos	de
segunda	 geração.	 Em	 outros	 países,	 explica	 Capella,	 como	 Grã-Bretanha,	 França	 e	 Itália,	 teriam	 que	 aguardar	 ainda	 um
quarto	de	século.	Nos	anos	trinta,	nos	EUA,	mediante	métodos	não	legislativos,	foi	dado	um	passo	para	o	reconhecimento	dos
direitos	 dos	mais	 fracos,	 porém,	 apesar	 de	 ser	 a	 pátria	 do	New	Deal,	 os	 trabalhadores	 norte-americanos	 nunca	 tiveram	 a
cobertura	 de	 direitos	 sociais	 dos	 trabalhadores	 da	 Europa	 ocidental	 (se	 aproximaram	dos	 trabalhadores	 europeus	 por	 um
brevíssimo	momento,	 durante	 a	 administração	 Johnson,	 no	 final	 dos	 anos	 setenta).	 Em	 contrapartida,	 outros	 aspectos	 das
políticas	 keynesianas	 se	 iniciaram	 nos	 Estados	Unidos	 nos	 anos	 trinta,	 enquanto	 na	 Europa	 os	 trabalhadores	 tiveram	 que
esperar	até	o	 final	da	segunda	guerra	mundial.	Cf.	Capella,	op.	cit.,	p.	172.	Também	Rosanvallon,	Pierre.	A	 crise	 do	 estado-
providência.	Goiania,	Editora	UNB,	1997,	p.	38	e	segs.
10	Até	mesmo	 Richard	 Posner,	 o	 arauto	 do	 Law	 and	 Economics	 admitiu	 que	 a	macroeconomia	 foi	 pensada	 tendo	 poucas
interseções	 com	 o	 direito	 e,	 por	 isso,	 segundo	 ele,	 os	 teóricos	 da	 Análise	 Econômica	 do	 Direito	 –	 AED	 –	 não	 tinham
conhecimentos	de	macroeconomia	suficientes	e,	assim,	não	avaliaram	bem	o	lado	negativo	da	desregulamentação	financeira.
Admitiu	que	errou	em	suas	previsões	quanto	à	 crise	de	2008.	Cf.	Posner,	Richard.	On	 the	Receipt	of	 the	Ronald	H.	Coase
Medal:	Uncertainty,	the	Economic	Crisis,	and	the	Future	of	Law	and	Economics.	In	American	Law	&	Economics	Review,	 Vol.
12	 Issue	2,	2010,	p.	268.	Para	Posner,	a	AED	se	 tornou	muito	acadêmica	e	 incapaz,	assim,	de	prover	uma	resposta	 rápida
para	 a	 crise	 econômica.	Cf.	 Ibidem,	 p.	 270.	Mas,	 na	 verdade,	 a	 crise	 rompeu	 com	o	 discurso	 neoliberal	 e	 da	AED.	 Isto	 é,
liberalismo	 só	 quando	 interessa.	 Depois	 reconheceu	 que	 a	 crise	 surpreendeu	 até	mesmo	 os	 analistas	 econômicos,	 gerando
dúvidas	até	mesmo	sobre	alguns	pressupostos	que	norteiam	a	pesquisa	econômica	sobre	o	sistema	legal.	Para	ele,	seria	preciso
prestar	 atenção	 no	 fato	 de	 que	 a	 economia	 tem	 riscos	 que	 são	 racionalmente	 escolhidos	 economicamente.	 Seriam	 riscos
incalculáveis,	em	alguns	casos.	Cf.	Ibidem,	p.	272.
11	Cf.	GM,	1908-2009.	In:	Carta	Capital.	10.06.2009,	p.	50-52.
12	A	intervenção	do	Estado	para	salvar	determinado	setor	envolvido	em	crise	é	de	longa	data	na	História	do	Brasil,	como	o
caso	da	compra	de	café	na	República	Velha	em	1906	devido	a	superprodução	de	café.	Segundo	o	Convênio	de	Taubaté,	o
governo	brasileiro	 compraria	o	excedente	da	produção	para	que	a	quantidade	disponível	no	mercado	 fosse	 suficiente	para
garantir	o	preço	aos	cafeicultores.
13	Cf.	O	Capital	é	Vermelho.	In:	Carta	Capital.	04.03.2009,	p.	60/64.	Nos	termos	da	manchete:	“salvar	o	sistema	financeiro
capitalista	exigirá	a	estatização	dos	que	já	foram	os	maiores	bancos	do	mundo”.
14	Cf.	Carvalho,	Fernando	Cardim	de.	O	Retorno	a	Keynes.	In:	Novos	Estudos	–	CEBRAP,	nº	83,	março	de	2009,	p.	100.
15	Cf.	Bresser-Pereira,	Luiz	Carlos.	A	Crise	Financeira	Global	e	depois:	um	novo	capitalismo?	In:	Novos	Estudos	–	CEBRAP,	nº
86,	março	de	2010,	p.	51.
16	 A	 propósito,	 veja-se	 o	 documentário	 “Inside	 Job”,	 que	 conta	 a	 históriada	 crise	 de	 2008/09	 (vencedor	 do	 Oscar),
mostrando	 “o	 comportamento	 dos	 agentes	 de	 mercado,	 com	 sua	 insolência,	 leviandade,	 irresponsabilidade	 e	 arrogância.
Capazes	até	de	roubar	as	próprias	firmas	para	as	quais	trabalham,	ao	lançar	como	despesas	de	serviço	gastos	com	cocaína	e
com	prostitutas	de	 luxo.	É	o	mercado,	enfim.	Dá	náusea	ver	a	omissão	dos	governantes,	a	promiscuidade	com	os	negócios
dessa	gente.	A	começar	de	Ronald	Reagan,	com	o	qual	se	inicia	o	trabalho	de	desmanche	da	regulação	que	acaba,	passados
vários	presidentes,	montando	o	palco	para	os	‘senhores	do	universo’	provocarem	o	colapso	que	custou	ao	mundo	dois	anos
de	 crescimento	 zero.	 (...)	 O	 sistema	 financeiro	 instalou	 portas	 giratórias	 no	 governo.	 Funcionários	 saem	 da	 banca	 para	 o
governo,	nada	fazem	para	controlar	o	sistema	de	que	saíram	e	voltam	a	ele,	ganhando	fábulas”.	O	documentário	denuncia,
com	toda	a	razão,	a	“colonização”	da	academia	pelos	agentes	de	mercado.	Professores	de	economia,	das	melhores	grifes,	têm
empregos	muito	bem	remunerados	em	conselhos	e	passam	a	produzir	apenas	a	ideologia	dos	que	lhes	pagam,	não	a	compilar
informações	 e	 analisá-las	 de	maneira	 tão	 objetiva	 quanto	 possível	 em	 se	 tratando	 de	 algo,	 a	 economia,	 que	 não	 é	 ciência
exata.	Revoltante,	por	fim,	é	saber	que	nada	mudou,	depois	da	tentativa	inicial	de	que	a	política	governasse	os	mercados,	e
não	o	contrário	(...).	Cf.	Rossi,	Clóvis.	Wall	Street	e	a	praça	Tahir.	In:	Folha	de	São	Paulo,	6	fev	2011,	p.A-2.
17	Cf.	 Reis,	 Fábio	Wanderlei.	As	 reformas	 e	 o	mandato.	 In	 Folha	 de	 São	 Paulo,	 28	mar	 98,	 p.	 1-3.	 Sobre	 globalização,	 ver,
também,	Metáforas	de	la	globalización,	de	Otavio	Ianni.	In:	Revista	de	Ciencias	Sociales.	Quilmes:	Universidad	Nacional,	Mayo
de	1995,	p.	9-19.
18	Cf.	 Roth,	 André-Noël.	 O	 direito	 em	 crise:	 fim	 do	 Estado	 Moderno?	 In:	Direito	 e	 globalização	 econômica	 –	 implicações	 e
perspectivas.	José	Eduardo	Faria	(org.).	São	Paulo:	Malheiros,	1996,	p.	16	e	segs.	Veja-se:	embora	esse	texto	tenha	sido	escrito
no	início	da	década	de	90,	ainda	se	mostra	atual.
19	Segundo	Bonavides,	baseado	em	Werner	Kägi,	in	Die	Verfassungsals	Rechtliche	Grundordnung	des	Staates,	1948,	p.	94	e	segs.,
“sendo	 o	 Estado	 social	 a	 expressão	 política	 por	 excelência	 da	 sociedade	 industrial	 e	 do	 mesmo	 passo	 a	 configuração	 da
sobrevivência	democrática	na	crise	entre	o	Estado	e	a	antecedente	forma	de	sociedade	(a	do	liberalismo),	observa-se	que	nas
sociedades	em	desenvolvimento,	porfiando	ainda	por	implantá-lo,	sua	moldura	jurídica	fica	exposta	a	toda	ordem	de	contestações,
pela	dificuldade	em	harmonizá-la	com	as	correntes	copiosas	de	interesses	sociais	antagônicos,	arvorados	por	grupos	e	classes,	em	busca
de	 afirmação	 e	 eficácia.	 Interesses	 ordinariamente	 rebeldes,	 transbordam	 eles	 do	 leito	 da	Constituição,	 até	 fazer	 inevitável	 o
conflito	e	a	tensão	entre	o	estado	social	e	o	Estado	de	Direito,	entre	a	Constituição	dos	textos	e	a	Constituição	da	realidade,
entre	a	forma	jurídica	e	o	seu	conteúdo	material.	Disso	nasce	não	raro	a	desintegração	da	Constituição,	com	o	sacrifício	das	normas
a	 uma	 dinâmica	 de	 relações	 políticas	 instáveis	 e	 cambiantes”.	Cf.	 Bonavides,	 Paulo.	 Curso	 de	 Direito	 Constitucional.	 São	 Paulo:
Malheiros,	1996,	p.	435.
20	Cf.	 Sousa	Santos,	Boaventura.	Boaventura	defende	o	Estado	 forte.	 In:	Correio	do	Povo.	 Secção	Geral.	 Porto	Alegre,	 6	de
abril	de	1998,	p.	9.
21	Ver,	para	tanto,	Folha	de	São	Paulo,	2	de	abril	de	2004,	p.	B1,	comentando	dados	retirados	do	Atlas	da	Exclusão	Social	–	Os
ricos	 no	 Brasil.	 São	 Paulo:	 Cortez	 Editora,	 2004.	 Mais	 recentemente,	 o	 Instituto	 de	 Pesquisa	 Econômica	 Aplicada	 (IPEA)
divulgou	ser	28,8%	a	proporção	de	brasileiros	em	pobreza	absoluta.	O	número	é	expressivamente	maior	porque,	segundo	a
regra	adotada	pelo	IPEA,	estão	em	pobreza	absoluta	os	membros	de	 famílias	com	rendimento	médio	por	pessoa	de	até	meio	salário
mínimo	 mensal	 (Novo	 índice	 aponta	 menos	 pobres	 no	 Brasil	 do	 que	 o	 governo.	 BBC	 Brasil.	 14	 jul.	 2010.	 Disponível	 em:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100714_pobreza_multidimensional_indice_rw.shtml).	 Como	 há
parâmetros	diferentes	entre	as	pesquisas,	é	extremamente	difícil	mensurar	a	miséria	no	país:	“Como	cada	instituto	adota	uma
metodologia	diferente,	o	número	total	de	miseráveis	difere	um	do	outro.	Para	o	Ipea,	o	Brasil	tem	13,5	milhões	de	pessoas	na
extrema	pobreza.	Para	a	FGV,	são	28,8	milhões.	O	IBGE	–	que	adota	o	valor	per	capita	de	um	quarto	de	salário	mínimo	(R$
135,	atualmente)	–	considera	que,	de	acordo	com	dados	de	2007,	havia	11,2%	da	população	nessa	condição	(20,6	milhões).
Para	o	Banco	Mundial,	 seriam	9,6	milhões”	 (Institutos	econômicos	e	governamentais	divergem	sobre	a	 linha	de	miséria	no
país.	 Extra,	 10	 jan.	 2011,	 Rio	 de	 Janeiro.	 Disponível	 em:	 http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?
option=com_content&view=article&id=6733:extra-rj-institutos-economicos-e-governamentais-divergem-sobre-linha-de-
miseria-no-pais&catid=159:clipping&Itemid=75.).	Outro	dado	importante:	no	início	da	década,	o	Brasil	conseguiu	colocar	todas
as	crianças	na	escola	(Instituto	Teutonio	Vilela.	Anos	Lula	trazem	avanços	tímidos	nos	indicadores	sociais.	Brasil	Real	–	Cartas
da	 Conjuntura	 ITV,	 n.15,	 dezembro,	 2007,	 Publicação	 Quinzenal,	 Senado	 Federal,	 Brasília.	 Disponível	 em:
http://www.itv.org.br/arquivos/upload/Brasil_Real_15_social_1.pdf.).	O	desafio,	a	partir	daí,	era	manter	os	estudantes	na
sala	de	aula,	além	de	melhorar	a	qualidade	de	ensino	prestado.	A	julgar	pelos	resultados	recentes,	o	país	tem	falhado	nesta	tarefa.
Entre	os	itens	medidos	pelo	MPI,	a	educação	aparece	como	o	ponto	fraco	do	Brasil.	Segundo	o	relatório	do	OPHI,	20,2%	da
população	brasileira	 tem	algum	tipo	de	privação	nessa	área,	 contra	5,2%	no	setor	de	saúde	e	2,8%	nos	 itens	de	padrão	de
vida.	Em	dezembro	de	2007,	a	Organização	para	Cooperação	e	o	Desenvolvimento	Econômico	(OCDE)	divulgou	o	relatório
do	 Pisa	 (sigla	 em	 inglês	 para	 o	 Programa	 Internacional	 de	Avaliação	 de	Alunos)	 relativo	 a	 2006.	O	 Brasil	 figura	 entre	 as
últimas	 posições	 no	 ranking	 mundial	 concernente	 ao	 desempenho	 dos	 adolescentes	 nas	 provas	 de	 matemática,	 leitura	 e
ciência.	Em	matemática,	por	exemplo,	em	que	conseguimos	melhorar	seu	desempenho	em	relação	a	2003	(figurava	na	última
colocação),	ficamos	na	frente	apenas	da	Tunísia,	Catar	e	Quirguistão	(numa	lista	de	57	países).
22	Cf.	Neves,	Marcelo.	Teoria	do	direito	na	modernidade	tardia.	In:	Direito	e	democracia.	Kátie	Arguello	(org.).	Florianópolis:
Letras	Contemporâneas,	1996,	p.	110.
23	Cf.	Faoro,	Raymundo.	Os	donos	do	poder:	formação	do	patronato	político	brasileiro.	11.	ed.	São	Paulo:	Globo,	1995,	p.	824.
24	Veja-se	também	essa	questão	“estamental”	na	previsão	do	“assistente	de	acusação”,	tanto	no	Código	de	Processo	Penal	de
1940,	 como	 no	 Projeto	 que	 trata	 de	 sua	 reformulação.	A	 propósito,	 o	 Presidente	 da	 República,	 Luís	 Inácio	 Lula	 da	 Silva,
referia-se,	na	ocasião,	ao	ex-Presidente	José	Sarney.
25	Cf.	Gaspari,	Elio.	O	“Capitalismo	de	Laços”	da	privataria.	In:	Folha	de	São	Paulo,	A-18,	28.11.2010.
26	 Cf.	 Todos	 pela	 Educação.	 Disponível	 em:	 <http://www.todospelaeducacao.org.br/educacao-no-brasil/numeros-do-
brasil/brasil/.>
27	Para	se	ter	uma	ideia	desse	quadro	de	desigualdades,	há	no	Brasil	7.223.000	trabalhadores	domésticos,	assim	catalogados,
fora	os	que	 trabalham	sem	documentação	 trabalhista.	Do	 total	de	 trabalhadores,	 90%	são	mulheres.	No	Brasil,	 empregada
doméstica	ainda	é	sinônimo	de	status,	conforme	lembra	o	professor	Cassio	Casagrande,	da	Universidade	Federal	Fluminense:
“As	 pessoas	 não	 querem	 fazer	 seu	 próprio	 trabalho	 doméstico.	 Mesmo	 alguém	 de	 classe	 média	 baixa	 quer	 ter	 uma
empregada	e	as	contratam	sem	condições	de	pagar	pelos	direitos”	(In:	Folha	de	São	Paulo,Cotidiano,	C1).	Esse	é	o	imaginário
que	permeou	a	discussão	para	barrar	a	“PEC	das	domésticas”	que	aprovou	os	mesmos	direitos	dos	trabalhadores	comuns	aos
trabalhadores	domésticos.	Discorro	mais	sobre	isso	no	minha	coluna	do	Conjur,	11	abril	de	2013,	”A	PEC	das	Domésticas	e	a
saudade	 dos	 “bons	 tempos”.	 Disponível	 em:	 <http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-
saudade-bons-tempos.>
28	Folha	de	São	Paulo,	17	jan	2011,	p.	A-4.
29	Saúde	sem	leito	–	colapso	na	emergência	hospitalar.	In:	Zero	Hora,	21	jan	2011,	p.	26.
30	O	Diretor-Presidente	da	Agência	Nacional	de	Saúde,	André	Longo	Araújo	de	Melo,	reconheceu	a	“forte	resistência”	das
operadoras	privadas	de	saúde	em	fazer	o	ressarcimento	ao	SUS.	Outra	ponderação	do	dirigente	foi	no	sentido	de	que,	mesmo
que	a	agência	fizesse	todas	as	cobranças	devidas	ao	sistema,	a	arrecadação	seria	insuficiente	para	satisfazer	as	necessidades
do	SUS.	Conforme	assinalou,	estes	recursos	não	cobririam	nem	1%	do	orçamento	da	saúde	pública.	Segundo	o	diretor,	se	a
ANS	conseguisse	cobrar	a	dívida	das	operadoras	privadas	com	o	SUS	entre	2008	e	2010,	arrecadaria	quase	R$	663	milhões.
Além	 disso,	 André	 Longo	 acrescentou	 que,	 em	 2012,	 mais	 de	 R$	 110	 milhões	 foram	 inscritos	 na	 dívida	 ativa	 e	 que	 464
operadoras	estão	nesta	condição	por	se	recusarem	a	fazer	o	ressarcimento	à	saúde	pública.	In:	Portal	de	Notícias	do	Senado,
25.	 de	 maio	 2013.	 Disponível	 em:	 <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/05/23/humberto-costa-nega-
ressarcimento-como-saida-para-reforcar-caixa-do-sus>.
31	Licitação	de	R$	120	milhões	apresenta	indício	de	fraude.	In:	Folha	de	São	Paulo,	28	de	Nov	2010,	p.	A4.
32	TCU	paga	por	viagens	de	ministros	a	Estado	natal.	In:	Folha	de	São,	18	jan	2011,	p.	A4.	Tb:	Ministros	do	TCU	têm	fim	de
semana	de	cinco	dias,	19	jan	2011,	p.	A4.
33	In:	Folha	de	São	Paulo,	 28	 jan	2011,	p.A-4.	O	 jornal	noticia	que	 inclusive	a	Advocacia-Geral	da	União	consta	no	 rol	dos
contratadores	da	empresa	que	ministra	cursos.	A	empresa	é	de	propriedade	do	Presidente	do	TCU.
34	Observe-se	o	modo	como	essa	questão	é	discutida	em	reportagem	especial	do	jornal	Zero	Hora,	do	Rio	Grande	do	Sul	(6
fev	2011,	p.	4):	“Cobiça	por	21	mil	cargos	–	a	caça	ao	tesouro	do	segundo	escalão:	ameaças,	chantagens	e	traições	marcam
disputa	entre	aliados	de	Dilma	por	cargos	de	segundo	escalão	que	controlam	investimentos	de	R$	108	bilhões”.
35	Folha	de	São	Paulo,	18	jan	2011,	editorial.
36	Mulher	de	secretário	tem	contrato	com	o	DF.	In:	Folha	de	São	Paulo,	14	 jan	2011.	A	notícia	dá	conta,	ainda,	de	que	esse
serviço	é	prestado	desde	2007,	tendo	já	o	Instituto,	do	qual	o	secretário	é	sócio,	recebido	mais	de	13	milhões	de	reais.
37	Sessão	extra	rende	14º	Salário	a	deputados	de	Goiás	e	Rondônia.	In:	Folha	de	São	Paulo,	14	jan	2011,	p.	A6.
38	Portal	da	Transparência	do	governo	federal.
39	Calha	aqui	um	olhar	a	partir	da	pena	de	Roberto	DaMatta,	em	texto	denominado	“Legitimidade	e	vilezas”	(in:	O	estado	de
São	Paulo,	 26	 jan	2011,	p.	7).	Segundo	o	autor,	um	traço	visível,	 insofismável	e	 indelével	de	nosso	patriarcalismo	escravista
que	curiosamente	Gilberto	Freire	não	associava	ao	estado,	mas	somente	à	sociedade,	é	–	em	toda	a	tentativa	de	modernização
–	uma	profunda	crise	de	 legitimidade.	As	 regras	não	se	encaixam	aos	comportamentos	ou	sequer	 com	as	 suas	 implicações
jurídicas.	Essa	incongruência	surge	em	quase	todos	os	domínios	do	chamado	“estado”,	que	confundimos	(propositalmente	ou
não)	com	o	seu	lado	mais	personificado,	o	“governo”	(que	sempre	é	de	alguém).	No	momento,	chama	a	atenção	a	questão	da
aposentadoria	 dos	 governadores.	 Nesse	 caso,	 diz	 DaMatta,	 os	 “patrões	 do	 estado”	 transformam	 a	 administração	 num
mecanismo	 de	 enriquecimento	 pessoal	 a	 competir	 com	 o	 altruístico	 e	 “social”.	 Neste	 processo,	 o	 Estado	 deixa	 de	 ser	 um
sistema	 destinado	 a	 prestar	 serviços	 à	 sociedade.	 “Só	 há	 grana	 para	 pessoal,	 não	 há	 como	 investir	 em	 educação,	 saúde,
transporte	e	segurança”.	E	complementa:	“Estou	convencido	que	tal	modelo	nasceu	na	matriz	aristocrática	imperial	somada
ao	neo-estalinismo”:	tais	engenheiros,	chamados	nos	governos	militares	de	“tecnocratas”,	sempre	foram	travestis	nos	velhos
letrados	ibéricos,	bacharéis	de	Coimbra	e	crentes	num	platonismo	jurídico	que	até	hoje	proclama	a	letra	da	lei	como	tendo	o
poder	 (tal	 qual	 uma	 fórmula	 mágica)	 de	 modificar	 a	 realidade,	 resolvendo	 suas	 contradições.	 Por	 isso,	 tivemos	 uma
República,	mas	jamais	o	republicanismo:	de	um	lado,	os	milionários	vitaliciamente	mantidos;	do	outro,	os	milhões	de	pobres	e
desvalidos	que	vibram	quando	recebem	uma	bolsa	de	pobreza,	conclui.
40	Exemplo	disso	é	a	“PEC	das	domésticas”	que	causa	um	mal-estar	pela	quebra	das	expectativas	e	da	violação	do	arquétipo.
Algo	não	estaria	no	lugar.	No	lugar	de	sempre.	No	lugar-comum.	Ou	seja,	alguém,	a	partir	da	PEC,	poderá	“não	mais	saber	o
seu	 lugar”...!	 Ver:	 A	 PEC	 das	 Domésticas	 e	 a	 saudade	 dos	 “bons	 tempos”,	 op.	 cit.	 Disponível	 em:
<http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos>.
41	Cf.	Houaiss,	Antonio	e	Amaral,	Roberto.	Modernidade	no	Brasil:	conciliação	ou	ruptura.	Petrópolis:	Vozes,	1995,	p.	56.
42	 “A	 repressão	 jamais	 pode	 confessar-se	 como	 tal:	 ela	 tem	 sempre	 a	 necessidade	 de	 ser	 legitimada	 para	 exercer-se	 sem
encontrar	oposição.	Eis	por	que	ela	usará	as	bandeiras	da	manutenção	da	ordem	social,	da	consciência	moral	universal,	do
bem-estar	e	do	progresso	de	todos	os	cidadãos.	Ela	se	negará	enquanto	violência,	visto	que	a	violência	é	sempre	a	expressão
da	força	nua	e	não	da	lei	–	e	como	fundar	uma	ordem	a	não	ser	sobre	uma	lei	aceita	e	interiorizada?	A	relação	de	força	vai
então	desaparecer	enquanto	tal,	será	sempre	coberta	por	uma	armadura	jurídica	e	ideológica”.	Cf.	Katz	e	Kahn,	s.d,	p.	386.
43	Para	se	 ter	uma	 ideia	do	“poder	das	 religiões”,	em	2005	 já	existiam	mais	de	83	mil	 instituições	 religiosas	 registradas	no
país.	“No	período	de	2002	a	2005,	foram	criadas	13,3	mil	entidades	que	se	dedicam	as	atividades	confessionais”.	(Dados	do
Instituto	 Brasileiro	 de	Geografia	 e	 Estatística	 –	 IBGE.	As	 Fundações	 Privadas	 e	Associações	 sem	 Fins	 Lucrativos	 no	 Brasil:
Estudo	 identifica	 338	mil	 Fundações	 Privadas	 e	Associações.	 Comunicação	 Social	 –	 07	 de	 agosto	 de	 2008.	Disponível	 em:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=1205).	Parcela	destas	ocupa	espaço
nos	meios	 de	 comunicação	 de	massa	 (rádio	 e	 televisão),	 com	 apresentações	 diárias	 em	 horário	 nobre.	 Além	 do	 crescente
número	 de	 programas	 religiosos,	 cresce	 sobretudo	 o	 número	 de	 emissoras	 religiosas	 (mais	 de	 15	 redes).	 (Ver:	 Kauffmann,
Daniel.	Religiosidade	na	TV.	Rio	de	Janeiro:	Multifoco,	2008).	Sem	contar	que	muitos	desses	programas	são	apresentados	em
emissoras	 públicas,	 como	 a	 TV	 Câmara	 e	 a	 TV	 Brasil,	 envolvendo-se	 esta	 última	 em	 grande	 polêmica	 ao	 tentar	 tirar	 a
programação	religiosa	de	seu	canal.	(Jornal	O	Estado	de	São	Paulo.	Proposta	pode	tirar	programação	religiosa	da	TV	Brasil.	28
jul.	 2010.	 Disponível	 em:	 http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,proposta-pode-tirar-programacao-religiosa-da-tv-
brasil,587172,0.htm).
44	Cf.	A	PEC	das	Domésticas	e	a	saudade	dos	“bons	tempos”.	Disponível	em:	<http://www.conjur.com.br/2013-abr-11/senso-
incomum-pec-domesticas-saudade-bons-tempos>.
45	Exemplo	marcante	disto	é	o	“momento	cultural”	ocorrido	no	programa	Hebe	Camargo	no	dia	21	de	setembro	de	1998,	no
Sistema	Brasileiro	de	Televisão	–	SBT	–,	tão	bem	relatado	pelo	jornalista	Fernando	Barros	Silva,	no	Caderno	de	TV	da	Folha
de	São	Paulo:	um	determinado	grupo	musical	chamado	“Fat	Family”	(Família	Gorda).	Eram	sete	 integrantes,	 todos	negros,
gordos,	imensos	e	felizes.	A	apresentadora	Hebe	Camargo,	depois	de	puxar	a	barba	de	um	deles	e	alardear	(maravilhada!?)para	todo	o	Brasil	que	o	pêlo	(da	barba)	era	duro,	pediu	a	todos	que	exibissem	os	dentes	diante	da	plateia	(e	para	milhões	de
telespectadores),	 porque	 os	 dentes	 dos	 negros	 eram	 lindos,	 uma	 gracinha	 (bordão	 característico	 da	 apresentadora).
Imediatamente,	todos	obedeceram	e,	docilmente,	mostraram	suas	gengivas	para	o	público,	como	se	estivéssemos	nos	tempos
da	escravidão.	Como	bem	conclui	o	 citado	 jornalista:	 “Herança	 colonial	 também	 é	 isso.	 Lembranças	 da	 senzala.	Vindo	 de	 quem
vem,	não	é	novidade”.	Ver,	para	tanto,	Folha	de	São	Paulo,	TV	Folha,	27	de	setembro	de	1998,	p.	2.	(grifei)
46	Cf.	Calegaris,	Contardo.	A	praga	escravagista	brasileira.	In:	Folha	de	São	Paulo,	Caderno	Mais,	p.	5.
47	Para	se	 ter	uma	 ideia,	o	 tráfico	de	entorpecentes	no	Brasil	 emprega	mais	que	a	Petrobrás.	Somente	no	Rio	de	 Janeiro,	o
tráfico	 emprega	 16.000	 pessoas,	 arrecadando	 400	milhões	 de	 dólares/ano	 (que	 é	 o	 que	 arrecada	 o	 setor	 têxtil	 no	 Rio	 de
Janeiro).	Cf.	Folha	de	São	Paulo	de	28	nov	2010,	Caderno	C,	p.4.
48	Conferir	Freire,	Vinícius	Torres.	“Carro	grande	e	senzala”.	In:	Folha	de	São	Paulo.	17.01.2000,	p.	1-2.
49	O	nome	“Pindorama	Casagrande”	(sic)	é,	obviamente,	fictício,	substituindo	a	marca	do	café	objeto	do	“reclame”.
50	 Ver,	 para	 isso,	 Sloterdijk,	 Peter.	 Kritik	 der	 zynischen	 Vernunft.	 Frankfurt,	 1983,	 citado	 por	 Zizek,	 Slavoj.	 Como	 Marx
inventou	o	sintoma?	In:	Um	mapa	da	ideologia.	Zizek,	Slavoj	(org.).	Rio	de	Janeiro:	Contraponto,	p.	312	e	313.	Registre-se	que
Zizek	alerta	para	o	fato	de	que	é	necessário	fazer	uma	distinção	entre	“sintoma”	e	“fantasia”,	para	mostrar	como	a	ideia	de	estarmos
vivendo	numa	sociedade	pós-ideológica	é	um	pouco	apressada	demais.	E	explica:	“A	razão	cínica,	com	todo	o	seu	desprendimento
irônico,	deixa	 intacto	o	nível	 fundamental	da	 fantasia	 ideológica,	 o	nível	 em	que	 a	 ideologia	 estrutura	 a	própria	 realidade
social”.
51	Para	ver	mais	sobre	a	questão	de	evasão	de	divisas	e	o	exemplo	da	circular	que	absolveu	Duda	Mendonça	no	julgamento
do	 Mensalão,	 ver:	 Conjur,	 8	 nov	 2008,	 “Como	 assim	 ‘prisão	 é	 só	 para	 quem	 precisa’?”.	 <Disponível:
http://www.conjur.com.br/2012-nov-08/senso-incomum-assim-prisao-quem.>
52	De	 registrar	 que,	 acaso	 aprovada	 a	 anistia,	 cabe	 a	 declaração	 de	 sua	 inconstitucionalidade	 (tenho	 a	 convicção	 de	 que
ainda	há	juízes	nas	“Berlins”	de	terrae	brasilis).	Com	efeito,	assim	como	já	propus	várias	vezes	(embora	derrotado)	em	relação
à	benesse	dada	aos	sonegadores	(pagamento	em	troca	da	extinção	do	crime,	previsto	no	art.	9º	da	Lei	n.	10.684),	penso	que
esse	 tipo	 de	 anistia	 é	 absolutamente	 inconstitucional,	 porque	 fere	 o	 princípio	 da	 proibição	 de	 proteção	 insuficiente
(Untermassverbot)	e	à	isonomia	(é	claro	que	a	extinção	da	punibilidade	de	que	trata	a	Lei	10.684	não	é	uma	“anistia”;	o	que
estou	 a	 tratar	 é	 de	 tratamentos	 equânimes	 na	 República!).	 Parece	 evidente	 que	 o	 Estado	 não	 pode	 discriminar	 na
descriminalização...	(ou	o	nome	que	se	dê	a	essa	extinção	de	punibilidade)!
53	Cf.	Costa,	Jurandir	Freire.	A	devoração	da	esperança	no	próximo.	In:	Folha	de	São	Paulo,	22.09.96,	Caderno	Mais,	p.	8.
2.	O	Estado	Democrático	de	Direito	e	a	(dis)funcionalidade	do
Direito
	
	
2.1.	Da	interindividualidade	à	transindividualidade	–	a	transição	de	modelos	de	Direito
Em	nosso	país,	não	há	dúvida	de	que,	sob	a	ótica	do	Estado	Democrático	de	Direito	–	em
que	 o	 Direito	 deve	 ser	 visto	 como	 instrumento	 de	 transformação	 social	 –,	 ocorre	 uma
disfuncionalidade	 do	 Direito	 e	 das	 Instituições	 encarregadas	 de	 aplicar	 a	 lei.	 O	 Direito
brasileiro	–	e	a	dogmática	jurídica54	que	o	instrumentaliza	–	está	assentado	em	um	paradigma
liberal-individualista	que	sustenta	essa	disfuncionalidade,	que,	paradoxalmente,	vem	a	ser	a
sua	 própria	 funcionalidade!	 Ou	 seja,	 não	 houve	 ainda,	 no	 plano	 hermenêutico,	 a	 devida
filtragem	–	em	face	da	emergência	de	um	novo	modo	de	produção	de	Direito	representado
pelo	Estado	Democrático	de	Direito	–	desse	(velho/defasado)	Direito,	produto	de	um	modo
liberal-individualista-normativista	 de	 produção	 de	 direito,	 entendendo-se	 como	 modo	 de
produção	 de	 Direito,	 para	 os	 limites	 desta	 abordagem,	 a	 política	 econômica	 de
regulamentação,	 proteção	 e	 legitimação	 num	 dado	 espaço	 nacional,	 num	 momento
específico,	que	inclui:
	
a)	o	modo	com	que	a	profissão	jurídica	e	a	prestação	de	seus	serviços	são	organizados;
b)	 a	 localização	 de	 papéis	 entre	 as	 várias	 posições	 no	 campo	 jurídico	 (praticantes,
aplicadores	da	lei,	guardiões	da	doutrina,	acadêmicos	etc.);
c)	 o	 modo	 com	 que	 o	 campo	 produz	 o	 habitus,	 incluindo	 variações	 na	 educação	 e	 a
importância	das	vantagens	sociais	(antecedentes	e	relações	pessoais)	para	o	recrutamento	no
campo;
d)	as	modalidades	para	a	articulação	da	doutrina	preponderante	e	os	modos	com	que	estas
incidem	em	relações	entre	jogadores	e	posições;
e)	 o	 papel	 que	 os	 advogados,	 juntamente	 com	 os	 protagonistas	 globais	 e	 regimes
transnacionais,	representam	num	dado	campo	jurídico;
f)	a	relação	entre	regulamentação	e	proteção;
g)	o	modo	dominante	de	legitimação.55
	
Assim,	a	partir	disso,	pode-se	dizer	que,	no	Brasil,	predomina/prevalece	(ainda)	o	modo	de
produção	 de	Direito	 instituído/forjado	 para	 resolver	 disputas	 interindividuais,	 ou,	 como	 se
pode	 perceber	 nos	 manuais	 de	 Direito,	 disputas	 entre	 Caio	 e	 Tício56	 ou	 onde	 Caio	 é	 o
agente/autor	 e	 Tício	 (ou	 Mévio),	 o	 réu/vítima.	 Assim,	 se	 Caio	 (sic)	 invadir	 (ocupar)	 a
propriedade	de	Tício	(sic),	ou	Caio	(sic)	furtar	um	botijão	de	gás	ou	o	automóvel	de	Tício	(sic),
é	 fácil	 para	 o	 operador	 do	 Direito	 “resolver”	 o	 problema.	 No	 primeiro	 caso,	 a	 resposta	 é
singela:	é	esbulho,	passível	de	imediata	reintegração	de	posse,	mecanismo	jurídico	de	pronta
e	eficaz	atuação,	absolutamente	eficiente	para	a	proteção	dos	direitos	reais	de	garantia.	No
segundo	 caso,	 a	 resposta	 igualmente	 é	 singela:	 é	 furto	 (simples,	 no	 caso	 de	 um	 botijão;
qualificado,	 com	uma	pena	que	pode	alcançar	 8	 anos	de	 reclusão,	 se	o	 automóvel	de	Tício
[sic]	for	levado	para	outra	unidade	da	federação).
Ou	seja,	nos	casos	apontados	–	que,	embora	possam	parecer	caricatos,	são	reproduzidos	na
cotidianidade	dos	fóruns	e	Tribunais	da	República	–	a	dogmática	jurídica	coloca	à	disposição
do	 operador	 um	 prêt-à-porter	 significativo	 contendo	 uma	 resposta	 pronta	 e	 rápida!	 Aliás,	 é
para	isso	que	cresce	a	indústria	de	manuais	e	compêndios.	Mas,	quando	Caio	(sic)	e	milhares
de	pessoas	sem	teto	ou	sem	terra	invadem/ocupam	a	propriedade	de	Tício	(sic),	ou	quando
Caio	 (sic)	 participa	 de	 uma	 “quebradeira”	 de	 bancos,	 causando	 desfalques	 de	 bilhões	 de
dólares	 (como	 nos	 casos	 ocorridos	 em	 1995	 do	 Banco	 Nacional,	 Bamerindus,	 Econômico,
Coroa-Brastel	etc.),	os	juristas	só	conseguem	“pensar”	o	problema	a	partir	da	ótica	forjada	no
modo	liberal-individualista-normativista	de	produção	de	Direito.
Como	respondem	os	juristas	a	esses	problemas,	produtos	de	uma	sociedade	complexa,	em
que	os	conflitos	(cada	vez	mais)	têm	um	cunho	transindividual?	Na	primeira	hipótese,	se	a
justiça	 tratar	 da	 invasão/ocupação	 de	 terras	 do	 mesmo	 modo	 que	 trata	 os	 conflitos	 de
vizinhança,	as	consequências	são	gravíssimas	(e	de	todos	conhecidas...!).	Na	segunda	hipótese
(crimes	de	colarinho	branco	e	similares),	os	resultados	são	assustadores,	bastando,	para	tanto,
examinar	a	pesquisa	realizada	pela	Procuradora	da	República	Ela	Castilho,57	cujos	dados	dão
conta	de	que,	de	1986	a	1995,	somente	5	dos	682	supostos	crimes	financeiros	apurados	pelo
Banco	 Central	 resultaram	 em	 condenações	 em	 primeira	 instância	 na	 Justiça	 Federal.	 A
pesquisa	 revela,	 ainda,	que	9	dos	682	 casos	apurados	pelo	Banco	Central	 também	sofreram
condenações	nos	 tribunaissuperiores.	Porém	–	 e	 isso	 é	 de	 extrema	 relevância	 –	nenhum	dos	 19
réus	condenados	(verificar	este	número)	por	crime	do	colarinho	branco	foi	para	a	cadeia!	Esse	quadro,
no	que	tange	ao	número	de	condenações,	passados	mais	de	15	anos,	não	apresenta	alterações
significativas.	Em	recente	pesquisa58	a	respeito	dos	crimes	de	lavagem	de	dinheiro,	entre	os
anos	2000	e	2012,	verifica-se,	de	um	modo	geral,	que	as	condenações	perfazem	um	percentual
inferior	a	10%	do	total	dos	processos	criminais.	Nesse	sentido,	Francis	Rafael	Beck	apresenta
os	seguintes	dados:	9	condenações	dos	116	processos	no	Tribunal	de	Justiça	do	Rio	Grande	do
Sul;	 79	 condenações	 em	 1017	 julgados	 no	 âmbito	 dos	 Tribunais	 Regionais	 Federais;	 14
condenações	 dos	 471	 casos	 julgados	 no	 Superior	 Tribunal	 de	 Justiça;	 e	 apenas	 uma
condenação	entre	as	94	ações	julgadas	pelo	Supremo	Tribunal	Federal.
E	 os	 crimes	 contra	 o	 meio	 ambiente,	 como	 são	 tratados?	 Como	 funciona	 o	 Direito	 nas
relações	de	consumo,	mormente	quando	se	percebe	que	a	televisão	brasileira,	que	deveria	ser
um	 veículo	 para	 transmitir	 cultura	 e	 educação	 (art.	 221	 da	 Constituição	 Federal),
transformou-se	em	um	“bingo	pós-moderno”?	Não	é	temerário	afirmar	que,	a	partir	de	um
exame	cuidadoso,	pouquíssimas	concessões	de	canais	de	televisão	e	de	rádio	passariam	pelo
crivo	das	disposições	elencadas	no	aludido	art.	221.	Sob	pretexto	e	ao	abrigo	da	liberdade	de
crença,	diversas	Igrejas	vendem	“indulgências”	de	manhã	à	noite,	no	rádio	e	na	televisão.
Os	SACs	–	Serviços	de	Atendimento	ao	Consumidor	–	não	passam	de	simulacros.	Somente
uma	 das	 companhias	 de	 telefonia	 móvel	 tem	 contra	 si	 110.000	 ações	 por	 falhas	 nos
atendimentos,	cobranças	indevidas	etc.
O	 Direito	 não	 consegue	 atender	 a	 tais	 demandas	 não	 porque	 tal	 “complexidade”	 não
estaria	prevista	no	sistema	jurídico,	mas,	sim,	porque	há	uma	crise	de	modelo	(que	não	deixa
de	ser	uma	espécie	de	“modo	de	produção	de	Direito”)	que	se	 instala	 justamente	porque	a
dogmática	jurídica,	em	plena	sociedade	transmoderna	e	repleta	de	conflitos	transindividuais,
continua	 trabalhando	 com	 a	 perspectiva	 de	 um	 Direito	 cunhado	 para	 enfrentar	 conflitos
interindividuais,	bem	nítidos	em	nossos	Códigos	 (civil,	 comercial,	pena,	processual	penal	 e
processual	civil	etc.).
Esta	 é	 a	 crise	 de	 modelo	 (ou	 modo	 de	 produção)	 de	 Direito,	 dominante	 nas	 práticas
jurídicas	de	nossos	tribunais,	fóruns	e	na	doutrina.	No	âmbito	da	magistratura	–	e	creio	que	o
raciocínio	 pode	 ser	 estendido	 às	 demais	 instâncias	 de	 administração	 da	 justiça	 –,	 Faria59
aponta	 dois	 fatores	 que	 contribuem	 para	 o	 agravamento	 dessa	 problemática:	 “o	 excessivo
individualismo	 e	 o	 formalismo	 na	 visão	 de	 mundo:	 esse	 individualismo	 se	 traduz	 pela
convicção	de	que	a	parte	precede	o	todo,	ou	seja,	de	que	os	direitos	do	indivíduo	estão	acima
dos	direitos	da	comunidade;	como	o	que	importa	é	o	mercado,	espaço	onde	as	relações	sociais
e	econômicas	são	travadas,	o	individualismo	tende	a	transbordar	em	atomismo:	a	magistratura
é	treinada	para	lidar	com	as	diferentes	formas	de	ação,	mas	não	consegue	ter	um	entendimento	preciso
das	 estruturas	 socioeconômicas	 onde	 elas	 são	 travadas.	 Já	 o	 formalismo	decorre	do	apego	a	um
conjunto	 de	 ritos	 e	 procedimentos	 burocratizados	 e	 impessoais,	 justificados	 em	 norma	 da
certeza	jurídica	e	da	‘segurança	do	processo’.	Não	preparada	técnica	e	doutrinariamente	para
compreender	os	aspectos	substantivos	dos	pleitos	a	ela	submetidos,	ela	enfrenta	dificuldades
para	 interpretar	 os	 novos	 conceitos	 dos	 textos	 legais	 típicos	 da	 sociedade	 industrial,
principalmente	 os	 que	 estabelecem	 direitos	 coletivos,	 protegem	 os	 direitos	 difusos	 e
dispensam	tratamento	preferencial	aos	segmentos	economicamente	desfavorecidos”.
Não	surpreende,	pois,	que	institutos	jurídicos	importantes	como	o	mandado	de	injunção	e
a	substituição	processual,	previstos	na	nova	Constituição,	tenham	sido	redefinidos	e	tornados
ineficazes	 pelo	 establishment	 jurídico-dogmático	 durante	 tantos	 anos.	 Na	 verdade,	 o
mandamus	 injuntivo	 “adquiriu”	 uma	 maior	 efetividade	 a	 partir	 do	 julgamento	 do	 MI	 nº
107/DF,	 quando	 o	 STF,	 apreciando	 Questão	 de	 Ordem,	 considerou-o	 autoaplicável;	 na
sequência,	alguns	julgamentos	(p.	ex.,	MI	nos	95/RR,	369/DF	e	304/DF)	declararam	a	mora	do
Congresso	Nacional;	mais	recentemente	foi	julgado	o	MI	nº	670/ES,	em	que	o	STF	adotou	a
lei	de	greve	da	iniciativa	privada	para	suprir	a	omissão	da	não	regulamentação	do	direito	de
greve	 dos	 servidores	 públicos.	Muito	 pouco,	 se	 considerarmos	 as	 expectativas	 geradas	 em
torno	desse	writ	desde	o	processo	constituinte.
Estamos,	assim,	em	face	de	um	sério	problema:	de	um	lado	temos	uma	sociedade	carente
de	realização	de	direitos	e,	de	outro,	uma	Constituição	Federal	que	garante	estes	direitos	da
forma	mais	ampla	possível.	Este	é	o	contraponto.	Daí	a	necessária	 indagação:	qual	é	o	papel	do
Direito	 e	 da	 dogmática	 jurídica	 neste	 contexto?	 Segundo	 Morais,	 o	 Estado	 Democrático	 de
Direito,	teria	(tem?)	a	característica	de	ultrapassar	não	só	a	formulação	do	Estado	Liberal	de
Direito,	 como	 também	 a	 do	 Estado	 Social	 de	 Direito	 –	 vinculado	 ao	 Welfare	 State
neocapitalista	 –	 impondo	 à	 ordem	 jurídica	 e	 à	 atividade	 estatal	 um	 conteúdo	 utópico	 de
transformação	 da	 realidade.	 O	 Estado	 Democrático	 de	 Direito,	 ao	 lado	 do	 núcleo	 liberal
agregado	à	questão	social,	tem	como	questão	fundamental	a	incorporação	efetiva	da	questão
da	 igualdade	 como	um	conteúdo	próprio	 a	 ser	buscado	garantir	 através	do	asseguramento
mínimo	 de	 condições	 mínimas	 de	 vida	 ao	 cidadão	 e	 à	 comunidade.	 Ou	 seja,	 no	 Estado
Democrático	 de	 Direito	 a	 lei	 passa	 a	 ser,	 privilegiadamente,	 um	 instrumento	 de	 ação	 concreta	 do
Estado,	 tendo	 como	método	 assecuratório	 de	 sua	 efetividade	 a	 promoção	 de	 determinadas
ações	 pretendidas	 pela	 ordem	 jurídica.60	 Entretanto,	 isso	 não	 foi	 ainda	 suficientemente
assimilado	pelos	juristas.
O	Estado	Democrático	de	Direito	representa,	assim,	a	vontade	constitucional	de	realização
do	 Estado	 Social.	 É	 nesse	 sentido	 que	 ele	 é	 um	 plus	 normativo	 em	 relação	 ao	 direito
promovedor-intervencionista	próprio	do	Estado	Social	de	Direito.	Registre-se	que	os	direitos
coletivos,	transindividuais,	por	exemplo,	surgem,	no	plano	normativo,	como	consequência	ou
fazendo	 parte	 da	 própria	 crise	 do	 Estado	 Providência.	 Desse	modo,	 se	 na	 Constituição	 se
coloca	 o	 modo,	 é	 dizer,	 os	 instrumentos	 para	 buscar/resgatar	 os	 direitos	 de	 segunda	 e
terceira	dimensões,	via	institutos	como	substituição	processual,	ação	civil	pública,	mandado
de	segurança	coletivo,	mandado	de	injunção	(individual	e	coletivo)	e	tantas	outras	formas,	é
porque	 no	 contrato	 social	 –	 do	 qual	 a	 Constituição	 é	 a	 explicitação	 –	 há	 uma	 confissão	 de	 que	 as
promessas	da	realização	da	função	social	do	Estado	não	foram	(ainda)	cumpridas.
	
	
2.2.	“O	Direito	importa	e	por	isso	é	que	nos	incomodamos	com	essa	história”
Não	esqueçamos	o	que	estabelece	o	ordenamento	constitucional	brasileiro,	que	aponta	para
um	Estado	 forte,	 intervencionista	e	regulador,	na	esteira	daquilo	que,	 contemporaneamente,	 se
entende	como	Estado	Democrático	de	Direito.	O	Direito	recupera,	pois,	sua	especificidade	e
seu	acentuado	grau	de	autonomia.	Desse	modo,	é	razoável	afirmar	que	o	Direito,	enquanto
legado	da	modernidade	–	 até	porque	 temos	uma	Constituição	democrática	 –	deve	 ser	 visto,
hoje,	como	um	campo	necessário	de	luta	para	implantação	das	promessas	modernas.
A	 toda	evidência,	não	se	está,	 com	 isso,	abrindo	mão	das	 lutas	políticas,	via	Executivo	e
Legislativo,	 e	 dos	 movimentos	 sociais.	 Aliás,	 as	 lutas	 políticas	 somente	 são	 legítimas	 se
estiverem	em	conformidade	com	o	Direito.	Éimportante	observar,	no	meio	de	tudo	isso,	que,
em	nosso	país,	há	até	mesmo	uma	crise	de	legalidade,	uma	vez	que	–	por	vezes	–	nem	sequer
esta	 é	 cumprida,	 bastando,	 para	 tanto,	 ver	 a	 inefetividade	 dos	 dispositivos	 constitucionais	 e
infraconstitucionais,	 mesmo	 passadas	 mais	 de	 duas	 décadas	 desde	 a	 instalação	 da	 nova
ordem	constitucional.
De	pronto,	deve	ficar	claro	que	não	se	pode	confundir	Direito	positivo	com	positivismo,	e
dogmática	 jurídica	com	dogmatismo,	e	tampouco	se	pode	cair	no	erro	de	opor	a	crítica	(ou
“o”	 discurso	 crítico)	 à	 dogmática	 jurídica.	 Por	 isso,	 não	 tenho	 dúvidas	 em	 concordar	 com
Warat	quando	afirma	que	a	dogmática	jurídica	pode	indagar,	criar	e	construir.	Dito	de	outro	modo,
o	Direito	não	pode	(mais)	ser	visto	como	sendo	tão	somente	uma	racionalidade	instrumental.	Como
diz	o	historiador	inglês	E.P.	Thompson,61	o	direito	importa	e	é	por	isso	que	nos	incomodamos	com
toda	essa	história.
Explico:	 parece	 que,	 no	 Brasil,	 compreendemos	 de	 forma	 inadequada	 o	 sentido	 da
produção	 democrática	 do	 direito	 e	 o	 papel	 da	 jurisdição	 constitucional.	 Tenho	 ouvido	 em
palestras	 e	 seminários	 que	 “hoje	 possuímos	 dois	 tipos	 de	 juízes”:	 aquele	 que	 se	 “apega”	 à
letra	fria	(sic)	da	 lei	 (e	esse	deve	“desaparecer”,	segundo	alguns	 juristas)	e	aquele	que	 julga
conforme	os	“princípios”	(esse	é	o	 juiz	que	traduziria	os	“valores”	–	sic	–	da	sociedade,	que
estariam	“por	baixo”	da	“letra	fria	da	lei”).	Pergunto:	cumprir	princípios	significa	descumprir
a	 lei?	 Cumprir	 a	 lei	 significa	 descumprir	 princípios?	 Existem	 regras	 (leis	 ou	 dispositivos
legais)	desindexados	de	princípios?	Cumprir	 a	 “letra	da	 lei”	 é	dar	mostras	de	positivismo?
Mas,	o	que	é	ser	um	positivista?
Permito-me	explicar	melhor	isso:	por	vezes,	cumprir	a	“letra	da	lei”	é	um	avanço	considerável.
Lutamos	tanto	pela	democracia	e	por	 leis	mais	democráticas...!	Quando	elas	são	aprovadas,
segui-las	 é	 nosso	 dever.	 Levemos	 o	 texto	 jurídico	 –	 quando	 este	 estiver	 conforme	 a
Constituição	 –	 a	 sério,	 pois!	 E,	 por	 favor,	 que	 não	 se	 venha	 com	 a	 velha	 história	 de	 que
“cumprir	a	letra	‘fria’	(sic)	da	lei”	é	assumir	uma	postura	positivista...!	Aliás,	o	que	seria	essa
“letra	 fria	 da	 lei”?	 Haveria	 um	 sentido	 em-si-mesmo	 da	 lei?	 Na	 verdade,	 confundem-se
conceitos.	As	diversas	formas	de	positivismo	não	podem	ser	colocadas	no	mesmo	patamar	e
tampouco	podemos	confundir	uma	delas	(ou	as	duas	mais	conhecidas)	com	a	sua	superação
pelo	e	no	interior	do	paradigma	da	linguagem.
Mais	 pacientemente:	 positivismo	 exegético	 (que	 era	 a	 forma	 do	 positivismo	 primitivo)
separava	direito	e	moral,	além	de	confundir	texto	e	norma,	lei	e	direito,	ou	seja,	tratava-se	da
velha	 crença	 –	 ainda	muito	 presente	 no	 imaginário	 dos	 juristas	 –	 em	 torno	 da	proibição	 de
interpretar,	corolário	da	vetusta	separação	entre	fato	e	direito,	algo	que	nos	remete	ao	período
pós-revolução	francesa	e	todas	as	consequências	políticas	que	dali	se	seguiram.	Depois	veio	o
positivismo	normativista,	 seguido	das	mais	variadas	 formas	e	 fórmulas	que	–	 identificando
(arbitrariamente)	 a	 impossibilidade	 de	 um	 “fechamento	 semântico”	 do	 direito	 –	 relegou	 o
problema	 da	 interpretação	 jurídica	 a	 uma	 “questão	menor”	 (lembremos,	 aqui,	 de	 Kelsen).
Atente-se:	 nessa	 nova	 formulação	do	positivismo,	 o	 problema	 do	 direito	 não	 está(va)	 no	modo
como	os	 juízes	decidem,	mas,	simplesmente,	nas	condições	 lógico-deônticas	de	validade	das	“normas
jurídicas”.
Entretanto,	 uma	 coisa	 todos	 esses	 positivismos	 têm	 até	 hoje	 em	 comum:	 a
discricionariedade	(que	acaba	não	se	fixando	sequer	nos	limites	da	“moldura”	semântica).	E
tenho	 a	 convicção	de	que	 isso	 se	deve	 a	um	motivo	muito	 simples:	 a	 tradição	 continental,
pelo	 menos	 até	 o	 segundo	 pós-guerra,	 não	 havia	 conhecido	 uma	 Constituição	 normativa,
invasora	 da	 legalidade	 e	 fundadora	 do	 espaço	 público	 democrático.	 Isso	 tem	 consequências
drásticas	 para	 a	 concepção	 do	 direito	 como	 um	 todo!	 Quero	 dizer:	 saltamos	 de	 um	 legalismo
rasteiro,	que	reduzia	o	elemento	central	do	direito	ora	a	um	conceito	estrito	de	lei	(como	no
caso	dos	códigos	oitocentistas,	base	para	o	positivismo	primitivo),	ora	a	um	conceito	abstrato-
universalizante	 de	 norma	 (que	 se	 encontra	 plasmado	 na	 ideia	 de	 direito	 presente	 no
positivismo	normativista),	para	 uma	 concepção	 da	 legalidade	 que	 só	 se	 constitui	 sob	 o	manto	 da
constitucionalidade.	Afinal	 –	 e	me	 recordo	aqui	de	Elías	Díaz	 –,	não	 seríamos	 capazes,	nesta
quadra	da	história,	de	admitir	uma	legalidade	inconstitucional.	Isso	deveria	ser	evidente!
Portanto,	não	devemos	 confundir	 “alhos”	 com	“bugalhos”.	Obedecer	 “à	 risca	o	 texto	da
lei”	democraticamente	construído	(já	superada	a	questão	da	distinção	entre	direito	e	moral)
não	tem	nada	a	ver	com	a	“exegese”	à	moda	antiga	 (positivismo	primitivo).	No	primeiro	caso,	a
moral	 ficava	de	 fora;	agora,	no	Estado	Democrático	de	Direito,	ela	é	cooriginária.	Portanto,
hoje	 quando	 falamos	 em	 “legalidade”	 estamos	 nos	 referindo	 a	 outra	 legalidade,	 uma
legalidade	constituída	a	partir	dos	princípios	que	são	o	marco	da	história	institucional	do	direito;	uma
legalidade,	enfim,	que	se	forma	no	horizonte	daquilo	que	foi,	prospectivamente,	estabelecido
pelo	texto	constitucional	(não	esqueçamos	que	o	direito	deve	ser	visto	a	partir	da	revolução
copernicana	que	o	atravessou	depois	do	segundo	pós-guerra).
Repito:	“cumprir	a	letra	(sic)	da	lei”	significa	sim,	nos	marcos	de	um	regime	democrático
como	o	nosso,	um	avanço	 considerável.	A	 isso,	deve-se	 agregar	 a	 seguinte	 consequência:	 é
positivista	 tanto	 aquele	 que	 diz	 que	 texto	 e	 norma	 (ou	 vigência	 e	 validade)	 são	 a	mesma
coisa,	 como	 aquele	 que	 diz	 que	 “texto	 e	 norma	 estão	 descolados”	 (no	 caso,	 as	 posturas
axiologistas,	realistas,	pragmaticistas	etc.).	Não	esqueçamos:	Kelsen,	Hart	e	Ross	foram	todos
positivistas.	E	disso	todos	sabemos	as	consequências.	Ou	seja:	apegar-se	à	letra	da	lei	pode	ser
uma	atitude	positivista	ou	pode	não	ser.	Do	mesmo	modo,	não	se	apegar	à	letra	da	lei	pode
caracterizar	uma	atitude	positivista	ou	antipositivista.	Por	vezes,	“trabalhar”	com	princípios
(e	 aqui	 vai	 a	 denúncia	 do	 pamprincipiologismo	 que	 tomou	 conta	 do	 “campo”	 jurídico	 de
terrae	brasilis)	pode	representar	uma	atitude	(deveras)	positivista.	Utilizar	os	princípios	para
contornar	 a	 Constituição	 ou	 ignorar	 dispositivos	 legais	 –	 sem	 lançar	 mão	 da	 jurisdição
constitucional	 (difusa	 ou	 concentrada)	 –	 é	 uma	 forma	 de	 prestigiar	 tanto	 a	 irracionalidade
constante	 no	 oitavo	 capítulo	 da	 TPD	 de	 Kelsen,	 quanto	 homenagear,	 tardiamente,	 o	 positivismo
discricionarista	de	Herbert	Hart.	Não	é	desse	modo,	pois,	que	escapamos	do	positivismo.
Dito	de	outro	modo,	o	que	 sempre	 caracterizou	o	positivismo	é	o	 fato	de	que	a	postura
metodológica	por	intermédio	da	qual	se	analisa	o	fenômeno	jurídico	é	marcada	pela	restrição
à	análise	das	fontes	sociais,	a	cisão/separação	–	epistemológica	–	entre	direito	e	moral	(o	que
faz	com	que	alguns	autores	–	p.	ex.,	Robert	Alexy	–	 lancem	mão	da	razão	prática,	eivada	 de
solipsismo,	para	“corrigir”	o	direito)	e	a	ausência	de	uma	teoria	da	interpretação,	que	acarreta
uma	aposta	na	discricionariedade	(ou	seja,	não	se	conseguiu	superar	a	herança	–	ou	maldição
–	kelseniana	da	cisão	entre	ciência	do	direito	e	direito	ou	entre	observador	e	participante,	no	caso
hartiano).
Em	linha	diversa	–	e	isso	será	visto	na	sequência,	à	saciedade	–	é	preciso	dizer	que,	para	a
hermenêutica,	 isso	 não	 é	 bem	 assim.	 O	 elemento	 interpretativo	 que	 caracteriza	 mais
propriamente	 a	 experiência	 jurídica	 pode,	 e	 deve,	 ser	 explorado	 fenomenologicamente.	 É
possível	oferecer	limites	ou	anteparos	à	atividade	interpretativa,	na	medida	em	queo	direito
não	 é	 concebido	 a	 partir	 de	 um	 reducionismo	 fático.	 Isso	 é	 uma	 questão	 de	 controle
democrático	das	decisões.
Daí	 a	 pergunta:	 como	 pode	 o	 Estado	 –	 respeitando	 o	 Direito	 –	 atuar,	 intervir,	 para
(começar	 a)	 resgatar	 essa	 imensa	 dívida	 social?	 O	 quadro	 é	 desolador.	 Com	 efeito,	 nossas
classes	dirigentes	continuam	na	modernidade	arcaica.	Com	uma	indústria	que	só	dispõe	de
mercado	 se	 a	 renda	 for	 concentrada	 para	 viabilizar	 a	 demanda;	 uma	 agricultura	 eficiente,
mas	voltada	para	a	exportação;	megalópoles	que	são	incapazes	de	oferecer	os	serviços	para	os
quais	elas	deveriam	existir;	estrutura	de	transporte	urbano	nos	moldes	dos	países	ricos,	mas
que	 condena,	 por	 falta	 de	 dinheiro,	 milhões	 de	 pessoas	 a	 caminhar,	 como	 andarilhos
medievais,	 os	 quilômetros	 entre	 suas	 pobres	 casas	 e	 o	 trabalho;	 e	 obriga	 aqueles	 que	 têm
acesso	 à	 modernidade,	 ao	 desperdício	 de	 tempo	 em	 engarrafamentos	 que	 seriam
desnecessários	 em	 um	 sistema	 de	 transporte	 eficiente.	 Enfim,	 a	 modernização	 é	 vista
independentemente	do	bem-estar	coletivo.	Obtém-se	um	imenso	poder	econômico,	mas	ele	não
consegue	resolver	os	problemas	da	qualidade	de	vida.	Constroem-se	estruturas	sociais	que,	ao
se	fazerem	modernas,	mantêm	todas	as	características	do	que	há	de	mais	injusto	e	estúpido.
	
	
2.3.	Elementos	para	um	debate	acerca	do	papel	do	Direito	e	dos	Tribunais	no	Estado
Democrático	de	Direito
	
Importante	assinalar	que	a	discussão	contemporânea	sobre	a	hermenêutica	jurídica	passa
pelo	 enfrentamento	 do	 problema	 que	 envolve	 o	 papel	 dos	 Tribunais	 no	 contexto	 de	 um
Estado	 Democrático	 de	 Direito.	 Assim,	 o	 papel	 significativo	 reservado	 à	 jurisdição
constitucional	 em	 virtude	 daquilo	 que	 podemos	 chamar	 “aumento	 da	 dimensão
hermenêutica	 do	 direito”	 representa,	 certamente,	 um	 elemento	 decisivo	 para	 o
enfrentamento	 dos	 dilemas	 atuais	 da	 hermenêutica	 jurídica.	 Essa	 questão	 vem	 sendo
trabalhada,	 por	 diversos	 autores,	 a	 partir	 de	 dois	 eixos	 temáticos,	 que	 são	 chamados
procedimentalismo	e	substancialismo.
A	 grande	 diferença	 de	 cada	 um	destes	 aportes	 teóricos	 está	 no	 tipo	 de	 atividade	 que	 a
jurisdição	 realiza	 no	 momento	 em	 que	 interpreta	 as	 disposições	 constitucionais	 que
guarnecem	direitos	fundamentais.	As	posturas	procedimentalistas	não	reconhecem	um	papel
concretizador	à	 jurisdição	constitucional,	 reservando	para	esta	apenas	a	 função	de	controle
das	 “regras	 do	 jogo”	 democrático;	 já	 as	 posturas	 substancialistas	 reconhecem	 o	 papel
concretizador	 e	 veem	 o	 Judiciário	 com	 um	 locus	 privilegiado	 para	 a	 garantia	 do
fortalecimento	institucional	das	democracias	contemporâneas.
Evidentemente,	essa	posição	adotada	pelas	posturas	substancialistas	não	autoriza	a	defesa
de	ativismos	judiciais	ou	protagonismos	ad	hoc,	a	pretexto	de	estar-se	concretizando	direitos.
A	concretização	só	se	apresenta	como	concretização	na	medida	em	que	se	encontra	adequada
à	 Constituição,	 não	 podendo	 estar	 fundada	 em	 critérios	 pessoais	 de	 conveniência	 política
e/ou	convicções	morais.62
O	conceito	de	Estado	Democrático	de	Direito	aqui	trabalhado	pressupõe	uma	valorização
do	 jurídico,	 e,	 fundamentalmente,	 exige	 a	 (re)discussão	 do	 papel	 destinado	 ao	 Poder
Judiciário	 (e	 à	 justiça	 constitucional)	 nesse	 (novo)	 panorama	 estabelecido	 pelo
constitucionalismo	do	segundo	pós-guerra,	mormente	em	países	como	o	Brasil.
Nesse	sentido,	no	âmbito	das	presentes	 reflexões,	entendo	que	o	Estado	Democrático	de
Direito	supera	as	noções	anteriores	de	Estado	Liberal	e	Estado	Social	de	Direito,	questão	que
é	bem	definida	por	Elías	Díaz:	o	Estado	Liberal	de	Direito	é	a	institucionalização	do	triunfo
da	burguesia	ascendente	sobre	as	classes	privilegiadas	do	Antigo	Regime,	em	que	se	produz
uma	 clara	 distinção	 entre	 o	 político	 e	 o	 econômico,	 com	 um	 Estado	 formalmente
abstencionista,	 que	 deixa	 livres	 as	 forças	 econômicas,	 adotando	 uma	 posição	 de	 (mero)
policial	 da	 sociedade	 civil	 que	 se	 considera	 a	mais	 beneficiada	para	 o	desenvolvimento	do
capitalismo	 em	 sua	 fase	 de	 acumulação	 inicial	 e	 que	 vai	 aproximadamente	 até	 o	 final	 da
primeira	 grande	 guerra;	 já	 o	 Estado	 Social	 de	 Direito	 pode	 ser	 caracterizado	 como
institucionalização	 do	 capitalismo	 maduro,	 no	 qual	 o	 Estado	 abandona	 a	 sua	 postura
abstencionista	tomada	inicialmente	para	proteger	os	interesses	da	vitoriosa	classe	burguesa,
passando	não	somente	a	intervir	nas	relações	econômicas	da	sociedade	civil,	como	também	se
converte	 em	 fator	 decisivo	 nas	 fases	 de	 produção	 e	 distribuição	 de	 bens;63	 finalmente,	 o
Estado	Democrático	de	Direito	é	o	novo	modelo	que	remete	a	um	tipo	de	Estado	em	que	se
pretende	precisamente	a	transformação	em	profundidade	do	modo	de	produção	capitalista	e
sua	 substituição	 progressiva	 por	 uma	 organização	 social	 de	 características	 flexivamente
sociais,	para	dar	passagem,	por	vias	pacíficas	e	de	liberdade	formal	e	real,	a	uma	sociedade	no
qual	 se	 possam	 implantar	 superiores	 níveis	 reais	 de	 igualdades	 e	 liberdades.	 Assim,	 para
Díaz,	 o	 qualificativo	 “democrático”	 vai	 muito	 além	 de	 uma	 simples	 reduplicação	 das
exigências	e	valores	do	Estado	Social	de	Direito	e	permite	uma	práxis	política	e	uma	atuação
dos	 Poderes	 públicos	 que,	 mantendo	 as	 exigências	 garantísticas	 e	 os	 direitos	 e	 liberdades
fundamentais,	sirva	para	uma	modificação	em	profundidade	da	estrutura	econômica	e	social
e	uma	mudança	no	atual	sistema	de	produção	e	distribuição	dos	bens.64
A	 noção	 de	 Estado	 Democrático	 de	 Direito	 está,	 pois,	 indissociavelmente	 ligada	 à
realização	dos	direitos	 fundamentais.	É	desse	 liame	 indissolúvel	que	 exsurge	aquilo	que	 se
pode	 denominar	 de	 plus	 normativo	 do	 Estado	 Democrático	 de	 Direito.	 Mais	 do	 que	 uma
classificação	de	Estado	ou	de	uma	variante	de	sua	evolução	histórica,	o	Estado	Democrático
de	 Direito	 faz	 uma	 síntese	 das	 fases	 anteriores,	 agregando	 a	 construção	 das	 condições	 de
possibilidades	para	suprir	as	lacunas	das	etapas	anteriores,	representadas	pela	necessidade	do
resgate	das	promessas	da	modernidade,	 tais	 como	 igualdade,	 justiça	social	e	a	garantia	dos
direitos	 humanos	 fundamentais.	 A	 essa	 noção	 de	 Estado	 se	 acopla	 o	 conteúdo	 das
Constituições,	 através	 do	 ideal	 de	 vida	 consubstanciado	 nos	 princípios	 que	 apontam	 para
uma	mudança	no	status	quo	da	sociedade.	Por	isso,	como	já	referido	anteriormente,	no	Estado
Democrático	 de	 Direito,	 a	 lei	 (Constituição)	 passa	 a	 ser	 uma	 forma	 privilegiada	 de
instrumentalizar	a	ação	do	Estado	na	busca	do	desiderato	apontado	pelo	texto	constitucional,
entendido	no	seu	todo	dirigente-principiológico.
A	democratização	 social,	 fruto	das	políticas	do	Welfare	State,	 o	 advento	da	democracia	 a
partir	 do	 segundo	 pós-guerra	 e	 a	 redemocratização	 de	 países	 que	 saíram	 de	 regimes
autoritários/ditatoriais,	 trazem	 à	 luz	 Constituições	 cujo	 texto	 positiva	 os	 direitos
fundamentais	 e	 sociais.	 Esse	 conjunto	 de	 fatores	 redefine	 a	 relação	 entre	 os	 Poderes	 do
Estado,	passando	o	Judiciário	(ou	os	tribunais	constitucionais)	a	fazer	parte	da	arena	política.
Tais	 fatores	 provocam	 um	 redimensionamento	 na	 clássica	 relação	 entre	 os	 Poderes	 do
Estado.65	Desse	modo,	na	medida	em	que	a	Constituição	assume	um	caráter	cimeiro,	a	partir
dessa	 revolução	 copernicana	 (Jorge	 Miranda)	 representada	 pelo	 advento	 do	 Estado
Democrático	 de	 Direito,	 inexoravelmente	 estaremos	 em	 face	 da	 seguinte	 pergunta:	 qual	 a
relação	 entre	 o	 direito	 e	 a	 política?	 Em	 que	 medida	 o	 Direito,	 estabelecido	 no	 texto
constitucional,	pode	estabelecer	o	constituir	da	sociedade?
É	 nesse	 contexto	 que	 aparecem	 os	 dois	 grandes	 eixos	 analíticos:o	 procedimentalismo	 e	 o
substancialismo,66	 problemática	 que	 atravessa	 o	 debate	 contemporâneo	 acerca	 do
constitucionalismo	 e	 da	 jurisdição	 constitucional.	 Muito	 embora	 procedimentalistas	 e
substancialistas	 reconheçam	 no	 Poder	 Judiciário	 (e,	 em	 especial,	 da	 justiça	 constitucional)
uma	 função	 estratégica	 nas	 Constituições	 do	 pós-guerra,	 a	 corrente	 procedimentalista,
capitaneada	 por	 autores	 como	 Habermas,	 Garapon	 e	 Ely,	 apresenta	 consideráveis
divergências	 com	 a	 corrente	 substancialista,	 sustentada	 por	 autores	 como	 Cappelletti,	 em
alguma	medida	por	Dworkin	e,	no	Brasil,	por	juristas	como	Paulo	Bonavides,	Celso	Antônio
Bandeira	de	Mello,	Ingo	Sarlet,	José	Adércio	Sampaio,	Fábio	Comparato,	entre	outros.
Sustentando	 a	 tese	 procedimentalista,	 Habermas67	 critica	 com	 veemência	 a	 invasão	 da
política	e	da	sociedade	pelo	Direito.	O	paradigma	procedimentalista	pretende	ultrapassar	a
oposição	 entre	 os	 paradigmas	 liberal/formal/burguês	 e	 o	 do	 Estado	 Social	 de	 Direito,
utilizando-se,	para	tanto,	da	interpretação	da	política	e	do	direito	à	luz	da	teoria	do	discurso.
Parte	da	ideia	de	que	os	sistemas	jurídicos	surgidos	no	final	do	século	XX,	nas	democracias	de
massas	dos	Estados	Sociais,	denotam	uma	compreensão	procedimentalista	do	Direito.	Assim,
para	 Habermas,	 no	 Estado	 Democrático	 de	 Direito	 compete	 à	 legislação	 política	 a	 função
central.68
Embora	 essa	 discussão	 apareça	 em	 outros	 textos	 (em	 especial	 no	 meu	 Jurisdição
Constitucional	 e	 Decisão	 Judicial),69	 é	 relevante	 lembrar	 que	 a	 existência	 de	 tribunais
constitucionais	 não	 é	 autoevidente	 para	 Habermas.	 E,	 mesmo	 onde	 eles	 existem	 há
controvérsias	sobre	o	seu	lugar	na	estrutura	de	competências	da	ordem	constitucional	e	sobre
a	legitimidade	de	suas	decisões.	Critica,	assim,	a	ideia	de	concretização	dos	valores	materiais
constitucionais,	 aludindo	 que,	 “ao	 deixar-se	 conduzir	 pela	 ideia	 da	 realização	 de	 valores
materiais,	 dados	 preliminarmente	 no	 direito	 constitucional,	 o	 tribunal	 constitucional
transforma-se	numa	instância	autoritária”.	A	invasão	da	esfera	de	competência	dos	tribunais,
mediante	concretizações	materiais	de	valores	desestimula	o	agir	orientado	para	fins	cívicos,
tornando-se	o	juiz	e	a	lei	as	derradeiras	referências	de	esperança	para	indivíduos	isolados.70
Habermas	 propõe,	 pois,	 que	 o	 Tribunal	 Constitucional	 deve	 ficar	 limitado	 à	 tarefa	 de
compreensão	 procedimental	 da	Constituição,	 isto	 é,	 limitando-se	 a	 proteger	 um	 processo	 de	 criação
democrática	do	Direito.	O	Tribunal	Constitucional	não	deve	ser	um	guardião	de	uma	suposta
ordem	 suprapositiva	 de	 valores	 substanciais.	 Deve,	 sim,	 zelar	 pela	 garantia	 de	 que	 a
cidadania	disponha	de	meios	para	estabelecer	um	entendimento	 sobre	a	natureza	dos	 seus
problemas	e	a	forma	de	sua	solução.71
No	 mesmo	 diapasão,	 Antoine	 Garapon	 faz	 duras	 críticas	 à	 invasão	 da	 sociedade	 pelo
Judiciário,	 o	 que,	 segundo	 ele,	 serviria	 para	 o	 enfraquecimento	 da	 democracia
representativa.72	 Também	 J.	 H.	 Ely	 compartilha	 do	 paradigma	 procedimentalista,
sustentando	que	o	tribunal	constitucional	só	pode	conservar	sua	imparcialidade	se	resistir	à
tentação	de	preencher	 seu	espaço	de	 interpretação	com	 juízos	de	valores	morais.	Discorda,
assim,	não	apenas	da	jurisprudência	de	valores,	como	também	de	uma	interpretação	dirigida
por	princípios,	no	sentido	da	interpretação	construtiva	de	Dworkin.73
O	contraponto	é	 feito	pelo	outro	eixo	analítico:	o	 substancialismo.	Apesar	de	 se	mostrar
temerária	 a	 dicotomização	 entre	 um	 eixo	 e	 outro,	 é	 importante	 estabelecer	 as	 suas
delimitações.	Nesse	 sentido,	 embora	a	postura	de	Cappelletti	 tenha	 sido	marcante,	para	os
limites	desta	obra	mais	importa	apontar	as	bases	mínimas	do	pensamento	de	Dworkin,	que
entende	que	a	criação	jurisprudencial	do	direito	encontraria	o	seu	fundamento	na	primazia
da	Constituição.74
O	modelo	substancialista	–	que,	em	parte	venho	subscrevendo	(com	uma	forte	dimensão
hermenêutica	 e,	portanto,	 antidecisionista	 e	 antiativista)	 –	 trabalha	 na	perspectiva	de	 que	 a
Constituição	estabelece	as	condições	do	agir	político-estatal,	a	partir	do	pressuposto	de	que	a
Constituição	é	a	explicitação	do	contrato	social.75	É	o	constitucionalismo-dirigente	 (Canotilho)
que	 ingressa	 nos	 ordenamentos	 dos	 países	 após	 a	 segunda	 guerra.	 Consequentemente,	 é
inexorável	que,	com	a	positivação	dos	direitos	sociais-fundamentais,	o	Poder	Judiciário	(e,	em
especial,	a	 justiça	constitucional)	passe	 a	 ter	um	papel	 de	 relevância,	mormente	no	 que	pertine	 à
jurisdição	constitucional.76
Um	dos	mais	ferrenhos	defensores	das	teses	substancialistas	–	ou,	se	assim	quisermos,	das
teorias	 materiais	 da	 Constituição	 –	 e	 destas	 enquanto	 guia	 do	 processo	 hermenêutico-
constitucional,	é	o	norte-americano	Laurence	Tribe.	Para	tanto,	elabora	uma	profunda	crítica
aos	 fundamentos	 das	 teorias	 dos	 valores	 adjetivos	 ou	 procedimentalistas,	 para	 as	 quais	 a
Constituição	 somente	 garante	 o	 acesso	 aos	 mecanismos	 de	 participação	 democrática	 no
sistema.	Nesse	 sentido,	 afirma	que	o	procedimento	deve	 completar-se	 com	uma	 teoria	dos
direitos	 e	 valores	 substantivos.	 Parte	 do	 caráter	 tenazmente	 substantivo	 (stubbornly
substantive	character)	da	maioria	dos	mandatos	constitucionais	mais	 importantes:	a	primeira
emenda,	a	décima	terceira	(abolição	da	escravidão)	ou	a	cláusula	do	devido	processo	legal	são
bons	exemplos	disso.	Por	outro	lado,	também	são	substantivos	o	significado	e	o	propósito	das
normas	 que	 regulam	 os	 procedimentos	 de	 participação.	 Certamente,	 diz	 Tribe,	 decidir	 que
classe	de	participação	demanda	a	Constituição	requer	uma	teoria	dos	valores	e	dos	direitos	plenamente
substantiva.	 Assim,	 os	 direitos	 ao	 procedimento	 do	 devido	 processo	 têm	 em	 sua	 base	 a
dignidade	pessoal	(ser	ouvido	é	parte	do	que	significa	ser	pessoa);	do	mesmo	modo,	a	questão
de	“quem	vota”	ou	a	regra	“um	homem,	um	voto”	possuem	caráter	substantivo.	As	teorias
procedimentalistas	não	parecem	apreciar	que	o	processo	é	algo	em	si	mesmo	valioso;	porém,
dizer	que	o	processo	é	em	si	mesmo	valioso	é	afirmar	que	a	Constituição	é	inevitavelmente
substantiva.	Por	tudo	isso,	a	Constituição	é	inevitavelmente	substantiva.77
Mais	ainda,	Tribe	vai	dizer	que	a	proteção	das	minorias	 isoladas	e	sem	voz,	excluídas	do
processo	de	participação	política,	possui	 também	um	 fundamento	 substantivo:	 a	 legislação	que
discrimina	qualquer	categoria	de	pessoas	deve	ser	rechaçada	com	base	em	uma	ideia	sobre	o
que	 significa	 ser	 pessoa,	 e	 a	 própria	 ideia	 de	 segregação	 dos	 negros	 ou	mulheres	 somente
pode	 ser	 rechaçada	 encontrando	 uma	 base	 constitucional	 para	 afirmar	 que,	 em	 nossa
sociedade,	 tais	 ideias	 estão	 substantivamente	 fora	 do	 lugar.	 Em	 síntese,	 para	 Tribe,
circunscrever	 a	 interpretação	 constitucional	 à	 ideia	 de	 abertura	 política	 supõe	 um	 círculo
fechado.	Por	isso,	as	teorias	defensoras	da	Constituição	como	processo	(como	garantia	de	abertura
e	de	participação)	 supõem	um	 empobrecimento	 do	 papel	 da	 teoria	 constitucional:	 a	Constituição
pareceria	estar	dirigida	somente	aos	juízes,	porém	não	aos	cidadãos	nem	aos	representantes,
em	 face	 de	 sua	 incapacidade	 para	 informar	 no	 conteúdo	 do	 debate,	 discussão	 e	 decisão
política.78
É	 possível	 também	 afirmar	 que	 o	 garantismo	 proposto	 por	 Luigi	 Ferrajoli	 se	 aproxima
desse	 contexto,	 pelo	 valor	 que	 estabelece	 à	 Constituição.	 A	 concordância	 com	 o
substancialismo	de	Ferrajoli79	não	implica	anuência	a	uma	certa	vinculação	do	autor	com	o
positivismo,	mormente	na	questão	do	papel	do	juiz,	que	permanece,	ao	que	tudo	indica,	nos
marcos	do	paradigma	da	 filosofia	da	consciência.	Parece	não	 restarem	maiores	dúvidas	em
relação	aos	 temas	com	os	quaisestamos	de	acordo,	Ferrajoli	 e	eu:	o	neoconstitucionalismo,
nos	moldes	em	que	se	apresenta,	apenas	representa	uma	superação	dos	paleojuspositivismo
ou,	 quando	 pretende	 ir	 além,	 fragiliza	 a	 autonomia	 do	 direito	 mediante	 a	 aposta	 no
judicialismo;	na	mesma	 linha,	as	concordâncias	em	relação	às	críticas	à	distinção	estrutural
regra-princípio,	assim	como	o	 rechaço	da	ponderação	de	valores.	 Já	com	relação	às	minhas
discordâncias	com	Ferrajoli	–	na	especificidade,	a	separação	“direito-moral”	e	a	admissão	da
discricionariedade	–	estas	nascem	porque,	no	que	tange	ao	modo	de	organizar	o	pensamento,
nós	nos	 situamos	em	paradigmas	 filosóficos	diferentes.80	Com	efeito,	 é	preciso	 reconhecer,
junto	 com	 Ernildo	 Stein,	 que	 só	 fazemos	 filosofia	 –	 inclusive	 filosofia	 no	 direito	 –	 se	 essa
filosofia	é	uma	filosofia	de	standard	de	racionalidade.	Isso	significa	que,	para	que	o	filosofar
tenha	resultados	profícuos,	é	necessário	que	o	filósofo	(ou	 jusfilósofo)	possa	se	movimentar
no	interior	de	um	paradigma	filosófico	ou	de	algo	que,	com	Lorenz	Puntel,	podemos	chamar
de	quadro	referencial	teórico.	É	a	partir	desse	quadro	referencial	teórico	que	o	trabalho	filosófico
irá	articular	suas	construções	no	que	tange	a	uma	teoria	da	verdade,	uma	teoria	da	realidade,
uma	 linguagem	 e	 uma	 ideia	 de	 método.	 Na	 nossa	 discussão,	 fica	 claro	 que	 há	 dois
paradigmas	 distintos	 sendo	 trabalhados.	 No	 caso	 do	 juspositivismo	 constitucional	 de
Ferrajoli,	 temos	 o	 trabalho	 desenvolvido	 no	 interior	 da	 filosofia	 analítica;	 ao	 passo	 que,	 em
minha	obra,	procuro	enquadrar	o	problema	do	direito	no	interior	de	outro	paradigma:	o	da
fenomenologia	 hermenêutica	 e	 a	 hermenêutica	 filosófica.	Daí	 que	 minha	 tese,	 no	 que	 tange	 à
construção	 de	 uma	 teoria	 do	 direito	 adequada	 aos	 postulados	 do	 Constitucionalismo
Contemporâneo,	 apresente-se	 de	 maneira	 completamente	 ruptural	 com	 relação	 à	 tradição
constituída	sob	a	égide	do	positivismo	normativista.	Não	há	como	compartilhar	os	mesmos
pressupostos	no	que	 tange	 ao	modo	 como	o	 conhecimento	 é	descoberto	 e	o	pensamento	 é
organizado.	Parece	inegável	que	a	proposta	teórica	de	Ferrajoli	está	assentada	no	positivismo
normativista	da	tradição,	que	nasce	de	uma	vertente	da	filosofia	analítica	da	linguagem,	que
é	o	neopositivismo	lógico	do	Círculo	de	Viena.	Ferrajoli	não	situa	a	interpretação	do	direito
na	viragem	ontológico-linguística.	A	aposta	de	Ferrajoli	na	 construção	de	uma	“linguagem
rigorosa”	fala	por	si	só	(essa	também	era	a	tese	dos	neopositivistas	do	Círculo	de	Viena).	Por
tais	razões	é	que	o	mestre	florentino	considera	estranha	a	tese	da	resposta	correta.
Para	os	objetivos	desta	abordagem,	importa	lembrar	que,	em	termos	de	doutrina	brasileira,
Paulo	 Bonavides81	 justifica	 com	 vigor	 a	 tese	 substancialista,	 admitindo,	 por	 motivos
pragmáticos,	a	judicialização	da	política	em	países	de	terceiro	mundo.
Dito	de	outro	modo,	na	esteira	das	teses	substancialistas,	entendo	que	o	Poder	Judiciário
(especialmente	 a	 justiça	 constitucional)	 deve	 assumir	 uma	 postura	 diferenciada,	 longe	 da
postura	 absenteísta,	 própria	 do	 modelo	 liberal-individualista-normativista	 que	 permeia	 a
dogmática	 jurídica	 brasileira.82	 Aqui,	 entretanto,	 cabe	 uma	 advertência:	 a	 toda	 evidência,
quando	estou	falando	de	uma	função	diferenciada	do	Poder	Judiciário,	não	estou	propondo
uma	 (simplista)	 judicialização83	 da	 política	 e	 das	 relações	 sociais.	 E	 isso	 não	 é	 difícil	 de
perceber	no	exame	do	transcurso	da	presente	obra.
Importa	 ressaltar,	 entretanto,	 que,	 no	 plano	 do	 agir	 cotidiano	 dos	 juristas	 no	 Brasil,
nenhuma	 das	 duas	 teses	 (procedimentalismo	 e	 substancialismo)	 é	 perceptível.	 Ou	 seja,	 se
estamos	longe	da	postura	substancialista	–	e	a	prática	nos	tem	demonstrado	tal	assertiva,	em
face	da	inefetividade	da	expressiva	maioria	dos	direitos	sociais	previstos	na	Constituição	e	da
postura	 assumida	 pelo	 Poder	 Judiciário	 na	 apreciação	 de	 institutos	 como	 o	 mandado	 de
injunção,	 a	 ação	 de	 inconstitucionalidade	 por	 omissão,	 além	 da	 falta	 de	 uma	 filtragem
hermenêutico-constitucional	das	normas	anteriores	a	Constituição	–,	por	outro	lado,	também
não	 se	pode	 afirmar	que	 convivemos	 com	uma	prática	procedimentalista	do	 tipo	proposto
por	 Habermas.	 Ora,	 a	 submissão	 do	 Congresso	 à	 reiterada	 utilização	 indiscriminada	 de
medidas	provisórias	por	parte	do	Poder	Executivo	deixa	claro	o	quanto	estamos	distante	de
promover	o	que	Habermas	denomina	de	“combinação	universal	e	a	mediação	recíproca	entre
a	soberania	do	povo	institucionalizada	e	não	institucionalizada”,84	enfim,	o	quanto	estamos
distantes	da	criação	democrática	de	direitos	e	da	garantia	da	preservação	dos	procedimentos
legislativos	aptos	a	estabelecer	a	autonomia	dos	cidadãos.
Dito	de	outro	modo,	enquanto	o	procedimentalismo	de	Ely	ancora-se	na	premissa	de	que
“o	 controle	 abstrato	 de	 normas	 deve	 referir-se,	 em	primeira	 linha,	 às	 condições	 da	 gênese
democrática	das	leis,	iniciando	pelas	estruturas	comunicativas	de	uma	esfera	pública	legada
pelos	meios	 de	massa,	 passando,	 a	 seguir,	 pelas	 chances	 reais	 de	 se	 conseguir	 espaço	 para
vozes	 desviantes	 e	 de	 reclamar	 efetivamente	 direitos	 de	 participação	 formalmente	 iguais,
chegando	 até	 a	 representação	 simétrica	 de	 todos	 os	 grupos	 relevantes,	 interesses	 e
orientações	axiológicas	no	nível	das	corporações	parlamentares	e	atingindo	a	amplitude	dos
temas,	argumentos	e	problemas,	dos	valores	e	 interesses,	que	 têm	entrada	nas	deliberações
parlamentares	 e	 que	 são	 levadas	 em	 conta	 na	 fundamentação	 das	 normas	 a	 serem
decididas”,85	 e	 o	 paradigma	 procedimental	 habermasiano	 do	 Direito	 “pretende	 apenas
assegurar	 as	 condições	 necessárias,	 a	 partir	 das	 quais	 os	 membros	 de	 uma	 comunidade
jurídica,	 por	 meios	 de	 práticas	 comunicativas	 de	 autodeterminação,	 interpretam	 e
concretizam	os	ideais	inscritos	na	Constituição”,86	em	que	“a	função	da	Corte	Constitucional,
originária	 ou	 não	 do	 Poder	 Judiciário,	 seria	 a	 de	 zelar	 pelo	 respeito	 aos	 procedimentos
democráticos	para	a	formação	da	opinião	e	da	vontade	política,	a	partir	da	própria	cidadania,
e	não	a	de	se	arrogar	o	papel	de	legislador	político”,87	não	devendo,	portanto,	transformar-se
(a	 justiça	 constitucional)	 em	 “guardiã	 de	 uma	 suposta	 ordem	 suprapositiva	 de	 valores
substanciais”,	reservando-se	a	intervenção	do	Judiciário	apenas	para	facultar	aos	excluídos	da
participação	o	acesso	direto	aos	“poderes	políticos”.88
Ora,	a	realidade	brasileira	aponta	em	direção	contrária:	o	assim	denominado	Estado	Social	não
se	concretizou	no	Brasil	(foi,	pois,	um	simulacro),	onde	a	função	intervencionista	do	Estado
serviu	para	aumentar	ainda	mais	as	desigualdades	sociais	(pensemos	nos	Donos	do	Poder,	de
Faoro,	 e	 no	 Capitalismo	 de	 Laços,	 de	 Lazzarini);	 parcela	 expressiva	 dos	 mínimos	 direitos
individuais	e	sociais	não	é	cumprida;	o	controle	concentrado	de	normas	apresenta	um	deficit
de	eficácia,	decorrente	de	uma	“baixa	constitucionalidade”;89	os	preceitos	fundamentais	que
apontam	para	 o	 acesso	 à	 justiça	 continuam	 ineficazes	 (basta	 lembrar,	 exemplificadamente,
afora	 a	 “crônica	 de	 uma	 morte	 anunciada”	 ocorrida	 com	 o	 mandado	 de	 injunção,	 que	 a
arguição	de	descumprimento	de	preceito	fundamental	somente	foi	regulamentada	onze	anos
depois	 da	 promulgação	 da	 CF);	 no	 âmbito	 do	 parlamento,	 aprovam-se	 leis	 por	 voto	 de
liderança;	um	voto	de	um	eleitor	de	uma	pequena	unidade	federada	chega	a	valer	dezesseis
vezes	 o	 voto	 de	 um	 cidadão	 das	 unidades	 maiores,	 fazendo	 com	 que	 uma	 estranha
matemática	transforme	a	maioria	em	minoria;	tais	fatores	–	entre	tantos	outros	que	poderiam
aqui	 ser	 assinalados	 e	 que	 já	 foram	 examinados	 anteriormente,	 naquilo	 que	 denomino	 de
crise	 de	 paradigmasdo	 Direito	 e	 do	 Estado	 –	 denotam	 a	 inaplicabilidade	 das	 teses
procedimentalistas,	 as	 quais,	 por	 sua	 especificidade	 formal,	 longe	 estão	 de	 estabelecer	 as
condições	 de	 possibilidade	 para	 a	 elaboração	 de	 um	 projeto	 apto	 à	 construção	 de	 uma
concepção	substancial	de	democracia,90	no	qual	a	primazia	(ainda)	é	a	de	proceder	à	inclusão
social	 (afinal,	 ainda	 existem	 dezesseis	 milhões	 de	 pessoas	 vivendo	 na	 miséria,	 ao	 mesmo
tempo	em	que	a	Constituição	estabelece	que	o	Brasil	é	uma	República	que	visa	a	erradicar	a
miséria	 e	 a	 desigualdade...)	 e	 o	 resgate	 das	 promessas	 da	 modernidade,	 exsurgentes	 da
refundação	da	sociedade	proveniente	do	processo	constituinte	de	1988.
É	 este	 o	 dilema	 brasileiro:	 não	 sufragamos	 a	 tese	 substancialista,	 porque	 o	 Judiciário,91
preparado	 para	 lidar	 com	 conflitos	 interindividuais,	 próprios	 de	 um	 modelo	 liberal-
individualista,	 não	 está	 preparado	 para	 o	 enfrentamento	 dos	 problemas	 decorrentes	 da
transindividualidade,	própria	do	(novo)	modelo	advindo	do	Estado	Democrático	de	Direito
previsto	 na	 Constituição	 promulgada	 em	 1988;	 por	 outro	 lado,	 em	 face	 da	 democracia
delegativa	que	vivemos,	de	cunho	hobbesiano	(O’Donnell),	no	interior	do	qual	o	Legislativo	é
atropelado	 pelo	 decretismo	 do	 Poder	 Executivo,	 também	 não	 temos	 garantido	 o	 acesso	 à
produção	 democrática	 das	 leis	 e	 dos	 procedimentos	 que	 apontam	 para	 o	 exercício	 dos
direitos	previstos	na	Constituição.
	
	
2.4.	A	Constituição	e	o	constituir	da	sociedade:	a	superação	da	crise	de	paradigmas	como
condição	de	possibilidade
	
Por	 tudo	 isso,	 é	 possível	 sustentar	 que,	 no	 Estado	Democrático	 de	 Direito,	 ocorre	 certo
deslocamento	 do	 centro	 de	 decisões	 do	 Legislativo	 e	 do	 Executivo	 para	 o	 plano	 da	 justiça
constitucional.	 Pode-se	 dizer,	 nesse	 sentido,	 que	 no	 Estado	 Liberal,	 o	 centro	 de	 decisão
apontava	para	o	Legislativo	(o	que	não	é	proibido	é	permitido,	direitos	negativos);	no	Estado
Social,	 a	 primazia	 ficava	 com	 o	 Executivo,	 em	 face	 da	 necessidade	 de	 realizar	 políticas
públicas	 e	 sustentar	 a	 intervenção	 do	 Estado	 na	 economia;	 já	 no	 Estado	 Democrático	 de
Direito,	o	foco	de	tensão	se	volta	para	o	Judiciário.
Dito	 de	 outro	 modo,	 se	 com	 o	 advento	 do	 Estado	 Social	 e	 o	 papel	 fortemente
intervencionista	do	Estado,	o	foco	de	poder/tensão	passou	para	o	Poder	Executivo,	no	Estado
Democrático	 de	 Direito	 há	 uma	modificação	 desse	 perfil.	 Inércias	 do	 Executivo	 e	 falta	 de
atuação	do	Legislativo	passam	a	poder	–	em	determinadas	circunstâncias	–	ser	supridas	pelo
Judiciário,	 justamente	 mediante	 a	 utilização	 dos	 mecanismos	 jurídicos	 previstos	 na
Constituição	que	estabeleceu	o	Estado	Democrático	de	Direito.
Isso,	 à	 evidência,	 exigirá	 um	 rigoroso	 controle	 das	 decisões	 judiciais	 e	 dos	 julgadores.
Afinal,	 se	 é	 inexorável	 que	 alguém	 tenha	 que	 decidir	 e	 se	 é	 inexorável	 o	 crescimento	 das
demandas	por	direitos	(fundamentais-sociais,	principalmente)	e	com	isso	aumente	o	espaço
de	poder	da	justiça	constitucional,	parece	evidente	que	isso	não	pode	vir	a	comprometer	um
dos	pilares	sustentadores	do	paradigma	Constitucionalista:	a	democracia.
Assim,	a	assertiva	de	que	o	Estado	Democrático	de	Direito	dependeria	muito	mais	de	uma
ação	concreta	do	 Judiciário	do	que	de	procedimentos	 legislativos	e	administrativos	deve	 ser
deveras	 relativizada.	 O	 Judiciário	 não	 pode	 ser	 a	 solução	 mágica	 para	 os	 problemas	 dos
fracassos	e	insuficiências	de	políticas	de	welfare	state.	Aliás,	em	determinadas	circunstâncias,
corre-se	 o	 risco	 de	 “criar”	 cidadãos	 de	 segunda	 classe,	 que,	 em	 vez	 de	 reivindicarem	 seus
direitos	no	campo	da	política,	apostam	no	paternalismo	juridicista.92	Igualmente	não	se	pode
apostar	 em	 uma	 “república	 de	 juízes”.	 Tem-se	 que	 ter	 em	mente,	 entretanto,	 a	 relevante
circunstância	de	que,	 se	no	processo	 constituinte	 se	optou	por	um	Estado	 intervencionista,
visando	a	uma	sociedade	mais	justa,	com	a	erradicação	da	pobreza	etc.,	dever-se-ia	esperar	que
o	 Poder	 Executivo	 e	 o	 Legislativo	 cumprissem	 tais	 programas	 especificados	 na	 Constituição.
Acontece	 que,	 em	 grande	 parte,	 a	 Constituição	 não	 está	 sendo	 cumprida.	 As	 normas-
programa	 da	 Lei	 Maior	 não	 estão	 sendo	 implementadas.	 Por	 isso,	 na	 falta	 de	 políticas
públicas	cumpridoras	dos	ditames	do	Estado	Democrático	de	Direito,	surge	o	 Judiciário	como
instrumento	para	o	resgate	dos	direitos	não	realizados.	Por	 isso	a	 inexorabilidade	desse	“sensível
deslocamento”	antes	especificado.	Com	todos	os	cuidados	que	isso	implica.93
Em	 face	 do	 quadro	 que	 se	 apresenta	 –	 ausência	 de	 cumprimento	 da	 Constituição,
mediante	 a	 omissão	 dos	 Poderes	 públicos,	 que	 não	 realizam	 as	 devidas	 políticas	 públicas
determinadas	pelo	pacto	constituinte	–,	a	via	judiciária	se	apresenta	–	por	vezes	–	como	a	via
possível	para	a	realização	dos	direitos	que	estão	previstos	nas	leis	e	na	Constituição.	É	claro
que	 o	 Judiciário	 não	 faz	 e	 não	 fará	 políticas	 públicas.	 Aliás,	 é	 nesse	 sentido	 que	 devemos
desmitificar	 algumas	 ideias	que	 se	propagam	a	 respeito	do	direito	 e	das	políticas	públicas.
Com	 efeito,	 política	 pública	 é	 um	 problema	 de	 ação	 do	 Poder	 Executivo.	O	 que	 o	Direito
pode	 fazer	 é	 regulamentar	 a	 execução	 dessas	 políticas	 e	 é	 nesse	 âmbito	 regulatório	 que	 o
Judiciário	 pode	 intervir.	 Isso	 por	 um	 motivo	 muito	 simples:	 o	 Judiciário	 jamais	 poderá
executar	uma	política	pública	pelo	simples	fato	de	que	ele	não	tem	a	“chave	do	cofre”	etc.	O
problema	do	Judiciário	é	uma	questão	de	regulamentação	e	adequação	constitucional	dessas
políticas,	no	âmbito	daquilo	que	Elías	Díaz	chama	de	“legalidade	constitucional”.	Veja-se,	por
exemplo:	 o	 Judiciário	 pode	 determinar	 a	 continuidade	 de	 uma	 política	 pública	 que	 esteja
adequada	e	 funcionando,	mas	que	o	Executivo	–	por	motivos	político-fisiológicos	–	decidiu
interromper	ou	substituir	por	outra	(caso,	por	exemplo,	da	política	de	segurança	implantada
pelo	governo	Garotinho	ao	tempo	em	que	o	Luiz	Eduardo	Soares	era	secretário	de	segurança
e	 que	 o	 governo,	 um	 ano	 depois,	 por	 conta	 de	 acordos	 políticos	 –	 que	 viabilizassem	 a
candidatura	do	governador	à	presidência	da	 república	–,	decidiu	 interromper	por	conta	de
novos	acordos	políticos.	Nesta	hipótese,	o	Ministério	Público	poderia	ter	provocado	o	Poder
Judiciário,	até	para	evitar	o	 retrocesso	social.	Há	casos	 limítrofes,	em	que	a	decisão	 judicial
evita	 um	 desvio	 de	 finalidade	 do	 orçamento	 público	 e	 das	 próprias	 políticas	 públicas	 que
advêm	da	Constituição	e	da	Lei	Orgânica	do	Município.	Mutatis	mutandis,	é	o	exemplo	que
vem	da	Comarca	 de	 Joinville	 (SC),	 em	que	 o	 juiz	Alexandre	Morais	 da	Rosa,94	 atendendo
ação	civil	pública	promovida	pelo	Ministério	Público,	determinou	à	municipalidade	a	criação
de	2.948	vagas	de	ensino	fundamental	na	rede	pública	de	ensino.95	No	caso,	a	municipalidade
havia	“preferido”	colocar	elevada	verba	em	favor	de	um	clube	de	futebol	(Joinville	Esporte
Clube,	que	disputa	a	terceira	divisão	do	Campeonato	Brasileiro).
De	 todo	 modo,	 o	 Judiciário	 sempre	 atuará	 nesse	 sentido	 regulador,	 controlando	 a
legalidade	constitucional,	podendo,	no	limite,	ordenar	a	execução	de	determinadas	medidas
ao	Executivo	(medidas	essas	determinadas	pelo	direito),	mas	a	execução	em	si	sempre	caberá
ao	Executivo.	Há	um	espaço	que	o	Judiciário	não	alcança.	Por	 isso,	uma	teoria	da	decisão	é
importante	 para	 nos	 assegurar	 dos	 limites	 desse	 espaço	 não	 alcançado	 pelo	 Judiciário;	 um
espaço	democraticamente	garantido,	para	que	nossa	democracia	não	se	transforme	em	uma
juristocracia.
Assim,	naquilo	que	se	entende	por	Estado	Democrático	de	Direito,	o	Judiciário,	através	do
controle	 da	 constitucionalidadedas	 leis,	 pode	 servir	 como	 via	 de	 resistência	 às	 investidas	 dos
Poderes	 Executivo	 e	 Legislativo,	 que	 representem	 retrocesso	 social	 ou	 a	 ineficácia	 dos	 direitos
individuais	 ou	 sociais	 (também	 aqui	 pode	 ser	 usado	 o	 princípio	 da	 proibição	 de	 proteção
insuficiente	–	a	Untermassverbot).96	Dito	de	outro	modo,	 a	Constituição	não	 tem	somente	a
tarefa	de	apontar	para	o	futuro.	Tem,	igualmente,	a	relevante	função	de	proteger	os	direitos
já	conquistados.	Desse	modo,	mediante	a	utilização	da	principiologia	constitucional	(explícita
ou	implícita),	é	possível	combater	alterações	feitas	por	maiorias	políticas	eventuais,	que,	legislando
na	 contramão	 da	 programaticidade	 constitucional,	 retiram	 (ou	 tentam	 retirar)	 conquistas	 da
sociedade.	 Veja-se,	 nesse	 sentido,	 a	 importante	 decisão	 do	 Tribunal	 Constitucional	 de
Portugal,	 que	 aplicou	 a	 cláusula	da	 “proibição	do	 retrocesso	 social”,	 inerente/imanente	 ao
Estado	Democrático	e	Social	de	Direito:	“...	a	partir	do	momento	em	que	o	Estado	cumpre	(total	ou
parcialmente)	 as	 tarefas	 constitucionalmente	 impostas	 para	 realizar	 um	 direito	 social,	 o	 respeito
constitucional	deste	deixa	de	consistir	(ou	deixa	de	consistir	apenas)	numa	obrigação	positiva,	para	se
transformar	ou	passar	também	a	ser	uma	obrigação	negativa.	O	Estado,	que	estava	obrigado	a	atuar
para	dar	satisfação	ao	direito	social,	passa	a	estar	obrigado	a	abster-se	de	atentar	contra	a	realização
dada	 ao	 direito	 social”	 (Acórdão	 n.	 39/84	 do	 Tribunal	 Constitucional	 da	 República
Portuguesa).97
Evidentemente	 que	 isto	 leva	 em	 conta	 uma	 concepção	 de	 Constituição	 como	 espaço	 de
regulação	garantidor	das	relações	democráticas	entre	o	Estado	e	a	Sociedade	(Ribas	Vieira),	devendo
ser	 entendida	 “precisamente	 como	 zona	 más	 o	 menos	 segura	 de	 mediación,	 aparte	 de	 la
habitual	entre	legalidad	y	legitimación,	también	–	más	radicalmente	y	vinculado	a	todo	ello	–
entre	legitimidad	y	justicia”	(Elías	Díaz).
Há,	 assim,	 inúmeros	 exemplos	 de	 ações	 civis	 públicas	 obrigando	 o	 fornecimento	 de
remédios	a	pessoas	portadoras	de	doenças	crônicas	e	a	construção	de	locais	condizentes	para
abrigo	 de	 menores.	 Assim,	 em	 alguns	 pontos,	 pode-se	 perceber	 a	 atitude	 do	 Ministério
Público	 e	 do	 Judiciário	 em	 sua	 feição	 intervencionista.	 É	 evidente	 –	 e	 isso	 já	 ficou	 claro
anteriormente	–	que	não	se	pode	pretender	que	o	Judiciário	passe	a	ditar	políticas	públicas	“lato	sensu”
ou	que	passe	a	exercer	funções	executivas	e	nem	a	Constituição	–	com	todo	o	aparato	jurídico
colocado	 à	 disposição	 do	 Ministério	 Público	 e	 do	 Judiciário	 –	 permitiria	 tal	 situação.
Basicamente,	 a	 mudança	 de	 postura	 dos	 operadores	 jurídicos,	 agindo	 em	 várias	 áreas	 de
políticas	públicas	deixadas	ao	largo	pelo	Poder	Executivo,	já	por	si	só	provoca(ria)	discussões
que	leva(ria)m	os	Poderes	Legislativo	e	Executivo	à	reformulação	de	suas	linhas	de	atuação,
mormente	 no	 que	 concerne	 às	 prioridades	 orçamentárias.	 Ou	 seja,	 o	 Direito,	 nessa	 linha,
passa(ria)	a	ser	utilizado	não	como	instrumento	de	redução	de	complexidades	ou	reprodução
de	uma	dada	realidade,	e	sim,	como	um	mecanismo	de	transformação	da	sociedade.
De	 todo	modo,	 cabe	 ressaltar	 que	 essa	 questão	 não	 é	 nova.	 Com	 efeito,	 Leonel	 Severo
Rocha,98	analisando	o	pensamento	político	de	Rui	Barbosa,	chama	a	atenção	para	o	 fato	de
que,	já	na	perspectiva	de	Rui	para	a	Constituição	de	1891,	o	Judiciário,	órgão	de	controle	da
constitucionalidade,	 seria	uma	espécie	de	 fiador	das	 instituições	e	propiciador	do	acesso	às
demandas	 individuais.	 A	 perspectiva	 de	 Rui	 é	 chamada	 por	 Rocha	 de	 “democracia
juridicista”,	 forma	 política	 na	 qual	 o	 direito	 de	 reivindicar	 os	 direitos	 nos	 tribunais	 seja	 a
todos	assegurada.
Se	 é	 correta	 a	 tese	 de	 um	 certo	 deslocamento	 do	 centro	 de	 decisões	 antes	 delineada
(relativizada	 ou	 não),	 como	 explicar	 o	 ainda	 acentuado	 grau	 de	 ineficácia	 do	 sistema
judiciário	 no	 Brasil?99	 Ou	 seja,	 com	 todos	 estes	 mecanismos	 à	 disposição	 –	 princípios
constitucionais	 amplos	 e	 dirigentes,	 ações	 coletivas	 das	 mais	 variadas	 (ação	 civil	 pública,
mandado	de	 segurança	 coletivo,	mandado	de	 injunção	 coletivo,	 ação	popular	 etc.)	 –	 como
justificar	a	reduzida	função	social	do	Direito?	Daí	o	acerto	de	Ribas	Vieira100	em	dizer	que	“a
crise	 do	 Judiciário	 deriva	 do	 descompasso	 existente	 entre	 sua	 atuação	 e	 as	 necessidades
sociais,	 considerando-se	 totalmente	 insuficiente	 a	 afirmação	 formal	 da	 existência	 de
determinados	direitos,	uma	vez	que	o	Direito	só	tem	real	existência	a	partir	de	uma	agência
coativa	disposta	a	aplicar	as	normas	jurídicas”.
Não	 é	 segredo	 que,	 historicamente,	 o	 Direito	 tem	 servido,	 preponderantemente,	 muito
mais	para	sonegar	direitos	do	cidadão	do	que	para	salvaguardar	o	cidadão.	Para	confirmar	tal
afirmação,	basta	que	olhemos	nossos	presídios,	nossas	favelas,	nossos	índices	de	mortalidade,
nosso	coeficiente	de	 impunidade,101	 nossas	 leis	que	protegem,	deliberantemente,	 as	 classes
médio-superiores,	 como,	 v.g,	 a	 Lei	 10.684/03102	 etc.,	 para	 entendermos	 a	 dimensão	 do
problema.
À	evidência,	a	simples	elaboração	de	um	texto	constitucional,	por	melhor	que	seja,	não	é
suficiente	para	que	o	ideário	que	o	inspirou	se	introduza	efetivamente	nas	estruturas	sociais,
passando	 a	 reger	 com	 preponderância	 o	 relacionamento	 político	 de	 seus	 integrantes.103
Assim,	 para	 que	 alcancemos	 tal	 desiderato,	 necessitamos,	 primeiro,	 superar	 esse
paradigma104	 normativista	 (por	 vezes,	 ainda	 exegético),	 próprio	 de	 um	 modelo	 (modo	 de
produção)	de	Direito	 liberal-individualista.	Para	 tanto,	é	preciso	entender	que	–	sustentando
esse	modo	liberal-individualista	de	produção	de	direito	–	existe	um	campo	jurídico,	instituído
ao	mesmo	tempo	que	instituinte,	no	interior	do	qual	se	trabalha	ainda	com	a	perspectiva	de
que,	embora	o	Estado	tenha	mudado	de	feição,	o	Direito	perfaz	um	caminho	a	latere,	à	revelia
das	transformações	advindas	de	um	Estado	intervencionista,	regulador.	Esse	campo	jurídico	se
constitui	em	um	conjunto	de	 todos	os	personagens	que	 fazem,	 interpretam	e	aplicam	a	 lei,
transmitem	 conhecimentos	 jurídicos	 e	 socializam	 jogadores	 que	 se	 encontram	 no	 jogo	 do
campo,	no	 interior	do	qual	os	 conflitos	dão-lhe	dinamismo,	mas	 também	o	mantêm,	 como
um	 campo:	 os	 jogadores	 em	 competição	 é	 que	 disputam	 entre	 si,	mas	 não	 o	 campo	 em	 si
mesmo;	 portanto,	 a	 disputa	 reafirma	 e	 ainda	 fortalece	 o	 campo.	 Todos	 os	 jogadores	 num
campo	 jurídico	 têm	 determinado	 conjunto	 de	 disposições	 que	 orientam	 suas	 ações.	 Tais
disposições	 são	 traçadas	 através	 de	 disputas	 do	 campo	 com	 outros	 campos	 sociais	 e	 de
conflitos	internos,	o	que	constitui	o	habitus	desse	campo.105
Por	 outro	 lado,	 é	 necessário	 registrar	 que,	 na	 sustentação	 desse	 imaginário	 jurídico
prevalecente,	 encontra-se	 disseminado	 ainda	 o	 paradigma	 epistemológico	 da	 filosofia	 da
consciência106	 –	 calcada	 na	 lógica	 do	 sujeito	 cognoscente,	 onde	 as	 formas	 de	 vida	 e
relacionamentos	 são	 reificadas	 e	 funcionalizadas,	 ficando	 tudo	 comprimido	 nas	 relações
sujeito-objeto	 –	 carente	 e/ou	 refratária	 à	 viragem	 linguística	 de	 cunho	 pragmatista-
ontológico	 ocorrida	 contemporaneamente,	 no	 qual	 a	 relação	 ou	 relações	 passa(m)	 a	 ser
sujeito-sujeito.
Ou	seja,	no	interior	do	senso	comum	teórico	dos	juristas,	consciente	ou	inconscientemente,
o	horizonte	a	partir	de	onde	se	pode	e	deve	pensar	a	linguagem	ainda	é	o	do	sujeito	isolado
(ou	da	consciência	do	 indivíduo)	–	que	 tem	diante	de	si	o	mundo	dos	objetos	e	dos	outros
sujeitos	 –,	 característica	 principal	 e	 ponto	 de	 referência	 de	 toda	 a	 filosofia	 moderna	 da
subjetividade.107	Essa	separação	entre	sujeito	eobjeto	–	tão	bem	denunciada	por	Gadamer	–
busca	proporcionar	a	que	o	sujeito,	de	forma	objetiva,	possa	“contemplar	o	objeto”.
Em	 decorrência,	 em	 face	 da	 prevalência	 do	 paradigma	 epistemológico	 da	 filosofia	 da
consciência	 (em	 seus	 vários	desdobramentos	de	Descartes	 a	Kant,	 Fichte,	 Schelling,	Hegel,
Husserl	 e	 Betti	 –	 este	 pela	 sua	 importância	 e	 direta	 influência	 no	 campo	 da	 interpretação
jurídica	–	só	para	citar	os	principais),	não	é	temerário	afirmar	que,	no	campo	jurídico	brasileiro,
a	linguagem	ainda	tem	um	caráter	secundário,	como	terceira	coisa	que	se	interpõe	entre	sujeito	e
objeto,	 enfim,	 uma	 espécie	 de	 instrumento	 ou	 veículo	 condutor	 de	 essências	 e	 corretas	 exegeses	 dos
textos	legais.	Essa	lógica	do	sujeito,	é	dizer,	o	ser	é	sempre	em	função	do	sujeito,	que	provém
de	 Descartes,	 é	 rompida	 pela	 viragem	 linguística,	 mormente	 por	 Wittgenstein,	 e	 pela
ontologia	 heiddegeriana.	 Lamentavelmente	 –	 e	 aí	 está	 assentada	 uma	 das	 faces	 da	 crise
paradigmática	–,	o	campo	jurídico	brasileiro	continua	sendo	refratário	a	essa	viragem	linguística.
Apoiado	 em	 Castanheira	 Neves,	 é	 relevante	 deixar	 assentado	 que,	 com	 a
viragem/reviravolta	linguística,	fica	excluída	(aquel)	a	evidência	primeira,	seja	racional	(como
em	 Descartes)	 ou	 empírica	 (como	 em	 Locke)	 e	 igualmente	 qualquer	 pretensa	 direta	 e
privilegiada	 representação	 intencional-objetiva	 pré-linguística	 (como	 na	 fenomenologia	 de
Husserl108),	passando	 o	 homem	 a	 orientar-se	 no	mundo	 e	 nele	 agir	mediante	 a	 e	 pela	 linguagem,
como,	 no	 dizer	 de	 Quine,	 “o	 que	 há	 no	 mundo	 não	 depende	 em	 geral	 do	 nosso	 uso	 da
linguagem,	mas	já	depende	deste	uso	o	que	podemos	dizer	que	há”;	Heidegger,	para	quem	“a
linguagem	é	a	casa	do	ser”;	Gadamer,	para	quem	“ser	que	pode	ser	compreendido	é	linguagem”,	e
Seiffert,	 que	 diz	 não	 ser	 exagero	 “se	 designarmos	 a	 época	 da	 linguagem	 como	 a	 terceira	 era	 da
filosofia,	depois	da	época	do	ser	(antiguidade	e	idade	média)	e	da	época	da	consciência	(idade	moderna
até	 a	 análise	 da	 linguagem)”.	 Passa-se,	 enfim,	 da	 essência	 para	 a	 significação,	 no	 qual	 o
importante	e	decisivo	não	está	em	se	saber	o	que	são	as	coisas	em	si,	mas	saber	o	que	dizemos
quando	 falamos	 delas,	 o	 que	 queremos	 dizer	 com,	 ou	 que	 significado	 têm	 as	 expressões
linguísticas	(a	linguagem)	com	que	manifestamos	e	comunicamos	esse	dizer	das	coisas.109
	
Notas
54	As	críticas	deste	texto	são	dirigidas,	à	evidência,	à	dogmática	jurídica	não	garantista,	que	não	questiona	as	vicissitudes	do
sistema	jurídico,	reproduzindo	esta	injusta	e	desigual	ordem	social.	Ou	seja,	as	críticas	aqui	feitas	ressalvam	e	reconhecem	os
importantes	contributos	críticos	–	e	não	são	poucos	–	construídos/elaborados	ao	longo	de	décadas	em	nosso	país.
55	O	conceito	de	modo	de	produção	de	direito	aqui	trabalhado	é	de	Dezalay	e	Trubek,	op.	cit.,	que	se	baseiam,	de	certo	modo,
no	conceito	de	modo	de	produção	de	direito	formulado	por	Boaventura	de	Sousa	Santos.
56	Uma	observação	necessária:	os	personagens	“Caio,	Tício,	Mévio(a)”	são	aqui	utilizados	como	uma	crítica	aos	manuais	de
Direito,	os	quais,	embora	sejam	dirigidos	–	ou	deveriam	ser	–	a	um	sistema	jurídico	(brasileiro!)	no	interior	do	qual	proliferam
Joãos,	 Pedros,	 Antonios	 e	 Josés,	 Marias,	 Terezas,	 teimam	 (os	 manuais)	 em	 continuar	 usando	 personagens
“idealistas/idealizados”,	desconectados	da	 realidade	 social.	Registre-se	que	 até	mesmo	no	provão	do	MEC	os	personagens
Caio	e	Tício	(re)apareceram...
57	Consultar	Castilho,	Ela	Volkmer	de.	O	controle	penal	dos	crimes	contra	o	sistema	financeiro	nacional.	Belo	Horizonte:	Del	Rey,
1998.
58	Cf.	BECK,	Francis	Rafael.	A	criminalidade	de	colarinho	branco	e	a	necessária	investigação	contemporânea	a	partir	do	Brasil:	uma
(re)leitura	do	discurso	da	impunidade	quanto	aos	delitos	do	“andar	de	cima”.	Tese	(Doutorado)	–	Universidade	do	Vale	do
Rio	dos	Sinos	–	Unisinos.	Programa	de	Pós-Graduação	em	Direito,	São	Leopoldo,	RS,	2013.
59	Cf.	Faria,	José	Eduardo.	O	Poder	Judiciário	no	Brasil,	op.	cit.,	p.	14	e	15.
60	Cf.	Morais,	Jose	Luis	Bolzan	de.	Do	Direito	Social	aos	Interesses	Transindividuais.	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	1996,
p.	67	e	segs.	 (grifei).	Ver	também,	Streck,	Lenio	Luiz	e	Morais,	 Jose	Luis	Bolzan	de.	Ciência	Política	e	Teoria	do	Estado.	 7.	 ed.
Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2010.
61	Ver,	para	tanto,	Thompson,	Edward	Palmer.	Senhores	e	Caçadores.	Rio	de	Janeiro:	Paz	e	Terra,	1987,	p.	356	e	segs.	Segundo
o	 historiador	 inglês,	 “a	 retórica	 e	 as	 regras	 de	 uma	 sociedade	 são	muito	mais	 que	meras	 imposturas.	 Simultaneamente	 podem
modificar	 em	 profundidade	 o	 comportamento	 dos	 poderosos	 e	 mistificar	 os	 destituídos	 do	 poder.	 Podem	 disfarçar	 as
verdadeiras	 realidades	do	poder,	mas	ao	mesmo	 tempo	podem	refrear	 esse	poder	e	 conter	 seus	excessos.	 (...)	Não	 sustento
nenhum	 postulado	 quanto	 à	 imparcialidade	 abstrata	 e	 extra-histórica	 dessas	 regras.	 Num	 contexto	 de	 flagrantes
desigualdades	de	classe,	a	igualdade	da	lei	em	alguma	parte	sempre	será	uma	impostura.	Transplantada,	tal	como	era,	para
contextos	ainda	mais	desigualitários,	essa	lei	podia	se	converter	em	instrumento	do	imperialismo.	Mas,	mesmo	aí,	as	regras	e
a	 retórica	 eram	 uma	máscara,	 foi	 uma	máscara	 que	Gandhi	 e	Nehru	 tiveram	 de	 usar	 à	 frente	 de	 um	milhão	 de	 adeptos
mascarados.	De	 forma	 alguma	meus	 olhos	 brilham	por	 causa	disso.	 (...)	 Insisto	 apenas	 no	ponto	 óbvio,	 negligenciado	por
alguns	 marxistas	 modernos,	 de	 que	 existe	 uma	 diferença	 entre	 o	 poder	 arbitrário	 e	 o	 domínio	 da	 lei.	Devemos	 expor	 as
imposturas	e	 injustiças	que	podem	se	ocultar	sob	essa	 lei.	Mas	o	domínio	da	 lei	em	si,	a	 imposição	de	restrições	efetivas	ao	poder	e	a
defesa	do	cidadão	frente	às	pretensões	de	total	intromissão	do	poder	parecem-me	um	bem	humano	incondicional”.
62	 Para	 aprofundar	 mais	 sobre	 o	 tema,	 confira:	 Tassinari,	 Clarissa.	 Jurisdição	 e	 ativismo	 judicial:	 limites	 da	 atuação	 do
judiciário.	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2013.
63	Em	verdade,	 uma	 adaptação	 do	 capitalismo	para	 conter	 o	 avanço	 do	 socialismo.	Ver:	Avelãs	Nunes,	António	 José.	As
voltas	que	o	mundo	dá:	reflexões	a	propósito	das	aventuras	e	desventuras	do	estado	social.	Rio	de	Janeiro:	Lumen	Juris,	2011.
64	Ver,	nesse	sentido,	Olea,	Manuel	Alonso.	Jurisdición	social,	penal	y	contencioso-administrativa.	In:	Division	de	poderes,	op.
cit.,	 p.	 102,	 103	 e	 117;	 com	mais	 especificidade,	Díaz,	 Elías.	 Estado	 de	Derecho	 y	 Sociedad	 democrática.	Madrid:	 Taurus,
1983;	 El	 Estado	 Democrático	 de	 Derecho	 y	 sus	 críticos	 izquierdistas.	 Sistema,	 n.	 17-18;	 Socialismo	 Democrático	 y	 Derechos
Humanos,	in	Legalidad	y	legitimidad	en	el	socialismo	democrático.	Madrid:	Civitas,	1978.
65	 Nesse	 sentido,	 consultar	 Vianna,	 Luiz	 Werneck;	 Carvalho,	 Maria	 Alice	 Rezende	 de;	 Cunha	 Melo,	 Manuel	 Palácios;
Burgos,	Marcelo	Baumann.	A	judicialização	da	política	e	das	relações	sociais	no	Brasil.	Rio	de	Janeiro:	Editora	Revan,	p.	22	e	23.
66	A	divisão	entre	dois	eixos	analíticos	é	proposta	por	Vianna,	et	al.,	op.	cit.	Deixo	de	analisar,	aqui,	o	enfoque	sistêmico,	que,
em	 alguns	 aspectos,	 aproxima-se	 das	 teses	 procedimentalistas.	 Para	 a	 teoria	 dos	 sistemas,	 a	 sociedade	 é	 uma	 rede	 de
comunicações,	 em	 que	 importa	 muito	 mais	 a	 questão	 de	 como	 opera	 o	 sistema	 jurídico	 no	 interior	 da	 sociedade	 do	 que
propriamente	 a	 ação	 individual	 do	 jurista.	 A	 sociedade,	 assim,	 é	 dividida	 em	 vários	 subsistemas,	 como	 o	 jurídico,	 o
econômico,	o	político	etc.,	um	se	distinguindo	do	outro.	O	operador	jurídico	não	pode	operar	fora	da	característica	específica
do	sistema	jurídico.	Não	se	torna	relevante,	em	tal	perspectiva,	o	perfil	do	operador	do	Direito.	A	sociedade	será	uma	rede	de
comunicações.A	 identificação	das	distinções	entre	o	Direito	e	a	Política	será	feita	pela	característica	de	cada	comunicação:
será	 comunicação	 jurídica	 aquela	 que	 lida	 com	 a	 dualidade	 lícito/ilícito,	 pertencendo	 esta	 somente	 ao	 sistema	 jurídico;	 o
sistema	jurídico	é	que	definirá	o	que	é	lícito	e	ilícito;	são	definidas,	desse	modo,	as	distinções	entre	sistema	jurídico	e	sistema
político	 (no	 qual	 ocorre	 a	 dualidade	 governo/oposição,	 maioria/minoria	 etc.).	 Não	 se	 admite,	 então,	 a	 transferência	 da
linguagem	 de	 um	 sistema	 para	 outro,	 tornando-se	 inaceitável,	 em	 termos	 sistêmicos,	 aquilo	 que	 hoje	 se	 denomina	 de
judicialização	 da	 política.	 Nesse	 sentido,	 adoto,	 enfaticamente,	 a	 crítica	 habermasiana,	 para	 quem,	 partindo	 da	 ideia
hobbesiana	 da	 autoafirmação	 naturalista	 dos	 indivíduos,	 Luhmann	 elimina	 consequentemente	 a	 razão	 prática	 através	 da
autopoiese	de	sistemas	dirigidos	autorreferencialmente.	Os	muitos	sistemas	parciais	recursivamente	fechados	e	mantenedores
de	limites	formam	mundos	circundantes	uns	para	os	outros;	eles	encontram-se	situados,	de	certa	forma,	em	nível	horizontal	e
se	 estabilizam,	 na	 medida	 em	 que	 se	 observam	 uns	 aos	 outros	 e	 refletem	 sobre	 sua	 relação,	 sem	 possibilidades	 de	 uma
intervenção	direta.	Numa	concepção	monádica,	as	capacidades	transcendentais	das	consciências	dos	sujeitos,	delineadas	por
Husserl,	 passam	 para	 os	 sistemas	 de	 mônadas	 da	 consciência,	 sendo,	 pois,	 encapsuladas	 monadicamente	 e	 despidas	 de
subjetividade.	 Inverte-se,	 aí,	 a	 filosofia	 do	 sujeito,	 transformando-a	 em	 um	 objetivismo	 radical.	 Perdem-se,	 nesse	 contexto,
todos	 os	 vestígios	 hermenêuticos,	 nos	 quais	 uma	 teoria	 da	 sociedade,	 que	 parte	 da	 autocompreensão	 dos	 atores,	 ainda
poderia	encontrar	acesso	à	 sociedade.	O	Direito	é	entendido	apenas	como	 funcionalmente	estabilizador	de	expectativas	de
comportamentos.	 Ou	 seja,	 o	 sistema	 jurídico	 passa	 a	 ser	 um	 redutor	 de	 complexidades,	 desengatado	 de	 todos	 os	 demais
sistemas	de	ação.	Ver,	para	tanto,	Luhmann,	Niklas.	Ausdifferenzierung	des	Rechts.	Frankfurt	am	Main,	1981;	Legitimação	pelo
Procedimento.	Brasília,	UNB,	1986;	Habermas,	Jürgen.	Direito	e	Democracia	–	entre	Facticidade	e	Validade.	Vol.	I.	Rio	de	Janeiro:
Tempo	Universitário,	1997.
67	Consultar,	para	tanto,	Habermas,	Jürgen.	Direito	e	Democracia	–	entre	facticidade	e	validade,	Vol.	I	e	II,	especialmente	p.	297
e	segs.	(I)	e	123	e	segs.	e	(II).	Rio	de	Janeiro:	Tempo	Brasileiro,	1997.
68	Cf.	Habermas,	Direito	e	Democracia,	vol.	I,	op.	cit.	e	p.	245	e	segs.;	ver,	também,	comentário	de	Cittadino,	op.	cit.,	p.	205,	e
Vianna	et	al,	op.	cit.,	em	especial	a	apresentação.
69	Streck,	Lenio	Luiz.	Jurisdição	Constitucional	e	Decisão	Jurídica.	São	Paulo:	Revista	dos	Tribunais,	2013.
70	Cf.	Habermas,	op.	cit.,	vol.	I,	p.	297	e	segs
71	Cf.	Habermas,	Direito	e	Democracia	I,	p.	297	e	segs.	e	II,	p.	170	e	segs.;	tb.	Más	Allá	Del	estado	Nacional,	op.	cit.,	p.	99	e	segs.
72	Consultar,	para	 tanto:	Habermas,	Direito	 e	Democracia,	 op.	 cit.;	Garapón,	Antoine.	Le	Gardien	 de	 Promesses.	 Paris,	Odile
Jacob,	1996;	especialmente	Vianna,	Luiz	Werneck	et	al.,	op.	cit.
73	Cf.	Habermas,	Direito	e	Democracia	I,	op.	cit.,	p.	328.	Também	Ely,	J.H.	Democracy	and	Distrust.	A	theory	os	Judicial	Review.
Cambridge/Mass,	1980,	p.	133.
74	Consultar	Cappelletti,	Mauro.	 Juízes	Legisladores?	Porto	Alegre:	Fabris,	 1988;	Dworkin,	Ronald.	L’empire	 du	Droit.	 Paris,
PUF,	1994;	idem	Taking	Rights	Seriously.	Cambridge:	Harvard	University	Press,	1977;	tb.	Vianna	et	al.,	op.	cit.
75	Como	contraponto	às	eventuais	críticas	ao	fato	de	que	aqui	se	estaria	assumindo	uma	postura	(meramente)	contratualista,
é	 necessário	 frisar	 que	 a	 noção	 de	 contrato	 social	 aqui	 trabalhada	 não	 pode	 ser	 entendida	 no	 âmbito	 de	 uma	 filosofia	 do
sujeito,	 mas,	 sim,	 no	 âmbito	 de	 uma	 intersubjetividade	 (relação	 sujeito-sujeito),	 própria	 do	 paradigma	 hermenêutico,	 no
interior	do	qual	o	sujeito	desde	sempre	está	mergulhado	na	linguisticidade	do	mundo.	Ou	seja,	no	paradigma	hermenêutico	a
noção	de	contrato	social	é	imanente,	uma	vez	que	não	há	linguagem	privada.	O	privado	somente	decorre	das	inter-relações
com	o	público.	Acreditar	 em	 linguagem	privada	é	 retornar	ao	paradigma	da	 filosofia	da	 consciência,	onde	a	 subjetividade
(certeza	de	si	do	pensamento	pensante)	é	instauradora	do	mundo.	O	homem	está	inserido	em	um	complexo	de	significações,
traduzidos	pela	 linguagem,	que	o	coloca	no	mundo.	Parte-se	da	premissa,	pois,	de	que	estamos	no	mundo	pela	 tradição,	e
que	nossos	pré-juízos	são	a	condição	de	possibilidade	para	falar	do	mundo.	Assim,	quando	se	afirma	que	a	Constituição	é	a
explicitação	do	contrato	social,	está-se	afirmando	o	caráter	discursivo	que	assume	a	noção	de	Constituição,	enquanto	produto
de	 um	 processo	 constituinte.	 O	 conjunto	 de	 discursos,	 portanto,	 linguagem,	 construídas	 na	 caminhada	 da	 elaboração	 do
texto	 constitucional,	 significa	 entender	 a	 linguagem	como	 constructo,	 que	 estabelece	 os	 (novos)	 limites	do	mundo	 jurídico-
social.	A	apropriação	de	uma	nova	linguagem	(o	texto	constitucional	e	tudo	o	que	estiver	ao	seu	redor)	significa	a	introdução
de	 novos	 significados	 à	 realidade.	 Nesse	 sentido,	 a	 Constituição,	 entendida	 como	 explicitação	 do	 contrato,	 não	 pode	 ser
entendida	 como	 um	 “contrato”	 que	 se	 estabelece	 como	 uma	 terceira	 coisa	 entre	 o	 Estado,	 o	 Poder,	 o	 Governo,	 com	 os
destinatários;	 antes	 disso,	 a	 linguagem	 constituinte	 passa	 a	 ser	 condição	de	 possibilidade	do	 novo,	 na	medida	 em	que,	 na
tradição	do	Estado	Democrático	de	Direito,	o	constitucionalismo	não	é	mais	o	do	paradigma	liberal,	mas,	sim,	passa	por	uma
revolução	copernicana,	mediante	o	constituir	da	Sociedade.
76	Cf.	Vianna	et	al,	op.	cit.
77	Consultar	Tribe,	L.	H.	The	Puzzling	Persistence	of	Process-Based	Constitutional	Theories,	in	The	Yale	Law	Journal,	vol.	89,
1073,	 1980,	p.	 1065	 e	 segs.;	 Ibidem,	American	Constitutional	Law.	The	Foundation	Press,	 2.	 ed.,	New	York:	Mineola,	 1988;
Ibidem	Taking	Text	and	Structure	Seriously:	reflection	on	free-form	method	in	constitutional	interpretation,	In:	Harvard	Law
Review,	 vol.	 108,	 n.	 6,	 1995.	 Conferir,	 também,	 Diaz	 Revorio,	 Francisco	 Javier.	 La	 constitución	 como	 orden	 abierto.	 Madrid:
Estudios	Ciencias	Jurídicas,	1997,	op.	cit.,	p.	161	e	segs.
78	Idem,	ibidem.
79	Cf.	Ferrajoli,	Luigi.	Jueces	y	política.	Derechos	y	Libertades.	In:	Revista	del	Instituto	Bartolomé	de	las	Casas.	Año	IV.	Janeiro
de	1999,	n.	7.	Madrid:	Universidad	Carlos	III,	p.	63	e	segs.;	tb	Derecho	y	Razón.	Madrid:	Editorial	Trotta,	1995.
80	 Realizei	 esse	 debate	 com	 Ferrajoli	 com	 ajuda	 de	 outros	 importantes	 autores	 no	 livro	 Garantismo,	 hermenêutica	 e
(neo)constitucionalismo:	um	debate	com	Luigi	Ferrajoli.	Porto	Alegre,	Livraria	do	Advogado,	2012.
81	Cf.	Bonavides,	Paulo.	A	Constituição	Aberta.	Belo	Horizonte:	Livraria	Del	Rey,	1993,	p.	9-10;	ver	também	Siqueira	Castro,
Carlos	Roberto	 de.	A	Constituição	 Aberta	 e	 Atualidades	 dos	 Direitos	 Fundamentais	 do	 Homem.	 Rio	 de	 Janeiro:	 UERJ,	mimeo,
1995,	p.	20-21,	além	de	Vianna,	op.	cit.,	p.	40-41.
82	Uma	crítica	consistente	ao	papel	da	dogmática	jurídica	e	o	seu	atrelamento	ao	paradigma	(neo)liberal	vem	sendo	feita	por
Alexandre	Morais	da	Rosa	(v.g.,	Diálogo	com	a	Law	e	Economics,	escrito	em	conjunto	com	José	Manuel	Aroso	Linhares,	Rio	de
Janeiro,	Lumen	Juris,	2009).	Morais	da	Rosa	também	faz	uma	contundente	crítica	às	práticas	estandardizadas	do	judiciário,
mostrando,	 por	 exemplo,	 que	 a	 verdade	 real	 é	 uma	 “empulhação	 ideológica”	 que	 serve	 para	 “acalmar”	 a	 consciência	 de
acusadores	 e	 julgadores.	 Nesse	 sentido,	 ver	 Jurisdição	 do	 Real	 x	 Controle	 Penal:	 Direito	 e	 Psicanálise.	 Disponível	 em:
<http://www.kindlebook.com.br/Amazon>	e	Decisão	Penal:	a	bricolagede	significantes	(Rio	de	Janeiro,	Lumen	Juris,	2006).
83	Para	maiores	 aprofundamentos	ver	 a	obra	 Jurisdição	 e	Ativismo	 Judicial:	 Limites	 da	 atuação	 do	 Judiciário.	Nela	Clarissa
Tassinari	 faz	 uma	 relevante	 análise	 à	 luz	 da	 Crítica	 Hermenêutica	 do	 Direito	 acerca	 da	 judicialização	 da	 política	 e,
sobretudo,	do	ativismo.	Cf.	Tassinari,	Clarissa.	 Jurisdição	e	Ativismo	Judicial:	Limites	da	atuação	do	 Judiciário.	Porto	Alegre:
Livraria	do	Advogado,	2013.
84	Cf.	Habermas,	Direito	e	Democracia	II,	op.	cit.,	p.	186.
85	Ver,	nesse	sentido,	Ely,	op.	cit.,	p.	133	e	segs.
86	Ver,	nesse	sentido,	Habermas,	Más	Allá,	op.	cit.,	p.	99;	também	Direito	e	Democracia	I,	op.	cit.,	p.	297	e	segs.
87	Idem,	ibidem.
88	Idem,	ibidem.
89	Sobre	aquilo	que	denomino	de	“baixa	 constitucionalidade”,	 consultar	Streck,	Lenio	Luiz.	A	hermenêutica	e	o	acontecer
(Ereignen)	 da	 Constituição:	 a	 tarefa	 de	 uma	 nova	 crítica	 do	 Direito.	 In:	Anuário	 do	 Curso	 de	 Pós-Graduação	 em	 Direito	 da
UNISINOS.	São	Leopoldo:	Ed.	Unisinos,	2000,	p.	105	e	segs.
90	 Um	 dos	 grandes	 problemas	 decorrentes	 da	 contraposição	 entre	 o	 substancialismo	 e	 as	 teorias	 processuais
(procedimentalismo)	 reside	no	 fato	de	 que	 alguns	 autores,	 ao	 sobrevalorizarem	o	procedimento,	 elevando-o	 à	 condição	de
princípio	 (epocal)	 fundante	 da	 democracia,	 deixam	 de	 dar	 a	 devida	 importância	 aos	 direitos	 fundamentais	 sociais,	 que	 se
constituíram	 no	 grande	 Leitmotiv	 da	 revolução	 copernicana	 que	 atravessou	 o	 constitucionalismo	 após	 a	 segunda	 grande
guerra.	Por	 isto,	Bercovici	vai	chamar	a	atenção	para	o	fato	de	que	“a	Constituição	possui,	 também,	e	não	exclusivamente,
como	querem	alguns	autores,	a	natureza	de	uma	lei	processual	para	a	realização	de	seus	princípios.	O	processo,	assim,	torna-
se	 um	 instrumento	para	 a	 efetivação	da	Constituição.	 Entender	 a	Constituição	 também	 enquanto	processo	 significa	 que	 a
ordem	 constitucional	 não	 é	 uma	 ordem	 totalmente	 estabelecida,	 mas	 que	 vai	 sendo	 criada,	 por	 meio	 da	 relação	 entre	 a
Constituição	material	e	os	procedimentos	de	interpretação	e	concretização.	O	interesse	despertado	pelas	teorias	procedimentais,
todavia,	 deve	 despertar	 cautela.	 As	 teorias	 procedimentais,	 segundo	Alexy,	 caracterizam-se	 pela	 plasticidade,	 ou	 seja,	 nelas
cabe	 tudo.	 Embora	 deva-se	 reconhecer	 a	 importância	 do	 procedimento	 na	 concretização	 constitucional,	 a	 adoção	 de	 uma
teoria	 procedimental	 não	 será	 a	 solução	 para	 todos	 os	 problemas	 constitucionais.”	 Cf.	 Bercovici,	 Gilberto.	Desigualdades
Regionais,	Estado	e	Constituição.	São	Paulo:	Max	Limonad,	2002,	p.	278.	Nesta	altura,	não	é	difícil	sustentar	que	a	defesa	de
um	substancialismo	material-constitucional	não	prescinde	–	e	não	pretende	prescindir	–	do	papel	fundamental	que	deve	ser
exercido	 pelo	 procedimento.	 Na	 verdade,	 o	 problema	 é	 exatamente	 o	 oposto,	 ou	 seja,	 o	 problema	 está	 na	 pretensão	 de
autonomização	das	 teorias	processuais.	Ora	 –	 e	o	 alerta	vem	em	boa	hora	 formulado	por	 José	Adércio	Leite	 Sampaio	–,	 a
Constituição	 não	 pode	 ser	 meramente	 procedimental	 a	 dispor	 sobre	 as	 regras	 de	 formação	 da	 vontade	 política
exclusivamente.	Entretanto,	 aduz,	 também	não	pode	 ser	uma	ordem	dura	de	valores.	É,	 sim,	uma	simbiose	que	assume	as
formas	jurídicas	e	se	limita	às	suas	contingências,	ao	seu	tempo	e	ao	seu	povo.	A	Constituição	é	uma	obra	inacabada	e	que
tende	a	se	rebelar	contra	seus	criadores.	A	tarefa	do	jurista	é	pôr	em	marcha	essa	tendência	dispersiva	do	texto	sem	permitir
que	se	esvaia	o	sentido	de	norma	ou	que	se	destrua	a	engenharia	original	dos	fundadores.	É	tentar	domar	o	mito	e	decodificá-
lo	 juridicamente.	E	 é	nesse	 contexto	que	deve	 ser	 analisada	 a	 jurisdição	 constitucional.	Cf.	Leite	 Sampaio,	 José	Adércio.	A
Constituição	reinventada.	Belo	Horizonte:	Del	Rey,	2002,	p.	19.
91	É	evidente	que	a	defesa	de	certo	grau	de	intervencionismo	da	justiça	constitucional	(ou,	se	se	quiser,	do	Poder	Judiciário)	–
que	venho	sustentando	sem	a	menor	ilusão	de	que	existam	apenas	“bons	ativismos	e	bons	ativistas”	–	implica	o	risco,	e	esta
aguda	 crítica	 é	 feita	 por	 Bercovici	 (Desigualdades	 Regionais,	 op.	 cit.),	 da	 ocorrência	 de	 decisões	 judiciais	 emanadas,
principalmente,	pelo	Supremo	Tribunal	Federal,	 contra	a	Constituição,	 com	o	 consequentemente	 esvaziamento	de	 seus	“valores
substanciais”,	 o	 que	 representa	 –	 aí	 sim	 –	 usurpação	 de	 poderes	 constituintes	 (pensemos,	 aqui,	 no	 poder	 de	 violência	 real	 e
simbólica	 das	 súmulas	 vinculantes,	 que	 “valem	 mais”	 do	 que	 a	 Constituição).	 De	 qualquer	 modo,	 sem	 tirar	 a	 razão	 da
percuciente	 observação	 de	 Bercovici,	 tenho	 que	 o	 Tribunal	 Constitucional	 (no	 caso,	 o	 STF)	 sempre	 faz	 política.	 E	 isto	 é
inexorável.	O	que	ocorre	é	que,	em	países	de	modernidade	tardia	como	o	Brasil,	na	inércia/omissão	dos	Poderes	Legislativo	e
Executivo	 (mormente	no	âmbito	do	direito	 à	 saúde,	 função	 social	da	propriedade,	direito	 ao	 ensino	 fundamental,	 além	do
controle	de	 constitucionalidade	de	privatizações	 irresponsáveis,	 que	 contrariam	 frontalmente	o	núcleo	político-essencial	da
Constituição),	não	se	pode	abrir	mão	da	intervenção	da	justiça	constitucional	na	busca	da	concretização	dos	direitos	constitucionais	de
várias	dimensões.	Entretanto,	uma	“intervenção”	da	 justiça	constitucional	demanda	controle.	Para	 tanto,	sugiro	a	 leitura	de
meu	O	que	é	 isto	–	decido	conforme	minha	consciência?	 (4.	ed.	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2013),	que	se	constitui	em
um	libelo	contra	decisionismos	e	ativismos.
92	 Isso,	 hoje,	 é	 facilmente	 perceptível	 nos	municípios	 brasileiros,	 em	 que	 os	 conflitos,	 na	 sua	maior	 parte,	 são	 levados	 ao
Ministério	Público,	que	os	repassa	ao	 Judiciário.	A	excessiva	 judicialização	das	relações	sociais	acarreta	o	risco	de	estarmos
criando	“cidadãos	de	segunda	classe”,	que,	em	vez	de	se	organizarem	e	lutarem	por	seus	direitos,	delegam	essa	prerrogativa
cidadã	 a	 uma	 espécie	 de	 administrativização	 da	 sociedade.	 Esse	 fenômeno	 é	 mais	 visível	 nos	 municípios,	 em	 que	 os
vereadores,	 tais	 quais	 os	 cidadãos,	 preferem	 correr	 ao	 gabinete	 do	 Promotor	 de	 Justiça	 do	 que	 lutar	 politicamente	 pelos
direitos	da	comunidade.	Neste	ponto,	devemos	dar	razão	a	autores	como	Habermas,	que	chamaria	a	isso	de	“colonização	do
mundo	da	vida”.
93	Ver,	para	tanto,	Streck,	Lenio	Luiz.	Verdade	e	Consenso.	4.	ed.	São	Paulo:	Saraiva,	2011.
94	Decisão	proferida	nos	autos	do	Proc.	038.03.008229-0.
95	 Essa	 decisão	 sofreu	 críticas	 agudas	 de	 Álvaro	 Souza	 Cruz,	 em	 Habermas	 e	 o	 Direito	 Brasileiro,	 Lumen	 Juris,	 2005.
Advogando	 uma	 posição	 procedimentalista,	 Souza	 Cruz	 acusa	 a	 decisão	 do	 juiz	 Morais	 da	 Rosa	 de	 ativista.	 O	 caso	 da
“criação	de	2.948	vagas	de	ensino	 fundamental	 em	 Joinville”	 é	mais	uma	demonstração	de	que	a	 incorporação	que	Souza
Cruz	 faz	 de	 Habermas	 ao	 direito	 brasileiro	 acaba	 colocando	 na	 lei	 e	 nos	 atos	 administrativos	 os	 chamados	 discursos	 de
fundamentação.	 Isso,	 em	 síntese,	 acaba	 retomando	 a	 tese	 positivista	 da	 discricionariedade	 administrativa	 e	 dos	 conceitos
indeterminados.	 Ou	 seja,	 parte-se	 de	 uma	 pauta	 e	 discute-se	 –	 no	 agir	 comunicativo	 –	 a	 sua	 aplicação.	 Ver	 a	 lei	 como
discurso	de	fundamentação	(e	simplesmente	isso)	gera	outro	problema	para	qualquer	habermasiano	que	queira	aplicá-lo	ao
direito	brasileiro.	Assim,	por	exemplo,	o	orçamento	municipal	tratado	nesse	caso	teria	sido	elaborado	sob	as	condições	quase-
transcendentais	necessárias	à	validade	da	ação	comunicativa?	É	ele	resultado	de	um	“verdadeiro”	consenso?	Habermas,	em
uma	passagem	de	Validade	e	Faticidade,	alerta	que	o	direito	tem	que	ser	visto	como	um	todo!	Isso	quer	dizer	que	eu	 só	posso
aplicar	o	direito	habermasianamente	se	o	direito	foi	feito	habermasianamente.Se	um	direito	não	trava	com	a	moral	uma	relação	de
“complementariedade	 cooriginária”,	 ele	 não	 atende	 aos	 princípios	 U	 e	 D,	 logo,	 não	 pode	 gerar	 um	 discurso	 de
fundamentação	 válido.	 Deve-se	 notar	 que	 a	 legitimação	 procedimental	 em	 Habermas	 tem	 que	 atender	 às	 condições	 de
validade	do	discurso,	o	que	o	distancia	neste	ponto	de	Kelsen.	Numa	palavra:	a	“opção”	do	Prefeito	em	designar	a	verba	para
o	 Joinville	 Esporte	 Clube	 é	 fruto	 de	 uma	 decisão	 discricionária,	 solipsista,	 sem	 consulta	 à	 comunidade	 e	 tampouco	 à
Constituição	da	República.	Aliás,	 apenas	para	 ficar	no	plano	do	Direito	Constitucional,	 seria	de	 se	perguntar:	 em	sendo	o
orçamento	 uma	 lei,	 não	 estaria	 ela	 submetida	 aos	 ditames	 constitucionais	 presentes	 no	 art.	 208,	 I,	 da	 CF,	 que	 garante	 a
gratuidade	 do	 ensino	 para	 todos,	 estendendo-se,	 inclusive,	 para	 aqueles	 que	 não	 tiveram	 acesso	 à	 educação	 em	 idade
própria?	 E	mais:	 o	 orçamento	 em	 questão	 cumpria	 o	 dever	 constitucional	 previsto	 no	 artigo	 212	 e	 parágrafos	 da	CF,	 que
impõe	 a	 vinculação	 de,	 no	 mínimo,	 25%	 da	 receita	 resultante	 de	 impostos	 no	 município	 em	 investimentos	 visando	 à
manutenção	e	ao	desenvolvimento	do	ensino?	Afinal,	o	que	vale	mais:	o	ato	administrativo/legislativo	ou	a	Constituição?	Se
a	Constituição	é	uma	garantia,	esse	dispositivo	não	existe	por	acaso.	Pelo	contrário,	ele	reflete	duas	constatações	básicas:	1º)	É
preciso	maiores	 investimentos	para	 aperfeiçoar	 o	 sistema	 educacional	 brasileiro;	 2º)	Nos	 casos	 em	que	 aquele	que	 exerce	 a
função	pública	–	chancelado	pelo	voto	da	maioria	–	deixar	de	implementar	as	necessárias	melhorias	no	sistema	educacional,
a	minoria	tem	a	garantia	de	que	um	juiz	fará	cumprir	a	Constituição.	Pois	não	é	esse	o	caso?	Por	fim,	é	preciso	entender,	de
uma	vez	por	 todas,	que	criticar	ativismos	não	significa	fazer	do	Judiciário	um	Poder	“menor”.	Significa	 impingir,	cada	vez
em	mais	 alto	 grau,	 a	 necessidade	 de	 decisões	 fundamentadas	 que	 consigam	 ventilar	 em	 sua	melhor	 luz	 aquilo	 que	 nosso
modelo	constitucional	deixou	estabelecido.	No	caso	da	decisão	de	Joinville,	a	resposta	adequada	à	Constituição	foi	certamente
alcançada.
96	Sobre	a	Untermassverbot	 (princípio	da	proibição	de	proteção	insuficiente)	e	sua	aplicação	no	direito	brasileiro,	ver	Direito
Penal	e	Constituição:	a	face	oculta	da	proteção	dos	direitos	fundamentais,	de	Maria	Luiza	Schäfer	Streck	(Porto	Alegre,	Livraria	do
Advogado,	2008),	em	que	é	 feito	um	importante	apanhado	acerca	das	diversas	 facetas	desse	 tipo	de	 inconstitucionalidade,
que	pode	ocorrer	tanto	no	plano	da	legislação	como	na	aplicação	judicial.	Na	obra,	Maria	Luiza	também	analisa	julgamentos
de	tribunais	de	outros	países,	como	Argentina,	Espanha,	Portugal	e	Alemanha	(de	onde	nasceu	o	princípio).
97	 Sobre	 a	 cláusula	 da	 proibição	 de	 retrocesso	 social	 no	 âmbito	 dos	 direitos	 sociais,	 consultar	 o	 excelente	 artigo	 “Direitos
Fundamentais	 Sociais	 e	 proibição	 de	 retrocesso:	 algumas	 notas	 sobre	 o	 desafio	 da	 sobrevivência	 dos	 Direitos	 Sociais	 num
contexto	de	crise”,	de	Ingo	Wolfgang	Sarlet.	In:	(Neo)constitucionalismo:	ontem,	os	códigos;	hoje,	as	Constituições.	Revista	do
Instituto	de	Hermenêutica	Jurídica	n.	2.	Porto	Alegre:	IHJ,	2004,	p.	121-168.
98	A	respeito,	consultar	Rocha,	Leonel	Severo.	A	democracia	em	Rui	Barbosa.	O	projeto	político	 liberal-racional.	Rio	de	 Janeiro:
Liber	Juris,	1995,	p.	137	e	153.
99	 Refiro	 como	 ineficácia	 o	 desvio	 hermenêutico	 constante	 na	 aplicação	 do	 Direito.	 Isto	 é,	 embora	 o	 elevado	 grau	 de
intervencionismo	do	Ministério	Público	e	do	Poder	 Judiciário,	 este	 se	manifesta	muito	mais	em	 termos	daquilo	que	 se	pode
denominar	de	ativismo	do	que	da	judicialização.	Na	verdade,	o	que	é	possível	constatar	é	muito	mais	atitudes	ativistas	do	que
de	 judicialização.	 Por	 exemplo,	 no	 que	 tange	 às	 decisões	 que	 determinam	 o	 fornecimento	 de	 remédios	 e	 internações
hospitalares,	 que	 representam	 o	maior	 volume	 da	 intervenção	 do	 Poder	 Judiciário,	 este,	 por	 não	 se	 dar	 a	 partir	 de	 uma
criteriologia,	 acabou	 por	 ser	 “adaptado”	 pelos	 diversos	 governos	 municipais,	 estaduais	 e	 federal.	 Não	 é	 desarrazoado
afirmar,	nesse	 contexto,	que	 é	mais	 cômodo	para	o	Poder	Executivo	 fornecer	um	advogado	para	o	utente	do	que	políticas
públicas.	 Veja-se,	 como	 exemplo	 que	 simboliza	 essa	 problemática,	 que	 o	 Estado	 de	 São	 Paulo	 vem	 gastando	 mais	 no
atendimento	às	decisões	judiciais	(que	dizem	respeito	à	saúde)	do	que	nas	políticas	públicas	stricto	sensu.
100	Cf.	Vieira,	Ribas,	op.	cit.,	p.	111.
101	 Ressalve-se	 que,	 em	 face	 de	 seu	 uso	 constante,	 inclusive	 pelo	 “discurso	 do	 movimento	 Lei	 e	 Ordem”,	 o	 termo
“impunidade”	 corre	 o	 risco	 de	 transformar-se	 em	 um	 estereótipo,	 passando	 a	 sofrer,	 com	 isso,	 de	 anemia	 significativa
(Warat).
102	 O	 art.	 9º	 da	 Lei	 10.684/03	 trouxe	 evidentes	 benefícios	 aos	 sonegadores	 de	 impostos	 e	 de	 contribuições	 sociais,	 ao
introduzir	a	possibilidade	de	o	 sonegador	 ficar	 isento	do	crime	em	caso	de	pagamento	do	 tributo	antes	do	 recebimento	da
denúncia	criminal.	Enquanto	isso,	ao	“cidadão-comum-não-sonegador”,	em	caso	de	crime	contra	o	patrimônio	em	que	não
tenha	restado	prejuízo	à	vítima	(restituição	ou	recuperação	da	res),	há	somente	o	benefício	do	desconto	da	pena	(art.	16	do
Código	Penal).	Sobre	o	assunto,	ver	Streck,	Lenio	Luiz.	A	nova	 lei	do	 imposto	de	renda	e	a	proteção	das	elites:	questão	de
“coerência”.	In:	Doutrina	n.	1.	RJ,	ID,	p.	484-496.
103	Consultar,	nesse	sentido,	Guerra	Filho,	Willis	Santiago.	Pós-modernismo,	pós-positivismo	e	o	Direito	como	Filosofia.	In:	O
Poder	 das	Metáforas:	 homenagem	 aos	 35	 anos	 de	 docência	 de	 Luis	 Alberto	Warat.	 José	 Alcebíades	 de	 Oliveira	 Jr.	 (org.).	 Porto
Alegre:	Livraria	do	Advogado,	1998.
104	Partindo	da	premissa	 de	 que	um	paradigma	 implica	 uma	 teoria	 fundamental	 reconhecida	pela	 comunidade	 científica
como	delimitadora	de	campos	de	investigação	pertinentes	a	determinada	disciplina	(Kuhn),	pode-se	dizer	que	o	que	fornece	o
status	científico	de	uma	ciência	vai	depender	não	tanto	das	teses	defendidas	pelos	manuais	científicos,	mas	sim	do	consenso
da	 comunidade	 científica	 em	 torno	dessas	 teses,	 conforme	muito	bem	ensina	Celso	Campilongo,	 in:	 Representação	 política	 e
ordem	 jurídica:	 os	 dilemas	da	 democracia	 liberal.	 São	Paulo,	 1982,	p.	 11	 e	 segs.	Agregue-se	 a	 isso	o	dizer	de	Enrique	Puceiro,
Teoria	 jurídica	y	crisis	de	legitimación.	In:	Anuario	de	Filosofia	Jurídica	y	Social.	Buenos	Aires:	Abeledo-Perrot,	1982,	p.	289	e
segs.,	 para	 quem	 a	 dogmática	 jurídica	 define	 e	 controla	 a	 ciência	 jurídica,	 indicando,	 com	 o	 poder	 que	 o	 consenso	 da
comunidade	 científica	 lhe	 confere,	 não	 só	 as	 soluções	 para	 seus	 problemas	 tradicionais,	 mas,	 principalmente,	 os	 tipos	 de
problemas	que	devem	 fazer	parte	de	 suas	 investigações.	Daí	 que	 a	 dogmática	 jurídica	 é	 um	nítido	 exemplo	 de	 paradigma.	Diz
mais,	o	mestre	argentino,	que	a	crise	da	ciência	do	Direito	é	um	capítulo	da	crise	mais	ampla	da	racionalidade	política	que
ocorre	nas	sociedades	avançadas.
105	Consultar	Bourdieu,	Pierre.	The	force	of	 the	Law:	toward	a	Sociology	of	 the	 juridical	 field.	Também	Delazai,	Yves	e	Trubek,
David	 M.	 A	 reestruturação	 global	 e	 o	 Direito.	 In:	Direito	 e	 Globalização	 econômica.	 José	 Eduardo	 Faria	 (org.).	 São	 Paulo:
Malheiros,	 1996,	 p.	 34	 e	 segs.	 Bourdieu,	 em	Questões	 de	 Sociologia,	 acrescenta	 que	 o	 campo	 é	 um	 sistema	 competitivo	 de
relações	sociais	que	funciona	de	acordo	com	sua	lógica	interna,	composta	de	instituições	ou	indivíduos	que	competem	pelos
mesmos	interesses.	Em	geral,	o	que	está	em	jogo	nesses	campos	é	a	obtenção	da	máxima	predominância	dentro	deles	–	uma
predominância	que	permite,	aos	que	a	obtêm,conferir	legitimidade	aos	outros	participantes.	Conquistar	essa	predominância
implica	acumular	o	máximo	do	tipo	particular	de	“capital	simbólico”	apropriado	ao	campo;	e,	para	que	esse	poder	se	torne
“legítimo”,	ele	tem	que	deixar	de	ser	reconhecido	pelo	que	é.	Um	poder	endossado	de	maneira	tácita,	e	não	explícita,	é	um
poder	que	logrou	legitimar-se.	Ver,	para	tanto,	Eagleton,	Terry.	A	ideologia	e	suas	vicissitudes	no	marxismo	ocidental.	In:	Um
Mapa	da	Ideologia,	op.	cit.,	p.	224.
106	Já	aqui,	cabe	uma	ressalva	que	já	fiz	alhures	em	outros	textos	e	obras:	o	que	se	tem	visto	no	plano	das	práticas	jurídicas
nem	de	longe	chega	a	poder	ser	caracterizada	como	“filosofia	da	consciência”;	trata-se	de	uma	vulgata	disso.	É	verdade	que,
em	meus	textos,	tenho	falado	que	o	solipsismo	judicial,	o	protagonismo	e	a	prática	de	discricionariedades	se	enquadram	no
“paradigma	epistemológico	da	filosofia	da	consciência”.	Advirto,	porém,	que	é	evidente	que	esse	modus	decidendi	não	guarda
estrita	relação	com	o	“sujeito	da	modernidade”	ou	até	mesmo	com	o	“solipsismo	kantiano”.	Esses	são	muito	mais	complexos.
Venho	 apontando	 essas	 “aproximações”	 para,	 exatamente,	 poder	 fazer	 uma	 anamnese	 dos	 discursos,	 até	 porque	 não	 há
discurso	 que	 esteja	 “em	 paradigma	 nenhum”,	 por	 mais	 sincrético	 que	 seja.	 Aliás,	 estou	 sendo	 generoso	 ao	 falar	 de
“discricionariedades”...	 O	 que	 temos	 visto	 vai	 muito	 além	 daquilo	 que,	 na	 tradição,	 tem	 sido	 epitetado	 de
“discricionariedade”.	 Basta	 ver	 o	 que	 fazem	 com	 a	 “ponderação”.	Mais	 adiante,	 abordo	 aprofundadamente	 esta	 questão,
especificamente	no	item	6.3,	p.	205	e	207.
107	Ver,	para	tanto,	Oliveira,	Manfredo	Araujo	de.	Sobre	fundamentação.	Porto	Alegre:	Edipucrs,	1993.
108	 “Considerando	 que	 a	 Fenomenologia	 era	 o	 método	 da	 crítica	 do	 conhecimento,	 Husserl	 ainda	 indagava	 sobre	 a
possibilidade	 de	 que	 o	 conhecimento	 saísse	 de	 si	 mesmo	 para	 alcançar	 ‘um	 ser	 que	 não	 pode	 encontrar	 no	 quadro	 da
consciência’.	Ora,	a	intencionalidade	não	justifica	semelhante	formulação.	O	sujeito	é	excêntrico	e	sai	permanentemente	fora
de	 si	mesmo.	Mas	 é	o	Dasein	 que	 circunscreve,	 pela	 compreensão	do	 ser,	 a	 relação	do	 sujeito	 com	os	 objetos	 concretizada
atinge	o	Eu	transcendental,	como	unidade	monádica	que	existiria	em	contínua	evidência	para	si	mesmo,	no	qual	Husserl,	que
bem	próximo	ficou	de	Kant,	e	mais	ainda	de	Descartes,	reinvestiu,	tomando	por	modelo	o	Cogito	cartesiano,	o	sujeito	transcendental	da
Filosofia	moderna.	Colocando	entre	parênteses	o	Eu	assim	concebido,	a	epoché	de	Heidegger	suspende	a	certeza	do	Cogito	em
que	se	baseou	a	Fenomenologia	enquanto	ciência	filosófica	rigorosa”.	Cf.	Nunes,	Benedito.	Passagem	para	o	poético	(filosofia	e
poesia	em	Heidegger).	São	Paulo:	Ática,	1995,	p.	69.
109	Cf.	Castanheira	Neves,	Antonio.	Metodologia	jurídica.	Problemas	fundamentais.	Coimbra:	Coimbra	Editores,	1993,	p.	89.
3.	A	não	recepção	da	viragem	ontológico-linguística	pelo
modelo	interpretativo	(ainda)	dominante	em	terrae	brasilis
Embora	 tudo	 isto	 –	 e	 isto	 vale	 para	 o	modo-de-fazer	 Direito	 em	 nosso	 sistema	 jurídico
brasileiro	 –,	 a	 mudança	 de	 paradigma	 (da	 filosofia	 da	 consciência	 para	 a	 filosofia	 da
linguagem)110	 não	 teve	 a	 devida	 recepção	 no	 campo	 da	 filosofia	 jurídica	 e	 da	 hermenêutica	 no
cotidiano	das	práticas	 judiciárias	e	doutrinárias	brasileiras.111	Os	 juristas	não	se	deram	conta	do
fato	 de	 que	 “o	 Direito	 é	 linguagem	 e	 terá	 de	 ser	 considerado	 em	 tudo	 e	 por	 tudo	 como	 uma
linguagem.	O	que	quer	que	seja	e	como	quer	que	seja,	o	que	quer	que	ele	se	proponha	e	como	quer	que
nos	 toque,	 o	Direito	 o	 é	numa	 linguagem	e	 como	 linguagem,	propõe-se	 sê-lo	numa	 linguagem	 (nas
significações	 linguísticas	em	que	se	constitui	e	exprime)	 e	 atinge-nos	através	dessa	 linguagem,
que	é”.112
Basta	 ver,	 por	 exemplo,	 que	 as	 teses	 que	 tratam	 da	 “morte	 do	 sujeito”	 não	 tiveram	 qualquer
repercussão	 no	 domínio	 da	 Filosofia	 do	 Direito,	 como	 bem	 registra	 Seixas	 Meirelles.	 Aqui,
acrescenta	o	professor	português,	sob	a	aparência	de	um	novo	fundamento,	o	que	continua	a
dominar	 é	 a	 filosofia	 do	 sujeito-proprietário	 de	 mercadorias,	 com	 a	 sua	 capacidade	 de
autodeterminação,	 fundamento	último	da	 filosofia	do	Direito.	Essa	 filosofia	 é	 a	mimesis	 da
“tradicional”	filosofia	da	Liberdade,	ou	seja,	a	filosofia	do	(neo)liberalismo,	o	que	faz	com	que	a
existência	verdadeira	do	homem,	o	seu	modo-de-ser,	“social”	autêntico	(Karel	Kosik),	porque
é	 mediatizada	 na	 sociedade	 mercantil	 pelo	 Direito-Positivo-Histórico,	 permanece,	 na
sociedade	 do	 presente,	 assimptótica.113	 O	 sujeito,	 invenção/criação	 da	 modernidade,
continua	 a	 funcionar	 como	 fundamentum	 inconcussum	 absolutum	 veritatis.	 No	 plano	 da
interpretação/aplicação	 do	 Direito,	 isso	 é	 facilmente	 detectado	 na	 admissão	 do	 poder
discricionário	dos	juízes,	no	livre	convencimento	e	na	livre	apreciação	das	provas.
Continuamos	 com	 a	 mesma	 economia	 de	 mercado	 e	 a	 mesma	 lógica	 da	 “reificação”,
mediadas	pela	categoria	do	sujeito	de	direito	(Seixas	Meireles),	cuja	teorização	sustenta-se	em
um	 paradigma	 hermenêutico	 de	 cunho	 metafísico-essencialista,	 em	 que	 os	 fenômenos	 têm	 uma
pretensa	independência,	onde	o	fenômeno	é	explicado	depois	de	reduzido	à	sua	essência,	é	dizer,	a	um
princípio	abstrato,	criando	dois	polos	em	que	não	há	mediação:	o	individual	abstrato,	de	um
lado;	 e	 o	 universal	 abstrato,	 de	 outro	 (Kosik).114	 Na	 verdade,	 a	 dogmática	 jurídica	 atua	 a
partir	 de	 um	 sincretismo:	 ao	 mesmo	 tempo	 em	 que	 aposta	 no	 mito	 do	 dado	 (metafísica
clássica),	não	abre	mão	(ou	necessita)	da	mediação	do	sujeito	solipsista,	problemática	que	será
melhor	especificada	no	capítulo	destinado	à	discussão	entre	vontade	da	lei	versus	vontade	do
legislador.115
Essa	mixagem	encontra	um	terreno	fértil	no	Direito	brasileiro,	em	que	a)	o	Código	Civil	é
proveniente	de	uma	sociedade	pré-liberal	e	urbana;116	b)	o	Código	Penal	é	produto	de	uma
sociedade	 que	 há	 pouco	 saíra	 de	 um	 modelo	 agrário-exportador,	 voltado	 a	 uma	 (nova)
clientela	fruto	da	mudança	da	economia	ocorrida	a	partir	da	revolução	liberal	de	1930;117	c)	o
Código	Comercial	é	do	século	XIX	(agora	“incorporado”	pelo	Código	Civil);	d)	o	Código	de
Processo	Civil,	que	estabelece	mecanismos	que	protegem	explicitamente	os	direitos	reais	em
detrimento	dos	direitos	pessoais,	além	de	apostar	no	instrumentalismo,	a	partir	de	uma	clara
opção	 em	 favor	 do	 protagonismo	 judicial,	 circunstância	 que	 se	 repete	 no	 Projeto	 do	 novo
CPC;	e,	e)	o	Código	de	Processo	Penal,	que	adota	nítida	matriz	inquisitorial,	ainda	apostando
na	 livre	 apreciação	das	 provas,	 explícita	 opção	pelo	 paradigma	da	 filosofia	 da	 consciência.
Registre-se	 que	o	Projeto	do	novo	CPP	“avança”	 (sic)	 em	direção	 ao	 “livre	 convencimento
motivado”,	como	se	isso	o	livrasse	do	paradigma	filosófico	anterior.118
Tudo	 isso	 é	de	 suma	 importância	 na	 análise	do	Direito	 em	nosso	país.	Como	os	 juristas
pensam	a	sociedade	e	o	Direito?	Como	se	 inserem	e	como	têm	acesso	ao	mundo?	O	 jurista
não	 é	 outsider	 da	 sociedade.	 O	 Direito	 não	 pode	 mais	 ser	 visto	 como	 uma	 (mera)
racionalidade	instrumental.	Ao	admitirmos	que	o	Direito	“é	linguagem”,	tampouco	podemos
cair	 na	 armadilha	 da	 filosofia	 analítica,	 como	 se	 antes	 dos	 textos	 não	 houvesse	 coisas
(faticidade).
Dizendo	de	outro	modo:	a	análise	da	crise	paradigmática	do	Direito	não	pode	mais	ficar	restrita
à	crítica	ao	velho	exegetismo.	É	bem	verdade	que,	em	um	primeiro	momento,	apostávamos	na
superação	do	positivismo	primitivo	(exegético),	o	que	se	fazia,	no	campo	da	crítica	do	Direito,
através	 de	 concepções	 voluntaristas-axiologistas	 das	 mais	 variadas.	 Nesse	 sentido,	 não	 se
pode	olvidar	a	importância	das	posturas	analíticas,mormente	as	que,	a	partir	da	linguagem,
buscavam,	 nas	 nesgas	 da	 sintaxe	 e	 da	 semântica,	 enfrentar	 o	 dedutivismo	 dominante	 no
imaginário	jurídico.
Explico	 melhor	 essa	 importante	 questão:	 diversas	 teorias	 críticas	 do	 direito	 –	 como
veremos	na	sequência,	uma	delas	é	a	teoria	da	argumentação	jurídica	–	não	conseguem	fazer
mais	do	que	superar	o	positivismo	primitivo	(exegético),	ultrapassando-o,	entretanto,	apenas,
no	que	tange	ao	problema	“lei=direito”,	isto	é,	somente	alcançam	o	“sucesso”	de	dizer	que	“o
texto	é	diferente	da	norma”	(na	verdade,	fazem-no	a	partir	não	de	uma	diferença,	mas,	sim,
de	 uma	 cisão	 [semântico-estrutural],	 cortando	 qualquer	 amarra	 de	 sentido	 entre	 texto	 e
sentido	do	texto).
Para	 isso,	 valem-se	 da	 linguagem,	 especialmente	 calcados	 na	 primeira	 fase	 do	 linguistic
turn,	que	conhecemos	como	o	triunfo	do	neopositivismo	lógico.	Aqui	reside	parte	importante
da	problemática:	a	não	recepção	do	giro	ontológico-linguístico.	É	dizer,	na	especificidade	do
campo	 jurídico,	 as	 teorias	 analíticas	 tomaram	 emprestado	 do	 próprio	 Kelsen	 o	 elemento
superador	do	positivismo	exegético,	que	funcionava	no	plano	semiótico	da	sintaxe,	indo	em
direção	a	um	segundo	nível,	o	da	semântica,	o	que	se	observa	ainda	hoje	na	“crítica	do	direito”.
Que	a	 lei	não	dá	conta	de	 tudo,	Kelsen	 já	havia	percebido,	 só	que,	enquanto	ele	chegava	a
essa	conclusão,	a	partir	da	cisão	entre	ser	e	dever	ser,	com	a	divisão	entre	linguagem	objeto	e
metalinguagem,	 as	 teorias	 analíticas	 e	 seus	 correlatos	 chegam	 à	mesma	 conclusão.	Ocorre,
entretanto,	que	essa	“mesma	conclusão”	vem	infectada	com	o	vírus	do	sincretismo	 filosófico,
uma	 vez	 que	mixaram	 inadequadamente	 o	 nível	 da	metalinguagem	 com	 o	 da	 linguagem
objeto,	 isto	 é,	 o	 plano	 da	 ciência	 e	 o	 do	 direito	 (pura)	 e	 do	 direito	 (eivado	 do	 solipsismo
próprio	da	razão	prática).
Para	 ser	 mais	 específico	 e	 para	 evitar	 mal-entendidos:	 Kelsen	 apostou	 na
discricionariedade	 do	 intérprete	 (no	 nível	 da	 aplicação	 do	 direito)	 como	 sendo	 uma
fatalidade,	 exatamente	 para	 salvar	 a	 pureza	metódica,	 que	 assim	 permanecia	 “a	 salvo”	 da
subjetividade,	da	axiologia,	da	ideologia	etc.	Veja-se	um	dos	equívocos	da	leitura	que	se	faz	e
se	fez	de	Kelsen:	ele	nunca	separou/cindiu	Direito	e	moral	e	nem	o	Direito	dos	“valores”.	Na
verdade,	ele	cindiu	a	ciência	do	direito	da	moral	(e	dos	valores	 lato	sensu).	Ou	seja,	se	Kelsen
faz	 essa	 aposta	 nesse	 “nível”,	 as	 diversas	 teorias	 (semânticas	 e	 pragmaticistas)	 apostam	na
discricionariedade	a	ser	feita	“diretamente”	pelo	intérprete/juiz.	Mais	ainda,	se	Kelsen	teve	o
cuidado	 de	 construir	 o	 seu	 próprio	 objeto	 de	 conhecimento	 –	 e,	 por	 isso,	 é	 um	 autêntico
positivista	–,	a	teoria	pós-kelseniana,	que	não	compreendeu	a	amplitude	e	profundidade	do
neopositivismo	 lógico,	 acabou	 por	 fazer	 essa	 mixagem	 dos	 dois	 níveis	 (metalinguagem	 e
linguagem-objeto).	A	partir	dessa	má	compreensão,	os	 juristas	pensaram	que	o	 juiz	 seria	o
sujeito	 pelo	 qual,	 no	 momento	 da	 aplicação	 do	 direito	 (em	 Kelsen,	 o	 juiz	 faz	 um	 ato	 de
vontade,	e	não	de	conhecimento),	passa(ria)	a	fazer	a	“cura	dos	males	do	direito”.	O	que	em
Kelsen	era	uma	fatalidade	(e	não	uma	solução),	para	as	correntes	semanticistas,	passou	a	ser	a
salvação	para	as	“insuficiências”	ônticas	do	direito.
E	 de	 que	 modo	 as	 teorias	 analíticas	 pretendem	 controlar	 a	 “expansão	 linguística”
provocada	pela	descoberta	da	cisão	da	norma	em	relação	ao	texto?	A	resposta	é	simples:	pela
metodologia.	 Algo	 como	 “racionalizar”	 o	 subjetivismo...!	 No	 fundo,	 um	 retorno	 à	 velha
jurisprudência	 dos	 conceitos.	 Ou	 melhor,	 em	 tempos	 de	 jurisprudência	 dos	 valores,
axiologismos	etc.,	nada	melhor	do	que	um	“retorno”	a	uma	certa	racionalidade	dedutivista.
A	diferença	é	que	agora	não	se	realiza	mais	uma	pirâmide	formal	de	conceitos	para	apurar	o
sentido	do	direito	positivo;	ao	revés,	utiliza-se	o	intérprete	como	“canal”	através	do	qual	os	valores
sociais	invadem	o	direito,	como	se	o	sujeito	que	 julga	fosse	o	fiador	de	que	as	regras	 jurídicas
não	seriam	aplicadas	de	um	modo	excessivamente	formalista.
Ocorre	 que,	 ao	 permanecerem	 no	 campo	 da	 semanticidade,	 os	 juristas	 que	 se	 inserem
nesse	 contexto	 (na	 verdade,	 a	maioria)	 são	 obrigados	 –	 sob	pena	de	 autodestruição	de	 seu
discurso	–	a	admitir	múltiplas	respostas	na	hora	da	decisão.	Nada	mais	do	que	evidente:	se	as
palavras	contêm	incertezas	designativas/significativas,	há	que	se	admitir	uma	pluralidade	de
sentidos	(no	campo	da	semântica,	é	claro).	Só	que	isso	denuncia	a	cisão	entre	interpretar	e	aplicar.
Observemos:	 o	 neopositivismo	 surgiu	 exatamente	 para	 construir	 uma	 linguagem	 artificial,
com	o	fito	de	superar	essa	incerteza	da	linguagem	natural	com	a	qual	era	feita	a	ciência.	Já	as
diversas	teorias	analíticas	apenas	comemoram	tardiamente	a	descoberta	dessas	incertezas	da
linguagem,	 pensando	 que,	 se	 superassem	 o	 exegetismo	 assentado	 sobre	 a	 relação	 texto-
norma,	já	estariam	em	um	segundo	patamar...	Ledo	engano.
No	 campo	 jurídico,	 o	 “maior	 avanço”	 parece	 –	mas	 apenas	 parece	 –	 ter	 sido	 dado	 por
Alexy,	 que	 de	 algum	 modo	 pretende	 conciliar	 o	 método	 analítico	 da	 jurisprudência	 dos
conceitos	 com	 o	 axiologismo	 da	 jurisprudência	 dos	 valores.	 Com	 efeito,	 procurando
racionalizar	 o	 uso	 da	moral	 corretiva	 (p.ex.,	 através	 da	 jurisprudência	 dos	 valores,	 que	 ele
buscou	“controlar”	racionalmente),	Alexy	contenta-se	em	dizer,	em	um	primeiro	momento,
que	 os	 casos	 simples	 se	 resolvem	 por	 subsunção,	 o	 que	 quer	 dizer	 que	 ele	 acredita	 na
suficiência	ôntica	da	lei	naqueles	casos	em	que	haja	“clareza”	no	enunciado	legal	e	na	rede
conceitual	que	o	compõem.	Ou	seja,	Alexy,	em	parte,	continua	apostando	no	exegetismo,	ao
menos	para	a	resolução	dos	casos	no	âmbito	das	regras.	Para	ele,	nos	casos	fáceis	(simples),	a
norma	 é	 sempre	 geral,	 porque	 abrange	 todas	 as	 hipóteses	 de	 aplicação.	 Para	 além	 dessa
“suficiência	ôntico-exegética”,	quando	estiver	em	face	de	um	caso	difícil,	apela	para	o	outro
nível	da	semiótica:	a	pragmática.	Mas	a	palavra	 final	 será	do	sujeito	e	sua	subjetividade.	A
ponderação	alexiana,	feita	para	resolver	o	problema	de	colisão	de	princípios,	dependerá,	ao
fim	e	ao	cabo,	da	discricionariedade,	bastando	ver,	para	tanto,	o	modo	como	se	“constrói”	a
regra	da	ponderação.	Portanto,	dependerá	do	sub-jectum,	de	um	solus	ipse.
Disso	exsurge	um	paradoxo:	o	que	sustenta	o	arraigamento	aos	ordenamentos	(regras	em
geral)	 é,	 ainda,	 o	 positivismo	 exegético.	No	 fundo,	 superestimamos	 as	 críticas	 ao	 positivismo
exegético,	 como	 se	 este	 já	 estivesse	 superado.	 Observe-se	 que	 as	 posturas
neoconstitucionalistas,	 por	 exemplo,	 ainda	 acreditam	 que	 casos	 simples	 se	 resolvem	 por
subsunção.	 Logo,	 acreditam	 na	 tese	 central	 do	 velho	 positivismo.	 Ocorre	 que	 as	 críticas	 à
forma	 primitiva	 do	 positivismo	 abriram	 duas	 possibilidades:	 a	 permanência	 do	 objeto
criticado	 e	 o	 escondimento	 das	 possibilidades	 da	 superação	 do	 elemento	 superador	 do
exegetismo.	Quem	fica	preso	ao	texto	(que	se	iguala,	assim,	à	norma)	só	consegue	superar	o
“impasse”	apelando	ao	“novo	positivismo”,	o	normativista.	Tem-se,	assim,	um	problema:	se	o
positivismo	separava	direito	e	moral,	ou	seja,	afastava	a	moral	(e	os	valores	lato	sensu)	da	lei
(portanto,	do	direito,	porque	lei	e	direito	eram	a	mesma	coisa),	aqueles	que	buscaram	superar
o	antigo	positivismo	incorreram	em	um	equívoco,	ao	cindirem	casos	fáceis	e	casos	difíceis	e
apostarem	 nos	 princípios	 como	 a	 porta	 da	 entrada	 da	 moral	 no	 direito,	 dizendo,	 por
exemplo,	que	“princípios	são	normas”.	Resultado	disso	é	o	já	serôdio	discurso	de	que	o	“juiz
boca	da	lei	foi	superado	pelo	juiz	dos	princípios”.	E,	para	agravar	essa	problemática,setores
da	 comunidade	 jurídica	 passaram	 a	 se	 utilizar	 da	 ponderação	 como	 um	 “simples”
mecanismos	 de	 resolução	 de	 conflitos	 ou	 colisão	 de	 princípios.	 De	 forma	 equivocada,
passaram	a	fazer	sopesamentos	sem	qualquer	fidelidade	à	ponderação	alexyana.	Assim,	se	a
ponderação	em	Alexy	já	é	problemática	porque	ainda	presa	ao	paradigma	sujeito-objeto,	sem
escapar	do	subjetivismo,	a	vulgata	que	foi	feita,	principalmente	no	Brasil,	fez	com	que	esta	–	a
ponderação	 –	 não	 passasse	 de	 um	 simples	 álibi	 teórico,	 com	 ela	 podendo	 ser	 extraída
qualquer	decisão.
Por	 isso	 alguns	 juristas	 compreenderam	 mal	 o	 sentido	 do	 novo	 Constitucionalismo.
Explicando	 melhor:	 por	 não	 terem	 compreendido	 o	 problema	 da	 diferença	 entre	 o	 velho
positivismo	 exegético	 (sintático)	 e	 o	 positivismo	 normativista	 (semântico),	 pensaram	 que	 o
“neoconstitucionalismo”	seria	a	forma	de	superar	o	exegetismo.	E,	para	isso,	apelaram	para	a	busca
de	 valores	 que	 estariam	 “escondidos”	 por	 debaixo	 dos	 textos	 legais.	 Com	 isso,	 não	 foram
além	 de	 Kelsen.	 E	 esse	 é	 o	 ponto	 fulcral	 do	 problema.	 Talvez	 por	 isso	 o
neoconstitucionalismo	 seja	 subdividido	 em	 metodológico,	 ideológico	 e	 normativo.	 Ora,
pensar	 assim	 é	 apenas	 colocar	 o	 neoconstitucionalismo	 como	 uma	 continuidade	 do	 velho
positivismo,	e	não	como	autêntica	ruptura.	Esse	problema	também	se	repetiu	na	equivocada
compreensão	 do	 sentido	 dos	 princípios,	 conceituados	 como	 “positivação	 de	 valores”	 ou	 a
“sofisticação”	dos	 velhos	 princípios	 gerais	 do	direito,	 que,	 como	 se	 sabe,	 não	passavam	de
axiomas.
Portanto,	não	basta	dizer	que	a	lei	não	contém	o	direito;	não	basta	dizer	que	o	ôntico	não
esgota	 os	 sentidos	 se	 isso	 for	 feito	 sob	 os	 pressupostos	 do	 positivismo	 normativista.	 Isso
explica	as	razões	pelas	quais	a	defesa	da	discricionariedade	é	feita	pela	maioria	dos	juristas.
Ou	seja,	recém	estão	ultrapassando	o	velho	positivismo	exegético.	Para	tanto,	basta	ver	o	que
a	maioria	dos	juristas	defensores	do	neoconstitucionalismo	fala	sobre	a	discricionariedade,	os
princípios	(tidos	como	valores)	etc.	Essa	é	a	pista	para	identificar	os	“novos”	positivistas	(ou
neopositivistas).
Assim,	com	a	aposta	na	discricionariedade,	efetivamente	acreditam	que	são	pós-positivistas.
Ora,	 somente	 seriam	 pós-positivistas	 se	 o	 positivismo	 fosse	 reduzido	 a	 um	 único	 bloco
teórico:	o	exegetismo,	algo	que	acabaria	por	aniquilar	dois	dos	maiores	pensadores	do	positivismo,
Kelsen	 e	 Hart.	 O	 que	 quero	 dizer	 –	 e	 venho	 insistindo	 nisso	 de	 há	 muito	 –	 que
“discricionariedade”	 e	 “positivismo	 normativista”	 são	 faces	 da	mesma	moeda.	 Não	 que	 o
positivismo	exegético	não	 contasse	 com	algum	 tipo	de	discricionariedade.	Ela	 apenas	 era	 de
outro	 nível:	 os	 juízes	 é	 que	 estavam	 impedidos	 (lembremos	 da	 serôdia	 cisão	 entre	 questão	 de	 fato-
questão	de	direito)	 pela	 crença	da	 completude	da	 legislação,	 dos	 conceitos	 legislativos	 etc.	 Todavia,
existia,	no	interior	do	método	positivista	exegético,	um	aprisionamento	a	um	voluntarismo,
um	voluntarismo	presente	na	 ideia	de	mens	 legis.	Note-se	 como	o	 constitucionalismo	ataca
essa	questão	nos	dois	níveis,	uma	vez	que	derruba	a	ideia	de	uma	confiança	absoluta	em	algo
como	um	legislador	racional	e,	ao	mesmo	tempo,	oferece	freios	ao	voluntarismo	judicial.
Releva	 registrar,	 desse	 modo,	 que	 a	 discricionariedade	 e	 o	 positivismo	 normativista
buscam	fechar	as	 lacunas	de	racionalidade	–	ou,	no	 limite,	ausência	de	 racionalidade	–	por
uma	metodologia	 teleologicamente	 dependente	 do	 sujeito	 que	 concretiza	 o	 ato.	 Tudo	 isso
não	 permite	 que	 eles	 saiam	 dos	 braços	 da	 filosofia	 da	 consciência.	 É	 por	 isso	 que	 venho
sustentando	que	somente	é	possível	superar	o	positivismo	a	partir	da	ruptura	com	o	esquema
sujeito-objeto	 introduzido	 pela	 filosofia	 da	 consciência,	 isto	 porque	 o	 positivismo	 está
indissociavelmente	dependente	do	sujeito	solipsista.	Foi	graças	a	ele	–	sujeito	solipsista	–	que
o	 positivismo	 foi	 superado	 no	 sentido	 de	 deslocamento	 do	 fator	 de	 blindagem,	 antes	 em
relação	aos	juízes	e,	depois,	sem	amarras.
Faltou,	portanto,	compreender	que:
a)	 Kelsen	 superou	 o	 positivismo	 exegético	 a	 partir	 do	 fato	 de	 que	 o	 conceito
preponderante	não	é	mais	a	 lei,	mas	sim	a	norma,	que	não	está	contida	apenas	na	 lei,	mas
também	nas	decisões	(portanto,	o	problema	em	Kelsen	é	um	problema	de	decidibilidade);
b)	 Kelsen,	 uma	 vez	 que	 foi	 mal	 entendido,	 não	 foi	 superado	 pelos	 teóricos	 do	 direito
justamente	 por	 não	 terem	 conseguido	 compreender	 o	 alcance	 nem	 da	 primeira	 fase	 da
viragem	linguística	(neopositivismo	lógico)	e	nem	de	seu	sequenciamento/aprimoramento	(o
giro	ontológico-linguístico).
Para	ser	mais	simples:	o	problema	do	positivismo	não	é	o	fato	de	a	lei	ser	igual	ao	direito
ou	 do	 direito	 ser	 igual	 à	 lei,	 mas	 sim	 do	 sujeito	 cognoscente	 se	 apoderar	 da	 “sacada
kelseniana”	 de	 separação	 entre	 interpretação	 como	 ato	 de	 conhecimento	 (esta,	 sim,	 exata,
objetiva,	 rígida)	 e	 interpretação	 como	 ato	 de	 vontade	 (relegada	 ao	 alvedrio	 do	 órgão
competente	para	a	aplicação	da	norma	superior).	Por	 isso	tudo	é	 importante	 lembrar	que	a
“baixa	constitucionalidade”	está	assentada	ainda	muito	mais	no	velho	positivismo	exegético
do	que	propriamente	no	positivismo	normativista.	Isso	pode	ser	visto	nos	pequenos	detalhes,
como	na	dificuldade	em	fazer	filtragem	hermenêutico-constitucional	e	daí	a	pergunta:	se	 já
superamos	 o	 positivismo	 exegético,	 porque	 nos	 recusamos	 –	 com	 base	 na	 diferença	 entre
vigência	 e	 validade	 –	 a	 considerar	 inconstitucionais	 uma	 infinidade	de	dispositivos	 de	 leis
ordinárias?	O	que	sobraria	do	Código	Penal	de	1940	se	não	continuássemos	a	ser	positivistas
exegéticos?	O	resultado	dessa	dificuldade	teórica	é	que	a	aplicação	do	direito	transforma-se
em	algo	ad	hoc:	por	vezes	ultrapassa-se	a	letra	da	lei;	por	vezes	sustenta-se	a	“letra	fria	da	lei”
(sic).119
Ora,	uma	Constituição	nova	–	e	essa	é	a	questão	fundante	da	ruptura	paradigmática	que
deveria	ter	sido	captada	pela	comunidade	 jurídica	de	terrae	brasilis	–	exige	novos	modos	de
análise:	no	mínimo,	uma	nova	teoria	das	fontes,	uma	nova	teoria	da	norma,	uma	nova	teoria
hermenêutica.	 Entretanto,	 isso	 exige	 um	 giro	 paradigmático:	 dos	 paradigmas	 aristotélico-
tomista	e	da	filosofia	da	consciência	para	o	giro	ontológico-linguístico	(sem	nos	contentarmos
com	a	simples	analítica	da	linguagem).
Em	1988,	o	Brasil	 recebeu	uma	nova	Constituição,	 rica	 em	direitos	 fundamentais,	 com	a
agregação	de	um	vasto	catálogo	de	direitos	sociais.	A	pergunta	que	se	colocava	era:	de	que
modo	poderíamos	olhar	o	novo	com	os	olhos	do	novo?	Afinal,	nossa	tradição	jurídica	estava
assentada	 em	 um	modelo	 liberal-individualista	 (que	 opera	 com	 os	 conceitos	 oriundos	 das
experiências	da	 formação	do	direito	privado	germânico	e	 francês),	 em	que	não	havia	 lugar
para	 direitos	 de	 segunda	 e	 terceira	 dimensões.	 Do	 mesmo	 modo,	 não	 havia	 uma	 teoria
constitucional	adequada	às	demandas	de	um	novo	paradigma	jurídico.
Essas	 carências	 jogaram	 os	 juristas	 brasileiros	 nos	 braços	 das	 teorias	 alienígenas.
Consequentemente,	as	recepções	dessas	teorias	foram	realizadas,	no	mais	das	vezes,	de	modo
acrítico,	 sendo	 a	 aposta	 no	 protagonismo	 dos	 juízes	 o	 ponto	 comum	 da	 maior	 parte	 das
teorias.	 Com	 efeito,	 houve	 um	 efetivo	 “incentivo”	 doutrinário	 a	 partir	 de	 três	 principais
posturas	ou	teorias:	a	jurisprudência	dos	valores,	o	realismo	norte-americano	(com	ênfase	no
ativismo	judicial)	e	a	teoria	da	argumentação	de	Robert	Alexy.120
Observe-se,	pois,	a	complexidade	da	crise	aqui	discutida/analisada.	Nos	limites	desta	obra,
preocupo-me	em	abordar	a	assim	denominada	crise	do	paradigma	 liberal-individualistade
produção	de	direito,	agregada	à	crise	do	Estado	e	à	crise	decorrente	da	não	superação,	pela
dogmática	 jurídica,	 do	 paradigma	 da	 prevalência	 da	 lógica	 do	 sujeito	 cognoscente	 e,	 ao
mesmo	 tempo,	 um	 certo	 arraigamento	 às	 posturas	 essencialistas	 (ontologia	 clássica).
Portanto,	não	se	está	a	falar	da	(ou	de	uma)	crise	de	paradigmas	lato	sensu.
Portanto,	uma	crítica	do	direito	que	se	reduza	a	denunciar	a	atividade	judicial,	no	sentido
de	que	esta	não	pode	ser	vista	como	simples	“administração	da	lei	por	uma	instituição	tida
como	‘neutra’,	‘imparcial’	e	‘objetiva’”,	ficando	o	intérprete/aplicador	convertido	num	mero
técnico	do	Direito	positivo,	não	é	mais	suficiente,	porque	ataca	apenas	o	modo-exegético-de-
fazer-interpretar-e-aplicar	o	Direito.121
As	recepções	das	teorias	voluntaristas	–	em	especial	as	que	colocam	a	Constituição	como
“ordem	 concreta	 de	 valores”	 (portanto,	 com	 filiação	 na	 jurisprudência	 dos	 valores	 e	 com
tendências	 à	 incorporação	 das	 teses	 do	 realismo	 jurídico),	 ultrapassaram	 esse	 “modelo	 de
aplicação	do	Direito”.	Na	verdade,	ocorreu	uma	troca:	do	modelo	que	apostava	na	estrutura
do	Direito	(objetivismo),	passou-se	a	adotar	uma	postura	de	perfil	subjetivista,	que	deu	–	e	dá
–	azo	não	somente	ao	decisionismo	stricto	sensu,	mas	também	ao	instrumentalismo	(processo
civil)	e	ao	inquisitivismo	(processo	penal).	Enfrentar	esse	“novo”	protagonismo	será	o	papel
de	 uma	 hermenêutica	 preocupada	 com	 a	 democracia,	 para	 impedir	 que	 a	 produção
democrática	do	Direito	seja	substituída	pelo	Poder	Judiciário.
	
	
3.1.	A	crise	de	paradigma	(de	dupla	face)	e	o	senso	comum	teórico	dos	juristas	como
horizonte	de	sentido	da	dogmática	jurídica
	
No	plano	do	 imaginário	dos	 juristas,	essa	 (dupla)	crise	de	paradigma	se	sustenta	em	um
emaranhado	de	crenças,	 fetiches,	valores	e	 justificativas	por	meio	de	disciplinas	específicas,
denominado	por	Warat	de	senso	comum	teórico	dos	 juristas,	que	são	legitimados	mediante
discursos	 produzidos	 pelo	 órgãos	 institucionais,	 tais	 como	 os	 parlamentos,	 os	 tribunais,	 as
escolas	de	direito,	as	associações	profissionais	e	a	administração	pública.	Tal	conceito	traduz
um	 complexo	 de	 saberes	 acumulados,	 apresentados	 pelas	 práticas	 jurídicas	 institucionais,
expressando,	 destarte,	 um	 conjunto	 de	 representações	 funcionais	 provenientes	 de
conhecimentos	morais,	 teológicos,	 metafísicos,	 estéticos,	 políticos,	 tecnológicos,	 científicos,
epistemológicos,	 profissionais	 e	 familiares,	 que	 os	 juristas	 aceitam	 em	 suas	 atividades	 por
intermédio	da	dogmática	jurídica.122
O	 senso	 comum	 teórico	 “coisifica”	 o	mundo	 e	 compensa	 as	 lacunas	 da	 ciência	 jurídica.
Interioriza	 –	 ideologicamente	 –	 convenções	 linguísticas	 acerca	 do	 Direito	 e	 da	 sociedade.
Refere-se	à	produção,	à	 circulação	e	à	“consumação”	das	verdades	nas	diversas	práticas	de
enunciação	 e	 de	 escritura	 do	Direito,	 designando	 o	 conjunto	 das	 representações,	 crenças	 e
ficções	 que	 influenciam,	 despercebidamente,	 os	 operadores	 do	Direito.	 Traduz-se	 em	 uma
“paralinguagem”,	situada	depois	dos	significantes	e	dos	sistemas	de	significação	dominantes,
que	ele	serve	de	forma	sutil,	para	estabelecer	a	“realidade”	jurídica	dominante.	É	o	local	dos
“segredos”.123
Difusamente,	o	senso	comum	teórico	é	o	conhecimento	que	se	encontra	na	base	de	todos
os	 discursos	 científicos	 e	 epistemológicos	 do	Direito.	 O	 senso	 comum	 teórico	 institui	 uma
espécie	de	habitus	(Bourdieu),	ou	seja,	predisposições	compartidas,	no	âmbito	do	imaginário
dos	 juristas.	 Isso	 porque,	 segundo	 Bourdieu,	 há,	 na	 verdade,	 um	 conjunto	 de	 crenças	 e
práticas	que,	mascaradas	e	ocultadas	pela	communis	opinio	doctorum,	propiciam	que	os	juristas
conheçam	 de	modo	 confortável	 e	 acrítico	 o	 significado	 das	 palavras,	 das	 categorias	 e	 das
próprias	atividades	jurídicas,	o	que	faz	do	exercício	do	operador	jurídico	um	mero	habitus,	ou
seja,	 um	 modo	 rotinizado,	 banalizado	 e	 trivializado	 de	 compreender,	 julgar	 e	 agir	 com
relação	 aos	 problemas	 jurídicos,	 e	 converte	 o	 seu	 saber	 profissional	 em	 uma	 espécie	 de
“capital	 simbólico”,	 isto	 é,	 numa	 riqueza	 reprodutiva	 a	 partir	 de	 uma	 intrincada
combinatória	entre	conhecimento,	prestígio,	reputação,	autoridade	e	graus	acadêmicos.124
Quatro	são	as	funções	do	senso	comum	teórico	dos	juristas	especificadas	por	Warat:	a	função
normativa,	 por	 intermédio	 da	 qual	 os	 juristas	 atribuem	 significação	 aos	 textos	 legais,
estabelecem	critérios	redefinitórios	e	disciplinam	a	ação	institucional	dos	próprios	juristas.	A
segunda	função	é	ideológica,	uma	vez	que	o	senso	comum	teórico	cumpre	importante	tarefa	de
socialização,	homogeneizando	valores	sociais	e	 jurídicos,	de	silenciamento	do	papel	social	e
histórico	 do	 Direito,	 de	 projeção	 e	 de	 legitimação	 axiológica,	 ao	 apresentar	 como	 ética	 e
socialmente	necessários	os	deveres	 jurídicos.	Num	terceiro	momento,	o	 senso	 comum	 teórico
cumpre	uma	função	retórica,	que	complementa	a	função	ideológica,	pois	sua	missão	é	efetivá-
la.	 Neste	 caso,	 o	 senso	 comum	 teórico	 opera	 como	 condição	 retórica	 de	 sentido,
proporcionando	um	complexo	de	argumentos	 (lugares	 ideológico-teóricos	para	o	raciocínio
jurídico).	Por	último,	o	senso	comum	teórico	cumpre	uma	função	política,	como	derivativa	das
demais.	 Essa	 função	 se	 expressa	 pela	 tendência	 do	 saber	 acumulado	 em	 reassegurar	 as
relações	 de	 poder.	 Por	 isso,	 acrescenta,	 é	 fácil	 perceber	 como	 o	 conhecimento	 jurídico
acumulado	consegue	apresentar	os	dispositivos	do	poder	–	plurais,	dispersos	e	dependentes
de	tendências	–	como	um	conjunto	unívoco	e	bem	ordenado	aos	fins	propostos.
A	partir	de	tais	premissas	waratianas,	é	possível	afirmar	que	a	realidade	do	cotidiano	dos
juristas	–	a	 sua	relação	com	a	 lei	 (texto	normativo)	e	o	Direito	–	por	 si	 só	não	 é	 significativa.
Porém,	ela	se	apresenta	dessa	maneira	graças	ao	senso	comum	teórico	no	ato	de	conhecer.	O
que	 determina	 a	 significação	 dessa	 realidade	 é	 toda	 a	 faculdade	 cognoscitiva,
institucionalmente	 conformada	 com	 todos	 os	 seus	 elementos	 fáticos,	 lógicos,	 científicos,
epistemológicos,	 éticos	 e	 de	 qualquer	 outra	 índole	 ou	 espécie.	 A	 significação	 dada	 ou
construída	 via	 senso	 comum	 teórico	 contém	 um	 conhecimento	 axiológico	 que	 reproduz	 os
valores	 sem,	 porém,	 explicá-los.	 Consequentemente,	 essa	 reprodução	 (inautêntica	 dos	 pré-
juízos,	 no	 sentido	 de	 Gadamer,	 como	 veremos	 mais	 adiante)	 conduz	 a	 uma	 espécie	 de
conformismo	dos	operadores	jurídicos	(o	que	denomino	de	habitus	dogmaticus).
O	senso	comum	teórico	sufoca	as	possibilidades	interpretativas.	Quando	submetido	à	pressão
do	novo,	(re)age	institucionalizando	(ou	banalizando)	a	crítica.	Para	tanto,	abre	possibilidades	de
dissidências	apenas	possíveis	(delimitadas	previamente).	Ou	seja,	no	 interior	do	senso	comum
teórico,	 permite-se,	 difusamente,	 (apenas)	 o	 debate	 periférico,	 mediante	 a	 elaboração	 de
respostas	que	não	ultrapassem	o	teto	hermenêutico	prefixado	(horizonte	do	sentido).
Daí	 a	 dificuldade	 para	 a	 obtenção	 de	 algumas	 respostas	 que	 exsurgem	de	 perguntas	 do
tipo	 “o	 que	 significa	 o	 dispositivo	 constitucional	 da	 igualdade	 de	 todos	 perante	 a	 lei”	 para	 a
imensa	maioria	da	população	brasileira?	O	que	significa	pacta	sunt	servanda	 em	um	conflito
sociojurídico	 entre	 incluídos	 e	 excluídos	 (socialmente)?	 Nesse	 sentido,	 não	 é	 difícil	 ou
temerário	dizer	que	os	paradoxos	originários	da	sociedade	repleta	de	conflitos	e	contradições
acabam	sendo,	exatamente,	diluídos	no	interior	desse	corpus	denominado	por	Warat	de	senso
comum	teórico	do	saber	jurídico.
Segundo	 Warat,	 o	 senso	 comum	 teórico	 é	 instrumentalizado	 por	 uma	 racionalidade
positivista,	que	atua	como	fetiche	de	sua	razão	cotidiana,	alémde	atuar	como	mediadora	dos
conflitos	sociais.	Exatamente	por	isso	que	os	“operadores”	(sic)	do	Direito	trabalham	em	uma
instância	de	julgamento	e	censura	–	uma	espécie	de	“superego	da	cultura	jurídica”125	–	que	os
impede	de	produzir	decisões	autônomas	em	relação	a	esse	nível	censor.	Não	conseguem	se	dar	conta
do	fumus	ideológico	que,	de	forma	inexorável,	está	por	detrás	de	cada	interpretação	da	lei,	de
cada	sentença,	enfim,	de	cada	discurso	acerca	do	Direito.
Assim,	o	jurista	tradicional,	inserido	nesse	habitus,	não	se	dá	conta	dessa	problemática.	E	o
Judiciário	e	as	instituições	encarregadas	de	aplicar	e	administrar	a	justiça	dela	não	escapam.
Tem	o	Judiciário	(e	o	Direito)	uma	função	social,	nesse	contexto?	Não	se	deve	olvidar	que	o
Poder	Judiciário	(e	isto	se	aplica	ao	Ministério	Público)	vive	uma	crise	que	tem	três	matrizes,
bem	 detectadas	 por	 Diogo	 de	 Figueiredo	 Moreira	 Neto:	 a	 crise	 estrutural	 (deficiência	 de
juízes,	falta	de	controle	efetivo),	uma	crise	funcional	(inadequação	das	leis,	problema	de	acesso
à	justiça)	e	uma	crise	individual,126	que	pode	ser	chamada	de	crise	de	imaginário.	Essa	crise	de
imaginário	é	fortíssima,	porque,	de	certo	modo,	faz	uma	amálgama	das	outras	duas.	Cada	vez
que	a	crise	do	Judiciário	se	agudiza	–	através	da	inefetividade,	inacesso	à	justiça,	lentidão	da
máquina	 etc.	 –,	 o	 establishment	 responde	 com	 soluções	 ad	 hoc,	 como	 por	 exemplo,	 uma
sequência	 de	 reformas	 ad	 hoc	 do	 processo	 civil,	 a	 lei	 dos	 Juizados	 Especiais	 Cíveis	 e
Criminais127	e	o	efeito	(de	poder)	representado	pelas	súmulas	vinculantes.128
Com	o	Juizado	Especial	Criminal,	instituído	pela	Lei	9.099/95,	por	exemplo,	e	a	nova	lei	da
arbitragem,	o	Estado	“sai”	 cada	vez	mais	das	 relações	 sociais.	No	 fundo,	 a	 lei	dos	 juizados
criminais	 institucionalizou	 a	 agressão	 física,	 com	 a	 transformação	 do	 delito	 de	 lesões
corporais	 de	 ação	 pública	 incondicionada	 em	 ação	 pública	 condicionada.	 Portanto,	 não
impressiona	e	nem	causa	surpresa	a	edição	da	Lei	9.099/95	(“sofisticada”	pela	Lei	10.259	que
aumentou	o	conjunto	de	tipos	penais	passíveis	de	“barganha”	e	pagamento	de	cestas	básicas),
que	instituiu	os	Juizados	Especiais	Criminais.	Entre	outras	críticas	que	podem	ser	feitas	à	Lei,
registre-se	que,	na	prática,	pela	simplificação	de	seu	procedimento	na	fase	policial	(o	fato	vai
narrado,	resumidamente,	em	um	boletim)	e	seu	imediato	envio	ao	Judiciário,	vários	delitos
que	já	estavam	sepultados	no	imaginário	social,	foram	“repristinados”	pela	Lei	(embora	parte
não	 tenha	 sido	 recepcionada	 pela	 atual	 Constituição),	 como	 uma	 série	 de	 contravenções
penais	 e	 outros	pequenos	 crimes,	 o	que,	 indiscutivelmente,	 evidencia	um	 retrocesso.	Além
disso,	com	a	necessidade	de	representação	(provocação	prévia	do	cidadão	para	que	o	Estado
processe	o	autor	do	delito),	pode-se	afirmar,	com	uma	certa	dose	de	sarcasmo,	que	a	nova	Lei
permite	“o	duelo”	nos	 limites	das	 lesões.	Explicando:	se	duas	pessoas	resolvem	brigar,	e	os
ferimentos	disso	decorrentes	 forem	 leves,	 o	 Estado	não	 interfere	 na	 “relação”	 belicosa...	 (a
não	ser	que	um	deles	faça	a	“representação”!)	Ou	seja,	a	Lei	dos	Juizados	Especiais	Criminais
(Lei	 9.099,	 alterada	pela	 10.259)	 não	mais	 coloca	 o	 Estado	 como	 interventor	 necessário	 nas
contendas	 vis-à-vis	 entre	 pessoas,	 desde	 que	 os	 ferimentos	 não	 ultrapassem	 o	 âmbito	 das
lesões	leves	(que,	como	se	sabe,	pelas	exigências	do	art.	129,	e	seus	parágrafos,	podem	não	ser
tão	 leves	assim).	O	Estado	assiste	de	camarote	e	diz:	batam-se	que	eu	não	 tenho	nada	com
isto.	É	o	“neoliberalismo”	no	Direito,	agudizando	 a	 própria	 crise	 da	denominada	“teoria	 do	 bem
jurídico”,	própria	do	modelo	liberal-individualista	de	Direito.	Não	pode	surpreender	o	fato	de
que	o	Código	Penal	“protege-pune”	com	mais	rigor	os	crimes	contra	a	propriedade	do	que	os
contra	a	vida.	As	comparações	chegam	a	ser	teratológicas,	por	exemplo,	entre	lesões	culposas
(crimes	de	trânsito)	e	furto,	estelionato	e	omissão	de	socorro...129
Entretanto,	o	jurista,	inserido	em	um	habitus	dogmaticus,	não	se	dá	conta	das	contradições
do	sistema	jurídico.	As	contradições	do	Direito	e	da	dogmática	jurídica	que	o	instrumentaliza
não	 “aparecem”	 aos	 olhos	 do	 jurista,	 uma	 vez	 que	 há	 um	 processo	 de
justificação/fundamentação	 da	 “coerência”	 do	 seu	 próprio	 discurso.	 Esse	 processo	 de
justificação	não	prescinde,	para	sua	elucidação,	do	entendimento	acerca	do	funcionamento	da	ideologia.
Isto	 porque,	 como	 ensina	 Zizek,	 a	 eficácia	 de	 uma	 ideologia	 pode	 ser	 apreendida	 pelos
mecanismos	da	 identificação	 imaginária	 e	da	 identificação	 simbólica.	E,	 à	primeira	vista	 se
poderia	dizer	que	o	que	é	pertinente	numa	análise	da	 ideologia	 é	 somente	a	maneira	pela
qual	 ela	 funciona	 como	discurso,	 em	 suma,	 pela	maneira	 como	os	mecanismos	discursivos
constituem	o	 campo	da	 significação	 ideológica.	No	entanto,	 o	derradeiro	 suporte	do	efeito
ideológico	(ou	seja,	a	maneira	como	uma	rede	ideológica	nos	“prende”)	é	o	núcleo	fora	de	sentido,
pré-ideológico	do	gozo.	Na	ideologia	“nem	tudo	é	ideologia	(isto	é,	sentido	ideológico),	mas
é	precisamente	esse	excesso	que	constitui	o	derradeiro	esteio	da	ideologia”.130
O	ideológico	não	pode	ser	simbolizado	enquanto	ideológico,	ou	seja,	usando	as	palavras	de
Zizek,	o	indivíduo	submetido	à	 ideologia	nunca	pode	dizer	por	si	mesmo	“estou	na	ideologia”.	Esse
não-poder-dizer	é	decorrente	do	fato	de	que	o	discurso	do	Outro	o	aliena	dessa	possibilidade
simbolizante.	É	possível	dizer	assim	que	o	discurso	ideológico	enquanto	tal	não	é	realidade
para	 o	 indivíduo	 submetido/assujeitado.	 Se	 simbolizar	 é	 tratar	 pela	 linguagem	 e	 se	 o
inconsciente	é	estruturado	como	uma	linguagem,	o	discurso	ideológico	só	pode	vir	à	tona	no
sujeito	 se	 este	 não	 tiver	 as	 condições	 de	 possibilidade	 de	 dizê-lo,	 de	 nomeá-lo,	 isto	 é,	 de
estabelecer	a	surgição	de	que	fala	Lacan	no	Seminário	II.	Nesse	sentido,	é	possível	fazer	uma
analogia	 do	 discurso	 ideológico	 com	 o	 discurso	 do	 mito.	 A	 ideologia	 –	 vista/entendida
segundo	os	parâmetros	aqui	estabelecidos	–	permite	que	se	diga	que	o	mito	só	é	mito	para
quem	não	sabe	que	é	mito,	ou	seja,	o	mito	só	é	mito	para	quem	nele	acredita.	O	desvelar	do
mito	é	a	 instituição	de	uma	ruptura,	através	de	um	simbólico	não	atravessado/sitiado	pelo
discurso	mitológico.	O	simbólico	dos	registros	do	Real,	Imaginário	e	Simbólico,	não	deve	ser
entendido	(aqui)	como	simbólico	ideológico/ideologizado.
Se	 é	 verdade	 o	 que	 disse	 Lacan131	 que	 “nunca	 se	 sabe	 o	 que	 pode	 acontecer	 com	 uma
realidade	 até	 o	 momento	 em	 que	 se	 a	 reduziu	 definitivamente	 a	 inscrever-se	 numa
linguagem”,	 então	o	espectro	 ideológico	da	 sociedade	 sofre	um	atravessamento,	 isto	 é,	um
atalho	que	impede	que	a	realidade	–	não	ideológica	–	se	inscreva	numa	linguagem,	é	dizer,
que	 possa	 ser	 simbolizada.	 Isso	 porque	 há	 um	 atalho	 na	 simbolização;	 uma	 ce(n)sura
significativa.	Logo,	 onde	há	uma	 interdição,	há	um	“curador”	que	 se	 substitui	 ao	discurso.
Esse	 atravessamento/atalho,	 ou	 seja,	 essa	 interdição	 (de	 sentido)	 institui	 uma	 espécie	 de
narcisismo	 discursivo,	 no	 interior	 do	 qual	 o	 discurso	 ideológico/alienado/alienante	 é
narcísico,	como	por	exemplo	a	frase	“veja	você	(a	realidade!)	com	seus	próprios	olhos”,	como
bem	exemplifica	o	mesmo	Zizek.	O	simbólico	está	colonizado	por	um	discurso	ideológico	que
não	permite	a	possibilidade	de	o	sujeito	dar-se	conta	do	mundo.
No	plano	dessa	justificação	discursiva,	objetivando	a	perenização	desse	corpus	ideologicus,	a
dogmática	 jurídica	 utiliza-se	 de	 um	 artifício	 que	 Ferraz	 Jr.	 denomina	 de	 astúcia	 da	 razão
dogmática,	que	atua	mediante	mecanismos	de	deslocamentos	ideológico-discursivos.	Esta	astúcia
da	 razão	 dogmática	 “põe-se,	 assim,	 a	 serviço	 do	 enfraquecimento	 das	 tensões	 sociais,	 namedida	em	que	neutraliza	a	pressão	exercida	pelos	problemas	de	distribuição	de	poder,	de
recursos	e	de	benefícios	escassos.	E	o	faz,	ao	torná-los,	conflitos	abstratos,	isto	é,	definidos	em
termos	jurídicos	e	em	termos	juridicamente	interpretáveis	e	decidíveis”.132	Ou	seja,	a	partir
desse	 deslocamento,	 não	 se	 discute,	 por	 exemplo,	 o	 problema	 dos	 direitos	 humanos	 e	 da
cidadania,	mas	 sim,	 sobre	 (e	 a	partir)	deles.	Uma	das	operações	 fundamentais	do	processo
ideológico	consiste	na	passagem	do	discurso	de	ao	discurso	sobre	(Claude	Lefort):	“é	assim	que
podemos	 quase	 detectar	 os	 momentos	 nos	 quais	 ocorre	 o	 surgimento	 de	 um	 discurso
ideológico:	por	exemplo,	quando	o	discurso	da	unidade	social	se	tornou	realmente	impossível
em	virtude	da	divisão	social,	surgiu	o	discurso	sobre	a	unidade;	quando	o	discurso	da	loucura
tem	que	ser	silenciado,	em	seu	lugar	surge	um	discurso	sobre	a	loucura;	onde	não	pode	haver
um	 discurso	 da	 revolução,	 surge	 um	 outro,	 sobre	 a	 revolução;	 ali	 onde	 não	 pode	 haver	 o
discurso	da	mulher,	surge	um	discurso	sobre	a	mulher	etc.”.133
Graças	 a	 isso,	 no	 contexto	 da	 dogmática	 jurídica,	 os	 fenômenos	 sociais	 que	 chegam	 ao
Judiciário	passam	a	ser	analisados	como	meras	abstrações	jurídicas,	e	as	pessoas,	protagonistas
do	processo,	são	transformadas	em	autor	e	réu,	reclamante	e	reclamado,	e,	não	raras	vezes,
“suplicante	 e	 suplicado”,	 expressões	 estas	 que,	 convenhamos,	 deveriam	 envergonhar
(sobremodo)	 a	 todos	 nós.	Mutatis	mutandis,	 isto	 significa	 dizer	 que	 os	 conflitos	 sociais	 não
entram	nos	fóruns	e	nos	tribunais	graças	às	barreiras	criadas	pelo	discurso	(censor)	produzido
pela	dogmática	jurídica	dominante.	Nesse	sentido,	pode-se	dizer	que	ocorre	uma	espécie	de
“coisificação”	(objetificação)	das	relações	jurídicas.
Embora	esse	processo	ocorra	cotidiana	e	difusamente	no	interior	do	imaginário	dos	juristas
(senso	 comum	 teórico),	 alguns	 exemplos	 mais	 contundentes	 põem	 à	 prova	 até	 mesmo	 a
relação	“senso	comum	teórico	dos	juristas”	versus	“senso	comum	da	sociedade”.	Assim,	v.g,
graças	 ao	modo	 de	 fazer/interpretar	 o	 Direito	 balizado	 pelo	 senso	 comum	 teórico	 e	 pelo
habitus	 por	 ele	 instituído,	 é	 “permitido”	 que,	 no	 âmbito	 do	 direito	 penal,	 em	 face	 de	 um
conflito	de	dispositivos	 legais	 (Lei	8.069	v.	Lei	8.072),	defenda-se	a	 tese	de	que	quem	estupra
uma	criança	pode	ter	uma	pena	mais	branda	do	que	aquele	que	estupra	uma	mulher	adulta	(existiram
posições	doutrinárias	e	até	mesmo	julgamentos	nesse	sentido,	sim!).	Explicando:	o	art.	263	da
Lei	8.069,	de	13	de	 julho	de	1990,	que	dispôs	sobre	o	Estatuto	da	Criança	e	do	Adolescente,
acrescentou	 um	 parágrafo	 único	 aos	 arts.	 213	 (estupro)	 e	 214	 do	 Código	 Penal	 (atentado
violento	 ao	 pudor),	 agravando	 a	 pena	 quando	 cometido	 o	 crime	 contra	 pessoa	menor	 de
catorze	anos	(a	pena	estabelecida	foi	de	4	a	10	anos).	Entretanto,	a	Lei	8.072,	do	mesmo	ano,
que	classificou	os	crimes	hediondos,	além	de	agravar	a	pena	de	estupro,	criou	uma	causa	de
aumento	de	pena,	aumentando-a	da	metade	quando	praticado	o	crime	contra	pessoa	menor
de	catorze	anos.
No	caso	em	tela,	criou-se,	destarte,	o	seguinte	impasse:	na	ocasião,	o	art.	213,	v.g,	passou	a
estabelecer	que	quem	praticasse	estupro	contra	pessoa	maior	(caput	do	artigo),	receberia	uma
pena	de	6	a	10	anos;	já	no	parágrafo	único	tinha-se	que	quem	praticasse	o	crime	contra	pessoa
menor	de	14	anos,	a	pena	seria	menor,	ou	seja,	de	4	a	10	anos.	Duas	correntes	doutrinárias	e
jurisprudenciais	se	formaram:	uma	defendendo	a	validade	do	parágrafo	único,	é	dizer,	admitiam	que
quem	praticasse	estupro	contra	criança	poderia	receber	pena	menor	que	quem	estuprasse	uma	pessoa
adulta,	 e	 a	 outra	defendendo	 a	 tese	 de	 que	 o	 citado	parágrafo	único	 era	 inadmissível.	Na	 verdade,
nesse	caso,	em	vez	de	discutirem	a	lei,	os	 juristas	discutiram	sobre	a	e	a	partir	da	 lei,	como	se
esta	 (a	 lei)	 fosse	 fruto	 de	 um	 legislador	 racional.	 Esse	 deslocamento	 discursivo,	 de	 cunho
ideológico,	 é	 próprio	 do	 senso	 comum	 teórico	 dos	 juristas,	 que	 produz	 os	 standards	 a	 serem
utilizados	 pela	 comunidade	 jurídica.	 Resulta	 disso	 uma	 interpretação	 totalmente
alienada/afastada	das	 relações	 sociais.	Ou	 seja,	 pouco	 importa	 ao	 jurista,	 inserido	no	 senso
comum	 teórico,	 o	 conteúdo	 das	 relações	 sociais.	 Pouco	 importa	 a	 teratologia	 resultante	 do
paradoxo	 que	 é	 a	 imposição	 de	 uma	 pena	 mais	 branda	 a	 quem	 estupra	 uma	 criança	 em
comparação	com	aquele	que	estupra	uma	mulher	adulta...	O	que	importa	é	fazer	uma	“boa
hermenêutica”;	 o	 importante	 é	 “resolver,	 com	 competência	 dogmática,	 ‘neutralmente’,	 as
antinomias”	 do	 sistema...134	 Enfim,	 tamanha	 é	 a	 dimensão	 da	 crise,	 que	 o	 establishment
jurídico-dogmático	não	conseguiu	“resolver	o	problema”	no	plano	da	hermenêutica.	Ou	seja,
tão	 forte	 é	o	 corpus	 introduzido	pelo	 senso	 comum	 teórico,	 que,	 na	 impossibilidade	de	ver
resolvido	o	“problema	hermenêutico”,	o	“sistema”	teve	que	recorrer	ao	“legislador	racional”	que,
mediante	 a	 edição	 da	 lei	 federal	 n.	 9.291,	 de	 4	 de	 junho	 de	 1996,	 revogou	 os	 parágrafos	 únicos	 em
questão.	Registre-se	que,	com	a	minirreforma	de	2009,	o	art.	214	foi	revogado.
Também	não	se	discutem	no	âmbito	da	dogmática,	 ficando,	por	conseguinte,	escondidas
nas	brumas	do	senso	comum	teórico,	as	condições	de	possibilidade	que	tem	o	juiz	para	avaliar	a
personalidade	do	réu	por	ocasião	da	aplicação	da	pena,	em	conformidade	dos	ditames	do	art.
59	do	Código	Penal.	Diz	 esse	dispositivo	 que	 o	 juiz,	 ao	 aplicar	 a	 pena,	 entre	 outras	 coisas,
deve	atentar	para	a	personalidade	do	réu...	Diante	da	–	evidente	–	dificuldade	da	aferição	do
que	 seja	 “personalidade	do	delinquente”,	 é	possível	 colher	 subsídios	na	dogmática	 jurídica
tradicional,	do	tipo	“personalidade	é	todo	complexo,	porção	herdada	e	porção	adquirida,	com	o	jogo
de	 todas	 as	 forças	 que	 determinam	 ou	 influenciam	 o	 comportamento	 humano”.135	 Ou	 seja,	 os
problemas	 do	 universo	 fenomênico	 dão	 lugar	 e	 passagem	 para	 a	 abstração	 jurídico-
conceitual-objetificante	que	utiliza	jargões,	como	“personalidade	voltada	para	o	crime”.
Outro	 exemplo	 que	 ilustra	 bem	 a	 problemática	 aqui	 examinada	 decorre	 do	 episódio
envolvendo	o	advento	da	Lei	9.639/98.	Com	efeito,	o	Poder	Executivo	enviou	projeto	de	 lei	ao
Congresso	 Nacional	 concedendo	 anistia	 aos	 agentes	 políticos	 que	 tenham	 sido
responsabilizados	pela	prática	dos	crimes	previstos	na	alínea	d	do	art.	95	da	Lei	8.212/91	e	no
art.	 86	 da	 Lei	 3.807/60	 (retenção	 de	 contribuições	 previdenciárias	 dos	 segurados	 da
previdência	social,	sem	que	fosse	atribuição	legal	sua).	Tal	matéria	constou	do	art.	11	da	Lei
que	levou	o	nº	9.639/98.	O	projeto	foi	votado,	aprovado	e	enviado	para	sanção	do	Presidente
da	República.	Ocorre	que,	de	 forma	“fantasmagórica”,	 foi	 introduzido	um	parágrafo	único
“pirata”	ao	citado	art.	11,	estendendo	a	anistia	aos	demais	responsabilizados	pela	prática	dos
crimes	previstos	na	alínea	d	do	art.	95	da	Lei	8.212/91	e	no	art.	86	da	Lei	3.807/60,	 isto	é,	o
dispositivo	“acrescentado”	estendia	de	forma	irrestrita	a	citada	anistia.	Surpreendentemente,
a	Lei	foi	sancionada	com	a	inclusão	do	parágrafo	único	“pirata”.	Ora,	parece	desnecessário	dizer
que	 um	 dispositivo	 não	 votado	 e	 não	 aprovado	 pelo	 parlamento	 jamais	 existiu	 no	mundo	 jurídico.
Constatado	 o	 manifesto	 equívoco,	 de	 imediato	 foi	 enviada	 mensagem	 ao	 Presidente	 da
República	comunicando	o	fato,	o	que	ensejou	a	republicação	da	lei,	o	que	veio	a	ocorrer	no
dia	 seguinte	 ao	 da	 publicação	 original.	 Pois	 bem:	 com	 base	 na	 “vigência”	 do	 aludido
parágrafo	único	do	art.	11,	começaram	a	ser	concedidas	anistias	a	todas	as	pessoas	envolvidas	nos
crimes	 de	 retenção	 de	 contribuições	 sociais,	 sob	 os	 mais	 variadosargumentos,	 tais	 como	 “em
nome	 da	 segurança	 jurídica,	 o	 texto	 publicado,	 apesar	 de	 erro,	 existe	 e	 entra	 em	 vigor,
devendo	 ser	 protegidos	 os	 direitos	 decorrentes	 dessa	 vigência...”	 etc.,	 aduzindo-se,	 ainda,
citações	doutrinárias	acerca	da	interpretação	do	art.	1º,	§	4º,	da	Lei	de	Introdução	do	Código
Civil...
Em	 face	disso,	o	Ministério	Público	Federal	passou	a	 recorrer	das	 (centenas	de)	decisões
judiciais	 concessivas	 das	 anistias	 irrestritas	 baseadas	 no	 inexistente	 parágrafo	 único,	 tendo
que	 a	 matéria	 ser,	 finalmente,	 decidida	 pelo	 Supremo	 Tribunal	 Federal,	 que,	 em	 decisão
plenária	de	4.11.98	(HC	n.	77724-3,	rel.	Min.	Marco	Aurélio),	julgou	inconstitucional	o	citado
parágrafo	 único	 do	 art.	 11	 da	 Lei	 9.639,	 em	 sua	 publicação	 no	Diário	Oficial	 da	União	 de
26.5.98,	 explicitando	o	 STF	que	 a	decisão	 tinha	 caráter	 ex	 tunc,	 atingindo	 todas	 as	 decisões
concessivas	 anteriores.	A	 argumentação	do	Supremo	Tribunal	 Federal	 foi	 singela	 –	porque
singela	era	a	questão,	sem	dúvida	–,	baseando	o	acórdão	no	fato	de	que	o	parágrafo	único	em
tela	 não	 cumpriu,	 no	Congresso	Nacional,	 o	 rito	 de	 discussão	 e	 votação	 de	 projeto	 de	 lei,
previsto	no	art.	65	da	CF.	Ou	seja,	a	publicação	por	engano	do	parágrafo	único	não	poderia
gerar	efeitos	no	mundo	jurídico.
O	 episódio	 sob	 comento	 demonstra	 bem	 a	 dimensão	 da	 crise	 existente	 no	 plano	 da
hermenêutica	brasileira,	 comprovando	aquilo	que	Ferraz	 Jr.	 tão	bem	chamou	de	astúcia	da
razão	dogmática,	mediante	 o	 deslocamento	discursivo	do	plano	do	mundo	da	 vida	para	 o
plano	das	abstrações	jurídicas.	As	decisões	concessivas	da	anistia	irrestrita	não	levaram	em	conta	a
gravidade	do	crime	de	retenção	de	tributos	no	Estado	Democrático	de	Direito.	Poder-se-ia,	inclusive,
discutir,	desde	logo,	a	própria	constitucionalidade	do	caput	do	art.	11,	porque	o	“legislador”	não
é	 livre	 para	 conceder	 anistias,	 devendo	 seguir	 os	 ditames	 da	 principiologia	 do	 Estado
Democrático	de	Direito.	Não	se	olvide	que	os	delitos	de	retenção	tributária	põem	em	xeque	o
Estado	 fiscal,	 ínsito	 ao	 Estado	 social-intervencionista-promovedor.	 Daí	 que,	 em	 face	 do
princípio	da	 isonomia,	poder-se-ia	perguntar,	 por	 exemplo,	 do	porquê	 em	não	 anistiar	 também	os
autores	de	pequenos	delitos	contra	o	patrimônio,	os	quais,	sem	dúvida,	não	colocam	em	risco	o	Estado
fiscal...	 Por	 outro	 lado,	 não	 fosse	 o	parágrafo	único	do	 art.	 11	 inconstitucional	por	vício	de
forma,	também	o	seria	pela	matéria,	na	medida	em	que	não	tinha	qualquer	relação	com	o	caput.
Ou	 seja,	 se	 o	 caput	 do	 art.	 11	 concedia	 anistia	 aos	 agentes	 políticos	 que	 foram
responsabilizados	 sem	 que	 fosse	 atribuição	 legal	 sua,	 é	 porque	 não	 tinham	 agido	 com	 dolo	 e
tampouco	se	poderia	 falar	do	necessário	nexo	de	causalidade	entre	a	conduta	e	o	 fato.	 Já	o
parágrafo	único,	ao	estender	a	anistia	às	demais	pessoas	que	cometeram	os	crimes	previstos
na	alínea	d	do	art.	95	da	Lei	8.212/91	e	no	art.	86	da	Lei	3.807/60,	por	si	só	padecia	do	vício	da
inconstitucionalidade	material.	 Isto	 porque	 “os	 demais	 responsabilizados”	 de	 que	 falava	 o
parágrafo	único	são	os	agentes	privados	(responsáveis	por	empresas)	que	fazem	retenção	de
contribuições	 da	 previdência	 social,	 onde,	 à	 evidência,	 não	 se	 colocou,	 jamais,	 a	 questão
acerca	 de	 quem	 é	 a	 atribuição	 legal	 de	 repassar	 as	 contribuições	 ao	 Estado!	 Enfim,	 vários
argumentos	existiam	para	afastar	a	incidência	do	texto	normativo	“fantasma”.	Entretanto,	no
interior	do	senso	comum	teórico,	o	problema	não	se	colocou...,	até	porque	um	problema	só	é
(ou	se	torna)	um	problema,	quando	se	tem	possibilidade	de	apreendê-lo	(nomeá-lo,	dizê-lo,
simbolizá-lo)	como	problema	(etwas	als	etwas	–	algo	como	algo	–,	como	veremos	adiante,	por
ocasião	da	abordagem	da	hermenêutica	filosófica).	Frise-se,	ademais,	que,	no	caso	sob	análise,
mergulhados	no	 senso	 comum	 teórico,	os	operadores	do	direito	 sequer	 fizeram	a	distinção
entre	vigência	e	validade	da	lei...
	
Notas
110	Embora	essa	discussão	apareça	na	sequência	da	presente	obra	a	todo	momento,	 já	de	pronto	é	importante	referir	que	a
reviravolta	linguística	vai	se	concretizar	como	uma	nova	concepção	da	constituição	do	sentido.	Esse	sentido	não	pode	mais	ser
pensado	como	algo	que	uma	consciência	produz	para	si	independentemente	de	um	processo	de	comunicação,	mas	deve	ser	compreendido
como	 algo	 que	 nós,	 enquanto	 participantes	 de	 uma	 práxis	 real	 e	 de	 comunidades	 linguísticas,	 sempre	 comunicamos	 reciprocamente,
assinala	 D.	 Böhler,	 citado	 por	 Manfredo	 Araujo	 de	 Oliveira,	 que	 acrescenta	 que	 essa	 virada	 rumo	 à	 explicitação	 de	 um
caráter	 prático,	 intersubjetivo	 e	 histórico	 da	 linguagem	 humana	 tem	 forte	 sustentação	 em	 Wittgenstein,	 cuja	 posição	 é
próxima	da	nova	hermenêutica	de	matriz	heideggeriana.	Tanto	 em	Wittgenstein	 como	 em	Heidegger,	 a	 linguagem	 passa	 a	 ser
entendida,	 em	 primeiro	 lugar,	 como	 ação	 humana,	 ou	 seja,	 a	 linguagem	 é	 o	 dado	 último	 enquanto	 é	 uma	 ação	 fática,	 prática.
Precisamente	enquanto	práxis	interativa,	ela	não	pode	ser	explicada	como	produto	de	um	sujeito	solitário,	como	ação	social,
mediação	 necessária	 no	 processo	 intersubjetivo	 de	 compreensão.	 É	 justamente	 aí,	 diz	 Araújo,	 que	 ocorre	 a	 mudança	 de
paradigma:	“o	horizonte	a	partir	de	onde	se	pode	e	deve	pensar	a	 linguagem	não	 é	 o	do	 sujeito	 isolado,	 ou	da	 consciência	do
indivíduo,	que	é	o	ponto	de	referência	de	toda	a	filosofia	moderna	da	subjetividade,	mas	a	comunidade	de	sujeitos	em	interação.
A	linguagem,	enquanto	práxis,	é	sempre	uma	práxis	comum	realizada	de	acordo	com	regras	determinadas.	Estas	regras	não
são,	 contudo,	 convenções	arbitrárias,	mas	 são	originadas	historicamente	a	partir	do	uso	das	comunidades	 linguísticas;	 são,
portanto,	 costumes	 que	 chegam	 a	 tornar-se	 fatos	 sociais	 reguladores,	 ou	 seja,	 instituições.	 Tantas	 são	 as	 formas	 de	 vida
existentes,	tantos	são	os	contextos	praxeológicos,	tantos	são,	por	consequência,	os	modos	de	uso	de	linguagem,	numa	palavra,
os	jogos	de	linguagem.	As	palavras	estão,	pois,	sempre	inseridas	numa	situação	global,	que	norma	seu	uso	e	é	precisamente
por	esta	razão	que	o	problema	semântico,	o	problema	da	significação	das	palavras,	não	se	resolve	sem	a	pragmática,	ou	seja,
sem	a	consideração	dos	diversos	contextos	de	uso.	Poder	falar	significa	ser	capaz	de	inserir-se	um	processo	de	interação	social
simbólica	 de	 acordo	 com	 os	 diferentes	modos	 de	 sua	 realização”.	 Cf.	 Oliveira,	 Sobre	 fundamentação,	 op.	 cit.,	 p.	 53	 e	 54.
(grifei)
111	Não	se	pode	deixar	de	notar/registrar	os	avanços	ocorridos	no	campo	“não	jurídico”,	como	na	AD	–	análise	de	discurso
–,	baseada	no	trabalho	de	Michel	Pêcheux	–,	assumindo	destaque	a	obra	de	Eni	Puccineli	Orlandi,	à	qual	pode	ser	atribuído
um	caráter	de	universalidade,	na	medida	em	que	seu	instrumental	pode	ser	aplicado	a	outras	áreas	do	conhecimento.	Refiro-
me	 especialmente	 ao	 livro	 Interpretação	 –	 autoria,	 leitura	 e	 efeitos	 do	 trabalho	 simbólico	 (op.	 cit.),	 no	 qual	 a	 autora	 diz	 que	 a
interpretação	é	uma	injunção;	face	a	qualquer	objeto	simbólico,	o	sujeito	se	encontra	na	necessidade	de	“dar”	sentido;	dar	sentido,	para	o
sujeito	que	fala,	é	construir	sítios	de	significância	(delimitar	domínios),	é	tornar	possíveis	gestos	de	interpretação.	Para	ela,	o	homem
está	 condenado	 a	 significar.	Daí,	 acrescenta,	 “é	 necessário	 repor	 como	 trabalho	 a	 própria	 interpretação,	 o	 que	 resulta	 em
compreender	de	outra	maneira	também	a	história:	não	como	sucessão	de	fatos	com	sentidos	já	dados,	dispostos	em	sequência
cronológica,	 mas	 como	 fatos	 que	 reclamam	 sentidos,	 cuja	 materialidade	 não	 é	 possível	 de	 ser	 apreendida	 em	 si,	 mas	 no
discurso”.	 A	 AD	 caminha	 no	 entremeio	 das	 ciências	 humanas	 e	 sociais,	 diz	 Bethania,em	 obra	 que	 utiliza	 a	 AD	 como
pressuposto	teórico.	Explica,	ali,	que	a	tese	central	da	AD	encontra-se	nas	definições	de	discurso	–	“efeito	de	sentidos	(e	não
transmissão	 de	 informação)	 entre	 interlocutores”	 –	 e	 de	 discursivo	 –	 processo	 social	 cuja	 especificidade	 reside	 no	 tipo	 de
materialidade	de	sua	base,	a	saber,	a	materialidade	 linguística	 (Pêcheux,	1990	e	Pêcheux	&	Fuchs,	1990,	respectivamente)”
(Mariani,	 Bethania.	 O	 PCB	 e	 a	 imprensa.	 Rio	 de	 Janeiro:	 Renovar:	 Revan;	 Campinas,	 UNICAMP,	 1998,	 p.	 24).	 Sua
importância	 para	 o	 campo	 do	 Direito	 reside	 também	 pela	 ênfase	 que	 dá	 a	 historicidade,	 isto	 é,	 “na	 produção	 simbólica
ininterrupta	que	na	linguagem	organiza	sentidos	para	as	relações	de	poder	presentes	em	uma	formação	social,	produção	esta
sempre	 afetada	 pela	 memória	 do	 dizer	 e	 sempre	 sujeita	 à	 possibilidade	 de	 rupturas	 no	 dizer	 –	 como	 um	 dos	 elementos
constitutivos	 dos	 processos	 sociais	 e,	 por	 conseguinte,	 constitutivo	 da	 materialidade	 linguística”	 (ibidem).	 Como	 se	 pode
perceber,	a	AD	pode-se	tornar	um	importante	contributo	para	a	reflexão	em	torno	da	interpretação	dos	textos	legais.
112	Cf.	Castanheira	Neves,	op.	cit.,	p.	90.
113	Para	tanto,	consultar	Seixas	Meireles,	Henrique	da	Silva.	Marx	e	o	direito	civil.	Coimbra,	1990,	p.	441	e	442.
114	Consultar	Kosik,	Karel.	Dialética	do	Concreto.	Rio	de	Janeiro:	Paz	e	Terra.
115	 Esse	 problema	 estrutural	 decorre	 de	 outro	 problema	 paradigmático:	 o	 atrelamento	 da	 concepção	 de	 direito	 (ainda
dominante)	aos	paradigmas	aristotélico-tomista	e	da	filosofia	da	consciência.	Assim,	se,	de	um	lado,	os	juízes	ainda	acreditam
na	possibilidade	da	busca	da	verdade	real	(sic)	–	como	se	existissem	essências	(sim,	existe	ainda	parcela	considerável	de	juízes
–	doutrinadores,	é	claro	–	que	acredita	nisso!);	ao	mesmo	tempo,	tomam	para	si	a	condução	da	prova	no	processo,	como	se	a
produção	da	prova	pudesse	ser	gerida	a	partir	de	sua	consciência	(atenção:	consciência	entendida	no	sentido	do	paradigma
da	filosofia	da	consciência).	Ora,	por	detrás	desse	“vício	de	origem”,	está	a	velha	discricionariedade,	que,	não	por	acaso,	é	o
que	sustenta	outro	inimigo	do	direito	democrático:	o	positivismo	jurídico.
116	Em	janeiro	de	2003	entrou	em	vigor	o	“novo”	Código	Civil.	Mas	a	crítica	permanece.
117	Isso	foi	melhor	abordado	no	meu	artigo,	“Crime	e	sociedade	estamental	no	Brasil	–	De	como	la	ley	es	como	la	serpiente,
solo	pica	a	los	descalzos”.	Cadernos	IHU	Idéias	(UNISINOS),	v.	178,	p.	3-35,	2012.
118	Desenvolvi	mais	essa	questão	no	livro	que	escrevi	em	conjunto	com	Rafael	Tomaz	de	Oliveira,	O	que	é	isto	–	as	garantias
processuais	penais?	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2012.
119	Ver	Streck,	Crime	e	sociedade	estamental	no	Brasil	–	De	como	la	ley	es	como	la	serpiente,	solo	pica	a	los	descalzos,	op.	cit.
120	Para	tanto,	ver	Streck,	Verdade	e	Consenso,	4.	ed.,	op.	cit.,	p.	47-56.
121	Essa	 crítica	 foi	 feita,	 v.g.,	 por	 José	Eduardo	Faria	 (O	Poder	 Judiciário	 no	 Brasil:	 paradoxos,	 desafios,	 alternativas.	 Brasília,
Conselho	de	Justiça	Federal,	1995,	p.	29	e	30).
122	Cf.	Warat,	Luis	Alberto.	Introdução	geral	ao	direito	I.	Porto	Alegre:	Fabris,	1994,	p.	57.
123	Cf.	Rocha,	Leonel	Severo.	Sens	commun	théorique	des	juristes.	In:	Dictionnaire	encyclopédique	de	théorie	et	de	sociologie	du
droit.	André-Jean	Arnaud	(org.).	Paris:	LGDJ-UNB,	1990,	p.	372	e	segs.
124	Cf.	Bourdieu,	Pierre.	O	poder	simbólico.	10.	ed.	Rio	de	Janeiro:	Bertrand	Brasil,	2007.	Também,	Faria,	José	Eduardo.	Justiça
e	conflito.	São	Paulo:	RT,	1991,	p.	91.
125	Cf.	Warat,	Introdução	geral	ao	direito	II,	op.	cit.,	p.	82.
126	Ver	Moreira	Neto,	Diogo	de	Figueiredo.	Uma	política	alternativa	para	o	sistema	judiciário	brasileiro.	Rio	de	Janeiro,	mimeo.
Observe-se	que	este	é	um	dos	modos	de	detectar	a	crise	que	atravessa	o	Direito.	Evidentemente	que,	à	luz	de	outras	matrizes
teóricas,	outros	modos	de	desocultação	da	crise	exsurgirão.
127	A	crítica	de	Kant	de	Lima,	 feita	em	1996,	 continua	atual.	Com	efeito,	para	ele,	os	 juizados	especiais	 se	constituem	em
uma	espécie	de	lenitivo	produzido	pelo	establishment	para	não	precisar	“abrir	mão	de	seus	princípios,	criando	agências	e/ou
instâncias,	onde	se	possa	fazer	justiça	mais	rápida	e	menos	elaborada,	para	certos	tipos	de	pessoas	e	certos	tipos	de	causas.	A	criação
dos	 juizados	 especiais	 e	 de	 pequenas	 causas,	 por	 exemplo,	 nada	mais	 é	 do	 que	 o	 estabelecimento	 de	mais	 uma	 instância
preliminar,	 que	 parece	 pretender	 oferecer	 alternativas	 rápidas,	 mas	 por	 isso	 mesmo	 imperfeitas	 do	 ponto	 de	 vista	 do
Judiciário,	à	justiça	das	organizações	comunitárias,	dos	traficantes	e,	até,	da	polícia.	Esta	última,	mais	propriamente	atingida
em	suas	funções	judiciárias	tradicionais,	mas	não	oficiais,	devido	ao	crescente	descrédito	da	instituição	policial.	Dificilmente,
porém,	as	outras	camadas	do	Judiciário	se	modificarão”.	Cf.	Kant	de	Lima,	Roberto.	A	administração	dos	conflitos	no	Brasil:
a	lógica	da	punição.	In:	Cidadania	e	violência.	Gilberto	e	Marcos	Alvito	(org.).	Rio	de	Janeiro:	Editora	UFRJ/Editora	FGV,	1996,
p.	176.
128	As	 súmulas,	 sejam	“comuns”	ou	vinculantes,	não	podem	ser	 consideradas	precedentes	 stricto	sensu,	 por	 várias	 razões.
Talvez	a	principal	delas	é	porque	o	texto	é	diferente	da	norma.	Não	deveria	haver	uma	confusão	entre	as	funções	de	criar	um
texto	e	de	concretizar	uma	norma.	Talvez	por	isso	as	súmulas	vinculantes	(SV)	representem	uma	contradição	do	sistema:	o
STF	 é,	 ao	mesmo	 tempo,	 o	 criador	 do	 texto	 e	 seu	 aplicador	 no	momento	 em	que	 julga	 as	 reclamações	 em	virtude	da	 não
aplicação	 das	 SV.	 São,	 pois,	 “quase	 ordenanças”	 com	 valor	 de	 lei.	 Agregue-se	 que	 há	 uma	 diferença	 entre	 caso	 julgado,
precedente	e	súmulas	(ou	enunciados	jurisprudenciais,	que	é	o	que	são,	em	síntese,	as	súmulas).	Também	não	devemos	fazer
confusões	com	o	common	law.	a	regra	do	precedente	(ou	stare	decisis)	se	explica	pelo	adágio	stare	decisis	et	non	quieta	movere,
que	quer	dizer	continuar	com	as	coisas	decididas	e	não	mover	as	“coisas	quietas”.	O	precedente	possui	uma	holding,	que	irradia	o
efeito	 vinculante	 para	 todo	 o	 sistema.	 Isso	 não	 está	 na	Constituição,	 nem	na	 lei,	 e,	 sim,	 na	 tradição.	 Para	 a	 vinculação,	 a
matéria	 (o	 caso)	 deve	 ser	 similar.	 A	 aplicação	 não	 se	 dá	 automaticamente.	 Nesse	 sistema,	 sempre	 se	 deve	 examinar	 se	 o
princípio	 que	 se	 pode	 extrair	 do	 precedente	 constitui	 a	 fundamentação	 da	 decisão	 ou	 tão	 somente	 um	 dictum.	 Portanto,
também	nos	EUA	–	e	não	poderia	ser	diferente	–	texto	e	norma	não	são	a	mesma	coisa.	De	todo	modo,	vai	uma	advertência:
como	venho	sustentando,	as	súmulas	não	são	um	problema	ou	um	“mal	em	si”.	Podem	ser	importantes	para	colocar	o	“selo
jurídico”	em	conquistas	hermenêuticas.	Também	podem	contribuir	para	a	 formação	de	uma	cultura	 jurídica	que	respeite	a
integridade	do	direito.	Na	verdade,	quem	transforma	a	SV	em	um	“mal	 em	si”	 são	as	 suas	 equivocadas	compreensão	 e	aplicação.
Explico:	pensa-se,	cada	vez	mais,	que,	com	a	edição	de	uma	súmula,	o	enunciado	se	autonomiza	da	faticidade	que	lhe	deu
origem.	É	como	se,	na	própria	common	law,	a	ratio	decidendi	pudesse	ser	exclusivamente	uma	proposição	de	direito,	abstraída
da	“questão	de	fato”	(v.g.,	por	todos,	Neil	McCormick).	Se	isso	é	crível,	então	realmente	a	súmula	e	qualquer	enunciado	ou
verbete	(e	como	gostamos	de	verbetes,	não?)	será	um	problema.	E	dos	grandes.	E	como	respondo	a	isso?	Com	uma	“exigência
hermenêutica”	que	se	traduz	na	frase	de	Gadamer:	só	podemos	“compreender	o	que	diz	o	texto	a	partir	da	situação	concreta
na	qual	foi	produzido”.	Desenvolvi	mais	sobre	o	tema	das	súmulas	no	Direito	brasileiro	no	livro	em	coautoria	com	Georges
Abboud,	O	que	é	isto	–	o	precedente	judicial	e	as	súmulas	vinculantes?	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2013.
129	Mais	algumas	distorções:	adulterar	númerode	chassi	é	crime	punido	com	3	a	6	anos	de	reclusão	e	multa,	pena	mínima
maior	 que	 a	 de,	 por	 exemplo:	 a)	 lesão	 corporal	 grave	 em	 que	 a	 vítima	 perde,	 por	 exemplo,	 um	 dos	 olhos.	 Nesse	 caso,	 a
punição	é	de	1	a	5	anos	de	reclusão;	b)	instigação	ao	suicídio,	se	vier	a	ocorrer	a	morte.	Neste	caso,	a	pena	é	de	2	a	6	anos	de
reclusão;	c)	infanticídio	é	castigado	com	2	a	6	anos	de	detenção.	Mais:	homicídio	doloso	simples	é	punido	de	6	a	20	anos	de
reclusão,	pena	mínima	inferior	à	de,	por	exemplo:	a)	roubo	com	lesão	corporal	grave	culposa,	em	que	a	pena	é	de	7	a	15	anos
de	reclusão;	b)	extorsão	mediante	sequestro	simples,	em	que	a	pena	é	a	de	8	a	15	anos	de	reclusão.	Se	este	crime	durar	mais
de	24	horas,	a	pena	subirá	para	12	a	20	anos	de	reclusão,	igual	à	do	homicídio	qualificado	(considerado	hediondo).	Ainda:
homicídio	simples	contra	criança	tem	pena	mínima	de	8	anos	e	máxima	de	26	anos	e	6	meses	de	prisão.	Essa	pena	mínima	é
inferior	à	do	atentado	violento	ao	pudor	contra	criança,	que	é	de	9	anos	de	reclusão.	Aqui,	a	pena	máxima	é	de	15	anos.	Cf.
Nunes,	Eunice.	“Reforma	pontual	torna	código	colcha	de	retalhos”.	In:	Folha	de	São	Paulo,	26.07.97,	3-2.
130	Cf.	Zizek,	Slavoj.	Eles	não	sabem	o	que	fazem.	O	sublime	objeto	da	ideologia.	Rio	de	Janeiro:	Zahar,	1992,	p.	122.
131	Cf.	Lacan,	Jacques.	O	Seminário.	Livro	2.	Rio	de	Janeiro:	Zahar,	1995,	p.	118.
132	Consultar	Ferraz	Jr,	Tércio	Sampaio.	Introdução	ao	estudo	do	direito.	São	Paulo:	Atlas,	1987,	p.	280.
133	Ver,	para	tanto,	Chauí,	Marilena	de	Souza.	Ideologia	e	educação.	In:	Educação	&	sociedade	n.5.	São	Paulo:	CEDES,	Cortez
Editores	e	Autores	Associados,	1980,	p.	26.	Ver	também	o	conceito	de	ideologia	 trabalhado	por	Mariani,	a	partir	de	Pêcheux:
“um	mecanismo	imaginário	através	do	qual	coloca-se	para	o	sujeito,	conforme	as	posições	sociais	que	ocupa,	um	dizer	já	dado,
um	sentido	que	lhe	aparece	como	evidente,	isto	é,	natural	para	ele	enunciar	daquele	lugar.	O	sujeito	se	imagina	uno,	fonte	do	dizer	e
senhor	 de	 sua	 língua;	 do	 mesmo	modo,	 parece-lhe	 normal	 ocupar	 a	 posição	 social	 em	 que	 se	 encontra.	O	 funcionamento
ideológico	provoca	as	ilusões	descritas:	apaga-se	para	o	sujeito	o	fato	de	ele	entrar	nessas	práticas	histórico-discursivas	já	existentes.”
Cf.	Mariani,	op.	cit.,	p.	24	(grifei).
134	Vale	lembrar,	nesse	contexto,	o	dizer	de	Russo:	qualquer	estudante	sabe	que	a	verdade,	em	lógica	formal,	se	adquire	ao
preço	de	renunciar	ao	conhecimento	do	mundo.	Cf.	Russo,	Eduardo	Angel.	Sobre	ciertos	abusos	de	la	analiticidad.	In:	Warat,
Luis	Alberto	e	Russo,	Eduardo	A.	Interpretación	de	la	ley.	Buenos	Aires:	Abeledo-Perrot,	1987.	p.	14.
135	Cf.	Código	Penal	e	sua	Interpretação	Jurisprudencial.	Alberto	Franco	et	alli,	p.	276,	citando	Aníbal	Bruno.
4.	Dogmática	e	ensino	jurídico:	o	dito	e	o	não	dito	do	senso
comum	teórico	–	o	universo	do	silêncio	(eloquente)	do
imaginário	dos	juristas
	
O	senso	comum	que	domina	o	imaginário	jurídico	–	tão	bem	denunciado	por	Luis	Alberto
Warat	–	também	pode	ser	visto	sob	outro	olhar.	Assim,	o	senso	comum	teórico	–	e	busco	aqui
socorro	no	texto	O	Neutro,	de	Roland	Barthes	–	é	construído	a	partir	de	um	discurso	que	é
vivido	 pelos	 usuários	 como	 um	 discurso	 universal,	 natural,	 óbvio,	 cuja	 tipicidade	 não	 é
percebida	e	com	relação	ao	qual	todo	“exterior”	é	relegado	à	categoria	de	margem	ou	desvio:
discurso-lei	 que	 não	 é	 percebido	 como	 lei.	Com	Barthes,	 pode-se	 chamá-lo	 de	 “ideosfera”:
círculo,	sistema	de	ideias-frases,	de	ideias	fraseadas,	de	argumentos-fórmulas,	portanto	objeto
linguageiro	essencialmente	copiável	e/ou	repetível,	portanto	fenômenos	muito	importantes
de	 mimetismo.	 Pode	 haver	 um	 mimetismo	 (de	 uma	 determinada	 ideosfera)	 consciente,
deliberado,	quer	por	maquiavelismo,	no	nível	dos	Estados,	quer	por	conformismo	prudente,
no	nível	dos	indivíduos,	cada	vez	que	a	ideosfera	está	ligada	a	um	poder.	Mas	há	também	um
mimetismo	 não	 consciente:	 a	 ideosfera	 é	 inextricavelmente	 ligada	 a	 uma	 fé.	 Enfim,	 diz	 o
mestre	francês,	 ideosfera	é	palavra	criada	a	partir	de	ideologia:	sistema	linguageiro	de	uma
ideologia,	 precisando	 imediatamente,	 o	 que	 já	 torna	 inexata	 a	 definição:	 toda	 ideologia	 é
linguagem;	é	um	discurso,	um	tipo	de	discurso.
Em	face	do	que	foi	analisado	anteriormente,	uma	pergunta	se	torna	inevitável:	que	tipo	de
visão	têm	os	operadores	jurídicos	–	mergulhados	no	senso	comum	teórico	–	sobre	a	aplicação
e	a	eficácia	das	leis	existentes	no	Brasil?	Por	exemplo,	um	funcionário	público	de	alto	escalão
engaveta	um	processo	(administrativo	ou	judicial)	durante	3	ou	4	anos.	Dentro	dos	cânones
estabelecidos	pela	dogmática	 jurídica,	para	processá-lo	pelo	 crime	de	prevaricação	é	muito
difícil,	 em	 face	da	exigência	do	dolo,	uma	vez	que	o	“legislador”	não	previu	a	hipótese	de
prevaricação	culposa.	Desse	modo,	se	o	acusado	alegar,	em	sua	defesa,	que	“o	processo	 ficou
parado	 tanto	 tempo”	 porque	 foi	 preguiçoso,	 desleixado	 ou	 até	 mesmo	 negligente,	 fatalmente	 será
absolvido	(isso	no	caso	de	chegar	a	ser	denunciado,	e	a	denúncia	ser	recebida).	Tudo	porque	a
preguiça,	a	negligência	ou	o	desleixo	são	consideradas	circunstâncias	(sic)	que	excluem	o	dolo
(aliás,	como	se	diria	na	dogmática	tradicional,	“nesse	sentido	a	jurisprudência	é	mansa	e	pacífica”:
RT	451/414;	486/356;	565/344;	543/342...).	Como	contraponto,	veja-se	o	caso	de	um	indivíduo
que	furta	uma	galinha	e	a	leva	para	sua	casa,	neste	caso,	esteja	caracterizado	o	crime	de	furto
(cuja	pena,	aliás,	é	várias	vezes	maior	do	que	a	da	prevaricação).	 Isso	porque,	“nessa	 linha	existe
copiosa	jurisprudência”,	dando	conta	de	que	“o	furto	atinge	a	consumação	no	momento	em
que	 o	 objeto	 material	 é	 retirado	 da	 esfera	 de	 posse	 e	 disponibilidade	 do	 sujeito	 passivo,
ingressando	 na	 livre	 disponibilidade	 do	 autor,	 ainda	 que	 este	 não	 obtenha	 a	 posse
tranquila”.136
Evidentemente,	esses	exemplos	apontam	apenas	em	direção	à	ponta	do	iceberg.	Paradoxos
como	estes	deveriam	colocar	em	xeque	a	dogmática	jurídica,	chamando	a	atenção	dos	juristas
para	 a	 crise.	 Porém,	 envolvidos	no	 interior	do	 senso	 comum	 teórico,	 não	 se	dão	 conta	dos
paradoxos,	 até	 porque,	 como	 um	mito	 –	 que	 só	 o	 é	 para	 quem	 nele	 acredita	 –	 também	 o
paradoxo	só	é	“paradoxal”	para	quem	tem	consciência	de	sua	existência.
É	 também	evidente	que	 a	 formação	desse	 sentido	 (senso)	 comum	 teórico	 tem	uma	 relação
direta	com	o	processo	de	aprendizagem	nas	escolas	de	Direito.	Com	efeito,	o	ensino	jurídico
continua	preso	às	velhas	práticas.	Por	mais	que	a	pesquisa	jurídica	tenha	evoluído	a	partir	do
crescimento	do	número	de	programas	de	pós-graduação,	estes	influxos	reflexivos	ainda	estão
distantes	das	salas	de	aula	dos	cursos	de	graduação,	não	se	podendo	olvidar,	nesse	contexto,
que	 o	 crescimento	 da	 pós-graduação	 é	 infinitamente	 inferior	 à	 explosão	 do	 número	 de
faculdades	instaladas	nos	últimos	anos.
A	 cultura	 calcada	 em	manuais,	muitos	 de	 duvidosa	 cientificidade,	 ainda	 predomina	 na
maioria	das	faculdades	de	Direito.	Forma-se,	assim,	um	imaginário	que	“simplifica”	o	ensino
jurídico,	a	partir	da	construção	de	standards	e	 lugares	comuns,	repetidos	nas	salas	de	aula	e
posteriormente	nos	cursos	de	preparação	para	concursos,137	bem	como	nos	fóruns	e	tribunais.
Essa	cultura	alicerça-se	em	casuísmos	didáticos.	O	positivismo	(exegético)	ainda	é	a	regra	e
quando	 se	 quer	 superá-lo,	 apela-se	 a	 alguma	 corrente	 voluntarista.	 Resultado	 disso	 é	 a	 já
famosa	 “era	 dos	 princípios”,	 pela	 qual	 são	 construídos	 novos	 princípios	 a	 todo	momento,
gerando	o	fenômeno	que	venho	denominando	de	“pamprincipiologismo”.
A	 dogmática	 jurídica	 trabalhada	 nas	 salas	 de	 aula	 (e	 reproduzida	 em	 boa	 parte	 dos
manuais	 e	 compêndios)	 considera	 o	 Direito	 como	 sendo	 uma	 mera	 racionalidade
instrumental.	De	um	modo	ou	de	outro,	a	regra	máxima	é	a	“simplificação	do	Direito”.Em
termos	 metodológicos,	 predomina	 o	 dedutivismo,	 a	 partir	 da	 reprodução	 inconsciente	 da
metafísica	 relação	 sujeito-objeto.	 Nesse	 contexto,	 o	 próprio	 ensino	 jurídico138	 é	 encarado
como	uma	terceira	coisa,139	no	interior	da	qual	o	professor	é	um	outsider	do	sistema.
A	 doutrina	 que	 sustenta	 o	 saber	 jurídico	 resume-se	 a	 um	 conjunto	 de	 comentários
resumidos	 de	 ementários	 de	 jurisprudência,	 desacompanhados	 dos	 respectivos	 contextos.
Cada	 vez	 mais	 a	 doutrina	 doutrina	 menos;	 isto	 é,	 a	 doutrina	 não	 mais	 doutrina;	 é,	 sim,
doutrinada	pelos	tribunais.	É	nisto	que	se	baseia	o	casuísmo	didático:	a	partir	da	construção
de	 “categorias”,	 produzem-se	 raciocínios	 “dedutivos”,	 como	 se	 a	 realidade	 pudesse	 ser
aprisionada	no	“paraíso	dos	conceitos	do	pragmatismo	positivista	dominante”.
A	 hermenêutica	 praticada	 nas	 salas	 de	 aula	 continua	 absolutamente	 refratária	 ao	 giro
linguístico	 (linguistic	 turn);	 em	 regra,	 continua-se	 a	 estudar	 os	 métodos	 tradicionais	 de
interpretação	(gramatical,	teleológico	etc.),	como	se	o	processo	de	interpretação	pudesse	ser
feito	em	partes	ou	em	fatias.	A	teoria	do	Estado,	condição	de	possibilidade	para	o	estudo	do
Direito	 Constitucional	 (para	 ficar	 nesta	 disciplina	 fundamental,	 que,	 aliás,	 não	 ocupa,	 na
maioria	 dos	 cursos	 jurídicos,	 mais	 do	 que	 dois	 semestres),	 não	 vem	 acompanhada	 da
necessária	interdisciplinariedade.
Em	síntese:	é	preciso	compreender	–	e	isto	ficará	mais	claro	nos	capítulos	posteriores	–	que
a	crise	do	ensino	jurídico	é,	antes	de	tudo,	uma	crise	do	Direito,	que	na	realidade	é	uma	crise
de	paradigmas,	assentada	em	uma	dupla	 face:	uma	crise	de	modelo	e	uma	crise	de	caráter
epistemológico.	 De	 um	 lado,	 os	 operadores	 do	 Direito	 continuam	 reféns	 de	 uma	 crise
emanada	da	tradição	liberal-individualista-normativista	(e	iluminista,	em	alguns	aspectos);	e,
de	 outro,	 a	 crise	 do	 paradigma	 epistemológico	 da	 filosofia	 da	 consciência.	 O	 resultado
dessa(s)	 crise(s)	 é	 um	 Direito	 alienado	 da	 sociedade,	 questão	 que	 assume	 foros	 de
dramaticidade	 se	 compararmos	o	 texto	da	Constituição	com	as	promessas	da	modernidade
incumpridas.
Nesse	contexto,	e	para	demonstrar	uma	certa	razão	cínica	que	atravessa	o	imaginário	dos
juristas	em	terrae	brasilis,	não	surpreende	que	até	há	poucos	anos,	alguns	tribunais,	avalizados
por	renomados	penalistas	pátrios,	ainda	sustentavam,	por	exemplo,	que	o	marido	não	podia
ser	sujeito	ativo	de	estupro	cometido	contra	a	esposa,	por	“lhe	caber	o	exercício	regular	de
um	direito...”.	Seguindo	essa	 linha,	alguns	 tribunais	brindavam	a	comunidade	 jurídica	com
decisões	do	tipo	“A	cópula	intra	matrimonium	é	dever	recíproco	dos	cônjuges	e	aquele	que	usa
de	 força	 física	 contra	 o	 outro,	 a	 quem	 não	 socorre	 recusa	 razoável	 (verbi	 gratia,	 moléstia,
inclusive	 venérea,	 ou	 cópula	 contra	 a	 natureza),	 tem	por	 si	 a	 excludente	 da	 criminalidade
prevista	no	Código	Penal	–	exercício	regular	de	um	direito”	(RT	461-444).
Julgados	 como	 esse	 se	 embasavam	 em	 doutrinadores	 mais	 antigos	 ainda,	 como	Nelson
Hungria,140	 para	 quem	 “o	marido	 violentador,	 salvo	 excesso	 inescusável,	 ficará	 isento	 até
mesmo	da	pena	correspondente	à	violência	física	em	si	mesma”.	Não	se	olvide	que	o	assim
denominado	“direito”	à	conjunção	carnal	é	eufemisticamente	referido	pelo	Código	Civil,	na
medida	em	que,	no	artigo	1.566,	II,	aponta	como	dever	dos	cônjuges	a	“vida	em	comum,	no
domicílio	conjugal”.	É	nesse	dever	que	se	“encontra	incluído”,	consoante	Silvio	Rodrigues,141
o	de	manter	 relacionamento	 carnal.	 Tal	 tese	 civilista	 pode	 ter	 levado	Damásio	de	 Jesus,142
expoente	 da	 doutrina	 penal,	 a	 um	 equívoco,	 eis	 que,	 ao	 comentar	 o	 antigo	 artigo	 213	 do
Código	Penal,	assim	se	pronuncia:	“(A	mulher)	não	perde	o	direito	de	dispor	de	seu	corpo,
ou	seja,	o	direito	de	se	negar	ao	ato,	desde	que	tal	negativa	não	se	revista	de	caráter	mesquinho.
Assim,	sempre	que	a	mulher	não	consentir	na	conjunção	carnal,	e	o	marido	a	obrigar	ao	ato,
com	violência	ou	grave	ameaça,	em	princípio	caracterizar-se-á	o	crime	de	estupro,	desde	que
ela	tenha	justa	causa	para	a	negativa”.	Deve-se	frisar	que,	atualmente,	os	tribunais	e	a	própria
doutrina	 já	 assimilaram	conceitos	mais	modernos	a	 respeito	do	 tema,	 entendendo	que,	 em
verdade,	o	marido	que	força	a	esposa	à	prática	sexual	não	está	exercitando	um	direito,	e	sim,
incorrendo	em	crime	de	estupro...
Os	próprios	exemplos	utilizados	em	sala	de	aula	ou	em	determinadas	obras	jurídicas	estão
descontectados	 do	 que	 acontece	 no	 cotidiano	 da	 sociedade.	 Isso	 decorre	 de	 uma	 cultura
estandardizada,	 no	 interior	 da	 qual	 a	 dogmática	 jurídica	 trabalha	 com	 prêt-à-porters
significativos.	Há	uma	proliferação	de	manuais,	que	procuram	“explicar”	o	Direito	a	partir	de
verbetes	jurisprudenciais	a-históricos	e	atemporais	(portanto,	metafísicos).
Ocorre,	assim,	uma	ficcionalização	do	mundo	jurídico,	como	se	a	realidade	social	pudesse
ser	procustianamente	 aprisionada/moldada/explicada	através	de	verbetes	 e	 exemplos	 com
pretensões	 universalizantes.	 Alguns	 exemplos	 beiram	 ao	 folclórico,	 como	 no	 caso	 da
explicação	 do	 “estado	 de	 necessidade”	 constante	 no	 art.	 24	 do	 Código	 Penal,	 não	 sendo
incomum	encontrar	 professores	 (ainda	 hoje)	 usando	 o	 exemplo	do	 naufrágio	 em	 alto-mar,
em	que	duas	pessoas	(Caio	e	Tício,	personagens	comuns	na	cultura	dos	manuais)	“sobem	em
uma	tábua”,	e	na	disputa	por	ela,	um	deles	é	morto	(em	estado	de	necessidade,	uma	vez	que
a	tábua	suportava	apenas	o	peso	de	um	deles...!)	Cabe,	pois,	a	pergunta:	por	que	o	professor
(ou	o	manual),	para	explicar	a	excludente	do	estado	de	necessidade,	não	usa	um	exemplo	do
tipo	“menino	pobre	entra	no	Supermercado	Carrefour	e	subtrai	um	pacote	de	bolacha	a	mando	de	sua
mãe,	que	não	tem	o	que	comer	em	casa?”.	Mas	isto	seria	exigir	demais	da	dogmática	tradicional.
Afinal	 de	 contas,	 exemplos	 deste	 tipo	 aproximariam	 perigosamente	 a	 ciência	 jurídica	 da	 realidade
social...!	Na	mesma	linha:	em	importante	concurso	público	realizado	no	Rio	Grande	do	Sul,
perguntou-se:	Caio	quer	matar	Tício,	com	veneno;	ao	mesmo	tempo,	Mévio	também	deseja
matar	Tício	(igualmente	com	veneno!).	Um	não	sabe	da	intenção	assassina	do	outro.	Ambos
ministram	apenas	a	metade	da	dose	letal	(na	pergunta	não	há	qualquer	esclarecimento	acerca
de	como	o	personagem	Tício	–	com	certeza	um	idiota	–,	bebe	as	duas	porções	de	veneno).	Em
consequência	da	 ingestão	das	meias-doses,	Tício	vem	a	perecer...	Encerrando,	 a	questão	do
aludido	 concurso	 indagava:	 Caio	 e	 Mévio	 respondem	 por	 qual	 tipo	 penal???	 Em	 outro
concurso,	de	âmbito	nacional,	a	pergunta	dizia	respeito	à	solução	jurídica	a	ser	dada	ao	caso
de	um	gêmeo	xifópago	ferir	o	outro	(com	certeza,	gêmeos	xifópagos	andam	armados,	e	em
cada	esquina	encontramos	vários	deles...!).
Dito	 de	 outro	 modo:	 dessa	 forma,	 a	 cultura	 standard	 fornecida	 pelos	 manuais	 é
reproduzida	nas	salas	de	aula	e	nos	concursos	públicos.	A	propósito,	há	um	manual	que,	para
explicar	a	diferença	entre	culpa	consciente	e	dolo	eventual,	utiliza	um	exemplo	a	partir	do
ato	de	um	jardineiro	que	quer	cortar	as	ervas	daninhas	e	corta	o	caule	da	flor...!	Não	se	olvide
o	“clássico”	exemplo	da	macieira	de	Caio,	cujos	galhos	(e	frutas)	pendem	sobre	a	propriedade
de	Tício,	explicando-se,	a	partir	daí,	o	direito	de	propriedade	(em	um	país	eivado	de	conflitos
de	 terras,	 e	 onde	dois	por	 cento	da	população	possui	 cinquenta	por	 cento	das	 terras).	Não
podemos	 esquecer,	 finalmente,	 o	 igualmente	 “clássico”	 exemplo	 do	 açúcar	 e	 do	 arsênico,
utilizado,	há	várias	décadas,	para	explicar	o	conceito	de	crime	impossível...!	Esta	é	apenas	a
ponta	do	iceberg	e	que	retrata	a	dura	face	do	idealismo	que	permeia	o	discurso	jurídico,	que
pode	ser	retratada	pela	seguinte	anedota	envolvendo	o	filósofoHegel.	Conta-se	que,	no	auge
de	 uma	 abstração	 filosófica,	 o	 filósofo	 foi	 interrompido	 por	 um	 de	 seus	 alunos,	 que	 lhe
perguntou:	“Mestre,	tudo	isto	que	o	senhor	está	dizendo	não	tem	absolutamente	nada	a	ver
com	a	realidade”.	Ao	que	Hegel	teria	respondido:	“Pior	para	a	realidade”...
Tudo	isso	serve	para	demonstrar/ilustrar	a	histórica	dificuldade	da	dogmática	jurídica	em
lidar	com	os	fenômenos	sociais.	Vários	fatores	tiveram	e	têm	influência	nessa	problemática.
Como	muito	bem	diz	Ferraz	Jr.,	“é	preciso	reconhecer	que,	nos	dias	atuais,	quando	se	fala	em
Ciência	do	Direito,	no	sentido	do	estudo	que	se	processa	nas	Faculdades	de	Direito,	há	uma
tendência	em	identificá-la	com	um	tipo	de	produção	técnica,	destinada	apenas	a	atender	às
necessidades	do	profissional	 (o	 juiz,	o	promotor,	o	advogado)	no	desempenho	 imediato	de
suas	funções.	Na	verdade,	nos	últimos	cem	anos,	o	 jurista	teórico,	pela	sua	formação	universitária,
foi	sendo	conduzido	a	esse	tipo	de	especialização,	fechada	e	formalista”.143
Em	 outras	 palavras,	 estabeleceu-se	 uma	 cultura	 jurídica	 standard,	 no	 interior	 da	 qual	 o
operador	do	Direito	vai	 trabalhar	no	 seu	cotidiano	com	soluções	e	 conceitos	 lexicográficos,
recheando,	desse	modo,	 suas	petições,	pareceres	e	 sentenças	com	ementas	 jurisprudenciais,
citadas,	 no	 mais	 das	 vezes,	 de	 forma	 descontextualizada,	 afora	 sua	 atemporalidade	 e	 a-
historicidade.	 Para	 tanto,	 os	 manuais	 jurídicos	 põem	 à	 disposição	 dos	 operadores	 uma
coletânea	de	prêts-à-porter	significativos,	representados	por	citações	de	resumos	de	ementas	e
verbetes	doutrinários	 (extraídos,	na	sua	maioria,	de	acórdãos),	normalmente	uma	a	 favor	e
outra	contra	determinada	tese...
Com	um	pouco	de	atenção	e	acuidade,	pode-se	perceber	que	grande	parte	de	sentenças,
pareceres,	 petições	 e	 acórdãos	 é	 resolvida	 a	 partir	 de	 citações	 do	 tipo	 Nessa	 linha,	 a
jurisprudência	é	pacífica	(e	seguem-se	várias	citações	padronizadas	de	número	de	ementários),
ou	Já	decidiu	o	Tribunal	tal	que	legítima	defesa	não	se	mede	milimetricamente	 (RT	604/327)	(sic),
ou	ainda	que	abraço	 configurava	 o	 crime	 de	 atentado	 violento	 ao	 pudor,	 cuja	pena	 –	 ressalte-se,
variava	 de	 seis	 a	 dez	 anos	 de	 reclusão,	 além	 de	 ser	 crime	 hediondo	 (RT	 567/293;	 RJTJSP
81/351)	 (sic).144	 São	 citados,	 geralmente,	 tão	 somente	 os	 ementários,145	 produtos,	 em
expressivo	número,	de	outros	 ementários	 (ou	da	 fusão	destes).	Raramente	 a	 ementa	 citada
vem	 acompanhada	 do	 contexto	 histórico-temporal	 que	 cercou	 o	 processo	 originário.	 Este
problema	 agravou-se	 com	 a	 aprovação	 do	 efeito	 vinculante	 das	 súmulas	 (muito	 embora	 o
problema	já	existisse	antes!).
Ora,	os	fatos	não	cabem	na	“ementa”	ou	no	“precedente”.	Um	exemplo	interessante	pode
nos	 ajudar	 a	 compreender	 melhor	 essa	 problemática	 da	 estandardização	 do	 Direito.
Imaginemos	uma	súmula	com	o	seguinte	enunciado:	“para	a	aferição	do	conteúdo	do	art.	23,
II,	do	Código	Penal,	a	legítima	defesa	não	se	mede	milimetricamente”.	Embora	não	seja	uma
súmula	 (mas,	 vamos	 fazer	 de	 conta	 que	 seja),	 esse	 enunciado	 foi/é	 utilizado	 como	 uma
“protossúmula”	 (afinal,	 consta	 na	 RT	 604/327,	 e	 nos	 principais	 manuais	 de	 direito	 penal)
servindo,	nas	práticas	dos	 juristas,	como	um	álibi	para	provar	as	mais	diversas	 teses.	Como
toda	cultura	prêt-à-portêr	 que	 se	preze,	 o	 referido	 enunciado	 tem	sido	 simplesmente	 citado
como	se	fosse	uma	proposição	assertórica,	como	se	nele	mesmo	estivesse	contida	a	substância
de	 “todas	 as	 legítimas	 defesas	 que	 não	 podem	 ser	medidas	 com	 um	 esquadro”.	 Fosse	 um
precedente	no	sentido	norte-americano,	essa	holding	somente	poderia	ser	utilizada	com	força
vinculativa	se	ficassem	comprovadas	as	especificidades	do	leading	case,	e	seu	abandono	seria
possível	apenas	a	partir	de	uma	distinguishing.	Não	esqueçamos:	lá,	o	precedente	serve	para
resolver	 um	 caso	 passado;	 aqui,	 as	 súmulas	 (ou	 os	 demais	 ementários	 jurisprudenciais)
“servem”	indevidamente	para	resolver	uma	infinidade	de	casos	futuros	(novamente,	mais	um
elemento	que	aponta	para	a	não	similitude	entre	precedente	e	súmula!).
Também	nesse	exemplo	é	 irrelevante	a	discussão	acerca	da	vagueza	ou	clareza	do	enunciado.
As	 legítimas	 defesas	 e	 suas	 densificações	 “não	 cabem	 no	 enunciado”.	 A	 sua	 aplicação
depende	de	cada	caso	concreto,	cujo	sentido	exsurgirá	da	reconstrução	institucional	dos	casos
que	levaram	à	edição	da	súmula,	como	já	especificado	nos	exemplos	anteriores.
A	 propósito:	 o	 leading	 case	 que	 sustenta	 o	 verbete	 “legítima	 defesa	 não	 se	 mede
milimetricamente”	 é	 produto	 de	 um	 acórdão	 assim	 ementado:	 “Legítima	 Defesa	 –
Proporcionalidade	entre	a	agressão	da	vítima	e	a	reação	do	acusado	–	Inexistência	de	excesso
no	uso	da	excludente	–	Absolvição	mantida”	(AP.	35.248-3	–	2ª	Câmara,	23.9.1985).	E	qual	é	o
caso,	em	suas	peculiaridades?	O	acusado,	ao	vislumbrar	sua	mulher	conversando	com	outro
homem,	 foi-lhes	 pedir	 explicações;	 segundo	 os	 autos,	 disse	 o	 acusado	 “que	 fora	 ao	 local
apenas	para	conversar	com	sua	mulher,	a	quem	segurou	pelo	braço	e	já	atravessavam	a	rua,
sendo	que	ele	falava	alto	para	a	mulher	que	ela	lhe	deveria	explicar	o	que	estava	ocorrendo.
Aproximou-se	 o	 ofendido	 e	 disse-lhe	 inicialmente	 ‘cala	 a	 boca,	 não	 faça	 escândalo’.
Discutiram	e	o	ofendido	deu-lhe	um	safanão	e	um	empurrão,	depois	de	chamá-lo	de	idiota	e
‘cornudo’.	Foi	nesse	momento	que	o	réu	reagiu	descarregando	sua	arma	contra	a	vítima,	 tendo	um
dos	tiros	atingido	as	costas	da	vítima”.
Observemos:	 desse	 julgado	 surgiu	 o	 enunciado	 “legítima	 defesa	 não	 se	 mede
milimetricamente...”	 (sic),	que	passou	a	 ser	aplicado	aos	 casos	 concretos	dos	mais	variados,
que	vão	desde	“faca	contra	revólver”,	“pedaço	de	pau	contra	espingarda”,	“um	simples	puxar
de	um	pente	para	justificar	a	legítima	defesa	putativa”	e	até	mesmo	para	justificar	a	“legítima
defesa	da	honra”	–	sic,	para	citar	apenas	algumas	das	hipóteses.146
Mais	 uma	 vez,	 veja-se	 o	 problema	 da	 diferença	 entre	 a	 aplicação	 de	 um	 “precedente
jurisprudencial”	e	uma	súmula,	que	deve	ser	produto	de	uma	sucessão	de	casos.	Esse	também
é	 um	 tema	 que	 deve	 ser	 pautado	 para	 as	 discussões	 acerca	 do	 “direito	 sumular-
jurisprudencial”.	No	 caso,	 um	verbete	 vem	 funcionando	há	mais	de	 vinte	 anos	 como	uma
“quase-súmula”,	 sendo	 sua	 ratio	 decidendi	 (sic)	 construída	 à	 revelia	 das	 pecualiaríssimas
situações	do	fato	(na	verdade,	sequer	houve	desproporcionalidade	de	armas,	na	medida	em
que	a	vítima	não	portava	arma	de	espécie	alguma).	Fosse	uma	súmula,	sua	futura	aplicação
dependeria	exatamente	da	aferição	desse	DNA	factual;	desse	caso	e	de	outros	que,	em	uma
cadeia	de	casos,	formataria	e	justificaria	a	edição	do	verbete	sumular.
O	 mais	 grave	 é	 que	 essa	 situação	 se	 repete	 no	 cotidiano	 das	 práticas	 dos	 tribunais,
circunstância	que	venho	denunciando	há	vários	anos:	verbetes	transformados	em	enunciados
assertóricos,	com	caráter	universalizante.	Exemplo	marcante	dessa	espécie	de	 (mau)	uso	de
verbetes	 é	 o	 que	 certifica	 que	 “nos	 crimes	 sexuais,	 a	 palavra	 da	 vítima	 é	 de	 fundamental
importância”.	 E	 alguém	 duvidaria	 disso?	 Mas	 o	 que	 ocorre	 na	 prática?	 O	 seu	 uso	 para
condenar	 e	para	 absolver	 (muito	mais	para	 condenar...).	O	que	menos	 se	perquire	 é	 se,	de
fato,	naquele	caso,	a	palavra	da	vítima	teve	especial	relevância.
Na	verdade,	tanto	no	plano	da	dogmática	jurídica	mais	tradicional	como	na	dogmática	que
vem	assumindo	posturas	mais	críticas,	é	possível	ainda	detectar	uma	questão	aparadigmática,
representada	 pelo	 uso	 sincrético	 das	 mais	 diversas	 teorias	 jurídicas.	 Assim,	 mesmo	 em
algumas	 obras	 consideradas	 críticas,	 isto	 é,	 aquelas	 que	 procuram	 superar	 o	 senso	 comum
teórico	mais	estandardizado,	pode-se	verificar	uma	recaídaem	velhos	clichês,	como	a	busca
da	verdade	real,	a	vontade	da	lei,	a	intenção	do	legislador,	o	apelo	à	metodologia	de	Savigny
e,	mais	contemporaneamente,	a	adesão	ao	fenômeno	da	ponderação	de	valores,	fruto	de	uma
equivocada	importação	da	teoria	da	argumentação	de	Robert	Alexy.	Em	um	mesmo	texto	ou
em	um	mesmo	julgamento,	é	possível	vislumbrar	o	uso	concomitante	de	teses	absolutamente
exegéticas	e	teses	voluntaristas,	sendo	que,	no	caso	destas,	é	lugar	comum	a	transformação	do
julgador	em	“ponderador”.
Essa	 questão	não	 é	 nova,	 já	 tendo	 sido	denunciada	há	mais	de	 três	décadas	por	 autores
como	Tércio	 Sampaio	 Ferraz	 Jr,	Nilo	 Bairros	 de	 Brum,	Luis	Alberto	Warat	 e	 José	 Eduardo
Faria	 (e,	 antes	 deles,	 por	 Roberto	 Lyra	 Filho).	 Foi	 se	 construindo,	 assim,	 um	 universo	 no
interior	 do	 qual	 a	 interpretação	 da	 lei	 passa	 a	 ser	 um	 jogo	 de	 cartas	 (re)marcadas.	 Aliás,
quando	se	fala	em	vontade	do	legislador,	espírito	do	legislador,	vontade	da	norma,	cabe	a	pergunta:
de	que	“legislador”	falam	os	comentadores?	Santiago	Nino,	citado	por	Ferraz	Jr.,	 ironiza	as
“propriedades	 que	 caracterizam	 o	 legislador	 racional”,	 uma	 vez	 que	 “ele”	 é	 uma	 figura
singular,	não	obstante	os	colegiados	etc.;	é	permanente,	pois	não	desaparece	com	a	passagem
do	tempo;	é	único	como	se	todo	o	ordenamento	obedecesse	a	uma	única	vontade;	é	consciente,
porque	 conhece	 todas	 as	 normas	 que	 emana;	 é	 finalista,	 pois	 tem	 sempre	 uma	 intenção;	 é
onisciente,	 pois	 nada	 lhe	 escapa,	 sejam	eventos	passados,	 futuros	 ou	presentes;	 é	 onipotente,
porque	 suas	 normas	 vigem	 até	 que	 ele	mesmo	 as	 substitua;	 é	 justo,	 pois	 jamais	 quer	 uma
injustiça;	é	coerente,	ainda	que	se	contradiga	na	prática;	é	onicompreensivo,	pois	o	ordenamento
tudo	regula,	explícita	ou	implicitamente;	é	econômico,	ou	seja,	nunca	é	redundante;	é	operativo,
pois	 todas	as	normas	 têm	aplicabilidade,	não	havendo	normas	nem	palavras	 inúteis;	 e,	por
último,	o	legislador	é	preciso,	pois	apesar	de	se	valer	de	palavras	da	linguagem	natural,	vagas
e	ambíguas,	 sempre	 lhes	 confere	um	sentido	 rigorosamente	 técnico...147	É	de	 se	perguntar:
pode	alguém,	ainda,	acreditar	em	tais	“propriedades”	ou	“características”	do	“legislador”?
Lamentavelmente,	 parece	 que	 a	 resposta	 é	 afirmativa!	Há,	 na	 verdade,	 um	 conjunto	 de
crenças	e	práticas	que,	mascaradas	e	ocultadas	pela	communis	opinio	doctorum,	propiciam	que
os	juristas	conheçam	de	modo	confortável	e	acrítico	o	significado	das	palavras,	das	categorias
e	das	próprias	atividades	jurídicas	–	o	que	faz	do	exercício	de	sua	profissão,	como	muito	bem
diz	Pierre	Bourdieu,	um	mero	habitus,	ou	seja,	um	modo	rotinizado,	banalizado	e	trivializado
de	 compreender,	 julgar	 e	 agir	 com	 relação	 aos	problemas	 jurídicos,	 e	 converte	 o	 seu	 saber
profissional	numa	espécie	de	“capital	simbólico”,	isto	é,	numa	“riqueza”	reprodutiva	a	partir
de	 uma	 intrincada	 combinatória	 entre	 conhecimento,	 prestígio,	 reputação,	 autoridade	 e
graus	acadêmicos,	conforme	já	ressaltado.148
Assim,	 pode-se	 dizer,	 com	Guibourg,	 que	 o	 Direito	 é	 a	 disciplina	 na	 qual	 a	 autoridade
ainda	conserva	uma	parte	substancial	de	seu	prestígio.	Desde	antigamente,	continua	o	autor,
os	juristas	têm	considerado	a	autoridade	dos	estudiosos	(quer	dizer,	deles	próprios)	como	um
elemento	 fundamental	 para	 conhecer	 o	 direito,	 até	 o	 ponto	 que	 é	 comum	 considerar	 a
doutrina	dos	autores	como	“fontes	do	direito”,	 junto	à	lei	e	à	 jurisprudência.	Nos	países	de
direito	 codificado,	 a	 doutrina	 já	 não	 tem,	 como	 fonte,	 a	 importância	 que	 teve	 em	 outras
épocas,	 porém	 igualmente	 as	 alusões	 a	 tal	 ou	 qual	 autor	 são	 comuns,	 tanto	 nos	 textos	dos
advogados,	 como	 nas	 sentenças	 judiciais.149	 Isto	 permite,	 na	 arguta	 observação	 de	 Alf
Ross,150	que	os	autores	de	textos	jurídicos	façam	política	jurídica	encoberta,	ao	apresentar	como	meras
descrições	 do	 direito	 positivo	 suas	 interpretações	 pessoais	 baseadas	 em	 valorações.	 Tais
interpretações,	 complementa,	 são	 usadas	 logo	 por	 advogados,	 juízes	 e	 promotores	 como
argumentos	retóricos	em	favor	da	solução	jurídica	para	o	caso	em	que	atuam.	Nesse	sentido,
alerta	Guibourg,	 asignar	 demasiada	 importancia	 a	 la	 autoridad	 en	 materia	 científica	 o	 filosófica
engendra	estancamiento	y	termina	matando	al	conocimiento.
É	relevante	frisar,	destarte,	que	toda	esta	problemática	se	forja	no	interior	do	que	se	pode
chamar	 de	 establishment	 jurídico,	 que	 atua	 de	 forma	 difusa,	 buscando	 uma	 espécie	 de
“uniformização	de	sentido”,	que	tem	uma	relação	direta	com	um	fator	normativo	de	poder,	o
poder	de	violência	simbólica.151	Trata-se	do	poder	capaz	de	impor	significações	como	legítimas,
dissimulando	as	relações	de	força	que	estão	no	fundamento	da	própria	força.	Entretanto,	não
nos	 enganemos	 quanto	 ao	 sentido	 deste	 poder.	 Como	 bem	 diz	 Ferraz	 Jr.,	 não	 se	 trata	 de
coação,	pois	pelo	poder	de	violência	simbólica	o	emissor	não	coage,	isto	é,	não	se	substitui	ao	outro.
Quem	age	é	o	receptor.	Poder	aqui	é	controle.	Para	que	haja	controle,	é	preciso	que	o	receptor
conserve	as	suas	possibilidades	de	ação,	mas	aja	conforme	o	sentido,	isto	é,	o	esquema	de	ação
do	emissor.	Por	isso,	ao	controlar,	o	emissor	não	elimina	as	alternativas	de	ação	do	receptor,
mas	as	neutraliza.	Assim,	conclui	o	 jusfilósofo	paulista,	controlar	 é	neutralizar,	 fazer	 com	que,
embora	conservadas	como	possíveis,	certas	alternativas	não	sejam	levadas	em	consideração.152
O	 resultado	 é	 o	 aparecimento	 de	 um	 arbitrário	 juridicamente	 prevalecente,153	 traduzido
através	 da	 busca	 do	 “correto	 e	 fiel	 sentido	 da	 lei”.	 Daí	 a	 força	 das	 assim	 denominadas
“jurisprudências	 dominantes”	 e	 as	 famosas	 “correntes	 doutrinárias	 mananciosas”.	 Desse
modo,	toda	vez	que	surge	uma	nova	lei,	os	operadores	do	Direito	–	inseridos	nesse	habitus	tão
bem	 definido	 por	 Bourdieu	 –	 tornam-se	 órfãos	 científicos,154	 esperando	 que	 o	 processo
hermenêutico-dogmático	 lhes	aponte	o	 caminho,	dizendo	para	eles	o	 que	 é	 que	 a	 lei	 diz	 (ou
quis	dizer)...
De	 um	 trabalho	 de	 um	 aluno	 de	 pós-graduação	 na	 Faculdade	 de	 Direito	 da	 USP,	 do
longínquo	ano	de	1981,	extrai-se	a	seguinte	denúncia:	“O	ensino	do	Direito	como	está	posto
favorece	o	imobilismo	de	alunos	e	professores.	No	esforço	de	renovação,	uns	atingem	o	grau
de	doutrinadores	e	o	prestígio	da	cadeira	universitária.	Os	outros,	além	do	mítico	 título	de
‘doutor’,	obtêm	a	habilitação	profissional	que	lhes	permite	viver	de	um	trabalho	não	braçal
(white	collar).	A	tarefa	do	ensino	para	o	aluno	é	cumprida	nestes	termos:	aprendido	o	abc	do
Processo	e	do	Direito	Civil,	 já	está	habilitado	a	viver	de	 inventários	e	cobranças	sem	maior
indagação.	[...]	É	claro	que	este	operário	anônimo	do	Direito	é	necessário,	mas	por	que	deve
ser	inconsciente?	[...]	Sua	atividade	passa	a	ser	meramente	formal,	sem	influência	no	processo
de	tomada	de	decisão	e	no	planejamento.	O	jurista	formado	por	escolas,	convém	lembrar,	não	será
apenas	advogado:	será	também	o	juiz	que	fará	parte,	afinal	de	contas,	de	um	dos	poderes	políticos	do
estado.	A	alienação	do	 jurista,	deste	modo,	 colabora	 também	na	 supressão	das	garantias	de
direitos.	É	que	o	centro	de	equilíbrio	social	(ou	de	legitimação)	é	colocado	na	eficiência,	não
no	bem	do	homem.	Começa-se	a	falar	em	um	bem	comum	que	só	existe	nas	estatísticas	dos
planejadores,	 mas	 que	 a	 pobreza	 dos	 centros	 urbanos	 desmente.	 E,	 em	 nome	 desse	 bem
comum,	 alcançável	 pela	 eficiência,	 sacrificam-se	 alguns	 valores	 que	 talvez	 não	 fosse	 inútil
preservar”.155	Repito	a	pergunta	feita	anteriormente:	o	que	mudou	de	lá	para	cá?
Apesar	 de	 tudo	 isso,	 o	 Direito,	 instrumentalizado	 pelo	 discurso	 dogmático,	 consegue
(ainda)	 aparecer,	 aos	 olhos	 do	 usuário/operador	 do	 Direito,	 como,	 ao	 mesmo	 tempo,	 seguro,
justo,abrangente,	sem	fissuras,	e,	acima	de	tudo,	técnico	e	funcional.	Em	contrapartida,	o	preço	que
se	paga	é	alto,	uma	vez	que	ingressamos,	assim	“num	universo	de	silêncio:	um	universo	do
texto,	do	texto	que	sabe	tudo,	que	diz	tudo,	que	faz	as	perguntas	e	dá	as	respostas”.	Nestes
termos,	 conclui	Legendre,	os	 juristas	 fazem	um	trabalho	doutoral	no	sentido	escolástico	da
palavra.	Em	outras	palavras,	 fazendo	seu	trabalho,	eles	não	 fazem	o	Direito;	apenas	entretêm	o
mistério	divino	do	Direito,	ou	seja,	o	princípio	de	uma	autoridade	eterna	fora	do	tempo	e	mistificante,
conforme	as	exigências	dos	mecanismos	de	controle	burocrático	num	contexto	centralista.156
Disso	 tudo	é	possível	 extrair	 a	 seguinte	assertiva:	ou	 se	acaba	 com	a	estandardização	do
direito,	ou	ela	acaba	com	o	que	resta	da	ciência	jurídica.157	Afinal,	passados	tantos	anos	e	em
pleno	paradigma	do	Estado	Democrático	de	Direito,	do	giro	ontológico-linguístico	e	do	novo
constitucionalismo,
a)	ainda	não	se	 construiu	um	modelo	de	ensino	que	“supere”	a	 leitura	de	 leis	e	 códigos
comentados	 (na	maioria	 das	 vezes,	 reproduzindo	 conceitos	 lexicográficos	 e	 sem	 nenhuma
sofisticação	 teórica).	 É	 impressionante	 ver	 que	 até	 mesmo	 docentes	 com	 formação	 em
mestrado	e	doutorado,	na	hora	de	ministrarem	as	aulas,	não	conseguem	fazê-lo	sem	o	recurso
aos	standards	manualescos;
b)	a	doutrina	–	que	a	cada	dia	doutrina	menos	–	está	dominada	por	produções	que	buscam,
nos	repositórios	jurisprudenciais,	ementas	que	descrevem,	de	forma	muito	breve,	o	conceito
do	texto	enquanto	“enunciado	linguístico”.	Uma	simples	decisão	de	tribunal	vira	referência	–
plenipotenciária	 –	 para	 a	 atribuição	 de	 sentido	 do	 texto,	 perdendo-se	 a	 especificidade	 da
situação	concreta	que	a	gerou;	em	muitos	casos,	interpretam-se	as	leis	e	os	códigos	com	base
em	julgados	anteriores	à	Constituição,	o	que	faz	com	que	determinados	dispositivos,	mesmo
que	 sob	 um	 novo	 fundamento	 de	 validade,	 sejam	 interpretados	 de	 acordo	 com	 a	 ordem
jurídica	 anterior;	 a	 doutrina	 especializada	 em	 comentários	 de	 legislação	 não	 tem	 efetuado
uma	 filtragem	hermenêutico-constitucional	 dos	Códigos	 e	 leis,	 com	o	 que	 casos	 nítidos	de
aplicação	direta	da	Constituição	acabam	soçobrando	em	face	de	legislação	produzida	há	mais
de	cinquenta	anos,	como	foi	o	caso	da	presença	(obrigatória)	do	advogado	no	interrogatório
do	acusado,	a	qual	a	doutrina	e	os	tribunais	resistiram	até	o	advento	da	lei	no	ano	de	2004;158
c)	a	proliferação	da	cultura	estandardizada	(ementários	e	comentários	simplificados)	vem
acompanhada	 por	 um	 fenômeno	 que	 pode	 ser	 denominado	 de	 “neopentecostalismo
jurídico”,	 cuja	 função	 é	 “vender”	 facilidades	 aos	 estudantes	 e	 aos	 profissionais	 que
pretendem	 passar	 em	 concursos	 públicos,	 com	 publicações	 que	 já	 no	 título	 expõem	 o	 seu
objetivo:	esquematizações	e	simplificações.	Virou	“moda”	a	publicação	das	simplificações	por
intermédio	de	textos	plastificados.	Por	todas,	cito	S.O.S.	Hermenêutica	Jurídica,	n.32,	ano	2009,
na	 qual	 nos	 é	 dito	 que	 a	 filosofia	 reinante	 no	 liberalismo,	 apresentado	 como	 vigorante	 no
século	 XVII,	 era	 o	 “absolutismo	 de	 Schleiermacher...(sic);	 o	 modelo	 interpretativo	 do
neoliberalismo	(final	do	século	XX	e	início	do	século	XXI)	é	o	tópico-indutivo	(sic);	a	“visão	do
direito”	(sic)	no	liberalismo	era	a	partir	de	um	“sistema	de	lógica	pura”,	no	welfare	state,	tem-
se	o	“sistema	de	natureza	social”	e,	no	neoliberalismo,	o	“sistema	de	direitos	humanos”...;	as
escolas	 de	 interpretação,	 segundo	 o	 S.O.S	 Hermenêutica	 Jurídica,	 seriam	 a	 “dogmática”,	 a
“histórico-evolutiva”,	 a	 “livre	 criação	 do	 direito”	 (sic);	 entre	 as	 advertências	 da	 publicação
plastificada,	 lê-se	como	“importante”	o	 leitor	não	esquecer	que	“parte	da	doutrina	entende
que	 nenhuma	 das	 duas	 teorias	 (subjetiva	 e	 objetiva)	 é	 suficiente	 e	 absoluta”,	 porque	 a
subjetiva	 “favorece	 o	 autoritarismo	 por	 preponderância	 da	 vontade	 do	 legislador”	 e	 a
objetiva	“retira	a	responsabilidade	do	legislador	e	favorece	o	anarquismo”(...)	–	sic.	Por	outro
lado,	a	aluno/leitor	é	alertado	para	o	fato	de	que	“o	STF	retira	a	eficácia	da	norma	(controle
difuso)	 e	 remete	 ao	 Senado	 Federal	 para	 que	 este	 retire	 a	 validade	 da	 lei”...(sic).	 Trata-se,
efetivamente,	 de	 uma	 importante	 “dica”	 acerca	 da	 diferença	 entre	 vigência,	 validade	 e
eficácia...,	 contanto	 –	 permito-me	 dizer	 –	 que	 o	 “consumidor”	 não	 a	 siga,	 para	 que	 não
responda	de	 forma	equivocada	eventual	questão	em	concurso	público...!	De	 todo	modo,	há
uma	esperança:	na	parte	em	que	o	S.O.S.	 trata	das	antinomias	no	Código	Civil	de	2002,	os
autores	 assinalam	 que,	 se	 alguma	 norma	 civil	 confrontar	 com	 a	 Constituição,	 “por	 certo
prevalecerá	o	texto	constitucional”.	Alvíssaras!
d)	 até	 mesmo	 em	 determinados	 setores	 da	 pós-graduação	 stricto	 sensu	 (mestrado	 e
doutorado)	continua-se	a	fazer	descrições	de	leis	e	casos	(há	dissertações	e	teses	tratando	de
temáticas	monográficas,	mais	apropriadas	para	cursos	de	especialização,	para	dizer	o	menos)
–	a	maior	parte	desvinculada	das	linhas	de	pesquisa	dos	cursos,	como,	v.	g.,	limitação	de	fim
de	 semana	 na	 lei	 de	 execução	 penal,	 cheque	 pré-datado,	 saídas	 temporárias	 na	 lei	 de
execução	penal,	inquérito	policial,	recurso	de	ofício,	perda	de	bagagem	em	transporte	aéreo,
sistema	 postal,	 análise	 jurídica	 do	 lixo,	 o	 papel	 do	 oficial	 de	 justiça,	 o	 papel	 do	 árbitro,
suspensão	 condicional	 da	 pena	 em	 ação	 penal	 privada,	 embargos	 infringentes,	 embargos
declaratórios,	 união	 homoafetiva	 (em	 um	 programa	 de	 pós-graduação	 que	 trata	 de	 meio
ambiente),	 embargos	 de	 execução,	 agravo	 de	 instrumento,	 exceção	 de	 pré-executividade,
infanticídio,	além	de	uma	 tese	que,	em	pleno	Estado	Democrático	de	Direito,	arrasa	com	o
poder	constituinte	e	uma	outra	que	propõe	a	“inversão	do	ônus	da	prova	penal”	em	crimes
do	colarinho	branco	etc.;
e)	 por	 outro	 lado,	 nem	 sequer	 conseguimos	 elaborar	 um	 novo	 modelo	 de	 provas	 de
concursos	públicos,	continuando	com	a	tradicional	múltipla	escolha	–	espaço	(indispensável)
para	 personagens	 fictícios	 como	 Caio,	 Tício	 e	 Mévio	 –	 e	 com	 questões	 dissertativas	 sobre
casos	 jurídicos	 (no	 mais	 das	 vezes,	 sem	 qualquer	 sentido	 “prático”)	 ou	 sobre
conceitualizações	jurídicas.	Registre-se,	no	entanto,	que,	recentemente,	o	Conselho	Nacional
de	 Justiça	 editou	 resolução	 determinando	 que	 os	 concursos	 para	magistrados	 passassem	 a
exigir	 conhecimentos	denominados	de	 “formação	humanista”.159	 Embora	 a	 orientação	 seja
meritória,	 não	 se	 pode	 deixar	 de	 notar	 alguns	 pontos	 que	 apenas	 confirmam	 aqui	 o	 que
venho	denunciado	de	há	muito.	Vejamos:	para	 a	 filosofia	do	direito,	 são	 indicados	Kelsen,
Reale	e	Ross;	para	a	área	da	interpretação	(hermenêutica),	o	“carro	chefe”	é	Recaséns	Siches.
Pergunto:	não	é	estranhável	que	os	autores	selecionados/indicados	sejam	todos	positivistas,
desde	Kelsen,	um	positivista	normativista,	a	Alf	Ross,	um	positivista	fático	(espécie	de	pai	do
realismo	jurídico),	chegando	a	um	axiologista	(ou	seja,	igualmente	positivista)	como	Recaséns
Siches,	 jusfilósofo	cuja	doutrina	se	mostra	incompatível	com	os	avanços	da	teoria	do	direito
na	contemporaneidade?	Assim,	onde	pode	estar	o	avanço,	pode	também	estar	o	retrocesso;
f)	o	modelo	de	decisão	judicial	continua	o	mesmo	há	mais	de	um	século:	a	fundamentação
restringe-se	 à	 citação	 da	 lei,	 da	 súmula	 ou	 do	 verbete,	 problemática	 que	 se	 agrava	 com	 a
institucionalização	 da	 súmula	 vinculante.	 Daí	 a	 (correta)	 exigência	 de	 Dworkin:	 uma
“responsabilidade	política”	dos	 juízes.	Os	 juízes	 têm	a	obrigação	de	 justificar	suas	decisões,
porque	com	elas	afetam	os	direitos	 fundamentais	e	sociais,	além	da	relevante	circunstância
de	que,	no	Estado	Democrático	de	Direito,a	adequada	justificação	da	decisão	constitui-se	em
um	direito	fundamental.	O	sentido	da	obrigação	de	fundamentar	as	decisões	previsto	no	art.
93,	IX,	da	Constituição	do	Brasil	implica,	necessariamente,	a	justificação	dessas	decisões.
g)	as	decisões	devem	estar	justificadas,	e	tal	justificação	deve	ser	feita	a	partir	da	invocação
de	 razões	 e	oferecendo	argumentos	de	 caráter	 jurídico,	 como	bem	assinala	David	Ordónez
Solís.160	O	limite	mais	importante	das	decisões	judiciais	reside	precisamente	na	necessidade
da	motivação/justificação	do	que	foi	dito.	O	juiz,	por	exemplo,	deve	expor	as	razões	que	lhe
conduziram	 a	 eleger	 uma	 solução	 determinada	 em	 sua	 tarefa	 de	 dirimir	 conflitos.	 A
motivação/justificação	está	vinculada	ao	direito	à	efetiva	intervenção	do	juiz,	ao	direito	dos
cidadãos	 a	 obter	 uma	 tutela	 judicial,	 sendo	 que,	 por	 esta	 razão,	 o	 Tribunal	 Europeu	 de
Direitos	 Humanos	 considera	 que	 a	 motivação	 se	 integra	 ao	 direito	 fundamental	 a	 um
processo	 equitativo,	 de	modo	que	 “as	 decisões	 judiciais	 devem	 indicar	 de	maneira	 suficiente	 os
motivos	em	que	se	fundam.	A	extensão	deste	dever	pode	variar	segundo	a	natureza	da	decisão	e	deve
ser	analisada	à	luz	das	circunstâncias	de	cada	caso	particular”.161
Para	 além	 da	 crise	 aqui	 denunciada	 e	 procurando	permanecer	 fiel	 às	 coisas	 mesmas,	 à
intersubjetividade,	 ao	 mundo	 prático,	 à	 faticidade,	 à	 busca	 da	 construção	 de	 um
“comportamento	 constitucional”	 já	 referido	 anteriormente,	 torna-se	 necessário	 superar	 as
diversas	posturas	 que	 ainda	percebem	o	direito	 a	partir	 de	hipóteses,	 categorias	 e	 enunciados
assertóricos-perfomativos.	Eis	aí	mais	um	grande	desafio.
	
Notas
136	Consultar	JTACrimSP	78/423	e	81/348,	apud	 Jesus,	Damásio	E.	de.	Código	Penal	Anotado.	 São	Paulo:	Saraiva,	 1993,	p.
462.
137	Indico	a	 leitura	do	artigo	O	Triste	Fim	das	Ciências	 Jurídicas	em	Terrae	Brasilis.	Neste,	 faço	a	anamnese	de	parte	de	uma
obra	para	concursos	que	abrange	o	conteúdo	inserido	pela	resolução	75/2009	do	CNJ	(“Noções	Gerais	de	Direito	e	Formação
Humanística”).	Desta	análise,	observa-se	a	sedimentação	de	uma	série	de	equívocos	teóricos	decorrentes	de	uma	simplificação
do	 jurídico,	 tornando-o	 adaptado	 ao	 mundo	 dos	 concursos.	 Cf.	 Streck,	 Lenio	 Luiz.	 Compreender	 Direito:	 desvelando	 as
obviedades	do	discurso	jurídico.	São	Paulo:	Revista	dos	Tribunais,	2013,	p.	185-192.
138	Como	um	novo	modo	de	ver	a	teoria	do	direito,	o	ensino	jurídico	e	uma	crítica	à	dogmática,	vale	a	pensa	consultar	o	livro
de	 Abboud,	 Georges;	 Carnio,	 Henrique	 Garbellini;	 Oliveira,	 Rafael	 Tomaz.	 Introdução	 à	 Teoria	 e	 a	 Filosofia	 do	 Direito.	 São
Paulo:	Revista	dos	Tribunais,	2013,	com	posfácio	de	minha	autoria.	Na	obra,	 leem-se	preciosas	 lições	acerca	do	conceito	de
direito,	 da	 crítica	 ao	 positivismos,	 além	 de	 noções	 elementares	 sobre	 epistemologia,	 validade	 e	 legitimidade	 do	 direito,	 a
relação	entre	direito	e	justiça,	o	desenvolvimento	da	teoria	da	norma	e,	por	fim,	da	necessidade	de	uma	teoria	da	decisão.
139	Uma	 consistente	 crítica	 ao	 ensino	 jurídico	 pode	 ser	 visto	 na	 obra	 de	Hupffer,	 Haide	Maria.	Ensino	 jurídico:	 um	 novo
caminho	a	partir	da	hermenêutica	filosófica.	Viamão:	Entremeios,	2008,	utilizando	para	tal	a	matriz	teórica	da	hermenêutica
filosófica.
140	Cf.	Hungria,	Nelson.	Comentários	ao	Código	Penal.	Rio	de	Janeiro:	Forense,	1959,	p.	126.
141	Ver	Rodrigues,	Silvio.	Direito	Civil.	São	Paulo:	Saraiva,	1979,	p.	126.
142	Cf.	Jesus,	Damásio	E.	de.	Código	Penal	Comentado,	op.	cit.,	p.	605.
143	Cf.	Ferraz	Jr.,	Introdução	ao	estudo	do	direito,	op.	cit.,	p.	49.
144	O	crime	de	atentado	violento	ao	pudor	foi	extinto	pela	Lei	12.015/09.	A	partir	dessa	lei,	o	tipo	de	atentado	violento	ao
pudor	e	estupro	foram	unificados	e	reunidos	no	art.	213	do	CP,	que	assim	dispõe:	“Constranger	alguém,	mediante	violência
ou	grave	ameaça,	a	ter	conjunção	carnal	ou	a	praticar	ou	permitir	que	com	ele	outro	se	pratique	outro	ato	libidinoso”.
145	 Tais	 verbetes	 sofrem	 de	 evidente	 “anemia	 significativa”,	 sem	 falar	 no	 predomínio	 de	 definições	 óbvias	 e	 simplistas,
encontráveis	em	inúmeros	manuais,	como,	por	exemplo,	“agressão	atual	é	a	presente,	a	que	está	acontecendo;	 iminente	é	a
que	 está	 prestes	 a	 ocorrer”;	 “casa	 de	 prostituição	 é	 o	 local	 onde	 as	 prostitutas	 exercem	 o	 comércio	 carnal”	 (para	 tanto,
consultar	Damásio	de	Jesus,	Código	Penal	Anotado,	Saraiva,	p.	83	e	609);	“para	caracterização	de	quadrilha,	são	necessárias	4
pessoas”;	“ordinário	se	presume,	só	o	extraordinário	se	prova”,	invocando	Malatesta.	Ou,	do	mesmo	Malatesta,	“prova	para
condenar	tem	que	ser	robusta”.	Ora,	alguém	tem	dúvida	de	que	a	prova	para	condenar	tem	que	ser	robusta?	Comentando	o
art.	 24	 do	 Código	 Penal,	 que	 estabelece	 o	 conceito	 de	 estado	 de	 necessidade,	 pelo	 qual	 “considera-se	 em	 estado	 de
necessidade	quem	pratica	o	fato	para	salvar	de	perigo	atual,	quem	não	provocou	por	sua	vontade,	nem	podia	de	outro	modo
evitar,	direito	próprio	ou	alheio,	cujo	sacrifício,	nas	circunstâncias,	não	era	razoável	exigir-se”,	o	doutrinador	Celso	Delmanto
leciona	que	“Estado	de	necessidade	é	a	 situação	de	perigo	atual,	não	provocado	voluntariamente	pelo	agente,	 em	que	este
lesa	bem	de	outrem,	para	não	sacrificar	direito	seu	ou	alheio,	cujo	sacrifício	não	podia	ser	razoavelmente	exigido”	(In:	C.	P.
Comentado,	Renovar,	 1998,	p.	 44).	Observa-se	que	o	 comentário	 tão	 somente	 reproduz	o	 conteúdo	da	 lei.	Para	 aferição	do
“conceito	de	mulher	honesta”	de	que	trata	o	art.	217	do	CP,	Damásio	de	Jesus	traz	à	colação	–	via	verbetes	jurisprudenciais	–
a	discussão	acerca	de	se	“moça	de	dezessete	anos	que	trabalha	fora	em	escritório	é	ou	não	é	ingênua”,	colocando	à	disposição
do	intérprete/operador	do	Direito	duas	posições:	uma	no	sentido	de	que	a	moça	é	ingênua	(RT	524/338)	e	outra	de	que	não	é
ingênua	 (RJTJSP	 50/365)...	No	mesmo	diapasão	 (e	 na	mesma	 obra),	 encontramos	 a	 informação	 de	 “a	 vítima	 que	 frequenta
bailes	e	dorme	fora	de	casa	não	é	ingênua	e	inexperiente”.	(idem,	ibidem,	p.	586);	já	para	a	configuração	do	crime	de	sedução,	a
vítima	deve	 ser	 virgem	 e	 casta,	 sendo	 citado,	para	 tanto,	 julgado	publicado	na	RT	543/350.	Não	 é	necessário	muito	 esforço
para	encontrar,	na	doutrina	lato	sensu	e	na	 jurisprudência,	definições	como	“chave	falsa	é	um	instrumento,	sob	a	 forma	de
chave	ou	não,	que	se	destina	a	abrir	fechaduras”.	Ou	“pedaço	de	cabo	de	talher	não	é	chave	falsa	(JTACrimSP	92/52)”;	ao
mesmo	tempo,	há	informação	de	que	“clips	é	chave	falsa”	(RJDTACrimSP	6/95	e,	especificamente,	Damásio	de	Jesus,	op.	cit.,
p.	 560).	 Para	 contrabalançar	 a	 referida	 tese	 acerca	 da	 qualificadora	 da	 chave	 falsa,	 há	 outro	 “significante	 primordial-
fundante”	dando	conta	de	que	“micha	é	chave	falsa”	(ao	que	se	poderia	objetar:	se	micha	não	é	chave,	falsa	não	pode	ser!).
Compulsando	a	literatura	 jurídico-penal,	descobre-se	também	que	“se	da	agressão	resulta	para	a	vítima	o	arrancamento	de
dentes	 já	 irremediavelmente	estragados,	não	é	de	ser	 reconhecida	a	agravante	especial	da	 lesão,	mas	sim	o	delito	de	 lesões
corporais	de	natureza	 leve”	(RT	612/297),	Mirabete,	 Julio	F.	C.	P.	 Interpretado,	2001,	p.	823.	A	contrario	sensu,	 se	os	dentes
arrancados	não	estiverem	estragados,	a	lesão	será	grave...	No	terreno	dos	crimes	contra	a	administração	pública,	descobre-se
que	“a	preguiça	e	o	desleixo	excluem	o	dolo	do	crime	de	prevaricação...”	(RT	451/414,	486/356,	in:	Damásio	de	Jesus,	op.	cit.,
2.	ed.,	p.	285).	Por	outro	lado,	é	pacífico	que	“vestir-se	só	de	calção	em	público”	não	configura	o	delito	de	ato	obsceno	(art.
233)	(RT	355/328	in:	Damásio,	op.	cit.,	p.	616).	É	evidente	que	as	hipóteses	jurídicas	constantes	nas	aludidas	ementas	podem
vir	a	assumir	relevância	em	determinada	situação	(a	prova	disto	é	que	as	respectivas	discussões	em	seu	entorno	chegaram	até
os	tribunaisda	República).	A	crítica	que	aqui	se	faz	decorre	do	(ab)uso	metafísico	daí	resultante.	Não	se	pode	esquecer	que	Direito
é	história,	é	tempo,	é	faticidade,	e	que,	portanto,	cada	caso	tem	a	sua	singularidade.	Tentar	aprisionar	os	fatos	em	verbetes	é
sequestrar	 o	 tempo	 do	 Direito.	 Em	 suma:	 pode-se	 extrair,	 desta	 (pequena)	 amostragem,	 a	 problemática	 exsurgente	 desse
universo	(construído)	a	partir	de	definições	metafísicas,	que	pré-dominam	o	imaginário	gnosiológico	dos	juristas	inseridos	no
senso	comum	teórico	(habitus	dogmaticus).
146	Para	 um	desdobramento	 dessas	 questões,	 ver:	 Ramires,	Maurício.	Crítica	 à	 aplicação	 de	 precedentes	 no	Direito	 Brasileiro.
Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2009,	p.	46-7,	em	cuja	obra,	na	linha	de	uma	Crítica	Hermenêutica	do	Direito,	o	autor
denuncia	 que	 “No	 Brasil,	 o	 ensino	 jurídico	 e	 a	 prática	 do	 direito	 são	 historicamente	 preocupados	 com	 a	 norma	 e,	 com	 a
completa	ausência	de	análise	pedagógica	dos	casos,	os	intérpretes	desenvolveram	um	distanciamento	dos	fatos	aos	quais	as
normas	 se	destinam.	 (...)	O	que	no	mais	das	vezes	ocorre	é	a	pretensa	 ‘separação	 cirúrgica’	 entre	o	 fato	e	o	direito,	 com	o
esquecimento	ou	o	encobrimento	da	realidade,	quando	se	insiste	em	trabalhar	apenas	com	os	institutos	ou	Standards	 jurídicos
como	se	fossem	as	categorias	abstratas	da	matemática”.	Também	essa	problemática	é	desenvolvida	em	Streck,	L.	L.	e	Abboud,
Georges.	O	que	é	isto	–	os	precedentes	e	as	súmulas	vinculantes?	Porto	Alegre:	Livraria	do	Advogado,	2013.
147	Cf.	Ferraz	Jr.,	op.	cit.,	p.	254	e	255.
148	Ver	Faria,	José	Eduardo.	Justiça	e	conflito,	op.	cit.,	p.	91.	Também,	Bourdieu,	Pierre.	O	poder	simbólico,	op.	cit.
149	Cf.	Guibourg,	Ricardo	A.	et.	alli.	Introdución	al	conocimiento	jurídico.	Buenos	Aires:	Astrea,	1984,	p.	147.
150	Cf.	Ross,	Alf.	Sobre	el	derecho	y	la	justicia.	Buenos	Aires:	Eudeba,	1963,	p.	45.
151	Cf.	 Bourdieu,	 Pierre	 e	 Passeron,	 Jean	Claude.	 A	 reprodução:	 elementos	 para	 uma	 teoria	 do	 sistema	 de	 ensino.	 São	 Paulo:
Francisco	Alves,	1975,	p.	19-24.
152	Cf.	Ferraz	Jr.,	Introdução	ao	estudo	do	Direito,	op.	cit.,	p.	251.
153	Expressão	adaptada	de	Ferraz	Jr.,	op.	cit.,	que	fala	na	formação	de	um	arbitrário	socialmente	prevalecente.
154	No	interior	desse	habitus,	engendra-se	uma	espécie	de	“síndrome	de	Abdula”,	que	faz	com	que	a	expressiva	maioria	dos
juristas	não	se	dê	conta	de	sua	força	e	de	seu	papel	no	processo	de	construção	do	discurso	jurídico.	Isso	será	demonstrado	na
sequência.
155	Consultar	Faria,	José	Eduardo.	A	reforma	do	ensino	jurídico,	op.	cit.,	p.	37.
156	Cf.	Ferraz	Jr.,	Função	Social	da	Dogmática	Jurídica,	op.	cit.,	p.	178.
157	 É	 evidente	 que	 estou	me	 referindo	 à	 cotidianidade	 das	 práticas	 jurídicas,	 representado	 pelo	 universo	 das	 centenas	 de
faculdades	de	direito,	os	inúmeros	cursos	de	preparação	para	concursos	e	a	operacionalidade	do	direito	massificada	e	sufocada
pelo	 excesso	 de	 processos	 e	 pela	 disfuncionalidade	 do	 sistema	 processual.	 Despiciendo	 registrar	 a	 importância	 da	 crescente
produção	 teórica	 (também	 em	 qualidade)	 ocorrida	 nos	 últimos	 anos,	mormente	 no	 campo	 do	 direito	 constitucional,	 fruto
principalmente	da	expansão	da	pós-graduação	stricto	sensu	(há,	hoje,	81	programas	de	mestrado,	31	programas	de	doutorado
e	1	mestrado	profissional	em	funcionamento).	Essa	benéfica	influência	já	se	faz	notar	nas	decisões	judiciais,	proporcionando
relevantes	avanços	doutrinários	e	jurisprudenciais.
158	A	 5ª	Câmara	Criminal	do	Tribunal	de	 Justiça	do	Rio	Grande	do	 Sul,	 junto	 à	 qual	 tenho	 assento	 como	Procurador	de
Justiça,	 foi	 a	pioneira	na	aplicação	da	 tese	da	obrigatoriedade	da	presença	do	defensor	no	 interrogatório,	 antes	mesmo	da
edição	da	nova	lei.
159	 Após	 a	 aprovação	 da	 Resolução	 75,	 começaram	 a	 venda	 de	 livros	 para	 descomplicar	 o	 ensino	 dos	 conhecimentos
humanísticos.	No	entanto,	a	maior	parte	desses	 livros	não	aprofunda	o	 tema	e	serve	somente	para	 responder	as	perguntas
dos	concursos.	Nesse	sentido,	ver	o	exemplo	de	um	livro	em	terrae	brasilis	que	realizou	uma	verdadeira	“salada	de	frutas”	das
teorias.	Descrevo	essa	situação	na	coluna	publicada	na	revista	Conjur,	20	set	2012,	intitulado:	O	triste	fim	da	ciência	jurídica
em	terrae	brasilis.	Disponível	em:	<http://www.conjur.com.br/2012-set-20/senso-incomum-triste-fim-ciencia-juridica-terrae-
brasilis>.
160	Cf.	Ordónez	Solis,	David.	Derecho	y	Política.	Navarra:	Aranzadi,	2004,	p.	98	e	segs.
161	Sentenças	de	9.12.1994	–	TEDH	1994,	4,	Ruiz	Torija	e	Hiro	Balani-ES,	parágrafos	27	e	29;	de	19.02.1998	–	TEDH	1998,3,
Higgins	e	outros	–	Fr,	parágrafo	42;	e	de	21.01.99	–	TEDH	1999,1,	Garcia	Ruiz-ES.	No	mesmo	sentido,	ressalte-se	a	posição	do
Tribunal	Constitucional	da	Espanha	(sentença	20/2003,	de	10	de	febrero).
5.	A	fetichização	do	discurso	e	o	discurso	da	fetichização:	a
dogmática	jurídica,	o	discurso	jurídico	e	a	interpretação	da	lei
	
	
5.1.	A	fetichização	do	discurso	jurídico	e	os	obstáculos	à	realização	dos	direitos:	uma
censura	significativa
	
É	neste	contexto	–	crise	de	paradigma	do	Direito	e	da	dogmática	 jurídica	–	que	devemos
permear	 a	 discussão	 acerca	 dos	 obstáculos	 que	 impedem	 a	 realização	 dos	 direitos	 em	 nossa
sociedade.	 Se	 é	verdade	a	afirmação	de	Clève	de	que	a	dogmática	 jurídica	é	 constituinte	do
saber	 jurídico	 instrumental	 e	 auxiliar	 da	 solução	 dos	 conflitos,	 individuais	 e	 coletivos,	 de
interesses	e	que	não	há	direito	sem	doutrina	e,	portanto,	sem	dogmática,162	então	é	também
razoável	 afirmar	 que	 o	 discurso	 jurídico-dogmático,	 instrumentalizador	 do	 Direito,	 é
importante	fator	impeditivo/obstaculizante	do	Estado	Democrático	de	Direito	em	nosso	país
–	e	portanto,	da	realização	da	 função	social	do	Direito	–,	 traduzindo-se	em	uma	espécie	de
censura	significativa.
À	evidência,	o	Judiciário	e	as	demais	instâncias	de	administração	da	justiça	são	atingidos
diretamente	por	essa	crise.	Com	efeito,	o	sistema	de	administração	da	justiça	(Magistratura,
Ministério	Público,	Advocacia	de	Estado,	Defensoria	Pública	e	Polícia)	consegue	enfrentar,	de
forma	mais	ou	menos	eficiente,	os	problemas	que	se	apresentam	rotinizados,	sob	a	forma	de
problemas	 estandardizados.	 Quando,	 porém,	 surgem	 questões	 macrossociais,
transindividuais,	 e	 que	 envolvem,	 por	 exemplo,	 a	 interpretação	 das	 ditas	 “normas
programáticas”	constitucionais,	tais	instâncias,	mormente	o	Judiciário,	procuram,	nas	brumas
do	senso	comum	teórico	dos	juristas,	 interpretações	despistadoras,	 tornando	inócuo/ineficaz	o
texto	constitucional.	 Isto	porque	o	“discurso-tipo”	(Veron)	da	dogmática	 jurídica	estabelece
os	 limites	 do	 sentido	 e	 o	 sentido	 dos	 limites	 do	 processo	 hermenêutico.	 Consequentemente,
estabelece-se	 um	 enorme	 hiato	 que	 separa	 os	 problemas	 sociais	 do	 conteúdo	 dos	 textos
jurídicos	que	definem/asseguram	os	direitos	individuais	e	sociais/fundamentais.
Por	isso,	insisto	na	importância	da	relação	entre	o	modo-de-fazer-Direito	e	a	concepção	de	Estado
vigente/dominante.	 Isso	 porque	 a	 inefetividade	 de	 inúmeros	 dispositivos	 constitucionais	 e	 a
constante	 redefinição	 das	 conquistas	 sociais	 através	 de	 interpretações
despistadoras/redefinitórias	feitas	pelos	Tribunais	brasileiros	têm	uma	direta	relação	com	o
modelo	 de	 hermenêutica	 jurídica	 que	 informa	 a	 atividade	 interpretativa	 da	 comunidade
jurídica.	Celso	Campilongo,163	apoiado	em	Ferraz	Jr.,	dá	algumas	pistas	sobre	o	problema,	ao
dizer	 que	 “a	 hermenêutica	 jurídica	 do	 Estado	 Liberal,	 vale	 dizer,	 de	 uma	 concepção	 de
Estado	de	Direito	exclusivamente	preocupada	com	a	preservação	da	liberdade	jurídica,	tinha
uma	orientação	de	bloqueio	–	interpretação	de	bloqueio	–	conforme	princípios	de	legalidade
e	 estrita	 legalidade	 como	 peças	 fundantes	 da	 constitucionalidade”.	 Ora,	 continua,	 “a
passagem	 do	 Estado	 Liberal	 para	 o	 EstadoSocial	 revelará,	 constantemente,	 os	 limites	 da
‘ideologia	da	fidelidade	à	lei’.	A	‘complicada	convivência’	do	Estado	de	Direito	com	o	chamado
Estado	 de	 Bem-Estar	 Social	 fica	 evidenciada	 pelo	 necessário	 recurso	 a	 novas	 categorias
cognitivas	 da	 parte	 do	 intérprete.	Caminha-se,	 assim,	 da	 hermenêutica	 de	 bloqueio	 para	 a
hermenêutica	de	‘legitimação	de	aspirações	sociais’”.
Claro	 que	 essa	 questão	 não	 se	 resume	 à	 contraposição	 de	 dois	modelos	 interpretativos.
Campilongo	 tem	 razão	 apenas	 em	parte.	De	 todo	modo,	 é	 de	 suma	 importância	 explicitar
duas	perspectivas	hermenêuticas:	o	exegetismo	e	o	pós-exegetismo,	problemática,	aliás,	que
ainda	não	foi	bem	compreendida	em	terras	brasileiras,	como	busco	explicar	no	decorrer	desta
obra.
Efetivamente,	 há	 um	 hiato	 (hermenêutico)	 entre	 a	 concepção	 de	 Direito	 vigorante	 no
modelo	de	Estado	Liberal	e	no	modelo	que	busca	a	sua	superação.	É	possível	perceber	que
esse	 problema	 se	 agrava	 em	 países	 que	 tardiamente	 ingressaram	 na	 esfera	 do	 Estado
Democrático	de	Direito.	Ou	seja,	a	(consequente)	crise	de	paradigma	de	dupla	face	(crise	do
paradigma	 liberal-individualista-normativista	 e	 crise	 do	 paradigma	 epistemológico	 da
filosofia	da	consciência)	retrata	a	incapacidade	histórica	da	dogmática	jurídica	em	lidar	com
os	 problemas	 decorrentes	 de	 uma	 sociedade	 díspar/excludente	 como	 a	 brasileira.164	 Na
verdade,	tais	problemas	são	deslocados	no	e	pelo	discurso	dogmático.	Cria-se	uma	espécie	de
transparência	discursiva.	Como	decorrência,	pode-se	dizer,	a	partir	das	lições	de	Sercovich,165
que	o	discurso	dogmático	se	torna	transparente,	gerando	uma	cadeia	significativa	no	interior
da	 qual	 as	 sequências	 discursivas	 remetem	 o	 usuário/operador	 jurídico	 diretamente	 à
realidade,	mediante	 o	 processo	 de	 ocultamento	 das	 condições	 de	 produção	 do	 sentido	 do
discurso.	A	este	fenômeno	podemos	denominar	de	“fetichização	do	discurso	jurídico”,	é	dizer,
através	do	discurso	dogmático,	a	lei	passa	a	ser	vista	como	sendo	uma-lei-em-si,	abstraída	das
condições	 (de	 produção)	 que	 a	 engendraram,	 como	 se	 a	 sua	 condição-de-lei	 fosse	 uma
propriedade	 “natural”.	 Consequentemente,	 complementando	 com	 o	 mesmo	 Sercovich,	 o
discurso	 dogmático	 transforma-se	 em	 uma	 imagem,	 na	 tentativa	 (ilusória)	 de	 expressar	 a
realidade-social-de-forma-imediata.	No	 fundo,	o	discurso	 jurídico	 transforma-se	 em	um	“texto
sem	sujeito”,	para	usar	a	terminologia	de	Pierre	Legendre.
	
	
5.2.	O	processo	de	(re)produção	do	sentido	jurídico	e	a	busca	do	“significante	primeiro”
ou	de	como	a	dogmática	jurídica	ainda	não	superou	os	paradigmas	que	se	sustentam
no	esquema	sujeito-objeto
	
O	 processo	 interpretativo/hermenêutico	 tem	 (deveria	 ter)	 um	 caráter	 produtivo,	 e	 não
meramente	 reprodutivo.	 Essa	 produção	 de	 sentido	 não	 pode,	 pois,	 ser	 guardada	 sob	 um
hermético	segredo,	como	se	sua	holding	fosse	uma	abadia	do	medievo.	Isto	porque	o	que	rege
o	 processo	 de	 interpretação	 dos	 textos	 legais	 são	 as	 suas	 condições	 de	 produção,	 as	 quais,
devidamente	 difusas	 e	 oculta(da)s,	 aparecem	 –	 no	 âmbito	 do	 discurso	 jurídico-dogmático
permeado	 pelo	 respectivo	 campo	 jurídico	 –	 como	 se	 fossem	 provenientes	 de	 um	 “lugar
virtual”,	ou	de	um	“lugar	fundamental”.
É	 preciso	 ter	 claro	 que	 as	 palavras	 da	 lei	 não	 são	 unívocas,	 mas	 plurívocas.	 O	 “elo”
(imanência)	que	“vinculava”	significante	e	significado	está	irremediavelmente	superado	pela
viragem	linguística	ocorrida	no	campo	da	filosofia.	Isto	porque	–	como	veremos	mais	adiante
–	alterou-se	 radicalmente	a	noção	de	conhecimento	como	relação	entre	pessoas	 (sujeitos)	 e
objetos,	percebendo-se	agora	na	relação	entre	pessoas	(atores	sociais)	e	proposições.166
Ainda	 assim,	 não	 obstante	 os	 avanços	 das	 teses	 antimetafísicas	 de	 cunho	 linguístico-
fenomenológicos,	 não	 é	 temerário	 dizer	 que	 a	 dogmática	 jurídica	 sofre	 ainda	 de	 uma
compulsiva	 lógica	 da	 aparência	 de	 sentidos,	 que	 opera	 como	 uma	 espécie	 de	 garantia	 de
obtenção,	 em	 forma	 retroativa,	 de	 um	 significado	 que	 já	 estava	 na	 lei	 desde	 sua
promulgação.167
Insisto	 que	 essa	 problemática	 é	 mais	 visível	 no	 âmbito	 dos	 juristas	 inseridos	 no	 senso
comum	teórico,	porque	seus	trabalhos	refletem	atitudes	sincretistas.	Acredita-se,	ao	mesmo
tempo	 e	 sob	 variações	 teóricas,	 no	 legislador	 como	 sendo	 uma	 espécie	 de	 onomaturgo
platônico168	e	que	o	Direito	permite	verdades	apofânticas.	Como	demonstrarei	a	seguir,	há
uma	 constante	 busca	 do	 “correto	 sentido	 da	 norma”	 (em	uma	 análise	 autossuficiente,	 que
prescinde	 da	 diferença	 ontológica),	 um	 sentido	 “dado”,	 um	 “sentido-em-si”,	 enfim,	 uma
espécie	de	“sentido-primevo-fundante”.
Mas,	atenção,	porque,	ao	mesmo	tempo,	forjou-se	um	imaginário	no	interior	do	qual,	sob
pretexto	de	superar	a	figura	do	juiz-boca-da-lei	–	que	era	o	protótipo	do	juiz	do	positivismo
primitivo-exegético-sintático	 –	 passou-se	 a	 apostar	 no	 protagonismo	 judicial.	 Com	 isso,
sentença	viria	de	 “sentire”,	 e	 as	decisões	 seriam	proferidas	 a	partir	 da	 consciência	do	 juiz.
Enfim,	 o	 triunfo	 do	 juiz	 solipsista,	 que	 coloca	 o	 sujeito	 da	 relação	 Sujeito-Objeto	 como	 o
“senhor	 dos	 sentidos”.	 Ou	 seja,	 do	 objetismo	 os	 juristas	 passa(ra)m	 rapidamente	 para	 o
subjetivismo	(na	verdade,	um	voluntarismo,	como	explicitado	no	decorrer	desta	obra).
De	registrar	que,	na	maior	parte	dos	casos	–	mormente	no	âmbito	do	senso	comum	teórico
dos	 juristas	 –	 ocorre	 uma	 fusão	 dos	 paradigmas	 aristotélico-tomista	 com	 as	 concepções
baseadas	no	paradigma	epistemológico	da	filosofia	da	consciência.	Mixagem	desse	jaez,	v.g.,
é	feita	por	Marco	Antonio	de	Barros,	quando,	ao	mesmo	tempo	em	que	afirma	ser	a	verdade
“a	adequação	ou	conformidade	entre	o	intelecto	e	a	realidade”,	sustenta	que	esta	é	fruto	da
inteligência	humana,	porque	“moldada	pelo	juízo	racional	e	não	pela	prova	ou	evidência	que
pode	 ser	 verídica	 ou	 falsa”.	 Entretanto,	 no	 plano	 da	 avaliação	 das	 provas,	 diz	 que	 a
“convicção	do	 juiz	é	 livre,	submete-se	a	sua	própria	consciência;	porém,	a	sua	decisão	deve
ser	 fundamentada	nas	 provas	 colhidas	 no	 curso	do	processo”.169	 Veja-se	 que	 a	 ressalva	 no
sentido	de	que	a	decisão,	 embora	 “de	 livre	 convicção”,	deve	 ser	 fundamentada	nas	provas
colhidas	 no	 curso	do	processo,	 seria	 relevante,	 não	 fosse	 exatamente	 a	 contradição	 entre	 “a
livre	convicção”	(solipsismo	judicial)	e	a	“fundamentação	nas	provas	processuais”.
Mais	 contemporaneamente,	 a	 dogmática	 jurídica	 vem	 apostando	 no	 paradigma
epistemológico	 que	 tem	 como	 escopo	 o	 esquema	 sujeito-objeto,	 no	 qual	 um	 sujeito
observador	 está	 situado	 em	 frente	 a	 um	 mundo,	 mundo	 este	 por	 ele	 “objetivável	 e
descritível”,	a	partir	de	seu	cogito	(filosofia	da	consciência).	Acredita-se,	pois,	na	possibilidade
da	existência	de	um	sujeito	cognoscente,	que	estabelece,	de	forma	objetificante,	condições	de
interpretação	e	aplicação.	O	jurista,	de	certo	modo,	percorre	a	antiga	estrada	do	historicismo.	Não
se	considera	 já	e	sempre	no	mundo,	mas,	sim,	considera-se	como	estando-em-frente-a-esse-
mundo,	o	qual	ele	pode	conhecer,	utilizando-se	do	“instrumento”	(terceira	coisa)	que	é	a	linguagem
jurídica...!
	
	
5.3.	O	sentido	da	interpretação	e	a	interpretação	do	sentido	ou	de	como	a	dogmática
jurídica	(continua)	interpreta(ndo)	a	lei:	no	centro	do	debate,	a	história	do	positivismo
jurídico	e	as	tentativas	de	sua	superação	–	do	exegetismo	(e	pandectismo)	à
jurisprudência	dos	valores	(isto	é,	da	“razão”	à	“vontade”)
	
Para	uma	melhor	compreensão	do	acima	exposto,	faz-se	necessária	uma	análise	acerca	do
modus	 interpretativo	vigente/dominante	no	cotidiano	dos	 juristas.	Inúmeros	autores	e	teses
pode(ria)m,	 aqui,	 ser	 esmiuçadas.Algumas,	 porém,	 pela	 sua	 importância	 (que	 têm	 e	 que
tiveram)	na	dogmática	jurídica,	merecem	destaque.	Assim,	começando	por	Aníbal	Bruno,170
interpretar	a	 lei	 é	penetrar-lhe	o	verdadeiro	e	exclusivo	sentido,	 sendo	que,	quando	a	 lei	é
clara	 (in	 claris	 non	 fit	 interpretatio),	 a	 interpretação	 é	 instantânea.	 Conhecido	 o	 texto,
complementa	 o	 autor,	 aprende-se	 imediatamente	 o	 seu	 conteúdo.	 De	 certo	 modo,	 Bruno
acreditava	na	busca	do	sentido	primevo	da	norma	(texto	jurídico),	na	medida	em	que	falava
da	 possibilidade	 de	 o	 intérprete	 apreender	 “o	 sentido	 das	 palavras	 em	 si	 mesmas”.	 Por	 trás
(e/ou	próximo)	da	concepção	defendida	por	Bruno	–	que	ainda	impera	no	âmbito	do	senso
comum	 teórico	 dos	 juristas	 –	 estão,	 entre	 outras	 questões,	 a	 teoria	 correspondencial	 da
verdade	 e	 a	 crença	 de	 que	 existe	 uma	 natureza	 intrínseca	 da	 realidade.	 Neste	 caso,	 a
linguagem	 tem	 um	 papel	 secundário,	 qual	 seja,	 a	 de	 servir	 de	 veículo	 para	 a	 busca	 de
verdadeira	“essência”	do	Direito	ou	do	texto	jurídico-normativo.
Na	mesma	 linha,	Paulo	Nader171	 entende	que	 interpretar	 a	 lei	 é	 fixar	o	 sentido	de	uma
norma	e	descobrir	a	sua	finalidade,	pondo	a	descoberto	os	valores	consagrados	pelo	legislador.
Para	ele,	 todo	 subjetivismo	deve	 ser	 evitado	 durante	 a	 interpretação,	 devendo	o	 intérprete	 visar
sempre	à	realização	dos	valores	magistrais	do	Direito:	 justiça	e	segurança,	que	promovem	o
bem	comum.
Carlos	 Maximiliano,172	 autor	 da	 clássica	 obra	 sobre	 hermenêutica,	 entendia	 que
interpretar	é	a	busca	do	esclarecimento,	do	significado	verdadeiro	de	uma	expressão;	é	extrair	de
uma	frase,	de	uma	sentença,	de	uma	norma,	tudo	o	que	na	mesma	se	contém.	Aproximava-se	–	e
não	é	temerário	afirmar	isto	–	da	tese	objetivo-idealista	defendida	por	Emilio	Betti,	pela	qual
era	 possível	 a	 reprodução	 do	 sentido	 originário	 da	 norma.	 A	 tradição	 hermenêutica
inaugurada	por	Maximiliano	no	Brasil	tem	uma	similitude	com	a	hermenêutica	normativa	de
Betti,	 isto	é,	uma	hermenêutica	que	dá	regras	para	a	 interpretação,	as	quais	dizem	respeito
tanto	ao	objeto	como	ao	sujeito	da	interpretação.
Mais	 contemporaneamente,	 Maria	 Helena	 Diniz	 entende	 que	 interpretar	 é	 descobrir	 o
sentido	 e	 o	 alcance	 da	 norma,	 procurando	 a	 significação	 dos	 conceitos	 jurídicos.	 Para	 ela,
interpretar	 é	 explicar,	 esclarecer;	 dar	 o	 verdadeiro	 significado	 do	 vocábulo;	 extrair,	 da	 norma,
tudo	o	que	nela	se	contém,	revelando	seu	sentido	apropriado	para	a	vida	real	e	conducente	a
uma	 decisão.173	 É	 possível	 perceber	 nessa	 “busca	 do	 verdadeiro	 sentido	 da	 norma”	 e	 na
“revelação”	que	deve	ser	feita	pelo	intérprete,	a	(forte)	presença	da	dicotomia	sujeito-objeto,
própria	da	filosofia	da	consciência,	em	que	a	linguagem	é	um	tertius	apto	a	buscar	“verdades
silentes”.	 Tal	 concepção	 é	 ainda	 dominante	 na	 doutrina	 brasileira.	 Não	 discordante	 é	 a
posição	de	José	Eduardo	Soares	de	Melo,174	que	sustenta	que	“todo	e	qualquer	aplicador	do
Direito	(magistrado,	autoridade	pública,	particular	etc.)	deve,	sempre,	descobrir	o	real	sentido
da	regra	jurídica,	apreender	o	seu	significado	e	extensão”.
Embora	chame	a	atenção	para	o	 fato	de	que	“o	 juiz	 julga	segundo	a	 lei,	não	 julga	a	 lei”,
Ronaldo	 Poletti175	 rende-se	 para	 a	 relevante	 circunstância	 de	 que,	 “por	mais	 que	 o	 jurista
busque	a	expressão	clara	de	uma	linguagem	precisa	e	que	o	formulador	da	norma	a	manifeste
de	forma	escorreita,	sempre	haverá	dúvidas	e	necessidade	de	interpretar,	até	porque	o	direito
é	 um	 conjunto	 integrado	 de	 normas	 e	 de	 institutos.	 Não	 prescindem	 eles	 de	 uma
interpretação,	 como	 já	 foi	dito,	para	 a	 sua	aplicação.	Na	verdade,	 o	direito	 é	 também	uma
arte	e	os	juristas	são	artistas	que	o	interpretam”.
A	posição	de	Paulo	Dourado	de	Gusmão176	não	distoa	do	que,	de	forma	predominante,	a
doutrina	 brasileira	 entende	 como	 processo	 hermenêutico.	 Para	 Gusmão,	 pelo	 processo
interpretativo	 se	 estabelece	 o	 exato	 sentido	 da	 norma,	 o	 seu	 alcance,	 as	 suas	 consequências
jurídicas	e	os	elementos	constitutivos	do	caso	típico	previsto	pela	norma.	Também	Arnoldo
Wald,177	na	mesma	linha,	acredita	na	possibilidade	da	existência	do	sentido	exato	da	norma.
Registre-se	que,	apesar	das	críticas	que	podem	ser	feitas	à	hermenêutica	de	Maximiliano,
esse	 autor,	 em	 toda	 a	 sua	 trajetória,	 sustentou	 que	 a	 interpretação	 de	 um	 texto	 é	 sempre
necessária,	rejeitando	a	tese	do	in	claris	cessat	interpretatio.	No	mesmo	sentido,	Caio	Mário	da
Silva	Pereira,	que	diz	que	toda	lei	está	sujeita	a	 interpretação.	Toda	norma	 jurídica	tem	de	ser
interpretada,	porque	o	direito	objetivo,	qualquer	que	seja	a	sua	roupagem	exterior,	exige	seja
entendido	para	 ser	 aplicado,	 e	neste	 entendimento	vem	consignada	a	 sua	 interpretação.178
Na	mesma	linha,	no	Brasil,	Arnoldo	Wald,	Eduardo	Espínola,	Virgílio	de	Sá	Pereira	e	Paulo
de	Lacerda;	 na	doutrina	 alemã,	 Savigny,	Windscheid,	 Biermann,	Kiss,	 Bierling	 e	Gmür;	 na
doutrina	 italiana,	 entre	 outros,	 Coviello,	 Chironi	 e	 Abbello,	 Lomonaco,	 Pacifici-Mazzoni,
Filomusi-Guelfi,	Caldara,	De	Filipis,	Gianturco,	Degni	e	Mario	Rotondi;	na	França,	Planiol	e
Aubry	e	Rau.179
Em	 sentido	 contrário,	 defendendo	 uma	 posição	 (que	 pode	 ser	 considerada	 ortodoxa),
podem	ser	encontrados	autores	como	Washington	de	Barros	Monteiro,180	que	entende	que	“a
lei	quase	sempre	é	clara,	hipótese	em	que	descabe	qualquer	trabalho	interpretativo	(lex	clara
non	 indiget	 interpretatione)”.	 Antes	 dele,	 Paula	 Baptista181	 dizia	 que	 “interpretação	 é	 a
exposição	do	verdadeiro	sentido	de	uma	lei	obscura	por	defeito	de	sua	redação,	ou	duvidosa
com	relação	aos	fatos	ocorrentes,	ou	silenciosa.	Por	conseguinte,	não	tem	lugar	sempre	que	a
lei,	em	relação	aos	fatos	sujeitos	ao	seu	domínio,	é	clara	e	precisa”.
Concordando	 com	 Monteiro,	 outro	 expoente	 da	 doutrina	 jurídica	 brasileira,	 o	 civilista
Sílvio	 Rodrigues182	 acentua	 que	 “a	 necessidade	 da	 interpretação	 é	 indiscutível	 e,	 exceto
naqueles	 casos	 em	que	 o	 sentido	da	 norma	 salta	 em	 sua	 absoluta	 evidência,	 o	 trabalho	de
exegese	 se	 apresenta	 continuamente	 ao	 jurista”.	 No	 mesmo	 sentido,	 sustentado	 no
doutrinador	 belga	 Laurent,	 José	 Paulo	 Cavalcanti183	 sufraga	 a	 tese	 da	 desnecessidade	 da
interpretação	 das	 leis	 claras,	 aduzindo	 que	 a	 tese	 de	 que	 todas	 as	 leis	 necessitam	 ser
interpretadas	é	 simplista,	uma	vez	que	qualquer	pretendida	 interpretação	de	uma	 lei	 clara
somente	 pode	 levar	 ou	 a	 transgredi-la	 (“sob	 o	 pretexto	 de	 penetrar-lhe	 o	 espírito”),	 como
observou	Laurent,	ou	a	repetir	com	outras	palavras	seu	evidente	significado.
Por	 trás	 de	 todas	 essas	 concepções	 está	 o	 desenvolvimento	 histórico	 do	 positivismo	 e	 a
busca	de	sua	superação.	O	positivismo	é	uma	postura	científica	que	se	solidifica	de	maneira
decisiva	 no	 século	 XIX.	O	 “positivo”	 a	 que	 se	 refere	 o	 termo	 positivismo	 é	 entendido	 aqui
como	sendo	os	fatos	(lembremos	que	o	neopositivismo	lógico	também	teve	a	denominação	de
“empirismo	 lógico”).	 Evidentemente,	 fatos,	 aqui,	 correspondem	 a	 uma	 determinada
interpretação	da	realidade	que	engloba	apenas	aquilo	que	se	pode	contar,	medir	ou	pesar	ou,
no	limite,	algo	que	se	possa	definir	por	meio	de	um	experimento.
No	 âmbito	 do	 Direito,	 essa	 mensurabilidade	 positivista	 será	 encontrada	 num	 primeiro
momento	 no	 produto	 do	 parlamento,	 ou	 seja,	 nas	 leis,	 mais	 especificamente,	 num
determinado	 tipo	de	 lei:	 os	Códigos.	É	preciso	destacar	que	esse	 legalismo	apresenta	notas
distintas,	 na	 medida	 em	 que	 se	 olha	 esse	 fenômeno	 numa	 determinada	 tradição	 jurídica
(como	exemplo,	podemos	nos	referir	ao	positivismo	inglês	–	perspectiva	analítica,	de	cunho
utilitarista;	 ao	 positivismo	 francês,	 no	 qual	 predominava	 o	 exegetismoda	 legislação;	 e	 ao
alemão,	 no	 interior	 do	 qual	 é	 possível	 perceber	 o	 florescimento	 do	 chamado	 formalismo
conceitual	que	se	encontra	na	raiz	da	chamada	jurisprudência	dos	conceitos	–	pandectismo).
No	que	tange	às	experiências	francesas	e	alemãs,	isso	pode	ser	debitado	à	forte	influência
que	 o	 direito	 romano	 exerceu	 na	 formação	 de	 seus	 respectivos	 direitos	 privados.	 Não	 em
virtude	do	que	 comumente	 se	pensa	–	de	que	os	 romanos	“criaram	as	 leis	 escritas”	–,	mas
sim,	em	virtude	do	modo	como	o	direito	romano	era	estudado	e	ensinado.	Isso	que	se	chama
de	 exegetismo	 tem	 sua	 origem	 aí:	 havia	 um	 texto	 específico	 em	 torno	do	 qual	 giravam	os
mais	 sofisticados	 estudos	 sobre	 o	 direito.	 Este	 texto	 era	 –	 no	 período	 pré-codificação	 –	 o
Corpus	Juris	Civilis.	A	codificação	efetua	a	seguinte	“marcha”:	antes	dos	códigos,	havia	uma
espécie	de	 função	complementar	atribuída	ao	Direito	Romano.	Aquilo	que	não	poderia	 ser
resolvido	pelo	Direito	Comum	seria	resolvido	segundo	critérios	oriundos	da	autoridade	dos
estudos	sobre	o	Direito	Romano	–	dos	comentadores	ou	glosadores.	O	movimento	codificador
incorpora,	 de	 alguma	 forma,	 todas	 as	 discussões	 romanísticas	 e	 acaba	 “criando”	 um	 novo
dado:	os	Códigos	Civis	(França,	1804,	e	Alemanha,	1900).
Neste	 contexto,	 a	 função	 de	 complementaridade	 do	 direito	 romano	 desaparece
completamente.	Toda	argumentação	jurídica	deveria	tributar	seus	méritos	aos	Códigos,	que
passaram	a	possuir,	a	partir	de	então,	a	estatura	de	verdadeiros	“textos	sagrados”.	Isso	porque
eles	seriam	o	dado	positivo	com	o	qual	deveria	lidar	a	Ciência	do	Direito.	É	claro	que,	já	nesse
período,	apareceram	problemas	relativos	à	interpretação	desses	“textos	sagrados”.
Com	o	passar	do	tempo,	desenvolveu-se	a	percepção	acerca	da	incapacidade	dos	Códigos
abarcarem	 toda	 a	 realidade	 circundante,	 principalmente	 em	 virtude	 dos	 embates	 teóricos
acerca	 da	 existência	 de	 lacunas	 legislativas.	 Mas,	 então,	 como	 controlar	 o	 exercício	 da
interpretação	 do	 direito	 para	 que	 essa	 obra	 não	 fosse	 “destruída”?	 E,	 juntamente,	 como
excluir	da	interpretação	do	direito	os	elementos	metafísicos	que	não	eram	bem	quistos	pelo
modo	positivista	de	ler	a	realidade?	Num	primeiro	momento,	a	resposta	será	dada	a	partir	de
uma	análise	da	própria	 codificação:	 a	Escola	da	Exegese,	na	França,	 e	 a	 Jurisprudência	dos
Conceitos,	na	Alemanha.
Esse	primeiro	quadro	eu	apresento,	em	minhas	pesquisas	–	e	aqui	 talvez	resida	parte	do
“criptograma	 do	 positivismo”	 –,	 como	 positivismo	 primevo	 ou	 positivismo	 exegético,
também	 denominado	 de	 “positivismo	 legalista”	 (Castanheira	 Neves).	 A	 principal
característica	desse	“primeiro	momento”	do	positivismo	jurídico,	no	que	tange	ao	problema
da	interpretação	do	direito,	será	a	realização	de	uma	análise	que,	nos	termos	propostos	por
Rudolf	 Carnap,184	 poderíamos	 chamar	 de	 sintático.	 Neste	 caso,	 a	 simples	 determinação
rigorosa	 da	 conexão	 lógica	 dos	 signos	 que	 compõem	 a	 “obra	 sagrada”	 (Código)	 seria	 o
suficiente	para	 resolver	o	problema	da	 interpretação	do	direito.	Assim,	 consequentemente,
conceitos	 como	 o	 de	 analogia	 e	 princípios	 gerais	 do	 direito	 devem	 ser	 encarados	 também
nessa	 perspectiva	 de	 construção	 de	 um	 quadro	 conceitual	 rigoroso	 que	 representariam	 as
hipóteses	 –	 extremamente	 excepcionais	 –	 de	 inadequação	 dos	 casos	 às	 hipóteses
legislativas.185
Num	segundo	momento,	aparecem	propostas	de	aperfeiçoamento	desse	“rigor”	lógico	do
trabalho	científico	proposto	pelo	positivismo.	É	esse	segundo	momento	que	podemos	chamar
de	positivismo	normativista.	Aqui	há	uma	modificação	significativa	com	relação	ao	modo	de
trabalhar	e	aos	pontos	de	partida	do	“positivo”,	do	“fato”.	As	primeiras	décadas	do	século	XX
viram	crescer,	de	um	modo	avassalador,	o	poder	regulatório	do	Estado	–	que	se	intensificará
nas	décadas	de	30	e	40	–	e	a	 falência	dos	modelos	 sintático-semânticos	de	 interpretação	da
codificação	 se	 apresentaram	 completamente	 frouxos	 e	 desgastados.186	 O	 problema	 da
indeterminação	do	sentido	do	Direito	aparece,	então,	em	primeiro	plano.
É	 nesse	 ambiente,	 nas	 primeiras	 décadas	 do	 século	 XX,	 que	 aparece	 Hans	 Kelsen.187
Certamente,	 Kelsen	 não	 quer	 destruir	 a	 tradição	 positivista	 que	 foi	 construída	 pela
Jurisprudência	dos	Conceitos.	Pelo	contrário,	é	possível	afirmar	que	seu	principal	objetivo	era
reforçar	o	método	analítico	proposto	pelos	conceitualistas	de	modo	a	responder	ao	crescente
desfalecimento	 do	 rigor	 jurídico	 que	 estava	 sendo	 propagado	 pelo	 crescimento	 da
Jurisprudência	dos	Interesses	e	da	Escola	do	Direito	Livre	–	que	favoreciam,	sobremedida,	o
aparecimento	de	argumentos	psicológicos,	políticos	e	ideológicos	na	interpretação	do	direito.
Isso	é	feito	por	Kelsen	a	partir	de	uma	radical	constatação:	o	problema	da	interpretação	do
direito	 é	 muito	mais	 semântico	 do	 que	 sintático.	 Desse	 modo,	 temos	 aqui	 uma	 ênfase	 na
semântica.
Aqui,	 importante	 registrar	 um	 esclarecimento:	 quando	 falo	 em	 uma	 ênfase	 semântica,
estou	me	referindo	explicitamente	ao	problema	da	 interpretação	do	direito	 tal	qual	é	descrito
por	Kelsen	no	fatídico	capítulo	VIII	de	sua	Reine	Rechtslehre.	Para	compreendermos	bem	essa
questão,	é	preciso	 insistir	em	um	ponto:	há	uma	cisão	em	Kelsen	entre	direito	e	ciência	do
direito	 que	 irá	 determinar,	 de	 maneira	 crucial,	 seu	 conceito	 de	 interpretação.	 De	 fato,
também	 a	 interpretação,	 em	 Kelsen,	 será	 fruto	 de	 uma	 cisão:	 interpretação	 como	 ato	 de
vontade	 e	 interpretação	 como	 ato	de	 conhecimento.	A	 interpretação	 como	 ato	de	 vontade
produz,	 no	 momento	 de	 sua	 “aplicação”,	 normas.	 Esta	 interpretação,	 denominada	 de
autêntica,	seria	a	única	capaz	de	criar	direito,	não	por	intermédio	de	um	conhecimento	puro,
mas	 no	 exercício	 de	 política	 jurídica,	 influenciada	 por	 noções	 de	 justiça,	 moral	 dentre
outras.188	 Já	 a	 descrição	 dessas	 normas	 deveria	 ocorrer	 de	 forma	 objetiva	 e	 neutral	 –
interpretação	 como	 ato	 de	 conhecimento	 –	 produzindo	 apenas	 proposições,	 que	 não
possuiriam	obrigatoriedade.
Kelsen	 não	 intentava	 fazer	 uma	 ciência	 do	 direito	 puro,	 esta	 perspectiva	 impediria
qualquer	empreendimento	científico,	 já	que	esta	pureza	estaria	ligada	a	ideia	de	um	direito
justo,	correto,	e,	obviamente,	eivada	de	juízos	de	valor	e	perspectivas	políticas,	todas	para	ele
contingenciais.189	 De	 modo	 diverso,	 intentava	 construir	 uma	 ciência	 pura	 do	 direito	 por
intermédio	de	um	processo	de	despolitização,	não	do	direito,	mas	de	sua	ciência,	que	deveria
estudar	e	descrever	o	jurídico	naquilo	que	lhe	é	fundamental	e	geral,	constante	em	qualquer
tempo	e	espaço.190	A	TPD	é	uma	metalinguagem	da	linguagem	objeto,	um	modo	de	corrigir
a	 inevitável	 indeterminação	 do	 sentido	 do	 direito,	 seja	 decorrente	 da	 plurivocidade	 das
palavras	ou	dos	juízos	políticos,	morais,	ideológicos	etc.	Seria	uma	terapia	lógica	–	da	ordem
do	 a	 priori	 –	 que	 garantisse	 que	 a	 ciência	 do	 Direito	 se	 movimentasse	 em	 um	 solo	 lógico
rigoroso.	 Isso	 evidencia	uma	 relação	direta	 com	os	 resultados	das	pesquisas	 levadas	a	 cabo
pelo	Círculo	de	Viena.
No	que	tange	a	aplicação	do	Direito,	Kelsen,	ciente	da	polissemia	dos	signos	linguísticos,
conclui	que	sempre	haverá	um	espaço	de	mobilidade	para	o	 intérprete.191	A	aplicatio	 –	que
está	fora	da	ciência	do	direito	–	sempre	será	um	ato	de	vontade,	uma	escolha	de	qualquer	das
possibilidades	 normativas	 elencadas	 pela	 ciência	 do	 direito	 na	 moldura	 normativa.	 Nesta
área,	 a	 atividade	 da	 ciência	 do	 direito	 estaria	 limitada	 à	 apresentar	 os	 vários	 significados
possíveis	 de	 uma	 determinada	 norma,	 contudo,	 sem	 jamais	 indicar	 uma	 ou	 outra	 como	 a
correta.	Deste	modo,	 caberia	à	volição	do	 intérprete	a	decisão.	Na	segundaedição	da	TPD,
Kelsen	defende	que	o	órgão	julgador	pode	decidir	de	modo	completamente	diverso	de	todas
as	significações	enunciadas	pela	ciência	 jurídica.192	Neste	caso,	produz	direito	novo,	que	se
não	reformado,	será	também	objeto	da	análise	do	conhecimento	científico	do	Direito.
O	voluntarismo	de	Kelsen	e	a	consequente	discricionariedade,	não	são	resultantes	de	um
tratamento	superficial	dado	à	interpretação,	ao	contrário,	refletem	sua	visão	de	mundo	e	uma
incapacidade	constitutiva	de	suas	premissas	teóricas,	sobretudo,	a	construção	neopositivista
de	ciência.
Kelsen	 era	 uma	 relativista	 moral	 e	 acreditava	 que	 o	 positivismo	 jurídico	 estava
necessariamente	 relacionado	 com	 o	 relativismo.	Defendia	 que	 a	 ideia	 de	 valores	 absolutos
estaria	 além	 do	 conhecimento	 racional193	 e	 que	 a	 moralidade	 social	 seria	 mutável	 de
indivíduo	 para	 indivíduo.	 Consequentemente,	 o	 direito	 passível	 da	 elaboração	 científica
somente	 poderia	 ser	 o	 positivo,	 produzido	 por	 atos	 humanos,	 pela	 vontade.	 Esta,
inexoravelmente	 sofreria	 influências	 diversas,	 por	 isso,	 seria	 necessário	 um	 processo	 de
purificação	 científica	 seja	do	material	 legislado	ou	da	norma	de	decisão	por	 intermédio	de
um	 ato	 de	 conhecimento.	 A	 aplicação	 do	 direito,	 por	 ser	 um	 ato	 de	 vontade,	 de	 política
jurídica,	 fatalmente,	 em	 sua	 manifestação,	 não	 seria	 passível	 de	 controle.	 A	 interpretação
autêntica	estaria	eivada	de	subjetivismos	provenientes	de	uma	razão	prática	solipsista.	Para	o
autor	austríaco	esse	“desvio”	é	impossível	de	ser	corrigido.
Sendo	bem	incisivo	e	usando	as	palavras	do	próprio	Kelsen:	“La	teoría	pura	del	derecho	es
positivismo	 jurídico,	 es	 simplesmente	 la	 teoría	 del	 positivismo	 jurídíco;	 y	 el	 positivismo
jurídico	 está	 intimamente	 vinculado	 con	 el	 relativismo”(sic).194	 Sem	dúvida,	 absolutamente
esclarecedor.	 Kelsen	 vai	 à	 raiz	 de	 um	 problema	 pouco	 compreendido	 pelos	 estudiosos	 do
positivismo	jurídico.	Ou	seja,	é	evidente	que	todo	o	positivismo	é	relativista.	Positivismo	está
relacionado	a	convencionalismo.	Por	isso,	os	sofistas	foram	os	primeiros	positivistas,	porque
fizeram	a	desindexação	entre	palavras	e	coisas.	Logo,	para	os	sofistas	–	na	exata	linha	do	lema
de	 Protágoras	 –	 o	 homem	 é	 a	 medida	 de	 todas	 as	 coisas.	 Desse	 modo,	 Hobbes	 foi	 um
autêntico	 positivista,	 porque	 o	 direito	 é	 produto	 do	 soberano,	 sem	 que	 esse	 direito	 esteja
ligado	a	qualquer	ontologia,	 valores	ou	ontoteologia.	Essa	questão	pode	 ser	vista	de	 forma
mais	 sofisticada	 na	 vontade	 de	 poder	 (Wille	 zur	 Macht)	 nietzchiana.	 Do	 mesmo	 modo,	 o
legislador	 do	 novo	 regime	 (Revolução	 Francesa)	 tem	 total	 liberdade	 para	 dizer	 o	 que	 é
direito.	 Logo,	 o	 elemento	 central	 é	 a	 discrionariedade.	 Essa	 discricionariedade,	 com	 o
crescimento	da	jurisdição	constitucional,	é	deslocada	para	o	Poder	Judiciário	ou	os	Tribunais
Constitucionais,	 sob	 o	 pálio	 dos	 princípios,	 que,	 segundo	 as	 correntes	 axiologistas
contemporâneas	(e	nisso	se	inclui,	naturalmente,	o	neoconstitucionalismo),	representa(ria)m
a	introdução	dos	“valores”	no	direito.	Ora,	como	se	as	regras	não	traduzissem	valores,	ética
ou	política.	Por	trás	disso	está	a	cisão	estrutural	regra-princípio.
Assim,	a	admissão	da	discricionariedade	no	atual	estágio	do	Direito	é,	sim,	uma	forma	de
positivismo,	na	esteira	do	denunciado	por	Dworkin	no	seu	debate	com	Hart.	Relativismo	e
convencionalismo	 são	 formas	 de	 pragmiti(ci)smo,	 todas	 ligadas,	 de	 algum	 modo,	 ao
nominalismo	 filosófico,	denúncia,	aliás,	 já	 feita	por	Michel	Villey,	em	sua	obra	Formação	 do
Pensamento	Jurídico	Moderno.
Numa	palavra:	a	afirmação	kelseniana	apenas	reflete	algo	que	eu	 já	vinha	afirmando	há
tempos,	antes	de	ter	contato	com	essa	específica	obra	do	mestre	de	Viena.	Ora,	o	pessimismo
moral,	 a	 discricionariedade	 da	 moldura	 da	 norma	 e	 o	 fatalismo	 sistêmico	 (que	 chega	 a
considerar	 como	direito	mesmo	normas	 criadas	 fora	 da	moldura,	 desde	 que	definitivas	 no
sistema,	v.g.,	uma	sentença	acobertada	pela	 coisa	 julgada)	 já	 colocavam	a	 teoria	kelseniana
dentro	do	relativismo.	A	novidade	da	afirmação	reside,	talvez,	no	fato	de	ser	sacramentado
por	 Kelsen,	 dizendo	 que	 uma	 característica	 comum	 a	 todo	 positivismo	 é,	 exatamente,	 o
relativismo.	E	 essa	 característica	persegue	o	positivismo	desde	Hobbes,	 na	 linha	defendida
por	Villey.
A	discrionariedade	no	positivismo	normativista	de	Kelsen	reside	no	 fato	de	que	o	órgão
aplicador	 poderia	 escolher	 por	 qualquer	 possibilidade	 de	 significado	 presente	 na	moldura
normativa,	 ou	 por	 algo	 absolutamente	 diverso,	 que	 senão	 reformado	 tornar-se-ia	 direito
novo.	 Neste	 aspecto,	 aproxima-se	 do	 Realismo	 Jurídico	 ou	 Positivismo	 Fático	 no	 qual	 o
Direito	seria	aquilo	que	os	tribunais	dizem	que	é.
Nesse	sentido,	aliás,	caminha	Oliver	Jouanjan,	que	sustenta	que	não	se	encontra	em	Kelsen
uma	metodologia	 acerca	 de	 como	 seria	 formada	 a	moldura	 normativa	 tampouco	 o	modus
operandi	 do	 arbítrio.	 Isto	 é,	 ao	 final,	 recai	 tão	 somente	 na	 vontade	 do	 intérprete	 tanto	 as
significações	 normativas	 possíveis	 quando	 a	 definição	 da	 norma.	 Citando	 Michel	 Troper,
conclui	que	a	 interpretação	em	Kelsen	transforma-se	em	um	realismo	 jurídico	radical.	“Em
resumo,	a	partir	do	momento	em	que	esta	autoridade	escolhe	o	texto,	ao	olhar	dos	fatos	que
ele	 qualifica	 livremente,	 e	 insere	 ela	 própria	 neste	 texto	 a	 norma	 que	 ela	 haverá	 criado
livremente,	quase	não	há	mais	espaço	para	a	ideia	de	uma	aplicação	de	normas,	se	este	termo
deve	 ter	 um	 sentido.	 A	 interpretação	 torna-se	 uma	 operação	 puramente	 volitiva	 desde	 o
instante	em	que	se	mostra	impossível	fixar	o	momento	cognitivo.	A	motivação	da	decisão	de
‘aplicação’	pode	ter	como	único	objetivo	mascarar	o	processo	real	de	decisão:	um	remendo	a
posteriori.	 O	 ‘normativismo’	 Kelseniano	 abre	 em	 realidade	 a	 porta	 para	 um	 puro
‘decisionismo’”.195	E,	na	mesma	linha:	“Ahora	bien,	hemos	visto	Kelsen	atacar	esta	tesis	de
Gray,	cuando	su	propia	teoria	de	 la	 interpretación,	presentada	en	un	apéndice	de	 la	Teoría
Pura,	en	su	segunda	edición,	debería	conducir	a	conclusiones	análogas	a	de	los	realistas.	(...)
Pero,	en	realidad,	la	tesis	realista	no	implica	en	absoluto	la	idea	de	una	substutición	de	una
norma	por	otra.	Se	basa,	al	contrario,	en	la	proposición	según	la	cual	no	existe	un	significado
verdadero	de	la	ley,	distinto	del	determinado	por	la	interpretación	auténtica.	Por	lo	tanto,	no
pode	haber	ninguna	contradición	entre	la	ley	y	la	interpretación	del	juiz.	Es	significado	de	la
ley	 y	 la	 interpretación	 del	 juez.	 El	 significado	 de	 la	 ley	 o,	 en	 otros	 términos,	 la	 norma
legislativa,	es	determinada	por	el	juez”.196
Esses	 pontos	 são	 fundamentais	 para	 podermos	 compreender	 o	 positivismo	 que	 se
desenvolveu	no	século	XX	e	o	modo	como	encaminho	minhas	críticas	nessa	área	da	teoria	do
direito.	 Sendo	mais	 claro:	 falo	 desse	 positivismo	normativista,	 não	de	um	 exegetismo	que,
como	pôde	 ser	demonstrado,	 já	havia	dado	 sinais	de	exaustão	no	 início	do	 século	passado.
Numa	palavra:	Kelsen	já	havia	superado	o	positivismo	exegético,	mas	abandonou	o	principal
problema	 do	 direito	 –	 a	 interpretação	 concreta,	 no	 nível	 da	 “aplicação”.	 E	 nisso	 reside	 a
“maldição”	de	sua	tese.	Não	foi	bem	entendido,	quando	ainda	hoje	se	pensa	que,	para	ele,	o
juiz	 deve	 fazer	 uma	 interpretação	 “pura	 da	 lei”...!	 Têm-se,	 assim,	 dois	 entendimentos
equivocados	acerca	da	obra	de	Kelsen:	de	um	 lado,	aqueles	que	acreditam	que	ele,	Kelsen,
pregava	a	“pureza	hermenêutica”	da	lei;	de	outro,	aqueles,	sustentados	no	oitavo	capítulo	da
TPD,	 descobriram	 que	 a	 interpretação	 “é	 um	 ato	 de	 vontade”.	 Nenhum	 dos	 grupos	 tem
razão.
Em	 resumo,	 nas	 diversas	 tentativas	 de	 superaçãodo	 positivismo	 primitivo	 (nas	 suas
variadas	 tradições	“nacionais”),	construíram-se	 teses	voluntaristas-axiologistas,	passando	da
“razão”	para	a	“vontade”.	É	possível	dizer	que	cada	um	dos	“positivismos	nacionais”	teve	sua
antítese:	o	movimento	do	direito	livre,	na	França,	o	realismo	norte-americano	e	escandinavo,
no	direito	do	common	law,	e	a	Jurisprudência	dos	Interesses,	na	Alemanha.	Aliás,	com	Losano
é	possível	afirmar	que	o	chamado	movimento	do	direito	 livre	 se	encontra	na	 raiz	de	 todas
essas	posturas	teóricas	que	tinham	como	pano	de	fundo	a	libertação	do	julgador	das	rígidas
estruturas	 formais	que	o	conceitualismo	do	século	XVIII	havia	 legado	à	moderna	e	agitada
sociedade	 do	 século	 XIX.	 Assim,	 já	 no	 final	 dos	 novecentos	 aparece	 na	 França	 a	 obra	 de
François	 Gény	 sobre	 a	 interpretação	 (1889),	 que	 marcará	 o	 início	 desse	 movimento
pretensamente	 “libertário”.	 Muitos	 dos	 postulados	 de	 Gény	 estarão	 presentes	 de	 forma
aproximada	tanto	nas	posturas	dos	realistas	estadunidenses	(tais	quais:	Cardozo	e	Holmes)	e
também	na	Alemanha	e	na	Áustria.	Esse	caráter	“internacional”	desses	postulados	teóricos	é
que	levará	a	nomeá-los	como	“movimento”197.	Na	Alemanha,	onde	os	estudos	sobre	o	direito
livre	foram	mais	vigorosos,	destaca-se	a	figura	de	Hermman	Kantorowicz	que,	inspirado	no
segundo	Ihering	–	o	Ihering	da	“finalidade	do	direito”,	vale	dizer	–,	publica	em	1905,	sob	o
pseudônimo	 Gnaeus	 Flavius,	 o	 famigerado	 panfleto	 intitulado	 Der	 Kampf	 um	 die
Rechtswissenschaft	 (A	 luta	 pela	 Ciência	 do	 Direito)	 que	 pretendia	 unificar,	 em	 um	 único
movimento,	as	posições	teóricas	que	sublinhavam	a	função	criativa,	e	não	apenas	declarativa
do	juiz.	Gustav	Radbruch,	que	à	época	também	perfilava	as	fileiras	do	movimento	do	direito
livre,	 afirma	que	a	opção	pelo	pseudônimo	deu	ao	panfleto	do	 jovem	Kantorowicz	grande
notoriedade,	 na	 medida	 em	 que	 passava	 a	 impressão	 de	 ser	 um	 escrito	 de	 um	 escritor
maduro	 e	 experimentado,	 tendo	 influenciado	 juristas	 como	 Bülow,	 Unger	 e	 Klein.	 Todos
eles,	de	alguma	forma,	reivindicavam	um	papel	protagonista	da	magistratura	na	aplicação	do
direito198.
Também	 em	 1905,	 e	 também	 na	 Alemanha,	 haverá	 um	 desligamento	 de	 alguns
importantes	autores	do	movimento	do	direito	livre.	O	principal	articulista	dessa	secessão	será
Philipp	Heck,	inaugurando	a	chamada	jurisprudência	dos	interesses	(Interessenjurisprudenz).
Nessa	 nova	 roupagem,	 os	 postulados	 do	 direito	 livre	 apareceram	 mais	 contidos,
principalmente	no	que	tange	à	polêmica	da	interpretação	contra	legem	(admitida	pela	versão
mais	radical	do	direito	livre).	A	jurisprudência	dos	interesses	continuará	a	pregar	a	crítica	à
“falácia	 conceitual”	 que	 o	 direito	 livre	 identificava	 na	 jurisprudência	 dos	 conceitos.	 Essa
crítica	 advogava	 a	 tese	 de	 que	 o	 excessivo	 conceitualismo	 levava	 o	 juiz	 para	 um	 terreno
abstrato,	muito	distante	das	tensões	sociais	que,	naquele	tempo,	se	mostravam	cada	vez	mais
agudas	(são	os	anos	que	gestaram	as	condições	para	a	eclosão	da	1ª	Guerra	Mundial).	O	mote
principal	 da	 jurisprudência	 dos	 interesses	 encontra-se	 circunscrito	 na	 premissa	 de	 que	 a
norma	 jurídica	 tem	 por	 finalidade	 resolver	 conflitos	 de	 interesses.	 Esses	 interesses	 em
conflito	 condicionam	 tanto	 o	 ambiente	 legislativo	 quanto	 o	 jurisdicional.	 Na	 tarefa
interpretativa,	 cabe	 ao	 juiz	 recompor	 os	 interesses	 em	 conflito	 que	 estavam	 presentes	 na
gestação	 da	 lei	 e,	 nos	 casos	 de	 lacuna,	 proceder	 ao	 seu	 preenchimento	 a	 partir	 de	 uma
ponderação	 (Abwägung)	 dos	 interesses	 que	 estão	 em	 situação	 de	 tensão	 no	 caso	 que	 lhe	 é
apresentado.	 Portanto,	 pelo	 menos	 duas	 são	 as	 diferenças	 entre	 a	 jurisprudência	 dos
interesses	e	o	movimento	do	direito	livre:	1)	por	um	lado,	a	jurisprudência	dos	interesses	não
admite	decisões	contra	legem,	pregando	a	vinculação	do	juiz	à	lei	quando	as	situações	da	vida
que	são	levadas	à	sua	jurisdição	encontrem	previsão	legislativa;	2)	por	outro,	a	jurisprudência
do	 interesses	 desenvolve	 um	 método	 que	 procura	 guiar	 a	 atividade	 criativa	 do
intérprete/juiz:	 a	 ponderação	 (Abwägung)	 dos	 interesses	 em	 conflito.	 Bem	 antes	 de	 Alexy,
registre-se.
Após	a	segunda	guerra	mundial,	surge	a	Jurisprudência	dos	Valores,	tentativa	voluntarista
de	encontrar/descobrir,	para	além	do	direito	escrito,	os	valores	da	sociedade.	Essa	tese	–	que
tem	 um	 delicado	 contexto	 histórico	 na	 sua	 origem	 –	 teve	 profícuo	 desenvolvimento	 no
Tribunal	 Constitucional	 da	 Alemanha.	 Da	 confluência	 axiologista	 da	 Jurisprudência	 dos
Interesses	 –	 especialmente	 a	 partir	 de	 Philipe	 Heck	 (que,	 aliás,	 inventou	 a	 expressão
“Abwägung”	 –	 ponderação)	 –	 e	 da	 Jurisprudência	 dos	 Valores	 exsurge	 a	 Teoria	 da
Argumentação	 Jurídica,	 de	 Robert	 Alexy,	 que	 busca,	 com	 sua	 tese,	 racionalizar	 a
Wertungsjurisprudenz,	tida	como	irracional.
Interessante	 notar	 como	 o	 imaginário	 que	 suportava	 as	 teses	 do	 direito	 livre	 a	 da
jurisprudência	 dos	 interesses	 aparece,	 difusamente,	 ainda	 hoje	 no	 âmbito	 do	 pensamento
jurídico	 brasileiro.	 Veja-se,	 por	 exemplo,	 a	 concepção	 amplamente	 difundida	 que	 afirma
serem	 os	 princípios	 constitucionais	 a	 consagração	 de	 valores	 éticos	 e	 morais	 que	 o
desenvolvimento	social	legou	ao	Direito.	Nessa	toada,	afirmam,	equivocadamente,	que	o	juiz
não	pode	mais	ficar	inerte	e	simplesmente	“reproduzir”	(sic)	o	discurso	legislativo,	e	que	ele
deve	valorar	as	circunstâncias	do	caso	de	modo	a	encontrar	a	“melhor	solução”	com	base	na
ponderação	dos	princípios	colidentes.	Essa	menção	a	valores	–	cujo	ranço	neokantiano	parece
evidente	 –	 já	 aparecia	 nos	movimentos	 antissistemáticos	 do	 início	 do	 século	XX	 como	 fica
claro	nessa	passagem	de	Losano:	“É	efetivamente	a	alma	da	filosofia	neokantiana	que	plasma
suas	ideias,	como	específica	Radbruch	em	1905:	o	problema	da	influência	dos	juízos	de	valor
sobre	 as	 sentenças	 pode	 hoje	 ser	 indicado	 como	 a	 questão	 mais	 candente	 da	 filosofia	 do
direito”.199
Esse	 terreno	 também	 é	 fértil	 para	 o	 surgimento,	 nos	 anos	 90	 do	 século	 XX,	 do	 assim
denominado	 “neoconstitucionalismo”,	 que,	 embora	 tenha	 proprocionado	 alguns	 avanços,
deu	 azo,	 no	 Brasil,	 ao	 pamprincipiologismo.200	 Destarte,	 passados	 um	 quarto	 de	 século	 da
Constituição	de	1988,	e	levando	em	conta	as	especificidades	do	direito	brasileiro,	é	necessário
reconhecer	 que	 as	 características	 desse	 “neoconstitucionalismo”	 acabaram	 por	 provocar
condições	patológicas	que,	em	nosso	contexto	atual,	acabam	por	contribuir	para	a	corrupção
do	próprio	texto	da	constituição.	Ora,	sob	a	bandeira	“neoconstitucionalista”	defende-se,	ao
mesmo	 tempo,	 um	 direito	 constitucional	 da	 efetividade;	 um	 direito	 assombrado	 pela
ponderação	 de	 valores;	 uma	 concretização	 ad	 hoc	 da	 Constituição	 e	 uma	 pretensa
constitucionalização	 do	 ordenamento	 a	 partir	 de	 jargões	 vazios	 de	 conteúdo	 e	 que
reproduzem	 o	 prefixo	 neo	 em	 diversas	 ocasiões,	 tais	 quais:	 neoprocessualismo	 (sic)	 e
neopositivismo	(sic).	Tudo	por	que,	ao	fim	e	ao	cabo,	acreditou-se	ser	a	jurisdição	responsável
pela	incorporação	dos	“verdadeiros	valores”	que	definem	o	direito	justo	(vide,	nesse	sentido,
as	posturas	decorrentes	do	instrumentalismo	processual).
Desse	 modo,	 fica	 claro	 que	 o	 neoconstitucionalismo	 representa,	 apenas,	 a	 superação
parcial	 –	 no	 plano	 teórico-interpretativo	 –	 do	paleo-juspositivismo	 (Ferrajoli)	 na	medida	 em
que	nada	mais	 faz	do	que	afirmar	as	críticas	antiformalistas	deduzidas	pelos	partidários	da
escola	 do	 direito	 livre,	 da	 jurisprudência	 dos	 interesses	 e,	 daquilo	 que	 é	 a	 versão	 mais
contemporânea	desta	última:	da	jurisprudência	dos	valores.
Portanto,	 é	 possível	 dizer	 que,	 nos	 termos	 em	 que	 oneoconstitucionalismo	 vem	 sendo
utilizado,	ele	representa	uma	clara	contradição,	isto	é,	se	ele	expressa	um	movimento	teórico
para	 lidar	com	um	direito	“novo”	 (poder-se-ia	dizer,	um	direito	“pós-Auschwitz”	ou	“pós-
bélico”	 como	 quer	 Mário	 Losano201),	 fica	 sem	 sentido	 depositar	 todas	 as	 esperanças	 de
realização	desse	direito	na	 loteria	do	protagonismo	 judicial	 (mormente	 levando	em	conta	a
prevalência,	no	campo	jurídico,	do	paradigma	epistemológico	da	filosofia	da	consciência).202
	
	
5.3.1.	Sobre	(alguns)	mal-entendidos	acerca	do	positivismo
	
Todavia,	acredito	ainda	ser	necessário	estabelecer	o	“lugar	de	fala”	quando	discorro	acerca
do	Positivismo	Jurídico,203	buscando	minorar	certa	algaravia	doutrinária	sobre	o	tema	e	uma
série	 de	 incompreensões	 a	 respeito	 da	 crítica	 por	mim	 formulada.	 De	 início	 é	 importante
destacar	que	o	Juspositivismo	é	um	paradigma	complexo	e	que	sofreu	várias	(re)adaptações
desde	 seu	 surgimento	no	 séc.	XIX	 até	 os	dias	de	hoje.	Assim,	deve-se	 ter	 cautela	 quanto	 a
leituras	apressadas	e/ou	reducionistas	que	apenas	circunscrevem	parte	do	problema.
Ademais,	por	ter	sofrido	mutações,	tem-se	uma	dificuldade	de	caracterização	por	albergar
concepções	de	mundo,	 até	mesmo,	diametralmente	opostas.	Por	 isso,	 em	muitos	 espaços	o
debate	ainda	continua	centrado	no	dualismo	juspostivismo/jusnaturalismo.	Não	obstante,	é
possível	 observar	 que	 o	 Juspostivismo	 (em	 suas	mais	 variadas	 faces)	 se	 fundou	 na	 relação
moderna	 sujeito-objeto,	 alternando	 entre	 objetivismo	 e	 subjetivismo,	 razão	 teórica	 e	 razão
prática,	e	em	cosmovisões	filosóficas	anacrônicas	que	mantém	a	discricionariedade,	tornando
este	paradigma	inadequado	para	esta	quadra	da	história,	sobretudo	diante	das	exigências	da
democracia.
A	grande	questão,	porém,	é	que	muitos	teóricos	ao	discorrer	sobre	o	tema	passam	ao	largo
da	 questão	 da	 interpretação.	 Ficam	 aquém	 do	 hermeneutic	 turn.	 No	 positivismo	 jurídico
clássico,	exegético	ou	legalista,	acredita(va-se)	que	o	mundo	podia	(pode)	ser	abarcado	pela
linguagem	e	que	a	regra	–	no	plano	do	direito	–	abarca(va)	essa	“suficiência	do	mundo”,	isto
é,	a	parte	do	mundo	que	deposita(va)	na	regra	as	universalidades	conceituais	que	pretendem
esgotar	a	descrição	da	realidade.
Assim,	 é	 positivista	 quem	 ainda	 defende	 que	 a	 norma	 e	 texto	 coincidem,	 ou	 que	 são	 a
mesma	coisa;	que	o	sentido	está	nas	coisas	(realismo	filosófico),	o	mito	do	dado;	que	a	lei	teria
um	 sentido	 em	 si.	 Desta	 forma,	 a	 norma	 já	 estaria	 pronta	 para	 o	 uso	 por	 intermédio	 da
subsunção	 e	 dos	 raciocínios	 silogísticos	 no	 predomínio	 de	 uma	 razão	 teórica	 asfixiante.	 A
enunciação	da	 lei	é	descolada	da	faticidade,	 tornando	uma	razão	autônoma	atemporal	 (por
isso	digo	que	positivismo	é	cronofóbico	e	 factumfóbico).	Neste	contexto,	estamos	diante	de
uma	discricionariedade	 legislativa,	o	direito	 já	possui	as	 respostas	antes	do	 surgimento	das
perguntas,	 assim,	 a	 jurisdição	 seria	 a	 emanação	 de	 uma	 vontade	 (mens	 legis	 ou	 mens
legislatoris)	 que	 se	 impõe	 independentemente	 de	 uma	 inserção	 em	 um	 contexto
compartilhado	de	significâncias.
Em	 outro	 momento,	 no	 positivismo	 normativista,	 descobertas	 as	 insuficiências	 do
exegetismo,	 passou-se	 a	 chamar	 à	 colação	 a	 subjetividade	 do	 intérprete,	 que,	 de	 forma
solipsista	(lembremos,	sempre,	do	problema	da	dicotomia	“vontade-razão”	e	o	“produto”	da
superação	do	segundo	pela	primeira),	levanta	o	véu	que	“encobre”	a	resposta	que	a	regra	não
pôde	dar.
Trata-se	de	uma	visão	 simplista	do	direito,	 pela	 qual,	 do	 “aprisionamento”	dos	 fatos	na
“racionalidade	da	 lei”,	salta-se	para	o	 triunfo	da	vontade	sobre	essa	razão	plenipotenciária.
Destarte,	 é	 também	 positivista	 quem	 defende	 que	 a	 norma	 e	 texto	 estão	 absolutamente
descolados,	 que	 diante	 da	 plurivocidade	 dos	 signos	 linguísticos	 o	 sentido	 estaria	 na
subjetividade	do	intérprete;	que	a	partir	da	vontade	o	sujeito	solopista	teria	livre	espaço	para
dizer	 o	 direito	 e	 buscar	 o	 justo,	 mesmo	 que	 contra	 legem,	 no	 predomínio	 de	 uma	 razão
pragmaticista	incontrolável.	O	direito	seria	aquilo	que	os	 juízes	dizem	que	é.	Ou	seja,	se	no
exegetismo	 lato	 sensu	 as	 respostas	 antes	 das	 perguntas	 estavam	 na	 norma	 geral,204	 no
positivismo	normativista	e	variantes	axiologistas	as	respostas	estão	já	de	antemão	na	vontade
do	inter-	prete.
Nestes	 termos,	 a	discricionariedade	muda	de	polo,	 agora	está	no	 sujeito	que	assujeita	as
coisas	e	se	assenhora	dos	sentidos.	A	jurisdição	seria	o	resultado	de	uma	volição	que	estaria
para	 além	 da	 mundanidade,	 seria	 a	 representação	 da	 subjetividade	 que	 existe	 por	 si	 só,
independentemente	 da	 historicidade.	 Há	 algumas	 décadas	 observa-se	 uma	 tentativa	 de
aprimoramento	 do	 positivismo	 normativista	 por	 algo	 que	 pode	 ser	 denominado	 como
positivismo	 axiológico,	 e	 aqui	 se	 insere	 parcela	 considerável	 dos	 neoconstitucionalistas	 ou
pós-positivistas.	 Partindo	 da	 cisão	 entre	 casos	 fáceis	 e	 casos	 difíceis,	misturam	 exegetismo
com	 um	 normativismo	 kelseniano	 ou	 (pseudo)racionalizado	 pelo	 método,	 que	 em	muitas
vezes	 apenas	 encobre/justifica	 decisões	 solipsistas.	 Os	 easy	 cases	 seriam	 resolvidos	 por
intermédio	da	 subsunção,	 e	 os	hard	 cases	 abririam	 espaço	 para	 o	 papel	 criativo	 do	 juiz	 em
decidir	a	partir	de	princípios	ou	valores	imanentes	à	lei,	ou	provenientes	do	ideal	de	justiça
ou	da	própria	sociedade,	utilizando-se	da	ponderação	e/ou	a	argumentação	jurídica.	Diante
da	 insuficiência	 de	 uma	 razão	 teórica	 a	 razão	 prática	 surge	 como	 um	 corretivo	 moral	 ao
direito.
A	 discricionariedade,	 aqui,	 opera	 em	 ambos	 os	 lados,	 é	 legislativa	 na	 manutenção	 do
método	 subsuntivo,	 e	 é	 jurisdicional	 diante	 da	 falibilidade	 das	 posturas	 racionalizantes	 da
vontade	 e	 pelo	 caráter	 retórico,	 em	 geral,	 primeiro	 decide	 e	 depois	 a	 argumentação	 ou
ponderação	servem	como	meros	álibis	interpretativos.
O	 que	 não	 é	 compreendido	 pela	 expressiva	 maioria	 da	 comunidade	 jurídica	 é	 que	 o
Juspositivimo	é	um	paradigma	embasado	na	relação	sujeito/objeto	e	 imerso	no	objetivismo
filosófico	 e/ou	 na	 filosofia	 da	 consciência,	 mas	 precisamente	 na	 vontade	 de	 poder	 de
Nietzsche.
Do	 exposto,	 pode-se	 concluir	 que:	 a)	 apegar-se	 à	 letra	 da	 lei	 pode	 ser	 uma	 atitude
positivista...	 ou	 pode	 não	 ser,	 depende	 do	 modo	 como	 entendemos	 a	 linguagem;	 b)	 do
mesmo	 modo,	 não	 apegar-se	 à	 letra	 da	 lei	 pode	 caracterizar	 uma	 atitude	 positivista	 ou
antipositivista	(ou,	se	quisermos,	pós-positivista	ou	não	positivista);	c)	por	vezes,	“trabalhar”
com	 princípios	 (e	 aqui	 vai,	 mais	 uma	 vez,	 meu	 libelo	 contra	 o	 pamprincipiologismo	 que
tomou	conta	do	“campo”	 jurídico	de	 terrae	brasilis)	pode	representar	uma	atitude	(deveras)
positivista;	 d)	 utilizar	 os	 princípios	 para	 contornar	 a	 Constituição	 ou	 ignorar	 dispositivos
legais	 –	 sem	 lançar	 mão	 da	 jurisdição	 constitucional	 (difusa	 ou	 concentrada)	 ou	 de	 uma
interpretação	 que	 guarde	 fidelidade	 à	 Constituição	 –	 é	 uma	 forma	 de	 prestigiar	 tanto	 a
irracionalidade	 constante	 no	 oitavo	 capítulo	 da	 TPD	 de	 Kelsen,	 quanto	 homenagear,
tardiamente,	 o	 positivismo	 discricionário	 de	 Herbert	 Hart	 (e	 de	 seus	 sucedâneos	 mais
radicais,	como	os	“neoconstitucionalismos”).
Não	 é	 desse	 modo,	 pois,	 que	 escapa(re)mos	 do	 Juspositivismo.	 Não	 é	 mais	 possível
continuar	 com	 a	 dicotomia	 “juiz	 boca	 da	 lei”	 versus	 “juiz	 dos	 princípios”	 ou	 verberar
“axiomas”	como	“não	é	mais	possível	defender	a	letra	da	lei”	e	que	“aqueles	que	invocam	a
literalidade	da	Constituição	ou	da	lei	lato	sensu	buscam	repristinar	o	positivismo	exegético”.
A	 explicação	 acima	 busca	 exatamente	 esclarecer	 esses	 dilemas.	 Nessalinha,	 é	 importante
esclarecer	que	quando	trato	de	“literalidade	normativa”,	não	o	faço	sob	aportes	exegéticos	ou
objetivistas.	Atenção:	a	literalidade	é	muito	mais	uma	questão	da	compreensão	e	da	inserção
do	 intérprete	 no	mundo,	 do	 que	 uma	 característica,	 por	 assim	 dizer,	 “natural”	 dos	 textos
jurídicos.	 Como	 diz	 Dworkin,	 o	 direito	 é	 uma	 questão	 interpretativa.	 A	 realidade	 é
interpretativa.	E	o	direito	é	“alográfico”,	como	sustentam	Grau	e	Müller.	Aqui,	no	meio	dessa
discussão,	está	a	viragem	ontológico-linguística,	queiramos	ou	não.	Não	há	mais	textos	com
sentidos	em	si	e	tampouco	interpretações	niilistas	(grau	zero).	Além	disso,	não	há	textos	sem
contextos.	O	texto	não	(r)existe	na	sua	“textitude”.	Ele	só	“é”	na	sua	norma.	Mas	essa	norma
tem	 limites.	Muitos.	 E,	 por	 quê?	 Pela	 simples	 razão	 de	 que	 não	 se	 pode	 atribuir	 qualquer
norma	a	um	texto	ou,	o	que	já	se	transformou	em	bordão	que	inventei	há	algum	tempo,	“não
se	pode	dizer	qualquer	coisa	sobre	qualquer	coisa”.
Para	explicitar	melhor:	a	partir	da	hermenêutica	(CHD),	é	possível	perceber	que	–	quando
se	 defende	 limites	 semânticos	 ou	 algo	 do	 gênero	 –	 não	 se	 está	 a	 afirmar	 uma	 volta	 ao
exegetismo	 literalista...	O	 sentido	 se	dá	em	um	a	priori	 compartilhado.	Esse	processo	não	 é
arbitrário	 (e	 tampouco	refém	do	“mito	do	dado”).	E,	ao	mesmo	 tempo,	não	representa	um
processo	de	representação	de	um	objeto	(nem	é	a	sua	“fotografia”...).	A	questão	se	coloca	a
partir	de	um	acontecer,	que	transcende	o	“sujeito”	e	o	atira	no	mundo.	Daí	que,	diante	dos
extremos	 positivistas	 de	 um	 lado,	 literalidade,	 de	 outro,	 discricionariedade	 ou	 livre
convencimento,	estamos	situados	no	meio,	ou	seja,	no	sentido	que	se	constitui	no	ser	humano
enquanto	 ser-no-mundo.	 Deste	 modo,	 entendo	 ser	 possível,	 de	 fato,	 uma	 ruptura
paradigmática	com	o	positivismo	jurídico.
	
	
5.3.2.	Voluntas	legis	versus	voluntas	legislatoris:	uma	discussão	ultrapassada
	
Muito	se	tem	discutido	acerca	das	teses	da	voluntas	legis	versus	voluntas	legislatoris.	Têm-se
perguntado	 os	 juristas	 de	 todos	 os	 escalões:	 afinal,	 o	 que	 vale	mais:	 a	 vontade	 da	 lei	 ou	 a
vontade	 do	 legislador?	 Tem	 importância	 saber/descobrir	 o	 que	 é	 que	 o	 “legislador”	 quis
dizer	ao	elaborar	o	texto	normativo?	Qual	era	a	sua	intenção?	É	possível	descobrir	“a	vontade
da	lei”?	Pode	uma	norma	querer	alguma	coisa?	É	possível	descobrir	o	“espírito”	de	uma	lei?
Muito	 embora	 existirem,	 como	veremos,	 defensores	de	 ambos	 os	 lados,	 na	 grande	maioria
das	 vezes	 a	 adesão	 a	 uma	 corrente	 ou	 a	 outra	 é	 feita	 de	 maneira	 ad	 hoc,	 ocorrendo,
frequentemente,	uma	imbricação	entre	ambas.
Observe-se	 que,	 de	 certo	modo,	 o	 conteúdo	 do	 art.	 111	 do	 Código	 Tributário	 Nacional
(re)ascende	a	controvérsia	acima,	além	de,	por	consequência,	dar	azo	ao	velho	debate	entre
objetivistas	e	subjetivistas.	Conforme	o	aludido	dispositivo	legal,	“Interpreta-se	literalmente	a
legislação	tributária	que	disponha	sobre:	I	–	suspensão	ou	exclusão	do	crédito	tributário;	II	–
outorga	de	isenção;	III	–	dispensa	do	cumprimento	de	obrigações	tributárias	acessórias”.
Afinal,	 o	 que	 é	 interpretar	 um	 texto	 na	 sua	 literalidade?	 Tércio	 Ferraz	 Jr.205	 critica	 o
dispositivo,	dizendo	que	“o	método	literal,	gramatical	ou	lógico-gramatical	é	apenas	o	início
do	processo	interpretativo,	que	deve	partir	do	texto.	Tem	por	objetivo	compatibilizar	a	letra
com	o	espírito	da	lei.	Depende,	por	isso	mesmo,	das	próprias	concepções	linguísticas	acerca
da	adequação	entre	pensamento	e	linguagem”.	Já	Paulo	de	Barros	Carvalho206	assevera	que
“o	desprestígio	da	chamada	interpretação	literal,	como	critério	isolado	da	exegese,	é	algo	que
dispensa	 meditações	 mais	 sérias,	 bastando	 arguir	 que,	 prevalecendo	 como	 método
interpretativo	do	Direito,	seríamos	forçados	a	admitir	que	os	meramente	alfabetizados,	quem
sabe	 com	 o	 auxílio	 de	 um	 dicionário	 de	 tecnologia,	 estariam	 credenciados	 a	 descobrir	 as
substâncias	 das	 ordens	 legisladas,	 explicitando	 as	 proporções	 do	 significado	 da	 lei.	 O
reconhecimento	 de	 tal	 possibilidade	 roubaria	 à	 Ciência	 do	 Direito	 todo	 o	 teor	 de	 suas
conquistas,	relegando	o	ensino	universitário,	ministrado	nas	faculdades,	a	um	esforço	inútil,
sem	expressão	e	sentido	prático	de	existência”.
De	 todo	 modo,	 é	 importante	 lembrar	 que	 essa	 discussão	 acerca	 da	 “literalidade”	 tem
relação	 com	 o	 velho	 debate	 entre	 “lei”	 e	 “direito”,	 “texto”	 e	 “norma”	 (na
contemporaneidade).	 Na	 verdade,	 os	 juristas	 em	 geral	 costumam	 se	 apegar	 à	 literalidade
quando	 esta	 lhes	 é	 “útil”.	 Logo,	 a	 discussão	 é	 meramente	 retórica.	 Ora,	 é	 irrelevante
discutirmos	a	“literalidade”,	até	porque	esbarraríamos	na	seguinte	questão:	devemos	sempre
buscar	o	conteúdo	“literal”?	Ou	somente	quando	nos	interessa?	E	o	que	é	isto	–	a	literalidade?
O	que	é	isto	–	o	texto	jurídico?	Em	face	da	vagueza	e	da	ambiguidade	que	cerca	a	linguagem,
de	que	modo	é	possível	sustentar	o	discurso	jurídico	numa	pretensa	literalidade?
Somente	 poderemos	 discutir	 “literalidades”	 se	 estivermos	 conscientes	 da	 situação
hermenêutica	que	ocupamos:	o	constitucionalismo	do	Estado	Democrático	de	Direito.	E	nos
lembrarmos	 que	 a	 discussão	 sintático-semântica	 ficou	 para	 trás.	 Para	 a	 hermenêutica	 de	 cariz
filosófico	 é	 irrelevante	 discutir	 simplesmente	 “textos”,	 pela	 simples	 razão	 de	 que,	 como	 já
bem	lembrava	Gadamer,	“textos	são	eventos”	ou,	como	diz	Stein,	“textos	são	fatos”.	Não	há
“conceitos”	sem	“coisas”!
	
	
5.3.2.1.	Subjetivismo	e	objetivismo	e	o	problema	dos	paradigmas	filosóficos
	
De	 início,	 é	 importante	 anotar	 que	 a	 questão	 que	 se	 coloca	 a	 partir	 da	 discussão	 entre
objetivistas	 e	 subjetivistas	 pode	 ter	 um	 enquadramento	 diverso	 no	 âmbito	 da	 Teoria	 do
Direito.	 Isso	 se	dá	pelo	 fato	de	que	os	 recortes	 teóricos	e	as	diversas	 intencionalidades	que
movem	os	autores	podem	levar	a	formas	distintas	de	apresentação	da	questão.
No	caso	específico	das	questões	hermenêuticas,	o	problema	objetivismo	v.s.	 subjetivismo
está	 ligado	 intimamente	 aos	 paradigmas	 filosóficos	 da	 filosofia	 clássica	 (ou	 realismo
filosófico)	 e	 da	 filosofia	 da	 consciência.	 Esses	 paradigmas	 atuam	 de	 forma	 subterrânea	 e
acabam	por	 condicionar	 a	 interpretação	oficial	do	direito	professada	 em	uma	determinada
época	por	um	determinado	grupo	de	teóricos.	Entretanto,	vai	aqui	uma	advertência:	quando
me	refiro	ao	objetivismo	na	 interpretação	ou	ao	subjetivismo	 interpretativo,	não	estabeleço
relações	intertemporais	com	a	clássica	dicotomia	objetivismo-subjetivismo	representado	pelo
debate	que	se	estabeleceu	a	partir	do	século	XIX	acerca	da	vontade	da	lei	versus	vontade	do
legislador.
Antes	de	analisarmos	mais	amiúde	essa	questão	do	modo	como	a	hermenêutica	a	enfrenta,
é	importante	fazermos	uma	referência	aqui	à	clássica	construção	do	problema	oferecida	por
Tércio	Sampaio	Ferraz	Jr.
	
	
5.3.2.1.1.	Objetivismo	e	subjetivismo	na	perspectiva	epistêmica	de	Ferraz	Jr.
	
A	polêmica	“intenção	do	 legislador”	versus	 “vontade	da	 lei”	 também	 suscita	debates	no
âmbito	da	operacionalidade	do	Direito.	Ferraz	 Jr.	 foi	muito	 feliz	 ao	 resumir	 a	polêmica	na
dicotomia	“subjetivistas	versus	objetivistas”.	Assim,	embora	as	duas	correntes	não	possam	ser
distinguidas	 com	 grande	 nitidez,	 didaticamente	 podem	 ser	 separadas,	 conforme	 o
reconhecimento	 da	 vontade	 do	 legislador	 (doutrina	 subjetivista)	 ou	 da	 vontade	 da	 lei
(doutrina	objetivista)	como	sede	do	sentido	das	normas.	A	primeira	insiste	em	que,	sendo	a
ciência	 jurídica	um	 saber	dogmático	 (a	noção	de	dogma	 enquanto	um	princípio	 arbitrário,
derivado	 de	 vontade	 do	 emissor	 de	 norma	 lhe	 é	 fundamental)	 é,	 basicamente,	 uma
compreensão	 do	 pensamento	 do	 legislador;	 portanto,	 interpretaçãoex	 tunc	 (desde	 então),
ressaltando-se,	 em	 consonância,	 o	 papel	 preponderante	 do	 aspecto	 genético	 e	 das	 técnicas
que	lhe	são	apropriadas	(método	histórico).	Para	a	segunda	(objetivista),	a	norma	goza	de	um
sentido	 próprio,	 determinado	 por	 fatores	 objetivos	 (o	 dogma	 é	 um	 arbítrio	 social),
independente	 até	 certo	 ponto	 do	 sentido	 que	 lhe	 tenha	 querido	 dar	 o	 legislador,	 donde	 a
concepção	da	interpretação	como	uma	compreensão	ex	nunc	 (desde	agora),	ressaltando-se	o
papel	 preponderante	 dos	 aspectos	 estruturais	 em	 que	 a	 norma	 ocorre	 e	 as	 técnicas
apropriadas	à	sua	captação.207
Traços	 fortes	de	voluntarismo	estão	presentes	nas	 teses	subjetivistas,	 renovado	no	século
XX	pelas	concepções	que	substituem	o	voluntarismo	do	legislador	pelo	voluntarismo	do	juiz,
o	que	se	pode	ver	na	“livre	investigação	científica”	proposta	por	Gény,	pelo	“direito	livre”	de
Kantorowicz	e	pela	Teoria	Pura	do	Direito,	de	Kelsen.	Veja-se,	aqui,	o	eterno	retorno	à	história
do	 positivismo	 jurídico	 e	 as	 tentativas	 de	 sua	 superação,	 temática	 à	 qual	 me	 referi
anteriormente.	 Bonavides,208	 nesse	 sentido,	 alerta	 para	 o	 fato	 de	 que	 os	 subjetivistas,
aparentemente	exaltando	a	 função	 judicial,	em	verdade	debilitam	as	estruturas	clássicas	do
Estado	 de	 Direito,	 assentadas	 numa	 valoração	 dogmática	 da	 lei,	 expressão	 prestigiosa	 e
objetiva	da	racionalidade.	Não	é	à	toa,	diz	o	mestre,	que	o	subjetivismo	 faz	parte	da	concepção
professada	 na	 Alemanha	 pelo	 nacional-socialismo,	 no	 qual	 algumas	 teses	 fundamentais	 dos
juristas	 da	 escola	 do	 direito	 livre	 alcançaram,	 à	 sombra	 desse	 movimento	 político,	 uma
acolhida	extremamente	favorável.
Já	 o	 objetivismo	 na	 interpretação	 da	 lei	 e	 da	 Constituição	 tem-se	 constituído	 na	 posição
predileta	dos	positivistas	formais.	No	campo	do	Direito	Público,	Bonavides209	aponta	para	o	fato
de	que,	 nomeadamente	 no	Direito	Constitucional	moderno,	 os	 objetivistas	 formam	 já	uma
corrente	 respeitável	de	 intérpretes,	 talvez	a	que	mais	pese	 entre	os	 constitucionalistas:	 “na
Europa	 inclinam-se	 pela	 aplicação	 do	 método	 objetivista	 constitucionalistas	 do	 porte	 de
Mauz,	Duerig,	Forsthoff,	Hans	J.	Wolff	e	von	Turegg”.	É	claro	que	–	e	isso	deve	ser	dito	para
que	 não	 se	 confunda	 posições	 distantes	 no	 tempo	 -	 que	 esse	 objetivismo	 detectado	 nos
referidos	constitucionalistas	não	é	 similar	ao	objetivismo	professado	no	século	XIX,	do	 tipo
“da	palavra	que	se	fez	vontade”.	Esse	objetivismo	não	é	uma	definição	exegética	e	tampouco
representa	uma	filiação	destes	a	um	objetivismo	filosófico	(veja-se,	de	novo,	a	importância	de
desindexarmos	a	polêmica	do	século	XIX	da	contemporânea	discussão	acerca	da	importância
dos	textos	constitucionais,	cujos	limites	semânticos	têm	uma	importância	ímpar,	mas	que	não
se	confundem	com	a	velha	exegese).
A	dicotomia	proposta	por	Tércio,	 entretanto,	 aponta	para	um	modelo	de	 análise	 que	 se
fixa	em	um	âmbito	puramente	epistemológico,	 com	ênfase	na	 relação	 sujeito-objeto.	Nesse
caso,	a	aplicação	do	direito	ora	é	um	problema	a	ser	 solucionado	a	partir	da	descoberta	da
vontade	do	legislador	(sujeito);	ora	deixa-se	para	trás	o	problema	do	sujeito	criador	e	fixação
do	 problema	 se	 dá	 em	 torno	 do	 sentido	 finalístico	 presente	 na	 lei	 (objeto).	 Daí	 que	 a
construção	 do	mestre	 paulista	 fale	 em	 subjetivismo	 quando	 o	 enfoque	 que	 se	 dá	 é	 para	 a
atividade	do	criador	da	lei	e	em	objetivismo,	quando	a	ênfase	recai	sobre	a	aplicação	da	lei	às
situações	fáticas.
Entretanto,	sem	embargo	da	utilidade	didática	da	tese	de	Ferraz	Jr.,	é	possível	afirmar	que,
hermeneuticamente,	o	problema	aqui	está	ligado	aos	paradigmas	filosóficos	que	comandam	a
interpretação.
	
	
5.3.2.1.2.	O	que	são	paradigmas	filosóficos?	De	que	modo	eles	condicionam	a	interpretação?
	
As	 posições	 teóricas	 que	 assumimos	 refletem,	muitas	 vezes,	 apenas	 a	 superfície	 de	 um
processo	compreensivo	muito	mais	complexo.	Na	verdade,	em	inúmeros	casos,	elas	acabam
por	 espelhar	 um	 conjunto	 de	 elementos	 que	 conformam	 o	 modo	 de	 se	 organizar	 o
pensamento	 e	 de	 determinação	 do	 processo	 de	 conhecimento	 que	 rege	 uma	 determinada
época.	Esse	dimensão	profunda,	organizadora	de	nossa	racionalidade,	não	pode	ser	acessada
através	dos	instrumentos	teóricos	desenvolvidos	por	uma	ciência	qualquer.	Essa	dimensão	é
filosófica.	Para	termos	acesso	a	ela,	necessitamos	nos	envolver	em	um	processo	catártico,	de
des-construção	 da	história	da	 filosofia.	Um	processo	no	qual,	desde	Heidegger,	 nós	mesmos
estamos	envolvidos	em	face	de	nossa	facticidade.
Assim,	 no	 caso	 do	 direito,	 por	 exemplo,	 é	 muito	 comum	 encontrarmos	 teorias	 que
apresentam	 determinados	 postulados	 epistemológicos	 que,	 se	 olhados	 mais	 de	 perto,
representam	apenas	a	consequência	da	projeção	desse	modo	de	organização	–	filosófica	–	do
pensamento	predominante	no	interior	daquele	tempo	histórico.
Esse	 fator	 ordenador,	 que	 condiciona	 o	 enquadramento	 do	 conhecimento	 em	 uma
determinada	época,	nós	chamamos,	com	Ernildo	Stein,	de	paradigmas	filosóficos.
Na	 formulação	 do	 Filósofo	 gaúcho,	 esses	 paradigmas	 filosóficos	 funcionam	 como
“princípios	 organizadores”	 que	 exercem	uma	 função	 no	 conhecimento	 científico.	 Para	 ele,
esse	elemento	organizador	“pode	ser	considerado	como	um	vetor	da	racionalidade	científica,
isto	 é,	 como	 um	 princípio	 com	 o	 qual	 se	 pode	 examinar	 aquilo	 que	 é	 implicitamente
carregado	pelo	discurso	científico”.210
Nesse	 sentido,	 a	 noção	 de	 paradigma	 filosófico	 funciona	 como	 um	 transcendental	 não
clássico,	 ou	 seja,	 não	 ligado	 às	 amarras	 da	 subjetividade.	 Exerce	 ele	 uma	 função	 de
fundamentação,	no	sentido	de	ser	um	elemento	organizador,	estruturante	e	abrangente.211
Essa	 investigação,	 por	 exemplo,	 funciona	 a	 partir	 do	 paradigma	 da	 fenomenologia
hermenêutica	 e	 da	 hermenêutica	 filosófica.	 A	 partir	 desse	 eixo	 fundamental,	 opera-se	 o
trabalho	 de	 desconstrução	 e	 de	 reconstrução	 do	 pensamento	 jurídico,	 mormente	 aquele
ligado	ao	elemento	interpretativo	que	reveste	a	experiência	jurídica.
Nesse	 processo	 desconstrutivo/construtivo	 é	 possível	 observar	 a	 ocorrência	 de	 posturas
científicas/interpretativas	no	direito	que	professavam	outros	paradigmas	filosóficos.
No	caso,	podemos	mencionar	dois	grandes	paradigmas	filosóficos:
a)	 o	 da	 filosofia	 clássica,	 também	 nomeado	 como	 realismo	 filosófico,	 em	 que	 o	 fator
organizacional	de	toda	a	racionalidade	gira	em	torno	dos	“objetos”	ou	daquilo	que	é	“dado”
ao	conhecimento	(daí	que	Sellars	e	seus	seguidores	passarão	a	nomear	uma	tal	postura	como
“mito	do	dado”212).
Nesse	 aspecto,	 o	 tipo	 de	 atividade	 interpretativa	 que	 terá	 lugar	 no	 contexto	 desse
paradigma	será	objetivista,	porque	presa	ao	objeto	conhecido,	ou,	ainda,	objeto	cognoscível;
b)	o	da	 filosofia	da	consciência,	 que	 coloca	 como	 fator	de	organização,	que	 se	antecipa	em
todo	 processo	 de	 conhecimento,	 a	 subjetividade	 que	 conhece	 as	 coisas.	 Nesse	 âmbito,	 o
conhecimento	 não	 é	 “dado”.	 Aqui,	 o	 conhecimento	 é	 “construído”	 por	 um	 sujeito	 que
emprega	um	método	específico	de	análise	e	passa	a	estabelecer	os	sentidos.
Daí	 que,	 nesse	 contexto,	 teremos	 um	 tipo	 de	 interpretação	 que	 podemos	 nomear	 como
subjetivista.
Em	 resumo:	 tendo	 em	 conta	 os	 paradigmas	 filosóficos	 que	 dirigem	 a	 interpretação,	 é
possível	 dizer	 que	 objetivista	 é	 a	 postura	 hermenêutico-interpretativa	 que	 organiza	 o	 seu
processo	de	determinação	do	sentido	a	partir	de	um	aprisionamento	do	sujeito	que	conhece
ao	objeto	que	é	conhecido;	ao	passo	que	subjetivista	é	a	postura	hermenêutico-interpretativa
que	espelha	o	paradigma	da	filosofia	da	consciência,	no	interior	do	qual	o	intérprete	é	o	dono
dos	sentidos.
Nesses	termos,como	o	fator	determinante	da	interpretação	do	direito	acaba	por	ser	a	Lei,
objetivistas	são	as	posturas	que	entendem	a	lei	como	um	dado	jurídico	pronto	e	acabado	tendo
o	 intérprete	 a	 tarefa	de	 simples	 revelação	do	 sentido,	 nela	 alocado	por	 alguma	autoridade
externa	a	ele,	intérprete,	que	pode	ser	a	vontade	divina,	o	sentido	cosmológico	das	coisas	ou,
simplesmente,	a	ação	de	um	legislador	Racional.	Já	as	posturas	subjetivistas	são	aquelas	que
desprendem	o	intérprete	desse	invólucro	legal	e	o	apresenta	como	um	verdadeiro	criador	de
sentidos.	Nesse	caso,	o	sentido	originário	da	lei	e	a	autoridade	de	quem	a	emite	cede	lugar
para	 a	 sensibilidade	 do	 intérprete	 que	 deverá	 interpretá-la	 segundo,	 por	 exemplo,	 as
finalidades	para	as	quais	ela	fora	criada;	os	interesses	sociais	que	levaram	à	sua	edição	dentre
outras	coisas.	Haverá,	inclusive	os	mais	extremados	que	defenderão	que	a	interpretação	é	um
ato	 de	 vontade	 livre	 daquele	 que	 a	 profere,	 sendo	 o	 direito	 o	 resultado	 de	 suas	 ações
interpretativas.
Em	 todo	 caso,	 é	 possível	 afirmar	 que	 posturas	 hermenêutico-interpretativas	 professadas
pela	escola	da	exegese,	da	Jurisprudência	dos	Conceitos,	da	Jurisprudência	Analítica,	são	–	do
ponto	de	vista	do	paradigma	filosófico	que	as	guia	–	objetivistas;	ao	passo	que	o	movimento
do	direito	 livre,	 o	 realismo	 jurídico	 e	 a	 jurisprudência	dos	 interesses	 representam	posturas
subjetivistas.
	
	
5.3.2.2.	O	dilema	Objetivismo	v.s.	Subjetivismo	no	âmbito	(hermenêutico)	da	aplicação	do	direito:
o	problema	dos	“cruzamentos	fundacionais”
	
A	aplicação	do	direito,	como	venho	afirmando	há	tempos,	está	assentada	num	tipo	muito
curioso	 de	 sincretismo	 que	 podemos	 nomear	 aqui	 por	 “cruzamentos	 fundacionais”.	 Valeu
dizer,	no	direito	o	paradigma	objetivista,	da	filosofia	clássica,	encontra-se	por	vezes	associado
ao	paradigma	subjetivista,	da	filosofia	da	consciência.
Na	verdade,	levando	a	questão	às	últimas	consequências,	o	problema	retratado	acaba	por
desaguar	na	própria	relação	entre	direito	e	política.	Posturas	aplicativas	e/ou	metodológicas
como	 a	 escola	 da	 exegese	 e	 a	 jurisprudência	 dos	 conceitos	 –	 e,	 nalgum	 sentido,	 a
jurisprudência	 analítica	 –	 são	 expressões	 de	 uma	movimentação	 filosófica	 que	 se	 encontra
situada	 no	 interior	 do	 paradigma	 da	 filosofia	 da	 consciência,	 mas,	 ao	 mesmo	 tempo,
produzem	um	modelo	de	aplicação	do	direito	que	retira	a	possibilidade	de	participação	da
subjetividade	do	 julgador	no	momento	da	formação	normativa.	Professa-se	uma	espécie	de
“mito	do	dado”:	os	sentidos	das	normas	jurídicas	já	estão	postos	pelo	legislador;	é	um	dado
que	não	pode	sofrer	modelação	por	parte	do	intérprete/julgador.
Onde	estaria,	então,	a	subjetividade	de	que	tanto	falamos?	Onde	estaria	a	consciência	que
poderia	colocar	ordem	de	sistema	-	logicamente	rigorosa	-	no	caos	normativo	da	lei	humana?
Ora,	 a	 subjetividade	 está	 espelhada	 na	 ação	 do	 legislador,	 seja	 ele	 um	 corpo	 legislativo
determinado	(um	parlamento);	seja	ele	a	expressão	da	sabedoria	de	especialistas/professores
que	constroem	a	lei	a	partir	das	descobertas	da	ciência	jurídica.	A	filosofia	da	consciência	(ou,
por	vezes,	 em	uma	vulgata	desta,	o	 simples	voluntarismo	 judicial)	 se	manifesta	aqui	 como
um	tipo	de	vontade	política	que	limita	a	ação	do	julgador.	Trata-se	de	uma	vontade	de	sistema
que	 se	manifesta	 de	 forma	mais	 esplendorosa	 na	 experiência	 da	 codificação.	Como	 afirma
Losano,	 a	 partir	 do	 caráter	 indiscutivelmente	 racional	 (portanto,	 expressão	 de	 uma
consciência;	 a	 consciência	 legislativa)	 que	 revestia	 a	 obra	do	 legislador	 ou	dos	professores,	 o
que	poderia	o	intérprete	–	seja	a	doutrina	seja	a	jurisprudência	–	fazer	além	de	espelhar	–	ou
revelar	–	aquela	ordem	racional	já	posta	pela	vontade	do	legislador.	Daí	que,	no	momento	da
aplicação,	o	mito	do	dado	é	o	que	prevalece.	Todavia,	no	momento	da	formação	do	direito,	da
efetiva	 planificação	 legislativa	 da	 sociedade,	 dá-se	 a	 manifestação	 da	 subjetividade	 do
legislador:	sua	obra	é	fruto	de	uma	construção	–	arbitrariamente	–	racional.	Ora,	não	existe
mais	Deus	 ou	 a	Cosmologia	 para	 afiançar	 o	 conteúdo	 do	 direito	 humano	 concreto.	O	 que
sobra,	então?	Sobra	a	Razão	–	com	“R”–	o	principal	fundamento	da	filosofia	da	consciência.
Quando	a	razão	legislativa	não	consegue	mais	segurar	em	si	todos	os	sentidos,	a	vontade	–
o	 elemento	 determinante	 da	 filosofia	 da	 consciência;	 a	 manifestação	 mais	 decisiva	 da
subjetividade	 –	 salta	 do	 nível	 político	 para	 o	 nível	 judicial.	 Não	 é	 a	 toa	 que	 Kelsen	 chama	 o
âmbito	das	práticas	jurídicas	de	política	jurídica	e	diz	que	ali	se	pratica	a	interpretação	como
um	ato	de	vontade:	 trata-se	da	consagração	disso	que	aqui	estou	a	me	referir:	a	filosofia	da
consciência	sempre	está	presente	nos	fundamentos	do	positivismo	jurídico	e	da	experiência
do	direito	moderno.
Em	um	primeiro	momento,	ela	se	manifesta	na	vontade	do	legislador	que,	no	momento	de
sua	aplicação	judicial,	é	articulada	a	partir	do	mito	do	dado,	da	ideia	objetivista	de	que	a	lei
carrega	 consigo	 todos	 os	 seus	 sentidos;	 no	 momento	 seguinte	 (do	 direito	 livre,	 da
jurisprudência	 dos	 interesses	 e	 do	 realismo	 jurídico)	 o	 que	 se	 tem	 é	 uma	 fragmentação
completa	 das	 estratégias	 objetivistas	 para	 uma	 afirmação	 cabal	 de	 que	 a	 vontade	 –	 que
caracteriza	 a	 ação	 política	 –	 é	 também	 um	 atributo	 do	 Poder	 Judiciário	 que	 possui	 como
dever	a	tarefa	de	afirmar	–	e	não	revelar	–	a	vontade	da	lei	que,	ao	fim	e	ao	cabo,	se	converte
em	vontade	do	juízo	que	afirma	o	sentido	da	lei.
Podemos	 analisar	 essa	 mesma	 questão	 a	 partir	 de	 um	 problema	 mais	 propriamente
aplicativo	 do	 direito,	 associado	 ao	 dogma	 da	 subsunção.	 No	 contexto	 de	 predomínio
objetivista	–	que,	nos	termos	de	Ferraz	Jr.	chamaríamos	de	subjetivistas,	se	atentássemos	para
o	papel	do	legislador	no	processo	de	afirmação	concreta	do	direito	–	a	subsunção	é	a	forma
privilegiada	 de	 se	 retratar	 o	 modo	 como	 o	 direito	 deveria	 ser	 aplicado.	 Os	 movimentos
críticos,	 que	 instalaram	 os	 primeiros	 passos	 do	 subjetivismo	 hermenêutico	 –	 objetivismo,	 se
quisermos	olhar	pela	lente	da	predominância	do	fato	social	no	momento	da	determinação	normativa	–
começam	a	apontar	para	uma	necessária	ultrapassagem	do	dogma	da	subsunção	a	partir	da
criação	de	outras	formas	de	representação	da	aplicação	do	direito.
Falando	especificamente	sobre	o	dogma	da	subsunção,	é	possível	dizer	que	ele	opera	em
dois	níveis	distintos.	Em	primeiro	lugar,	há	que	se	destacar	um	aspecto	político-jurídico,	de
justificação.	Em	um	segundo	momento,	existe	uma	determinação	técnico-operacional.
a)	do	ponto	de	vista	político-jurídico,	o	dogma	da	subsunção	efetua	–	através	de	uma	série	de
justificativas	que	são	articuladas	a	partir	de	argumentos	retirados	de	um	horizonte	cultural
determinado	–	uma	redução	epistemológica	do	problema	do	conceito	de	direito.	Concebe-se,
nesse	sentido,	o	direito	como	sendo	o	conjunto	das	disposições	que	compõem	as	leis	de	um
determinado	Estado	nacional.	O	conceito	de	direito	é	equiparado,	nesse	sentido,	ao	conceito
de	lei.
Como	já	mencionado,	essa	equiparação	entre	direito	(jus)	e	lei	(lex)	deve-se	a	uma	série	de
elementos	 culturais	 que	 emergiram	 em	 um	 determinado	 tempo	 histórico.	 A	 principal
consequência	política	da	manifestação	desse	fenômeno	é	que	ela	abre	espaço	para	a	exclusão
do	problema	da	justiça	no	campo	do	direito.	Um	desses	elementos,	embora	não	seja	o	único,
pode	ser	pensado	a	partir	de	alguns	argumentos	de	rousseaunianos	que	causariam	impacto
nas	concepções	desse	movimento.	De	fato,	é	conhecida	a	afirmação	do	genebrino	–	presente
em	seu	Do	Contrato	Social	–	de	que	a	ideia	de	uma	lei	injusta	seria	contraditória	uma	vez	que
não	seria	possível	que	o	povo	–	que	fez	a	lei	–	pudesse	ser	injusto	consigomesmo.213
Ou	 seja,	 em	 sendo	 a	 lei	 produto	 da	 deliberação	 da	 vontade	 geral;	 em	 sendo	 ela	 a
manifestação	da	soberania	popular	–	uma	vez	que,	para	Rousseau,	o	povo	é	que	manda,	e	o
governo	 é	 que	 obedece	 –	 não	 poderia	 haver	 leis	 injustas	 ou	 mesmo,	 poderíamos	 dizer,
contrárias	ao	direito.	Logo,	a	lei	seria	igual	ao	direito.
Por	outro	lado,	os	movimentos	de	recepção	do	direito	romano	preparam	as	condições	para
o	 processo	 que	 culminou	 com	 a	 codificação	 do	 direito	 privado.	 De	 fato,	 a	 autoridade	 dos
estudos	universitários	acerca	da	formação	dos	conceitos	jurídicos	e	sua	respectiva	aplicação	às
relações	 jurídicas	 de	 direito	 privado	 que	 surgiam	 a	 partir	 do	 advento	 do	 Estado	 Liberal
contribuíram,	significativamente,	com	a	consolidação	desse	elemento	cultural	que	produziu	a
equiparação	entre	lei	e	direito.
b)	 Desse	 elemento	 político	 decorre	 logicamente	 uma	 consequência	 técnica:	 se	 o
conhecimento	do	universal,	da	generalidade	do	direito,	 já	está	dado	pelo	conhecimento	da
lei,	então	o	trabalho	do	agente	jurídico	que	exara	a	decisão	judicial	será	aplicar	esse	conteúdo
universal	aos	casos	concretos	apreciados.
A	 técnica	 inicial	 de	 decisão	 que	 servirá	 como	mecanismo	de	 aplicação	do	direito	 será	 a
conhecida	subsunção.	Nesse	caso,	opera-se	dedutivamente	da	premissa	maior	que	é	a	Lei	em
direção	à	premissa	menor,	o	caso.	Esse	aspecto	lógico	abstrato	–	que	será	apelidado	depois	de
conceitualista	–	está	na	base	de	movimentos	culturais	como	a	escola	da	exegese	francesa	e	a
Jurisprudência	 dos	 conceitos,	 alemã.	 Os	 grandes	 códigos	 civis	 do	 século	 XIX	 serão
operacionalizados	(no	caso	da	escola	da	exegese)	e	pensados	(no	caso	da	Jurisprudência	dos
conceitos)	 tendo	 a	 decisão	 judicial	 como	 resultado	 desse	 procedimento	 estritamente
subsuntivo	de	acomodação	do	caso	judicial	ao	suporte	fático	previsto	na	legislação.
Evidentemente,	 esse	 aspecto	metodológico	 da	 questão	 gera,	 por	 sua	 vez,	 consequências
políticas	que	podem,	 igualmente,	 ser	pensadas	a	partir	do	horizonte	cultural	da	época.	Em
primeiro	 lugar,	 acaba	por	 concentrar	o	monopólio	 da	 decisão	 efetiva	no	 plano	 da	 política	 e	 não,
propriamente,	da	juridicidade.
Quem	decide	de	forma,	digamos,	soberana,	são	as	instâncias	legislativas	ou	os	espaços	da
erudição	universitária.	O	corpo	 judiciário	–	que,	nesse	mesmo	momento,	passa	a	 se	 formar
enquanto	 organização	 burocrática	 desprendida	 do	 personalismo	monárquico	 –	 agiria	 aqui
com	 uma	 função	 “farmacêutica”	 de	 identificação	 de	 uma	 patologia	 que	 inquine	 a	 relação
jurídica	 examinada,	 com	 a	 consequente	 determinação	 do	 remédio	 jurídico	 adequado,
previsto,	desde	logo,	pelos	sistemas	codificados.
Um	código	unificador	de	leis	claras,	por	sua	vez,	permite	experimentar	a	sensação	de	que
o	 ideal	de	planificação	 e	planejamento	 social	 presente	no	 âmago	das	doutrinas	 iluministas
poderia	 ser	 alcançado.	 Vale	 dizer,	 é	 uma	 expectativa	 própria	 deste	 tempo	 histórico	 que
decisões	 tomadas	 no	 passado	 possam	 antecipar	 consequências	 futuras.	 Antecipar,	 no	 caso,
decisões	futuras.
Ou	seja,	há	uma	expectativa	clara	no	sentido	de	que,	se	alguém	descumpre	alguma	regra
jurídica,	cometa	um	ato	ilícito	etc.,	seja	possível	prever	qual	será	a	decisão	que	será	tomada
pelo	agente	estatal	que	ficará	incumbido	de	tomar	a	decisão.	Há,	também,	uma	consequência
econômica	muito	clara,	uma	vez	que	a	previsão	antecipada	a	respeito	das	decisões	que	serão
tomadas	no	futuro	permitiria	aos	agentes	econômicos	planejar	melhor	suas	ações,	bem	como
visualizar	a	consequência	de	seus	atos.	Criar-se-ia,	assim,	um	elevado	grau	de	certeza	quanto
ao	 resultado	 jurídico	 das	 relações	 econômicas.	 Nesse	 momento,	 o	 mercado	 é	 o	 grande
interessado	na	 afirmação	da	 segurança	 jurídica.	Do	mesmo	modo,	 podemos	 destacar,	 ainda,
aspectos	 sociais	 importantes.	 No	 caso,	 a	 planificação	 jurídica	 estabelecida	 pela	 codificação
funcionava	 como	 uma	 garantia	 de	 que	 os	 interesses	 burgueses,	 no	 caso	 francês,	 e	 que	 os
interesses	da	aristocracia,	no	caso	germânico,	seriam,	de	alguma	forma,	preservados.
Ainda	no	século	XIX,	uma	série	de	tensionamentos	culturais	começaram	a	impor	algumas
mudanças	 nas	 configurações	 conceituais	 da	 decisão	 jurídica.	 Em	 alguns	 casos,	 a	 própria
pressão	política	da	magistratura	–	que,	já	no	final	do	século,	começa	a	se	fortalecer	ganhando
cada	 vez	 mais	 autonomia	 com	 a	 radicalização	 do	 Estado	 de	 Direito	 e	 o	 desligamento	 do
processo	 civil	 do	 âmbito	do	direito	material	 –	 levará	 a	 essa	 “mudança	de	 rota”.	 Esse	dado
pode	 ser	 visualizado,	 por	 exemplo,	 na	 obra	 de	 Oskar	 von	 Bülow	 que	 reivindicava	 maior
espaço	 para	 a	 magistratura	 no	 processo	 de	 formação	 do	 direito.	 Para	 ele,	 a	 verdadeira
“recepção	do	direito	romano”	não	teria	ocorrido	no	seio	da	universidade,	mas,	sim,	através
das	decisões	tomadas	pela	magistratura	que	embalavam	o	direito	vivo,	o	direito	do	caso.214
Com	 efeito,	 a	 obra	 de	 Bülow	 pode	 ser	 considerada	 a	 mais	 remota	 manifestação	 crítica
contra	 o	 dogma	 da	 subsunção;	 um	 primeiro,	 e	 ainda	 tímido,	 ataque	 ao	 conceitualismo	 da
pandectística.	Por	outro	lado,	no	ambiente	do	direito	francês,	François	Gény	escreve,	senão	a
primeira,	certamente	a	mais	famosa,	crítica	metodológica	ao	modelo	de	decisão	estabelecido
pelo	 exegetismo.	Gény	 atacava	 exatamente	 esse	 aspecto	predominantemente	 lógico-formal
que	o	paradigma	do	dogma	da	 subsunção	 carregava	 consigo.	 Sua	grande	 intenção,	 como	é
sabido,	 era	 oferecer	 uma	 alternativa	 metodológica	 a	 esse	 “paradigma	 dominante”	 e	 que
incorporasse	um	tipo	de	método	científico	mais	adequado	para	o	estudo	do	direito.	No	caso,
o	método	adequado	teria	inspirações	sociológicas	–	em	vez	de	lógico-filosóficas	–	e	teria	suas
atenções	 voltadas	 para	 o	 fato	 jurídico	 em	 detrimento	 do	 entendimento	 meramente
conceitual.
Essa	investigação	sociológica	permitiria	demonstrar	a	existência	de	determinadas	relações
sociais	 que,	 apesar	 de	 necessitarem	 de	 uma	 regração	 normativa,	 ficavam	 fora	 da	 zona	 de
cobertura	da	estrutura	codificada	do	Direito.	Haveria,	portanto,	zonas	“livres	de	direito”	no
seio	da	sociedade.
Portanto,	 eis	 a	 explicitação	 dessa	 controvérsia	 entre	 objetivistas	 e	 subjetivistas	 à	 luz	 da
hermenêutica.	Portanto,	há	que	se	ter	muito	cuidado,	para	que	não	ocorram	mal-entendidos
acerca	dessa	complexa	questão.
	
	
5.3.2.3.	Objetivismo	e	Subjetivismo	–	voluntas	legis	v.s.	voluntas	legislatoris	e	o	senso	comum
teórico	dos	juristas
	
É	 acertado	 dizer	 que	 as	 duas	 correntes	 estão	 arraigadas	 no	 plano	 das	 práticas	 cotidianas	 dos
operadores	jurídicos,	podendo	ambas	–	muito	embora	as	suas	diferenças	–	serem	encontradas
em	quantidade	 considerável	de	manuais	 e	 textos	 jurídicos.	Para	 identificá-los,	 basta	que	 se
encontrem	alusões	“ao	espírito	do	legislador”,	“à	vontade	do	legislador”,	“ao	processo	de	 formação
da	lei”,	“o	espírito	da	lei”,	para	que	se	esteja	diante	de	um	adepto	da	corrente	subjetivista;	por
outro	lado,	a	invocação	da	“vontade	da	norma”,	da	“intenção	da	 lei”,	é	 indício	da	presença	de
um	 “objetivista”,	 muito	 embora	 essas	 diferenciações	 necessitem	 de	 uma	 explicitação	mais
detalhada	a	partir	da	Crítica	Hermenêutica	do	Direito.
Entretanto,	em	não	raros	casos,	é	possível	encontrar,	em	um	mesmo	texto	jurídico,	a	busca
concomitante	do	espírito	do	legislador	e	da	vontade	da	norma,	como,	por	exemplo,	em	Paulo
Dourado	 de	 Gusmão,215	 o	 qual,	 embora	 sustente	 que	 a	 lei	 se	 torna	 independente	 do
pensamento	 do	 seu	 autor	 a	 partir	 do	 momento	 em	 que	 é	 publicada,	 admite	 que,	 para
descobrir	 o	 sentido	 objetivo	 da	 lei,	 o	 intérprete	 procede	 por	 etapas,	 percorrendo	 o	 que	 se
convencionou	chamar	 fases	ou	momentos	da	 interpretação.	Nessas	etapasou	 fases,	o	autor
inclui	 desde	 a	 interpretação	 gramatical	 ou	 literal	 até	 a	 interpretação	 histórica,	 na	 qual
“muitas	 vezes	 nessa	 interpretação	 são	 usados	 os	 chamados	 trabalhos	 preparatórios,	 isto	 é,
projetos	de	lei,	debates	nas	comissões	técnicas	das	assembleias	legislativas	e	no	plenário	das
mesmas,	pareceres,	emendas	e	justificações	dos	mesmos”.
Também	é	possível	observar	uma	 imbricação	entre	a	doutrina	objetivista	e	a	 subjetivista
(no	 sentido	 hermenêutico	 da	 discussão)	 em	 Aníbal	 Bruno,216	 que	 admite	 tanto	 alguns
critérios	da	primeira	quanto	da	segunda	doutrina.	Já	Paulo	Nader,217	depois	de	comentar	as
duas	 teorias,	 inclina-se,	 citando	Maximiliano,	pela	doutrina	objetivista,	porque	o	 intérprete
deve	“determinar	o	sentido	objetivo	do	texto,	a	vis	ac	potestas	legis;	deve	ele	olhar	menos	para
o	 passado	do	 que	 para	 o	 presente,	 adaptar	 a	 norma	 à	 finalidade	 humana,	 sem	 inquirir	 da
vontade	 inspiradora	 da	 elaboração	 primitiva”.	 Entretanto,	 a	 seguir,	 ao	 examinar	 a
interpretação	 do	 Direito	 quanto	 ao	 resultado,	 admite	 um	 exame	 do	 “passado”	 legislativo,
quando	 descreve	 os	 distintos	 resultados	 a	 que	 o	 exegeta	 pode	 chegar:	 interpretação
declarativa,	 necessária	 porque	 “nem	 sempre	 o	 legislador	 bem	 se	 utiliza	 dos	 vocábulos,	 ao
compor	os	atos	legislativos”;	interpretação	restritiva,	quando	o	legislador	é	infeliz	ao	redigir
o	ato	normativo,	dizendo	mais	do	que	queria	dizer,	sendo	a	missão	do	exegeta	a	eliminação
da	amplitude	das	palavras;	e,	finalmente,	a	interpretação	extensiva,	que	ocorre	nas	hipóteses
contrárias	 à	 anterior,	 ou	 seja,	 quando	o	 legislador	diz	menos	do	que	queria	 afirmar.	Vê-se,
pois,	que	os	métodos	em	questão	não	prescindem	de	uma	atitude	subjetivista,	conclui.	Veja-
se,	 aqui,	 a	 algaravia	 conceitual	 que	 foi	 sendo	 produzida	 ao	 longo	 dos	 anos	 no	 plano	 da
dogmática	jurídica.
De	qualquer	sorte,	a	polêmica	–	seja	ou	não	relevante	a	sua	continuidade	em	nossos	dias	–
longe	está	–	no	plano	da	dogmática	jurídica	–	de	ser	resolvida.	Nesse	sentido,	com	Ferraz	Jr.,
identificando	uma	conotação	ideológica	na	raiz	da	discussão,	isto	é,	levado	a	um	extremo,	é
possível	 dizer	 que	 o	 subjetivismo	 (que,	 no	 plano	 hermenêutico,	 deve	 ser	 entendido	 como
objetivismo)	 favorece	 um	 certo	 autoritarismo	 personalista,	 ao	 privilegiar	 a	 figura	 do
“legislador”,	 pondo	 sua	 “vontade”	 em	 relevo.	 Por	 exemplo,	 a	 exigência,	 na	 época	 do
nazismo,	de	que	as	normas	fossem	interpretadas,	em	ultima	ratio,	de	acordo	com	a	vontade	do
Führer	(era	o	Führerprinzip)	é	bastante	elucidativa/significativa.218	Por	outro	 lado,	continua
Ferraz	Jr.,	o	objetivismo	(que,	no	plano	hermenêutico,	pode	ser	entendido	como	subjetivismo,
porque	 o	 sentido	 depende	 da	 subjetividade	 do	 intérprete,	 que	 irá	 “definir”	 o	 sentido
originário	 do	 produto	 do	 legislador),	 levado	 também	 ao	 extremo,	 favorece	 um	 certo
anarquismo,	pois	estabelece	o	predomínio	de	uma	equidade	duvidosa	dos	intérpretes	sobre	a
própria	norma	ou,	pelo	menos,	desloca	a	responsabilidade	do	legislador	para	os	intérpretes,
chegando-se	a	afirmar,	como	fazem	alguns	realistas	americanos,	que	direito	é	“o	que	decidem
os	 tribunais”.	 Além	 disso,	 acrescenta,	 não	 deixa	 de	 ser	 curioso	 que,	 nos	 movimentos
revolucionários,	o	direito	anterior	à	revolução	é	relativizado	e	atualizado	em	função	da	nova
situação,	predominando	aí	a	doutrina	objetivista,	muito	embora,	quanto	ao	direito	novo,	pós-
revolucionário,	tende-se	a	privilegiar	a	vontade	do	legislador	e	a	fazer	prevalecer	as	soluções
legislativas	 sobre	 as	 judiciais	 que,	 a	 todo	 custo	 e	 no	 máximo	 possível,	 devem	 a	 elas	 se
conformar.
De	todo	modo,	é	importante	insistir	que	essa	dicotomia	não	tem	(mais)	sentido	no	âmbito
da	 superação	 dos	 paradigmas	 tradicionais	 da	 filosofia	 (metafísica	 clássica	 e	 metafísica
moderna	ou,	se	quisermos,	os	paradigmas	aristotélico-tomista	e	da	filosofia	da	consciência).
Colocar	 o	 locus	 do	 sentido	 na	 coisa-objeto	 (lei)	 ou	 no	 sujeito	 (intérprete)	 é	 sucumbir	 à
ultrapassada	dicotomia	sujeito-objeto.	Ora,	dizer	que	o	sentido	está	na	 lei	ou	sustentar	que
aquilo	que	o	legislador	quis	dizer	é	mais	importante	do	que	aquilo	que	“ele	disse”,	não	resiste
a	uma	discussão	filosófica	mais	aprofundada.	Do	mesmo	modo,	não	passa	de	uma	vulgata	da
filosofia	 da	 consciência	 dizer	 que	 é	 o	 intérprete	 quem	 estabelece	 o	 sentido	 segundo	 sua
subjetividade.	O	que	pode	ser	relevante	é,	exatamente,	desmontar	as	estruturas	das	posturas
que	 sustentam	 os	 voluntarismos	 interpretativos.	 É	 nesse	 sentido	 que	 ocorre	 um	 salto	 na
discussão	 acerca	 do	 sentido	 de	 um	 texto	 jurídico.	 Na	 era	 do	 Constitucionalismo
Contemporâneo,	 sustentar	 a	 importância	 dos	 limites	 semânticos	 da	 Constituição	 e,	 em
consequência,	aferir	a	validade	das	leis	em	conformidade	com	a	Constituição	constitui,	sim,
um	efetivo	avanço	no	plano	hermenêutico.	Não	se	trata,	por	óbvio,	de	um	retorno	a	qualquer
postura	 exegetista	 operante	 no	 passado.	 Defender,	 hoje,	 os	 limites	 semânticos	 da
Constituição	–	naquilo	que	entendemos	por	“limites”	no	plano	hermenêutico,	é	claro	–	não
quer	 dizer	 “objetivismo”	 (nem	 no	 sentido	 do	 positivismo	 “clássico”,	 nem	 no	 sentido
filosófico	 do	 termo).	 Se	 o	 Direito	 tem	 um	 sentido	 interpretativo,	 um	 texto	 jurídico	 (lei,
Constituição)	não	possui	um	sentido	meramente	analítico.	Um	texto	só	é	na	sua	norma,	para
reproduzir	a	clássica	assertiva	de	Müller	e	ratificar	minha	adaptação	da	diferença	ontológica
entre	 texto	 e	norma.	Por	 isso,	 não	há	 sentidos	 em	 si.	Consequentemente,	 não	há	 conceitos
sem	coisas.	E	não	há	respostas	antes	das	perguntas.	Não	há	“normas	gerais”	que	contenham
os	sentidos	de	forma	antecipada.	Estes	somente	acontecem	de	forma	aplicativa.	Daí	a	noção
de	 applicatio.	 Por	 ela,	 ficam	 superadas	 quaisquer	 dicotomias	 entre	 objetivismos	 e
subjetivimos,	 seja	no	plano	“clássico”	entre	vontade	da	 lei	 e	vontade	do	 legislador,	 seja	no
plano	filosófico.
	
	
5.3.3.	As	lacunas	(hermenêuticas)	do	Direito
	
Outra	questão	(sempre)	presente	nos	debates	acerca	do	processo	hermenêutico	no	campo
jurídico	 diz	 respeito	 à	 integração	 e	 ao	 preenchimento	 das	 lacunas	 do	 Direito.	 Embora
colocados	 como	 diferentes,	 são	 espécies	 do	 mesmo	 gênero,	 subsumindo-se	 na	 amplitude	 do
senso	 comum	 teórico	 dos	 juristas,	 em	 que	 se	 insere	 a	 discussão	 das	 diferentes	 maneiras
admitidas/permitidas	para	o	processo	argumentativo	e	hermenêutico	do	Direito.	Com	efeito,
o	sistema	jurídico	brasileiro	coloca-se	como	formalmente	cerrado,	é	dizer,	a	combinação	dos
artigos	4º	da	LINDB	com	o	art.	126	do	Código	de	Processo	Civil	reproduz	o	princípio	do	non
liquet.
O	 problema	 da	 lacuna	 surge	 a	 partir	 do	 século	 XIX,	 juntamente	 com	 o	 fenômeno	 da
positivação	do	Direito,	 estando	a	 ideia	de	 lacuna	 ligada	à	de	 sistema,	visto	 este	 como	uma
totalidade	ordenada,	um	conjunto	de	entes,	entre	os	quais	existe	uma	certa	ordem	(Bobbio).
O	conceito	de	lacuna,	em	verdade,	veio	alargar	o	campo	da	positividade	do	Direito	a	partir
dele	mesmo,	exatamente	porque	é	uma	construção	da	dogmática	jurídica,	que	tanto	assegura
a	 eventuais	 critérios	 transcendentes	 uma	 coloração	 positivante,	 como	 dá	 força	 e	 serve	 de
sustentáculo	à	argumentação	do	intérprete	do	Direito.219
Uma	das	fontes	principais	da	discussão	acerca	da	problemática	das	lacunas	está	em	Kelsen,
que,	de	forma	taxativa,	classifica	a	tese	das	lacunas	do	Direito	e	a	omissão	do	legislador	como
sendo	 “ficções”.	 Para	Kelsen,	 se,	 em	alguns	 casos,	 se	 fala	de	uma	 lacuna	do	Direito,	 não	 é
porque	uma	decisão	seja	logicamente	impossível	ante	a	falta	de	disposições	aplicáveis,	e	sim,
simplesmente,	 porque	 a	 decisão	 logicamente	 possível	 aparece	 ao	 órgão	 aplicador	 como
inoportuna	ou	 injusta,	e,

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