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CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 1 AULA 01: DIREITO CONSTITUCIONAL E CONSTITUIÇÃO 1) DIREITO CONSTITUCIONAL: CONCEITO O Direito, enquanto sistema normativo, é usualmente subdividido, para fins didáticos, em duas grandes unidades estruturais, o Direito Público e o Direito Privado, as quais, por sua vez, apresentam diversos desmembramentos, a que a doutrina denomina ramos da ciência jurídica. Temos, assim, o Direito Público, voltado precipuamente para os interesses coletivos, e composto, dentre outros ramos jurídicos, pelos Direitos Constitucional, Administrativo, Tributário, Ambiental, Econômico, Financeiro, Urbanístico, Penal, Processual Civil, Processual Penal e Internacional Público e Privado. Já o Direito Privado, direcionado essencialmente à satisfação dos interesses individuais, apresenta como ramos jurídicos o Direito Civil e o Comercial. Já o Direito Previdenciário e o Direito do Trabalho, para alguns, alocam-se, respectivamente, como ramos do Direito Público e Privado. Para outros, compõem uma terceira unidade estrutural, o Direito Social. De qualquer modo, no que nos é relevante, enquadra-se o Direito Constitucional como o ramo por excelência do Direito Público, o principal ramo desta seara jurídica, já que tem por objeto o estudo do ordenamento fundamental do Estado, o conjunto de regras e princípios basilares de uma sociedade politicamente organizada, os quais, em seu conjunto, compõem sua Constituição. Como leciona Jorge Xifras Heras, citado por José Afonso da Silva, refere-se o Direito Constitucional “à organização e ao funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política”. Justamente em virtude de seu objeto – o ordenamento fundamental do Estado - podemos vislumbrar o Direito Constitucional como o ramo-mãe do Direito, o ramo jurídico do qual derivam todos os demais, não só aqueles que integram o Direito Público, mas também os que formam o Direito Privado (e o Direito Social, para os que reconhecem esta subdivisão). Enfim por ser nele que se alicerçam e do qual afloram todos os demais ramos jurídicos na atualidade, podemos considerá-lo como o ramo fundamental, num primeiro plano, do Direito Público, e, num segundo, do Direito como um todo, comportando todas suas subdivisões. Ademais, com a crescente intervenção do Estado em todas as instâncias da vida social, com o progressivo aumento de sua ação nas mais diversas áreas, públicas e privadas, concomitantemente temos um proporcional aumento da importância do Direito Constitucional, como ramo jurídico vocacionado justamente para o estudo sistemático desse fenômeno. A doutrina é rica em conceitos da nossa disciplina. A título ilustrativo, apresentamos algumas das definições elaboradas: - para Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Direito Constitucional é o conhecimento sistematizado da organização jurídica fundamental do Estado. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 2 Isto é, o conhecimento sistematizado das regras jurídicas relativas à forma de Estado, à forma de Governo, ao modo de aquisição, exercício do poder, ao estabelecimento de seus órgãos e aos limites de sua ação”; - para José Afonso da Silva, é “o ramo do Direito Público que expõe, interpreta e sistematiza os princípios e normas fundamentais do Estado”; - para Afonso Arinos de Melo Franco, é “o estudo metódico da Constituição do Estado, da sua estrutura institucional político administrativa”; e - para Maurice Duverger, é “o ramo do Direito cujo objeto é a determinação da forma de Estado, da forma de governo e reconhecimento dos direitos individuais”. Dos conceitos acima expostos podemos perceber que alguns definem o Direito Constitucional a partir da Constituição, das normas e princípios que a compõem, ao passo que outros, em pólo oposto, vislumbram nossa disciplina como o instrumental com base no qual dada Constituição será analisada. Para os primeiros, o Direito Constitucional emerge da Constituição, para os últimos, a Constituição emerge do Direito Constitucional. Em outros termos, na primeira perspectiva temos o Direito Constitucional como fruto da Constituição, como o conjunto de normas, princípios e instituições oriundos da análise do texto constitucional. É o que percebemos nas definições de Manoel Gonçalves Ferreira Filho e José Afonso Arinos de Melo Franco, representantes da corrente majoritária no Brasil. Nesta acepção, dos mandamentos constitucionais, escritos ou costumeiros, surge o Direito Constitucional como o objeto de estudo do jurista. No segundo ponto de vista, temos o Direito Constitucional como uma disciplina que tem por finalidade o estudo da Constituição. Consiste, portanto, num instrumento científico para a análise de certa Constituição (e esta é, pois, o objeto de estudo do jurista). O raciocínio é aqui o inverso do anterior: o jurista não parte da Constituição para construir o Direito Constitucional, como antes afirmado. Ele se vale do Direito Constitucional para o exame científico da Constituição. O objeto de estudo, aqui, é a Constituição, sendo o Direito Constitucional a ferramenta adequada para essa tarefa. Dentre os Autores acima citados, representantes desta corrente são Maurice Duverger e José Afonso da Silva. Na verdade, podemos unir essas duas perspectivas, percebendo o Direito Constitucional como um produto oriundo da análise sistemática da Constituição, mas cujas conclusões podem servir, como efetivamente o fazem, para a elaboração e a análise de futuras Constituições. Num primeiro momento ele é o objeto de estudo do jurista, na segunda, seu instrumento de trabalho. Dentro de nossos objetivos, entretanto, devemos privilegiar a primeira corrente, por ser a predominante no País. Temos, assim, que o Direito Constitucional é o ramo do Direito Público que estuda as normas, os princípios e as instituições básicas de uma coletividade humana politicamente organizada. 2) DIREITO CONSTITUCIONAL: ORIGEM E EVOLUÇÃO CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 3 No conceito acima exposto acolhemos como objeto do Direito Constitucional todo o qualquer conjunto de princípios e normas contidos em uma Constituição, qualquer que seja o conteúdo neles disposto. Nem sempre, entretanto, foi conferida tal amplitude ao objeto de nossa disciplina. Como veremos a seguir, nas suas origens mais próximas, datadas do final do séc. XVIII, foi determinado um conteúdo mínimo obrigatório a tais regras constitucionais, para o fim de considerá-las ou não abrangidas pelo Direito Constitucional, dando-se o alargamento do seu objeto ao longo de um processo de evolução que, desenrolando-se nos séc. XVIII/XIX e, principalmente, no séc. XX, prossegue ininterrupto até os dias de hoje. Este será o tema ora analisado – a evolução do Direito Constitucional -, para o que nos valeremos, precipuamente, das lições de Paulo Bonavides. Na sua formação (final do séc. XVIII e início do séc. XIX), o Direito Constitucional adotou os valores defendidos pela classe social então emergente, a burguesia, a qual, a partir da Revolução Francesa, logrou impor ao mundo seu modelo de organização política, o Estado liberal. Essa forma de organização política tinha por objetivo, em última análise, assegurar a autonomia do indivíduo, a liberdade de cada um para desenvolver-se em plenitude, dando vazão ao seu potencial. Evidentemente, tal objetivo amoldava-se à perfeição aos interesses da burguesia, classe detentora dos meios de produção, a mais apta a atingir ummaior nível de “desenvolvimento”. A fim de ser assegurada tal autonomia individual, fazia-se indispensável a imposição de limites ao poder do Estado absolutista, o que seria obtido essencialmente, segundo os ideólogos liberais, pela previsão, na Constituição, do princípio da separação dos Poderes e de um conjunto mínimo de direitos individuais. A idéia, essencial ao surgimento do Estado moderno, era em si mesma simples: o pleno desenvolvimento do indivíduo dependia de uma nova organização do Estado, de uma identificação e regulação de sua estrutura e forma de funcionamento, com vistas à contenção de seu poder, à limitação da sua capacidade de ingerência na esfera privada. Isto seria obtido, no que toca ao Direito Constitucional, principalmente com a previsão do princípio da separação dos Poderes e dos direitos individuais na Constituição do Estado. Na verdade, o objetivo dos pensadores liberais, em sentido amplo, voltava-se à reestruturação do aparato estatal como um todo, mas, dentro desta perspectiva, a ênfase foi conferida à separação dos poderes e aos direitos individuais (direitos fundamentais de primeira geração). Evidentemente, a burguesia não prolatou tais valores como seus; ao contrário, conferiu-lhes um caráter universal. Apresentou a separação de Poderes e os direitos individuais como imposições oriundas da própria razão humana e, por conseguinte, pertinentes ao gênero humano como um todo. Deste modo, os pensadores liberais lograram êxito em conferir um caráter abstrato e genérico aos princípios e direitos que constituíam precipuamente o interesse da classe que representavam. Ao triunfar em seu intento, ou seja, ao conferir universalidade a tais valores e apartá-los de suas origens históricas, a doutrina liberal transformou o CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 4 princípio da separação de Poderes e os direitos individuais em elementos integrantes de um conceito genérico de Constituição, pressupostos indispensáveis à legitimidade de qualquer documento constitucional. Como veremos logo mais, tal situação perdurou até a eclosão das crises sociais do séc. XX, quando então o núcleo individualista das Constituições de cunho liberal evidenciou sua fraqueza e incompletude frente às novas aspirações da sociedade, mormente no toca aos direitos humanos de segunda e terceira gerações, que têm não na liberdade, mas, respectivamente, na igualdade e na solidariedade, seus valores cardeais. Dentro deste contexto, nasceu o Direito Constitucional moderno, sendo a expressão adotada originariamente nas universidades do norte da Itália, no final do séc. XVIII, mais precisamente, na Universidade de Ferrara, em 1797, daí migrando para Pavia e Bolonha, chegando posteriormente à França, no ano de 1834, na Faculdade de Direito de Paris, por obra do Ministro Guizot, que inseriu a matéria no programa da instituição, com o objetivo de fornecer ao Estado os alicerces de sua estruturação, exatamente nos moldes propostos pela ideologia liberal, cujos valores à época já se admitiam como perenes, absolutos, imutáveis e universais. Desses países a disciplina difundiu-se para o restante da Europa, atingindo depois os demais continentes. Como ressalta Paulo Bonavides: Em virtude dessa origem histórica, sustentou-se durante largo tempo, do ponto de vista doutrinário, que a Constituição e o Direito Constitucional eram distintos. E o eram, precisamente, por admitir- se, em coerência com a doutrina recém-exposta, a existência de Estados “sem Constituição”, ou apenas com uma “Constituição de fato”, nos quais não haveria lugar para o Direito Constitucional. Países dotados de Constituição de fato eram países sem Direito Constitucional, segundo o entendimento que prevaleceu, durante a primeira metade do séc. XIX, entre as noções liberais da Europa continental. O Direito Constitucional era concebido, então, sob uma tripla perspectiva: de um lado, era ferramenta científica para a análise da Constituição vigente; de outro, servia de referencial teórico para a elaboração da Constituição vindoura; numa última acepção, exigia que a Constituição consagrasse certos valores dominantes à época. Dentro desta tríplice visão efetiva-se a aplicação da disciplina sobre as Constituições em vigor à época. Teríamos, de um lado, uma Constituição legítima, porque consagradora do pensamento liberal-burguês, que trazia como dogma jurídico fundamental, como já dito, a previsão do princípio da separação dos Poderes e dos direitos individuais na Constituição do Estado. De outro lado, teríamos meras Constituições de fato, repudiadas pela doutrina, porque por ela compreendidas como caracterizadores de Estados absolutistas, arbitrários, nos quais os poderes governamentais ainda se sobrepunham injusta e exageradamente às forças legítimas do corpo social. Prova da força desta diretriz ideológica é o art. 16 do primeiro texto constitucional elaborado pela Revolução Francesa, segundo o qual “toda sociedade na qual não esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação dos poderes não possui Constituição”. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 5 Como já afirmado, uma vez vencedor o pensamento liberal, disposições constitucionais como as transcritas anteriormente perderam todo seu matiz ideológico, valorativo, político, e adquiriram caráter (pretensamente) científico, dando origem a um Direito Constitucional de mesmo caráter: um Direito Constitucional neutro, apolítico, erigido como ciência. Universalizaram-se os valores da burguesia reinante, com a cristalização da exigência de que as constituições contemplassem o princípio da separação dos poderes o estabelecessem os direitos individuais. Apenas Constituições com tal conteúdo, segundo a concepção liberal, eram dignas de figurar como objeto de estudo do Direito Constitucional. Todavia, o pensamento liberal, após predominar no final do séc. XVIII e tornar-se praticamente hegemônico no séc. XIX, veio a encontrar seu malogro, ou ao menos um considerável enfraquecimento, no séc. XX, em decorrência das crises sociais, de fundo político, econômico e cultural, que atravessam a sociedade neste período. A afirmação dos direitos fundamentais de segunda geração, que tomam por base o valor da igualdade, e dos direitos fundamentais de terceira geração, que tem como pedra angular o ideal de fraternidade, impôs um alargamento no conteúdo necessário das Constituições, de modo a abarcar também esses direitos fundamentais. Dentro do mesmo contexto, como uma tentativa de resposta aos anseios promotores de tais crises, tivemos o Estado liberal, individualista e propugnador do Estado mínimo, paulatinamente substituído pelo Estado social, marcadamente intervencionista no meio social. A partir de então, em face do abandono pelas Constituições dos valores restritos apregoados pelo pensamento liberal-burguês, com a ampliação do rol de matérias nelas constantes, tratando de novos direitos e estabelecendo novos paradigmas de estruturação do Estado, o Direito Constitucional desata-se de qualquer conotação política específica, de qualquer diretriz ideológica obrigatória, passando a trabalhar sobre quaisquer normas e princípios integrantes de uma Constituição, sejam eles escritos ou costumeiros. Temos, então, uma ampliação significativa do conteúdo do Direito Constitucional, o que nos permite defini-lo, a partir daí, como o ramo do Direito Público que trata das normas, princípios e instituições capitais de qualquer espécie de ordenamento político, independentemente de considerações valorativas sobre seu conteúdo específico. Na lição de Paulo Bonavides: As regras fundamentaisde estruturação, funcionamento e organização do poder, não importa o regime político nem a forma de distribuição da competência aos poderes estabelecidos, são, por conseguinte, matéria do Direito Constitucional. De modo que todo Estado ou toda sociedade politicamente organizada possui, como já assinalava Lassalle, uma Constituição ou um Direito Constitucional. Aquela acepção de fundo racionalista e normativista, decorrente, historicamente, do domínio político da classe burguesa ao colher os primeiros frutos da sua vitória sobre os Estados de monarquia absoluta e sua respectiva organização do poder, cedeu lugar, hoje, a uma concepção mais ampla e verdadeira, muito mais tímida, aliás, aquela em que o Direito Constitucional é, conjuntamente, “técnica de poder” e “técnica da liberdade”; um Direito Constitucional político, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 6 sem ser, porém, contra ou a favor das instituições que abrange ou encerra. 3) DIREITO CONSTITUCIONAL: OBJETO Como acima analisado, o Direito Constitucional, no seu início, enquanto vinculado ao pensamento liberal, visava essencialmente à imposição de limites ao poder do Estado absolutista, o que seria obtido por uma rígida estatuição, na Constituição, do princípio da separação dos poderes, de modo que cada uma das funções estatais – jurisdicional, legislativa e administrativa – ficasse a cargo de órgãos distintos, que atuariam de forma independente, sem predomínio de qualquer deles sobre os demais. Tal distribuição das funções estatais básicas, aliada à declaração de direitos, eram as bandeiras máximas da Revolução Francesa, e em torno delas foi erigida nossa disciplina. Dentro desta concepção, só seriam legítimas as Constituições que prescrevessem e resguardassem tais valores. Elas, exclusivamente, comporiam o objeto de estudo do Direito Constitucional. Na atualidade, caiu por terra esta visão, como ensina Gabriel Dezen Junior, Modernamente, na esteira das transformações políticas e jurídicas profundas, dentre elas a derrocada do Estado burguês, adquiriu o Direito Constitucional uma feição nova, não mais centrada e essencialmente liberalista, mas com as linhas de uma ciência das normas e instituições básicas de toda e qualquer modalidade de ordenamento político, ocupando-se assim de qualquer conjunto de normas que venha a governar a coletividade humana. O que se tem agora, então, é o Direito Constitucional se ocupando de qualquer estrutura constitucional praticada em determinado Estado, mesmo que afastada do modelo tradicional inaugurado pela Revolução Francesa. Como isto, podemos seguramente afirmar que cabe ao Direito Constitucional o estudo das normas que compõem uma Constituição, qualquer que seja a matéria nelas prescrita. Desmembrando-se o conceito, podemos definir como seu objeto de estudo as “diretrizes fundamentais da organização do Estado, sua estrutura, forma e sistema de governo, modo de aquisição, exercício e perda do poder, repartição das competências entre os entes políticos, estabelecimento e definição da competência dos seus órgãos e poderes e a relação dos direitos e garantias fundamentais do homem” (Gabriel Dezen Junior). A tais matérias podemos acrescentar as normas referentes à ordem econômica, à ordem social, ao meio-ambiente, à cultura, às relações internacionais, às finalidades para a ação estatal, bem como todas as demais consideradas fundamentais à organização do Estado e ao desenvolvimento integral da sociedade, quando acolhidas pela Constituição. Como esclarece José Afonso da Silva, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 7 Nem sempre tiveram as constituições objeto tão amplo. Este vem-se estendendo com o correr da história. A cada etapa desta, algo de novo entra nos textos constitucionais, “cujo conteúdo histórico é variável no espaço e no tempo, integrando, na lapidar expressão de Bérgson, ‘a multiplicidade no uno’ das instituições econômicas, jurídicas, políticas e sociais na ‘unidade múltipla’ da lei fundamental do Estado”. É evidente, enfim, o alargamento do objeto de estudo do Direito Constitucional. Afastando-se da concepção restritiva propugnada pelos ideólogos liberais, que percebia matéria constitucional somente nos temas acima citados, na atualidade compreende-se que compete a este ramo do Direito Público analisar todos os novos temas inseridos no documento constitucional, os quais possuem naturezas distintas - política, social, cultural, econômica – e conferir-lhes adequado tratamento científico, normatizando-os dentro da sistemática constitucional. O complexo de normas e princípios da Constituição, qualquer que seja a matéria sobre a qual versem: é este, afinal, o objeto de estudo do Direito Constitucional na atualidade. Em encerrando, cabe apresentarmos algumas considerações, da lavra de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, acerca da evolução do Direito Constitucional no séc XX. Segundo o Professor, no período imediatamente posterior ao encerramento da primeira Guerra Mundial ocorreu o que poderíamos chamar de racionalização do poder, com a introdução de complexos instrumentos jurídicos nos documentos constitucionais, o que afastou do cidadão comum a capacidade para sua plena compreensão, agora restrita aos especialistas na matéria. Foi o período em que emergiram os direitos fundamentais de segunda geração, os direitos econômicos e sociais, fruto das crises sociais, políticas e econômicas que marcaram a sociedade naquele momento histórico. Para fazer frente aos novos anseios da coletividade as Constituições incorporam tais direitos, passando a prevê-los em seu texto. Com isto tivemos, de um lado, ao menos formalmente, a satisfação destes anseios, mas, de outro, o progressivo hermetismo dos documentos constitucionais para o cidadão comum. Tal movimento teve um novo alento com o surgimento dos direitos fundamentais de terceira geração, como os direitos ao meio ambiente preservado, à paz, à função social da propriedade, entre outros. Mais uma vez tais direitos foram acrescidos ao texto constitucional por força das pressões sociais, porém, mais uma vez acarretaram um acréscimo no caráter hermético da Constituição, dificultando sua plena compreensão para a coletividade em geral. Enfim, tivemos no séc. XX uma profunda ampliação do conteúdo presente nas Constituições. O Direito Constitucional, em termos técnicos, foi em muito aprimorado, a fim de fazer frente às inovações, mas isto implicou, concomitantemente, uma crescente dificuldade, quando não impossibilidade, para os cidadãos em geral compreenderem adequadamente a Constituição a que estão sujeitos. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 8 4) DIREITO CONSTITUCIONAL: CONTEÚDO CIENTÍFICO A expressão “Direito Constitucional”, sem especificações, alberga o Direito Constitucional Especial, o Direito Constitucional Comparado e o Direito Constitucional Geral. Podemos considerá-los subdivisões do Direito Constitucional, conforme o conteúdo científico próprio de cada um, ou, de outro modo, como diferentes aspectos do Direito Constitucional, cada um deles compondo uma disciplina, as quais, reunidas, correspondem à totalidade do conteúdo científico do Direito Constitucional. 4.1) Direito Constitucional Especial (Interno, Positivo ou Particular) Tem por objeto de estudo a Constituição vigente no Estado, com a finalidade de analisar, interpretar, sistematizar e criticar as normas e princípios nela prescritos. Trata-se de uma disciplina essencialmente positiva, porque se ocupasomente das normas e princípios que compõem a Constituição em vigor de dado Estado; e prática, pois seu intento é justamente fornecer elementos jurídicos úteis para sua aplicação. A análise da atual Constituição Federal, ou da Constituição francesa em vigor, são exemplos de objeto de estudo do Direito Constitucional Especial. Devemos ressaltar que alguns doutrinadores diferenciam o Direito Constitucional Especial (Interno ou Particular) do Direito Constitucional Positivo. Aquele teria por objeto exclusivo o estudo da Constituição vigente, e apenas dela, com vistas à obtenção de conclusões para a aplicação de seu texto; enquanto que este, apesar de buscar elementos para a aplicação da Constituição em vigor, o faria mediante a análise de outras Constituições, de mesmo ou de outro Estado, em vigor ou não. Assim, por este ponto de vista, o Direito Constitucional Especial analisaria somente a Constituição em vigor, a fim de obter conclusões úteis para sua aplicação; ao passo que o Direito Constitucional Positivo visaria também à obtenção de conclusões válidas para a Constituição vigente, mas a partir de sua análise conjunta com outras Constituições. Apesar dos méritos deste entendimento, devemos adotar o primeiro conceito, inserindo a análise conjunta da Constituição em vigor com outras Constituições como objeto do Direito Constitucional Comparado, visto a seguir. 4.2) Direito Constitucional Comparado: Volta-se não para uma específica Constituição, mas para diversas Constituições, com o objetivo de, a partir de sua análise conjunta, destacar e criticar suas semelhanças e dessemelhanças. Consiste, segundo Afonso Arinos de Melo Franco, em “cotejar instituições políticas e jurídicas para, através do cotejo, extrair a evidência de semelhanças entre elas”. Enfim, é uma disciplina que faz o estudo comparativo de várias Constituições, escolhidas com base em determinados critérios. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 9 Segundo Paulo Bonavides, podemos ter como critérios seletivos: (1) o critério temporal; (2) o critério espacial e (3) o critério da mesma forma de Estado. Pelo critério temporal analisam-se as diversas Constituições de um mesmo Estado, os documentos constitucionais que se sucederam temporalmente, no transcurso do seu processo de evolução político- institucional, com a finalidade de serem compreendidas as alterações ocorridas nos institutos, instituições e princípios constitucionais selecionados. Por este critério podem ser estudadas todas as Constituições já vigentes no Estado, apenas aquelas promulgadas a partir de certo período, somente aquelas em vigor em determinadas conjunturas políticas, entre outras variáveis possíveis. Pode-se até mesmo não ser analisada a Constituição vigente, embora isto seja incomum. O que define o critério temporal é apenas isto: a análise das diversas Constituições de um mesmo Estado, para fins de análise comparativa de seus preceitos. Pelo critério espacial, como o próprio termo indica, faz-se a análise comparativa das Constituições de diversos Estados, de entes soberanos em territórios diferentes, em regra localizados em áreas geográficas próximas ou contíguas. Como exemplo, podemos citar o estudo de todas as Constituições em vigor na Europa. O objetivo da tarefa, mais uma vez, é a avaliação dos institutos, instituições e princípios constitucionais desses diferentes Estados, destacando-se suas similitudes e diferenças. Pelo terceiro critério, cotejam-se as Constituições (em regra, as Constituições em vigor) de países que adotam a mesma forma de Estado, (confederação, federação, Estado unitário). Seria o caso, por exemplo, da análise das Constituições dos Estados organizados sob a forma de Federação. Devemos perceber que tais critérios, embora usualmente utilizados isoladamente, podem ser aplicados de forma conjunta. Poderíamos ter, então, por exemplo, um estudo das Constituições dos Estados latino- americanos promulgadas de 1960 até a presente data (utilização conjunta dos critérios espacial e temporal), ou das Constituições em vigor de todos os países europeus que adotam a Federação (comunhão dos critérios espacial e do da mesma forma de Estado), ou das Constituições promulgadas pelos Estados Federados a partir de 1980 (utilização simultânea dos critérios temporal e do da mesma forma de estado). Pode- se até mesmo conjugar os três critérios, como ocorre numa hipotética análise comparativa das Constituições promulgadas a partir de 1980 pelos Estados asiáticos que adotam a Federação como forma de Estado. 4.3) Direito Constitucional Geral Segundo Vicente Paulo, o Direito Constitucional Geral “tem por fim delinear, sistematizar e dar unidade aos princípios, conceitos e instituições que se acham presentes em vários ordenamentos constitucionais, formando-se uma teoria geral de caráter científico”. O objetivo, como já referido pelo citado Autor, é a definição e a sistematização de conceitos, princípios e instituições que se encontram em várias Constituições, a fim de reuni-los sob uma perspectiva unitária, e cujo CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 10 conjunto compreende os elementos que compõe a “teoria geral do Direito Constitucional”. O fruto deste trabalho científico são os conceitos, os elementos mais abstratos e genéricos do Direito Constitucional, dentre os quais podemos citar, exemplificativamente: classificação das normas constitucionais; tipos de Constituição; definição de poder constituinte e suas modalidades; métodos e princípios de interpretação da Constituição; o próprio conceito de Direito Constitucional e seu objeto; as relações do Direito Constitucional com outras disciplinas; as técnicas de aplicação das normas constitucionais; as fontes de Direito Constitucional etc. Por fim, devemos ter claro que essas diferentes disciplinas não devem ser vistas como mutuamente excludentes, no sentido de que sua aplicação deve-se dar de forma isolada, independente, das demais. O raciocínio correto é justamente o oposto: apesar de suas especificidades, cada uma destas disciplinas volta-se para uma só ciência, o Direito Constitucional. Desse modo, são inúmeros seus pontos de aproximação, e ilimitadas as possibilidades de utilização das conclusões obtidas em uma delas para o aprimoramento das demais. Basta pensarmos que o Direito Constitucional Geral vale-se da análise de diversos ordenamentos constitucionais, logo, é muito íntima sua relação com o Direito Constitucional Comparado, podendo-se dizer que as conclusões mais genéricas do Direito Constitucional Comparado são justamente o alicerce teórico do Direito Constitucional Geral. Por outro lado, é evidente que o referencial teórico do Direito Constitucional Geral é de suma importância no momento de elaboração de uma nova Constituição e, uma vez esta em vigor, com tais elementos explícita ou implicitamente contemplados no seu texto, serão eles objetos de análise pelo Direito Constitucional Positivo. 5) CONSTITUCIONALISMO 5.1) Conceito e origem Embora alguns doutrinadores apresentem sentidos diversos para o termo “constitucionalismo”, a acepção que predomina, e que será adotada neste trabalho, considera o constitucionalismo um movimento jurídico e político levado a cabo pela burguesia européia emergente, nos séc. XVIII e XIX, no bojo de um movimento maior, o Iluminismo. Foi, portanto, produto da ideologia liberal. Seu objetivo era explícito: impor aos Estados absolutistas mecanismos de contenção do poder, o que seria atingido a partir da adoção de Constituições escritas que organizassem o Estado, regulassem o exercício do podere contemplassem os direitos e garantias fundamentais do homem. O movimento irrompeu com êxito durante a Revolução Francesa, daí alastrando-se, com maior ou menor grau de sucesso, para os demais países da Europa. Da mesma forma, veio a fundamentar a doutrina constitucionalista então existente na América do Norte, sendo seus princípios acolhidos pelas recém-emancipados Estados americanos, que, a CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 11 partir da libertação de seus laços de dominação política, adotaram integralmente as Constituições do tipo escrito, as quais consagraram o princípio da separação dos Poderes e os direitos fundamentais do homem. Em termos históricos, os dois primeiros documentos constitucionais frutos do constitucionalismo são a Constituição norte-americana, de 1787, e a Constituição francesa, de 1791. 5.2) Antecedentes da Constituição escrita Como já apontado, uma das bandeiras do movimento constitucionalista foi a adoção, pelos Estados, de Constituições escritas. Neste ponto, analisaremos os documentos que podem ser considerados como predecessores das Constituições escritas propriamente ditas, pois, além de seu caráter escrito, objetivaram, em maior ou menor amplitude, a impor limites ao poder estatal, a estabelecer regras de governo e resguardar da ingerência estatal uma esfera de liberdade individual. Nomeadamente, analisaremos sinteticamente os pactos, as cartas de franquia, os forais e os contratos de colonização. Os pactos, que tiveram lugar na Idade Média, eram convenções entre o monarca e os membros da nobreza ou da burguesia, tendo por objeto, essencialmente, disposições acerca do modo de governo, dos direitos individuais e de suas respectivas garantias. O mais célebre de todos os pactos foi a Magna Carta, de 1215, celebrada entre o rei João Sem Terra e os nobres ingleses. Estes insuflados principalmente por uma tentativa do monarca de tributar suas propriedades imobiliárias, pleitearam e obtiveram um documento instituidor de diversas liberdades individuais, tais como: restrições à criação e cobrança de impostos, proteção da liberdade pessoal, reconhecimento do direito a um devido processo legal, garantia da inviolabilidade domiciliar, entre outras. As cartas de franquias, que também tiveram lugar na Europa medieval, eram instrumentos formais pelas quais se permitiam às corporações desempenhar com autonomia suas atividades específicas, livres do jugo do rei ou da nobreza feudal. Os forais, celebrados no mesmo período histórico, eram documentos de alcance mais amplo, pois seu objeto era a concessão aos burgos de autonomia política e administrativa para se autogovernarem. A seguir, também na Inglaterra (onde foram celebrados os principais pactos), já na Idade Moderna, em 1628, outro pacto digno de menção foi o Petition of Rights, pelo qual o monarca Carlos I concordou que as contribuições ao erário público só poderiam ser instituídas com a concordância geral dos súditos. Ainda na Inglaterra deve ser relembrado o Bill of Rights, de 1689, um pacto de conteúdo bastante amplo, que, além de afastar a dinastia Stuart da coroa inglesa, tratou de diversos direitos e garantias dos súditos, dentre eles a liberdade nas eleições e a regulamentação do direito ao porte de armas. Os contratos de colonização foram convenções celebradas entre os puritanos ingleses que chegavam à América do Norte, à época domínio CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 12 colonial da Inglaterra. Face à ausência na Colônia de um poder instituído, os próprios imigrantes acordaram regras de autogoverno. Valem ser mencionados, como exemplos, o pacto celebrado a bordo do navio Mayflower, em 1620, chamado de Compact, e as Fundamental Orders of Connecticut, pactuadas em 1639. Após a sumária exposição desses documentos, cujo estudo detalhado foge aos nossos objetivos, o que importa de relevo enfatizar é que eles são prova de que o constitucionalismo, com sua exigência de Constituições escritas e de valores nelas necessariamente contemplados, não foi um fenômeno historicamente isolado, mas o resultado de um longo e rico processo de conscientização, pela coletividade, sobre a importância da existência de um documento que estabelecesse regras de governo e assegurasse os direitos e garantias individuais dos membros da coletividade. 6) CONSTITUIÇÃO: CONCEITO A idéia de Constituição, da necessidade de um conjunto de normas regentes da organização estatal, originou-se na Grécia antiga, e a expressão Constituição, com o sentido de organização jurídica do povo, foi cunhada em Roma, durante o período republicano. Nosso objetivo, nesse tópico, é a apresentação e a análise dos diversos conceitos de Constituição construídos ao longo da evolução do Direito Constitucional. 6.1) Conceito material Numa perspectiva material, nos ensina Paulo Bonavides que A Constituição é o conjunto de normas pertinentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício da autoridade, à forma de governo, aos direitos da pessoa humana, tanto individuais como sociais. Tudo quanto for, enfim, conteúdo básico referente à composição e ao funcionamento da ordem política exprime o aspecto material da Constituição. Podemos perceber que o conceito material de Constituição aproxima-se do pensamento liberal-burguês que dominou a Revolução Francesa e foi o marco inicial do Direito Constitucional. Pode-se considerá-lo, de certo modo, como uma evolução do conceito então proposto, embora despido de seu caráter ideológico. Enquanto os revolucionários franceses preocupavam-se essencialmente com a divisão dos Poderes e os direitos fundamentais, o conceito material de Constituição é mais abrangente, abarcando todas as matérias consideradas fundamentais para a organização política do Estado. Mas apenas estas, pois desse conceito estão excluídas todos os temas não dotados desta nota de essencialidade à organização estatal. Nesta perspectiva, podemos com tranqüilidade concluir que não há nem nunca houve um Estado sem Constituição, já que toda e qualquer sociedade organizada politicamente tem um conjunto mínimo de regras de organização, sejam elas escritas ou não. Não importa se as CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 13 normas e princípios constitucionais encontram-se expressamente prescritos em um ou mais documentos de peso constitucional, ou se, ao contrário, estão sedimentados nos costumes regentes da coletividade. Desde que versem sobre a organização essencial da coletividade devem ser reputados como constitucionais. Ora, todo Estado é uma organização política. Se a Constituição é o conjunto de regras disciplinadoras desta organização, tem-se que, na concepção material aqui exposta, não houve, não há e não pode haver Estados sem Constituição. Entretanto, desde já é bom esclarecer que não é este o conceito de Constituição de relevo ao moderno Direito Constitucional. Deve-se aqui transcrever a lição de Lassalle, segundo o qual: O que portanto é realmente peculiar à época moderna não são as Constituições materiais – importantíssimo ter isto sempre – mas as Constituições escritas, as folhas de papel. O que importa, assim, não é o conteúdo, em si mesmo considerado, dos preceitos constitucionais, mas o fato de tais preceitos estarem corporificados, expressos, contidos explicitamente em textos aos quais se reconhece valor constitucional, pois prescrevem as normas fundamentais de organização de certa sociedade. Com o caráter escrito de uma Constituição a sociedadeque a envolve adquire um mínimo de segurança jurídica, já que são facilmente identificáveis as regras constitucionais, além de perceber com mais nitidez o caráter hierarquicamente superior da Constituição, de modo a lhe conferir predominância sobre as demais normas jurídicas. Em aula posterior voltaremos ao ponto. Retornando, podemos concluir que a Constituição em sentido material refere-se à matéria das normas contidas na Constituição. Não, porém, toda e qualquer matéria, repita-se, mas somente aquelas consideradas fundamentais à organização política da sociedade. 6.2) Conceito formal Em sentido formal, a Constituição define-se por si mesma, pois corresponde ao conjunto de normas prescritas na Constituição, independentemente da matéria, do conteúdo sobre o qual versem. Assim, a Constituição, aqui, é nada mais que o conjunto de normas que constam no texto constitucional, pelo só fato de nele constarem. Vale alertar que a aplicação do conceito formal exige necessariamente que a Constituição seja escrita. Alguns autores, a exemplo de Pedro Lenza, ressaltam, aqui, o fato de que, com base no critério formal, as normas constitucionais “serão aquelas introduzidas pelo poder soberano, através de um processo legislativo mais dificultoso, diferenciado e mais solene do que o processo legislativo de formação das demais normas do ordenamento”. Tais autores, assim, baseiam sua análise no processo legislativo especial de elaboração das normas constitucionais. Na verdade, as duas perspectivas são complementares, pois, se a Constituição, nesta perspectiva, é o conjunto de normas que constam no texto formalmente assim considerado, conclui-se que este texto, com as CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 14 normas que contêm, foi fruto de um processo legislativo especial, diferente daquele mediante o qual são elaboradas as normas integrantes da legislação ordinária, infraconstitucional. No decorrer da análise não tornaremos a ressaltar tal procedimento, mas aqui se esclarece que ele efetivamente existe, e da sua realização que resulta o texto formalmente considerado Constituição. Neste ponto já é possível percebermos a diferença entre os conceitos material e formal de Constituição: o conceito material toma por base o conteúdo da norma, pouco importando se ela consta ou não de um documento solenemente considerado constituição, ou mesmo se tal norma é escrita ou não-escrita; já o conceito formal toma por base somente o fato da norma constar ou não do documento constitucional, irrelevante a matéria específica de que trate. Adotando-se o conceito formal, podemos ter, ao lado das normas que tratem de temas materialmente constitucionais, normas que versem sobre temas diversos, como a ordem econômica ou ordem social. Tais normas podem ser consideradas formalmente constitucionais, por estarem prescritas na Constituição, mas não materialmente constitucionais, pois não abrangentes dos temas essenciais à organização política da sociedade. No conceito formal de Constituição, portanto, reúnem-se normas cujo conteúdo as enquadra no conceito material de Constituição, pelo fato de corresponderem aos temas essenciais da organização política; e normas sem tal nota de essencialidade. Pressupondo-se que todas estejam prescritas na Constituição, as primeiras são normas formal e materialmente constitucionais, ao passo que as últimas são constitucionais apenas formalmente. É bom que se ressalte que, ao adotarmos o conceito formal de Constituição, todas as normas presentes no documento constitucional gozam de mesma dignidade, de mesmo status, encontrando-se em idêntico patamar hierárquico e gozando, portanto, de superioridade sobre todas as demais normas integrantes do ordenamento jurídico. Fato este, como já afirmado, que decorre automaticamente da sua inserção no referido documento. Os conceitos material e formal de Constituição dão origem, paralelamente, às supremacias material e formal da Constituição, das quais iremos tratar oportunamente. Desde já, todavia, podemos apresentar as seguintes conclusões: 1o) a constituição compreendida no seu aspecto formal limita o conceito de constituição às normas insertas no documento constitucional, todas as demais, independente de seu conteúdo, têm peso infraconstitucional. Desse modo, em Estados que apresentem Constituições escritas e adotem o conceito formal, só há matéria constitucional no corpo da Constituição; 2o) contrariamente, em Estados com Constituição não-escrita, se adotada a concepção de constituição em sentido material, o que é indispensável (já que não há um documento que aglutine as normas constitucionais), serão consideradas constitucionais as normas que tenham como objeto as matérias consideradas de tal natureza (organização do poder, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 15 determinação de competências e direitos fundamentais etc), onde quer que sejam encontradas (numa lei, num costume, num regulamento); 3o) se tivermos uma constituição escrita, mas a compreendermos em sentido material, o documento escrito não delimita o conceito de constituição, pois tal caráter será atribuído a todas as regras que tratem dos temas tidos como constitucionais; inversamente, nem todos os dispositivos do documento escrito serão materialmente constitucionais, pois aqueles que tratarem de assuntos de natureza diversa serão constitucionais apenas formalmente. 6.3) Conceito moderno Em sentido lato, constituição é a forma de organização, o modo de ser, a composição de alguma coisa. Em sentido jurídico podemos aproveitar este conceito, adaptando-o, já que a Constituição, neste contexto, nada mais é do que o modo de ser, a forma de organização de um Estado, sua lei fundamental. Detalhando a definição, Constituição é o conjunto de normas e princípios, escritos ou costumeiros, que estabelece e disciplina os modos de aquisição, exercício e perda do poder, a forma de Estado, a forma de governo, o regime de governo, a separação dos Poderes, os órgãos estatais e seu funcionamento, as finalidades para a atuação do Estado, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as garantias que os asseguram, bem como qualquer outro assunto considerado digno de previsão constitucional, a exemplo do meio ambiente, da ordem econômica e da ordem social. Fácil de constatar-se que este conceito é sobremaneira mais abrangente que o conceito material de Constituição antes exposto, que percebe matéria constitucional apenas nos temas tidos por essenciais à organização política. Modernamente, como reconhece a doutrina, o objeto das Constituições sofreu larga expansão, abarcando todos os demais temas hoje considerados especialmente relevantes pelo corpo social, a exemplo da ordem econômica, da ordem social, da função social da propriedade, dos princípios do Estado em suas relações internacionais, dentre tantos outros. Como tais temas passaram a constar das Constituições modernas, obrigatoriamente passam a integrar o conceito, moderno, de Constituição. Como ensina com maestria Gabriel Dezen Junior, Vê-se, hoje, que a ampliação do leque das matérias constitucionais é uma característica clara da evolução do conceito de Estado e da própria Constituição, que recebeu novas matérias cuja indiscutível importância para a Nação impôs sua inserção no documento regedor do Estado. Como já se disse, em época histórica mais antiga, a simplicidade da estrutura estatal, e o pequeno leque de suas atribuições, permitiram que um documento relativamente simples a regesse. A evolução da sociedade, contudo, veio trazer ao povo novas, urgentes e importantesnecessidades (como a preservação ambiental e a igualdade racial) e, consequentemente, ao Estado novíssimos deveres, os quais já eram, então, tão importantes quanto CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 16 os tradicionais direitos fundamentais (vida, liberdade, locomoção, propriedade). 6.4) Conceito valorativo Fundamentalmente, nada mais é do que um conceito de Constituição que exige que suas normas consagrem determinado conteúdo mínimo. Assim, o conceito valorativo, como o próprio nome indica, tem profunda conotação ideológica. Para seus defensores, não é qualquer conjunto de normas, apenas porque integrantes de um documento tido por constitucional, que poderíamos legitimamente denominar Constituição. Para que se considere o documento fundamental de um Estado efetivamente uma Constituição, nele têm que estar consagrados determinados valores, determinados princípios políticos, ideológicos ou institucionais. Foi essa a corrente que norteou o constitucionalismo na Revolução Francesa. Por ela, seria plenamente possível, como defendeu o Professor Otto Bachof, na Universidade de Tübingen, em 1951, a existência de dispositivos constitucionais inconstitucionais, ou seja, de dispositivos que, apesar de inseridos num documento de peso constitucional, fossem contrários aos valores apregoados por essa corrente. Seria o caso, por exemplo, de uma norma que reunisse nas mãos de um mesmo órgão o exercício da função legislativa e da função administrativa, em clara ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Esta seria uma norma formalmente constitucional, porque inserida na Constituição de certo Estado, mas materialmente inconstitucional, pois seu conteúdo afronta o referido princípio. O mesmo poderia ser dito sobre uma norma que negasse o direito de livre locomoção ou o direito de propriedade. 6.5) Conceito de Constituição Ideal Vem de Carl Schmidt a construção desse conceito, no séc. XIX. O conceito é fruto da vitória do constitucionalismo e, portanto, está, a exemplo do conceito anterior, diretamente relacionado à ideologia liberal. Segundo o mencionado jurista, a Constituição ideal seria aquela que apresentasse as seguintes características: - fosse estabelecida na forma escrita; - contemplasse e especificasse o princípio da divisão de Poderes; - consagrasse um regime de garantias de liberdade e direitos individuais. Conforme Gomes Canotilho, o conceito de Constituição ideal é bastante próximo ao conceito material de Constituição, antes apresentado, mas, a partir da exigência de um conteúdo minimamente presente nas normas constitucionais, passa a detalhar tal conteúdo. Desse modo, enquanto a Constituição sob uma perspectiva material exige que seja dado tratamento constitucional às normas e princípios de organização e funcionamento do Estado, a Constituição ideal vai além, exigindo que seja instituído e definido o princípio da separação de Poderes. Enquanto aquela confere dignidade constitucional aos direitos do homem, esta exige a construção de um regime constitucional garantidor das CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 17 liberdades individuais, o qual possibilite ao cidadão desenvolver-se plenamente em sua esfera privada e participar ativamente do processo político do Estado. Por fim, a Constituição ideal é necessariamente escrita, objetivando o resguardo de um mínimo de segurança jurídica, que somente um documento formal pode proporcionar. 6.6) Constituição Real É o somatório de forças religiosas, políticas, econômicas, militares e culturais atuantes em determinada sociedade. A ela se contrapõe o conceito de Constituição jurídica, que busca normatizar, juridicizar tais forças sociais, e, a partir daí, integrá-las dentro dum plano superior de ação do Estado e da própria sociedade. O sucesso da Constituição jurídica depende, portanto, de sua proximidade com a Constituição real, ou seja, com as diferentes forças que efetivamente comandam a vida social. Em caso de desencontro entre uma e outra, prevalece a Constituição real. Como explica Gabriel Dezen Junior, (...) dos atos administrativos exige-se legalidade, conformação com a lei que os rege, como também dos atos privados, em qualquer área (cível, penal, tributária) exige-se perfeita conformação à lei, quando incidente no caso e nos termos pelos quais incida; da lei, que rege esses atos administrativos e particulares, exige-se constitucionalidade, a ser entendida como a perfeita conformação, formal e material, aos ditames da Constituição, quer apareçam sob a forma de normas, quer sob a de princípios; e da Constituição, que rege todo esse edifício jurídico, quer-se legitimidade, entendida como a máxima aproximação entre a interpretação de sua enunciação escrita e a vontade popular, fundamento primeiro de sua validade. É, inclusive, a quebra nessa relação de legitimidade que vai impor, pela via democrática (assembléia constituinte) ou dura (revolução), uma nova Constituição. Adiante trataremos com mais vagar da matéria, dentro do estudo das diferentes concepções de Constituição, quando então analisaremos a Constituição em sentido sociológico, perspectiva da qual derivou o conceito de Constituição real. 6.7) Crítica aos conceitos anteriores Gabriel Dezen Junior, analisando os diversos conceitos de Constituição, apresenta algumas críticas sobre eles formuladas por alguns doutrinadores, que entendem tais conceitos como parciais ou incompletos. Ensina-nos o Autor que o ideal, para se atingir uma definição satisfatória de Constituição, é captar o conceito de Constituição total, o que pode ser feito pela identificação, no documento constitucional, das diversas matérias, valores e meios de conduta da vida coletiva dentro de um certo Estado, passando-se, a partir, daí, a agregá-los e analisá-los sob uma perspectiva sistemática, com o que se “reduziria tais diferenças a uma unidade de ordenação fundamental e suprema daquela coletividade”. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 18 Objetivando esta interação de conceitos, o Professor traz lição de José Afonso da Silva, defensor desta perspectiva mais ampla, segundo o qual a Constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas escritas ou costumeiras; como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais – econômicas, políticas, religiosas, culturais etc -; como fim, a realização dos valores que assinalam o existir da comunidade; e como causa criadora e recriadora o poder emanado da vontade popular. Finalizando a lição, destaca: Nota-se, aqui, o retorno à necessidade de não se compreender a Constituição em sentido puramente normativo, ou jurídico. Por ter ela a origem que tem, política; por ser resultado da atuação de um poder político, a Constituição é uma norma suprema multifacetada, ou seja, é o ponto para onde convergem os mais diversos elementos que regem, motivam e conduzem o povo de um Estado, e que, dessa convergência, resulta uma norma que fundamentará a existência e a atuação do próprio Estado, a partir desses elementos que a formaram, agora aglutinados em um texto jurídico, com força e peso jurídicos, e com hierarquia jurídica superior dentro do Estado. 7) CONCEPÇÕES SOBRE AS CONSTITUIÇÕES Poderíamos ter tratado desta matéria no tópico anterior, já que é possível compreendê-la como três conceitos diversos de Constituição, cada um partindo de uma perspectiva e de uma premissa distintas. Optamos, no entanto, por trabalhar a matéria em separado, por ser sua forma mais usual de apresentaçãopela doutrina. São três as concepções mais relevantes já formuladas sobre as Constituições: Constituição em sentido político, Constituição em sentido sociológico e Constituição em sentido jurídico. Este é nosso objeto de estudo no momento. 7.1) Constituição em sentido político O conceito político de Constituição foi elaborado por Carl Schmidt, que vislumbra a Constituição como a decisão política fundamental sobre o modo de ser essencial de um Estado, abrangendo sua estrutura, a separação dos seus Poderes, o estabelecimento das competências dos seus diversos órgãos, a forma de Estado e de governo, o modelo de desenvolvimento econômico, entre outras matérias consideradas essenciais ao organismo estatal. Enfim, a Constituição seria uma concreta decisão sobre o perfil fundamental do Estado, se republicano ou monárquico, parlamentarista ou presidencialista, confederado, federado ou unitário, liberal ou social etc. Todas as demais manifestações e atuações do Estado, todas as demais normas por ele editadas e os atos concretos por ele praticados seriam fruto desta decisão política fundamental, ou seja, da Constituição propriamente dita. CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 19 Com base nessa premissa, Carl Schmidt diferencia Constituição de leis constitucionais. A Constituição, como já dito, corresponde à concreta decisão sobre o perfil essencial do Estado, abrangendo as matérias acima elencadas, acrescendo-se a elas os direitos fundamentais e suas respectivas garantias. Leis constitucionais, por sua vez, seriam todas as demais normas que, contidas no documento constitucional, versassem sobre matéria diversa, não contida no conteúdo da decisão política fundamental. Exemplificativamente, uma norma que definisse o princípio da separação dos Poderes integraria a Constituição em sentido próprio, já uma norma que disciplinasse certo aspecto da ordem econômica, apesar de prescrita na Constituição, seria meramente uma lei constitucional. Esta norma, portanto, na visão do Autor, formalmente faria parte da Constituição, mas estaria excluída da verdadeira Constituição, do conceito de Constituição propriamente dito, que abrange apenas as normas e princípios que dispõe sobre as matérias integrantes da decisão política fundamental. 7.2) Constituição em sentido sociológico Nesta concepção, que teve como expoente maior o advogado alemão Ferdinand Lassalle, a Constituição é compreendida como o somatório dos fatores reais de poder existentes em certo Estado, a exemplo dos fatores econômicos, políticos, culturais, militares, religiosos, entre outros presentes e atuantes no respectivo território. Entende Lassalle que o conjunto de tais poderes é que corresponde à verdadeira Constituição, e não o texto formalmente tido por constitucional em certo país. Este texto, a Constituição escrita, pode ser detentor de real eficácia social, mas não pelo fato de ser escrito e juridicamente corresponder à norma suprema do Estado, mas em função de sua conformidade com um ou alguns dos fatores reais de poder presentes no Estado. Não basta, assim, que dado preceito conste expressamente no documento constitucional; isto, por si só, não assegura sua real eficácia, sua efetiva inserção no meio social como norma cogente e produtora de efeitos sobre os cidadãos, pois isto pressupõe sua conexão com os reais poderes que comandam a realidade social. O grau de eficácia de uma Constituição, se ela realmente é instrumento com força suficiente para dirigir os destinos da sociedade, depende, assim, de sua confluência com os fatores reais de poder. Se houver tal conformidade, a Constituição será efetivamente eficaz; se não houver, não passará de “uma mera folha de papel”, na expressão do Autor, um documento de natureza jurídica sem força política e social. Lassalle, enfim, entende que em cada Estado coexistem duas Constituições, a Constituição real, nada mais do que “a soma dos fatores reais de poder que regem nesse País”, e a Constituição escrita, os preceitos prescritos em um documento a que formalmente é reconhecida natureza constitucional. Esta Constituição, a escrita (também denominada jurídica), tem sua eficácia condicionada à conformidade de seus preceitos com a Constituição real, e não o contrário, já que os poderes atuantes em uma sociedade, exatamente porque são poderes, prescindem de qualquer reconhecimento formal para efetivamente, em maior ou menor grau, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 20 conforme sua magnitude, comandarem o destino da coletividade. Deste modo, em caso de colisão entre a Constituição escrita e a Constituição real, esta prevalece sobre aquela, a qual, no caso em concreto realmente não passou de “uma folha de papel”, um documento à margem da sociedade, sem poder de intervenção. Por fim, conforme ministério de Vicente Paulo, também é sociológica a concepção marxista de Constituição, consoante a qual a Constituição escrita não passa de um produto das relações de produção, ou, por outro enfoque, de um instrumento para perpetuar essas relações. O poder real está nas mãos da classe social dominante, a detentora dos meios de produção. Dos seus desígnios nasce a Constituição escrita, cuja finalidade é justamente manter sua hegemonia perante a classe dominada, os trabalhadores. 7.3) Constituição em sentido jurídico O conceito jurídico, elaborado por Hans Kelsen, define a Constituição, num primeiro sentido, como a norma fundamental de um Estado, que instaura o próprio Estado e confere validade a todo seu ordenamento jurídico. Por ser a norma fundamental, superior, a Constituição é, simultaneamente, pressuposto de elaboração da legislação ordinária e requisito para sua validade, conclusão que pode ser ampliada para abranger todos os atos jurídicos produzidos no território do Estado. Em outras palavras, a legislação infraconstitucional e todos os atos jurídicos produzidos no âmbito daquele Estado são válidos porque produzidos a partir dos preceitos constitucionais e na estrita conformidade com eles. Trata-se, pois, de uma perspectiva estritamente formal, que analisa a Constituição e a conceitua independentemente de quaisquer considerações acerca do conteúdo de suas normas ou de sua aproximação com as forças sociais atuantes no Estado. É bom que se ressalte, Kelsen não nega a existência e a importância dos fatores sociais, como o econômico, o político ou o religioso. Simplesmente entende que sua análise não compete ao jurista, que deve descortinar os institutos jurídicos a partir de critérios também jurídicos. Com essa premissa, o Autor constrói toda sua famosa Teoria Pura do Direito, com a denominação já a indicar o seu posicionamento. No que nos importa de seu pensamento, Kelsen definiu dois sentidos básicos de Constituição: o lógico-jurídico e o jurídico-positivo. Em sentido jurídico-positivo, a Constituição é a lei fundamental do Estado, instituidora do próprio Estado e parâmetro de validade de todas as manifestações jurídicas ocorridas em seu território. Pode-se defini-la, também, nesta acepção, como o conjunto de normas que regula a criação de outras normas, e que, portanto, é a elas hierarquicamente superior. Pois bem, este conjunto de normas instituidoras do Estado, hierarquicamente superiores a todas as demais, não surge do nada, tem que se basear em algo, tem que ter um fundamento que justifique o porquê da obrigatoriedade de sua observância. Como Kelsen propôs- se a divorciar o estudo do Direito de qualquer elemento extrajurídico, como valores filosóficos, poderes políticos ou pressões sociais, teve que elaborar um fundamento puramente formalque servisse de lastro para a Constituição em sentido jurídico-positivo. Este fundamento é a denominada CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 21 norma fundamental hipotética, uma norma não expressa, mas meramente pensada, suposta (não instituída por qualquer autoridade), que impunha obediência aos mandamentos contidos na Constituição. Esta norma fundamental hipotética corresponde à Constituição em sentido lógico-jurídico. No pensamento de Kelsen, portanto, são dois os sentidos da Constituição: no primeiro, lógico-jurídico, a Constituição é o fundamento, o argumento de validade de uma norma, de uma lei superior a todas as demais integrantes do ordenamento jurídico do Estado; no segundo sentido, jurídico-positivo, a Constituição é justamente esta norma superior às demais, que serve de base para a validade e força jurídica de todas as demais normas integrantes do ordenamento, regulando seu processo de elaboração. Na primeira acepção temos uma norma hipotética, suposta, não editada por qualquer autoridade, que possui como comando único a obrigatoriedade de obediência à Constituição; na segunda acepção, temos justamente a Constituição enquanto norma posta, o documento constitucional, formalmente colocado em vigor, que consagra os preceitos fundamentais do Estado e prevalece hierarquicamente sobre todas as demais normas do ordenamento estatal, regulando seu processo de produção e, portanto, condicionando sua validade. Das três concepções aqui apresentadas, a que mais importa para o Direito Constitucional, na atualidade, é a concepção jurídica, que compreende a Constituição como norma fundamental do Estado, hierarquicamente superior a todas as demais. 7.4) Crítica de José Afonso da Silva Este tópico, na verdade, nada mais é do que uma continuação do tópico 6.7, quando apresentamos rapidamente a lição de Gabriel Dezen Júnior acerca da necessidade de se compreender de forma mais ampla a Constituição, quando foi apresentada sinteticamente a perspectiva, na matéria de José Afonso da Silva. Ocorre que José Afonso da Silva abordou o tema após a análise das diferentes concepções sobre Constituição, em função do que preferimos deixar para este momento a apresentação, na íntegra, de sua lição, vazada nos seguintes termos: Essas concepções [as três concepções anteriormente estudadas] pecam pela unilateralidade. Vários autores, por isso, têm tentado formular conceito unitário de constituição, concebendo-a em sentido que revele conexão de suas normas com a totalidade da vida coletiva; constituição total, “mediante a qual se processa a integração dialética dos vários conteúdos da vida coletiva na unidade de uma ordenação fundamental e suprema” [Pinto Ferreira]. Busca-se, assim, formular uma concepção estrutural de Constituição, que a considera no seu aspecto normativo, não como norma pura, mas como norma em conexão com a realidade social, que lhe dá o conteúdo fático e o sentido axiológico. Trata-se de um complexo, não de partes que se adicionam ou se somam, mas de elementos e membros que se entrelaçam num todo unitário. O sentido jurídico de CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 22 Constituição não se obterá, se a apreciarmos desgarrada da vida social, sem conexão com o conjunto da comunidade. Pois bem, certos modos de agir em sociedade transformam-se em condutas humanas valorizadas historicamente e constituem-se em fundamentos do existir comunitário, formando os elementos constitucionais do grupo social, que o constituinte intui e revela como preceitos fundamentais: a constituição. A constituição é algo que tem, como forma, um complexo de normas (escritas ou costumeiras); como conteúdo, a conduta humana motivada pelas relações sociais (econômicas, políticas, religiosas etc.); como fim, a realização dos valores que apontam para o existir da comunidade; e, finalmente, como causa criadora e recriadora, o poder que emana do povo. Não pode ser compreendida e interpretada, se não tiver em mente essa estrutura, considerada como conexão de sentido, como é tudo aquilo que integra um conjunto de valores. Isso não impede que o estudioso dê preferência a dada perspectiva. Pode estudá-la sob o ângulo predominantemente formal, ou do lado do conteúdo, ou dos valores assegurados, ou da interferência do poder. 8) FONTES DE DIREITO CONSTITUCIONAL Considerando-se, para os fins deste Curso, que fontes são os diferentes modos pelos quais pode se dar a exteriorização as normas jurídicas, ou seja, as diversas formas pelas quais elas podem ser instituídas, temos, no que toca ao Direito Constitucional, duas espécies distintas de fontes, as escritas e as não escritas. Consideram-se fontes escritas de Direito Constitucional: a) a própria Constituição, evidentemente; b) as leis complementares e ordinárias que regulam os dispositivos constitucionais, bem como os demais atos legislativos que retiram sua força diretamente da Constituição, quando tem por objeto o disciplinamento de seus dispositivos; c) os decretos que tratam de matéria administrativa, bem como os demais atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas; d) os regimentos das Casas Legislativas o dos Tribunais integrantes do Poder Judiciário; e) os tratados, acordos e convenções internacionais; f) a jurisprudência; e g) a doutrina. Por sua vez, são tidas como fontes não-escritas de nossa disciplina os costumes constitucionais e, para alguns, os usos constitucionais. O costume é regra jurídica surgida informalmente em função da repetição reiterada de certas condutas que, justamente por sua reiteração, originam a convicção de que são indispensáveis à vida em coletividade, do que advém a aquisição de seu caráter obrigatório. Em maior ou menor grau, a doutrina, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 23 principalmente a estrangeira, admite a idoneidade do costume como fonte constitucional, chegando alguns a afirmar que ele é apto não apenas para integrar eventuais lacunas constitucionais, mas também para alterar os próprios dispositivos constitucionais. Os usos constitucionais, por sua vez, são fontes não-escritas que adquirem maior importância em países que não possuem Constituição escrita, ou que possuem Constituições escritas sintéticas, as quais, portanto, poderiam ser integradas pelos usos constitucionais. Na Inglaterra (Constituição não- escrita), pode-se considerar como tais a dissolução dos Comuns e a convocação do Parlamento; nos Estados Unidos (Constituição escrita sintética), as convenções partidárias. Na verdade, a inserção dos usos constitucionais entre as fontes não-escritas de Direito Constitucional é matéria que está longe de ser pacificada na doutrina. Nomes de peso da doutrina francesa, por exemplo, reconhecem o caráter jurídico dos usos constitucionais, ao contrário do que entende a maioria da doutrina inglesa. De qualquer modo, para fins práticos, os usos constitucionais não têm sua aplicação reconhecida no regime constitucional brasileiro, o que afasta qualquer interesse maior na sua discussão. Temos, portanto, somente que reter que eles, bem como os costumes constitucionais, são citados, no âmbito da teoria geral do Direito Constitucional, como fontes de nossa disciplina. É oportuno ressaltar que André Ramos Tavares as fontes constitucionais em (a) diretas ou imediatas e (b) indiretas ou mediatas. Fontes da primeira espécie, ensina o Autor, são a Constituição, as leis, os decretos e regulamentos de conteúdo constitucional; da segunda, os costumes, a jurisprudência,a doutrina, os princípios gerais de Direito, as convicções sociais vigentes, a idéia de justiça e outras manifestações. 9) SISTEMA CONSTITUCIONAL Podemos definir sistema como um conjunto organizado de elementos interdependentes, que interagem reciprocamente entre si com vistas à produção de determinado resultado. Adaptada a definição, podemos definir sistema constitucional como o conjunto organizado de elementos que influem no universo constitucional, os quais atuam (ou devem atuar) de forma interligada, com vistas a uma efetiva e adequada aplicação dos preceitos constitucionais. A correta apreensão do sistema constitucional parte da percepção de que a Constituição não é construída nem aplicada num vazio. Sua elaboração deu- se dentro de determinado contexto político, econômico e cultural; sua aplicação, da mesma forma, dar-se-á nesse contexto, considerando-se as alterações subseqüentes. Deste modo, o primeiro passo do intérprete é identificar os elementos, as forças sociais que influenciaram a construção da Constituição e, a partir daí, definir os valores por ela albergados, que nada mais são do que a internalização, pela Constituição, das forças atuantes no contexto social em CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 24 que ela foi elaborada, a inclusão desses valores em seus preceitos. Cumprida esta tarefa, como conseqüência, temos a definição do perfil específico do documento constitucional, perfil este a ser obrigatoriamente considerado pelo intérprete na sua aplicação, com a finalidade de conferir máxima eficácia aos mandamentos constitucionais. Com isto, como afirma Gabriel Dezen Junior, a “interpretação sistemática da Constituição permitirá a identificação, a recuperação e o uso pleno de tais valores, através dos quais a regra constitucional vai viger sobre os fundamentos da sua concepção e não, como querem alguns, deles divorciada, sujeita a uma interpretação avalorativa”. Vem do Estado liberal, com sua clássica concepção do Direito Constitucional, a necessidade de identificação dos valores presentes no momento da feitura da Constituição e que, portanto, foram por ela internalizados. Segundo Paulo Bonavides, esse modelo constitucional reduziu a Constituição a um documento formal no qual estavam previstas as regras de separação dos Poderes e o rol dos direitos e garantias do homem. Com a universalização desses valores, deu-se seu distanciamento do ambiente social onde ele foi gerado, com o que o Direito Constitucional adquiriu seu caráter pretensamente científico, ao ponto de os constitucionalistas da época tentarem afastar quaisquer elementos políticos, econômicos, culturais ou religiosos de sua esfera de estudo. Enfim, cristalizaram-se no texto constitucional os valores defendidos pela doutrina liberal, com o que eles perderem sua natureza ideológica e passaram a ser tratados como elementos genéricos e abstratos, universais, oriundos da própria razão humana, dissociados do contexto onde foram gerados. A partir daí, as novas demandas sociais foram simplesmente ignoradas. É justamente em situações como esta que podemos perceber a imensa utilidade e necessidade de uma análise constitucional sistemática, recuperando os valores presentes no momento de elaboração da Carta, decorrentes das forças sociais então predominantes. Enfim, toda e qualquer norma jurídica é aplicada e elaborada dentro de um contexto. Com a Constituição isto não é diferente, muito pelo contrário. Para atingirmos uma aplicação eficaz de seus preceitos, com força suficiente para comandar a realidade social, temos que ter em mente com clareza e precisão os elementos componentes desse contexto e os valores dele oriundos, para que eles possam ser respeitados quando da incidência da norma constitucional, fazendo-se as devidas adaptações, quando necessário, em face das alterações ocorridas. Só assim a Constituição formal, jurídica, atingirá sua plena eficácia. Como salienta Gabriel Dezen Junior, A preservação, dessa maneira, do máximo de realidade possível, pela Constituição jurídica, é vital para que ela tenha a aplicabilidade e a eficácia desejadas. E sem que se utilize, na tarefa interpretativa, os elementos externos àquele texto, e que o inspiraram, não se conseguirá recuperar o verdadeiro espírito de suas normas. Assim, a interpretação de todas as normas constitucionais vem regida basicamente pelo critério valorativo extraído da natureza mesma do sistema, tornando falha, viciada, toda a atividade interpretativa que CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 25 apanha uma norma isoladamente, à parte de seu contexto e divorciada da realidade de onde e pela qual emergiu. QUESTÕES DE PROVAS ANTERIORES 1 (CESPE/Analista Legislativo – Câmara dos Deputados/2002) - O conceito formal de constituição diz respeito a questões procedimentais de alteração e modificação da constituição, bem como ao conteúdo e à matéria constitucional. 2 (CESPE/Analista Judiciário – Área Judiciária – TRE/RS – 2003) - O constitucionalismo, como doutrina clássica, buscou reduzir a Constituição a instrumento jurídico, organizador da competência dos poderes, com finalidade expressa de frear o exercício de poder. 3 (CESPE/Analista Judiciário – Área Judiciária – TRE/RS – 2003) - A teoria formal da Constituição inovou no sentido de romper com o modelo semântico e abordar, já na metade do século XX, a questão das normas programáticas e da concretização constitucional. 4 (CESPE/Analista Judiciário – Área Judiciária – TRE/RS – 2003) - A teoria material da Constituição buscava a preservação da juridicidade do texto constitucional, compreendendo o Estado como única fonte de direito. 5 (CESPE/Auditor das Contas Públicas – TCE/PE – 2004) - Em relação às fontes, considera-se direito constitucional, sob o ângulo material, o conjunto de normas jurídicas componentes de um documento produzido e aceito como Constituição pelo povo de um país, ainda que algumas das normas inseridas nesse documento não disciplinem temas propriamente constitucionais. 6 (ESAF/AFT/2003) - Analise as assertivas a seguir, relativas à eficácia das normas constitucionais e às concepções de constituição, CURSOS ON-LINE – DIREITO CONSTITUCIONAL – CURSO REGULAR PROFESSOR GUSTAVO BARCHET www.pontodosconcursos.com.br 26 e marque com V as verdadeiras e com F as falsas; em seguida, marque a opção correta. ( ) Segundo a melhor doutrina, as normas de eficácia contida são de aplicabilidade direta e imediata, no entanto, podem ter seu âmbito de aplicação restringido por uma legislação futura, por outras normas constitucionais ou por conceitos ético-jurídicos. ( ) Segundo a melhor doutrina, as normas constitucionais de eficácia limitada são do tipo normas declaratórias de princípios institutivos quando: determinam ao legislador, em termos peremptórios, a emissão de uma legislação integrativa; ou facultam ao legislador a possibilidade de elaborar uma lei, na forma, condições e para os fins previstos; ou possuem esquemas gerais, que dão a estrutura básica da instituição, órgão ou entidade a que se referem, deixando para o legislador ordinário a tarefa de estruturá-los, em definitivo, mediante lei. ( ) A concepção de constituição, defendida por Konrad Hesse, não tem pontos em comum com a concepção de constituição defendida por Ferdinand Lassale, uma vez que, para Konrad Hesse, os fatores históricos, políticos e sociais presentes na sociedade não concorrem para a força normativa da constituição. ( ) Para Hans Kelsen, a norma fundamental, fato
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