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BENS MUNICIPAIS regime jurídico, modalidades e exploração Thiago Marrara Professor de direito administrativo e urbanístico da Universidade de São Paulo (USP) na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP 1ª EDIÇÃO DIGITAL Kindle Digital Publishing Sobre o Autor Thiago Marrara Professor associado de direito administrativo e urbanístico da USP. Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP). Livre-docente. Doutor pela Universidade de Munique (LMU). Advogado parecerista. Editor da Revista Digital de Direito Administrativo. Entre outras obras, publicou: “Bens públicos, domínio urbano, infraestruturas” (Fórum); “tratado de direito administrativo, v. 3: direito administrativo dos bens e restrições estatais à propriedade” (em coautoria com Luciano Ferraz, pela Revista dos Tribunais); “Planungsrechtliche Konflikte in Bundesstaaten” (Dr. Kovac, Hamburgo); “Processo Administrativo: Lei n. 9.784/1999 comentada” (Atlas), além de ter organizado diversas obras, dentre as quais: “Princípios de direito administrativo” (Atlas); “Direito Administrativo: transformações e tendências” (Almedina) e “Controles da Administração Pública e judicialização de políticas públicas” (Almedina). https://usp-br.academia.edu/ThiagoMarraradeMatos Contato: marrara@usp.br FICHA CATALOGRÁFICA MARRARA, Thiago. Bens municipais: regime jurídico, modalidades e exploração, 1ª edição digital. Publicação independente; Kindle Direct Publishing, 2017. Área e subáreas: ciências sociais aplicadas, direito municipal, direito urbanístico, direito administrativo. Palavras-chaves: bens públicos, bens municipais, Municípios, cidades. Sumário 1 Introdução: o direito dos bens municipais 2 A teoria dos bens estatais na atualidade: aspectos gerais 3 Bens estatais na federação brasileira 4 Bens municipais reservados 5 Aquisição de bens municipais: outras modalidades 5.1 Desapropriação 5.2 Transferência ou doação compulsória 5.3 Reversão de bens 5.4 Perdimento de bens 5.5 Consórcio imobiliário 5.6 Compra ordinária 5.7 Compra por preempção 5.8 Permuta 5.9 Dação em pagamento e adjudicação 5.10 Doações puras ou condicionadas 5.11 Sucessão testamentária 5.12 Usucapião 6 Escala de regimes jurídicos, bens públicos de direito e de fato 7 Regimes jurídicos dos bens municipais 7.1 Bens municipais públicos afetados (uso comum do povo e uso especial): 7.2 Bens municipais públicos não afetados (dominicais) 7.3 Bens municipais privados em função pública (domínio público impróprio) 7.4 Bens municipais privados sem função pública (domínio estatal privado) 8 Domínio urbano ou bens com função urbanística 9 Uso de bens municipais: sistematização teórica 10 Outorga de uso de bens municipais: mecanismos administrativos 11 Outorga de uso de bens municipais: mecanismos urbanísticos 11.1 O direito de superfície 11.2 A concessão de uso para fins de moradia 11.3 A permissão de uso para fins comerciais 12 Cobrança pelo uso de bens municipais 12.1 Preços de uso 12.2 Taxas de polícia e de serviço público 12.3 Compensações financeiras 13 Referências bibliográficas 1 Introdução: o direito dos bens municipais A teorização e o domínio prático das normas componentes do regime jurídico dos bens municipais ganham acentuada importância na atualidade. Dupla é a causa por trás desse fenômeno. De uma parte, a má-gestão patrimonial sujeita os administradores públicos locais a inúmeras esferas de responsabilidade e a gravosas sanções. Apenas para ilustrar, a Lei de Improbidade considera atos ilícitos, entre outras condutas relativas à administração patrimonial: perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar alienação, permuta ou locação de bem público, assim como utilizar, em obra ou serviço particular, veículos, máquinas, equipamentos ou material estatal de qualquer natureza (art. 9º, III e IV). Igualmente ilícitos mostram-se tanto a doação a pessoa física ou jurídica e a ente despersonalizado, ainda que de fins educativos ou assistenciais, de bens do patrimônio público, quanto a permissão ou a facilitação de alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio estatal por preço inferior ao mercado (art. 10, III e IV). Não bastasse isso, o Código Penal tipifica vários comportamentos lesivos ao patrimônio estatal, incluindo o peculato, ou seja, a apropriação, pelo agente público, de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel de que tem a posse em razão do cargo, ou seu desvio, em proveito próprio ou alheio. De outra parte, além das inúmeras consequências jurídicas a que o servidor está submetido por falhas no manejo patrimonial, cada vez mais os bens municipais se tornam um tema relevante para os juristas e o direito em virtude de seu crescente papel socioeconômico. Muitos bens municipais, sobretudo imóveis, constituem o aparato fundamental para a instalação de infraestruturas de serviços públicos e privados essenciais à vida urbana, daí porque sua gestão passa a condicionar o exercício de liberdades, direitos fundamentais e princípios da ordem econômica e a afetar o acesso a bens e serviços essenciais pelos cidadãos. Em segundo lugar, a boa gestão dos bens municipais revela-se capaz de fortalecer o sistema urbano por meio do combate às desigualdades presentes nas várias partes do território local e, ademais, de proporcionar vultosas receitas financeiras aos Municípios, de maneira a viabilizar inúmeras políticas públicas. Em face dos dois fatores apontados e no intuito de contribuir com a teorização dos bens municipais no direito positivo brasileiro, no presente estudo, resgata-se em caráter introdutório a teoria dos bens estatais, tomada como eixo de análise mais abrangente que a tradicional teoria dos bens públicos. Em seguida, diferenciam-se os bens estatais públicos e privados, aborda-se a distinção entre bens públicos de direito e bens públicos de fato e examina-se a sistematização dos regimes jurídicos dos bens a partir de uma proposta mais complexa de escala de dominialidade, visando a extrapolar a apresentação simplista dos regimes baseada na separação civilista de bens públicos e privados à luz de um puro critério de titularidade (visão subjetivista). Com apoio nesse suporte teórico, analisam-se os bens municipais, suas espécies, formas de aquisição, modalidades de uso e os mecanismos de outorga de acordo com o direito administrativo geral e o direito urbanístico. Apontam-se então as variadas ferramentas de cobrança de uso que o Poder local detém à sua disposição para gerir os bens municipais de modo economicamente vantajoso e, ao mesmo tempo, harmônico com os princípios da ordem econômica e os direitos fundamentais do cidadão urbano. Ao longo dessa exposição, especial destaque será conferido ao problema de instalação de infraestruturas de serviços no domínio urbano municipal e às confusões que ocorrem em relação aos diversos tipos de receitas. Ao final da exposição proposta, pretende-se ter logrado oferecer ao público nada mais que um panorama teórico inaugural acerca dos incontáveis aspectos jurídicos que circundam o interessantíssimo tema dos bens municipais. Com isso, espera-se suscitar reflexões que inspirem detalhamentos teóricos sobre este assunto ainda pouco lembrado na doutrina do direito público pátrio. 2 A teoria dos bens estatais na atualidade: aspectos gerais Acostumados às referências doutrináriasaos bens “públicos”, muitos leitores decerto estranharão a menção frequente aos bens estatais no texto a se desenrolar nas próximas linhas. A troca do adjetivo público pelo estatal é proposital. Conquanto o Código Civil refira-se apenas aos bens públicos, a categoria de todos os bens que se agregam no patrimônio do Estado revela-se muito mais extensa. A expressão “bem estatal” serve assim para designar todo e qualquer tipo de bem do Estado, enquanto "bem público" equivale unicamente a uma subcategoria de bem estatal, vinculada a pessoas jurídicas de direito público interno e, em geral, submetida a um regime jurídico administrativo com limitações e poderes especiais de gestão patrimonial. Em consonância com o direito interno, o Estado fragmenta-se, reparte- se, divide-se em incontáveis entidades no intuito de executar com maior eficiência suas funções e tutelar os interesses públicos primários consagrados no texto constitucional. Ao dividir-se, ora cria entidades com personalidade jurídica de direito público (como as autarquias, as associações públicas, os Ministérios, as Prefeituras etc.), ora se vale de pessoas jurídicas de direito privado, como empresas, associações, fundações. O Estado se apresenta ao mundo ora como ente de direito público ora como pessoa de direito privado. A escolha da forma jurídica redunda de um tipo de discricionariedade administrativa que não se restringe à União. Estados da federação e Municípios também se valem de roupagem pública ou privada a depender de um juízo de conveniência e da atividade que cada entidade executará. Somente não se lhes confere o poder de inventar novos tipos de pessoa jurídica pública ou privada, pois normas do gênero pertencem ao direito civil, matéria cuja competência legislativa se concentra nas mãos do Congresso Nacional com exclusividade. Considerando-se que nos três níveis da federação brasileira há entidades estatais de direito público e de direito privado, o conjunto maior de bens que todas as entidades possuem forma a categoria dos “bens estatais”. Dentro desse grupo patrimonial amplo, separam-se os bens estatais públicos, conhecidos apenas como bens públicos, e os bens estatais privados, bloco patrimonial não explicitado diretamente pelo direito positivo. O Estado, por conseguinte, possui bens públicos e privados, cada qual em regime jurídico mais ou menos marcado por normas de direito administrativo e que, em regra, não se confundem com os bens não estatais. A obsessão do direito administrativo tradicional pelo conceito de bens públicos e seu relativo desprezo pelos bens estatais privados não se deve a uma falha doutrinária. Grosso modo, isso se explica pela normatização da matéria dada pelo Código Civil de 1916 e pela repetição de praticamente todas as suas normas, com alguns restritos aprimoramentos, no Código Civil de 2002. Ao disciplinar os bens de acordo com um critério subjetivo (ou de titularidade), o Código Civil acabou por posicionar os bens públicos em uma categoria contraposta aos bens privados. Veja-se o que dispõe o art. 98: “são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. O erro comum de interpretação que se faz do presente dispositivo consiste em confundir o Estado como um todo com as pessoas jurídicas de direito público interno que dele participam. Contudo, o que se deve extrair do artigo transcrito é que os bens públicos abarcam tão somente aqueles móveis e imóveis inseridos no patrimônio de uma parcela das entidades estatais, quais sejam, as que adotam personalidade jurídica de direito público. Por exclusão, os bens de outros entes estatais, com personalidade jurídica de direito privado, são particulares. Daí a razão para se falar de bens estatais públicos e estatais particulares. Dentro da subcategoria dos estatais públicos, o Código Civil procedeu a uma segunda diferenciação, agora baseada no critério da afetação, da vinculação do bem a um determinado uso primário (porém não necessariamente exclusivo). A partir daí, apartam-se os bens públicos afetados, incluindo os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial, e os bens públicos não afetados, batizados de bens dominicais. Os três tipos de bens estatais públicos se destacam por duas marcas principais: 1) a vinculação ao patrimônio de uma pessoa jurídica de direito público interno (titularidade pública) e 2) a intensa sujeição a limitações e a regras protetivas de direito administrativo (regime jurídico público). No entanto, há que se afastar a ideia de que exista um regime jurídico unificado para todos eles. Os regimes são múltiplos, incontáveis e variam não apenas de acordo com a espécie de bem público, mas conforme seu enquadramento como bem afetado ou não afetado. Não constitui objetivo dessa exposição refazer uma teoria geral dos bens estatais públicos, mas apenas oferecer as bases para a compreensão dos bens municipais na federação brasileira. Por consequência, a título introdutório, basta frisar que os bens de uso comum do povo e os bens de uso especial caracterizam-se: 1) pela afetação a um uso primário, que não exclui a princípio usos secundários que com ele se harmonizem; 2) pela regra da inalienabilidade relativa, ou seja, restrita ao comércio privado, mas não impeditiva do comércio público; 3) pela regra da imprescritibilidade, pela qual nenhum deles se sujeita à prescrição aquisitiva (usucapião); 4) pela regra da não oneração por garantias reais e 5) pela impenhorabilidade judicial. A seu turno, os bens públicos não afetados, que se circunscrevem aos dominicais, singularizam-se: 1) pela ausência de afetação a certo uso primário, razão pela qual não há uma prioridade normativa de destinação; 2) pela regra da alienabilidade, respeitados requisitos licitatórios e certas vedações de aquisição; [1] 3) pela possibilidade de oneração por garantias reais; 4) pela impossibilidade de aquisição por usucapião; [2] 5) pela impenhorabilidade judicial que deriva não da afetação do bem, mas da existência de um regime de precatórios que beneficia seus titulares, pessoas jurídicas de direito público interno. [3] 3 Bens estatais na federação brasileira A estruturação da federação brasileira a partir da Constituição de 1891 e sua posterior reconfiguração em uma estrutura política tripartite pela Constituição de 1988 ensejam a definição, no plano normativo, de um conjunto mínimo de regras de divisão do patrimônio estatal no intuito de se evitarem conflitos entre os entes políticos e de se viabilizar em suas autonomias, inclusive para criação e execução de políticas públicas. Por esses e outros motivos, as Constituições brasileiras sempre destacaram os bens da União e os bens dos Estados federados. A Constituição da República de 1988 não fugiu à tradição. Nela existem dispositivos que apontam e repartem os bens dos entes políticos. Dentre eles, merecem destaque o art. 20 (referente aos bens da União) [4] e o art. 26 (relativo aos bens dos Estados federados). [5] Há igualmente outras disposições esparsas que apontam o patrimônio dos entes políticos, como o art. 176, que trata das jazidas e dos potenciais de energia hidráulica, considerados bens federais monopolizados. Não obstante a Constituição de 1988 tenha adotado um sistema federativo tripartite, conforme o qual se alçou o Municípioà qualidade de ente autônomo (art. 1º e 18), na realidade o legislador pouco modificou os dispositivos relativos aos bens reservados. A Carta abordou de modo explícito somente os bens federais e estaduais, ignorando os municipais. Todavia, a interpretação sistemática da Constituição e de outros diplomas atinentes à matéria, como o Código Civil e a legislação especial, permite superar essa lacuna. Permite, ademais, lançar afirmações iniciais relevantes a respeito do arcabouço normativo da matéria, quais sejam: · As listagens contidas nos art. 20 e 26 indicam bens reservados da União e dos Estados. Desse modo, há que se interpretá-los de maneira restritiva, pois as técnicas de monopolização artificial em favor do Estado, como medidas de restrição da vida e da propriedade privada, não aceitam extensão sem respaldo legal explícito. · A indicação dos bens federais e estaduais na Constituição não obsta que o patrimônio desses entes políticos englobe outras espécies de bens. Os artigos constitucionais se referem unicamente aos bens estratégicos ao país e de sua reserva a um ou outro ente político. · Por conseguinte, o fato de a Constituição não ter enumerado bens dos Municípios de forma expressa não significa que o poder constituinte tenha negado a existência de um patrimônio local individualizado e sujeito à gestão autônoma, nem que tenha vedado a reserva de bens aos Municípios por determinação de normas infraconstitucionais, como as existentes no Código Civil ou na legislação de loteamentos. · A Constituição, por fim, não qualifica os bens listados no art. 20 e 26 como bens públicos, mas simplesmente como federais e estaduais. Isso reforça a tese já apontada, pela qual se deve apartar o conceito de bens estatais, como categoria geral, do conceito de bens públicos, como conjunto restrito aos bens de pessoas estatais com personalidade de direito público interno. Embora os bens reservados venham a ser bens públicos, nada impede que se tornem bens privados ao ingressarem no patrimônio de entidades estatais de direito privado, como sociedades de economia mista. Igual conclusão vale sem reparos ou adaptações para os bens municipais, que serão públicos quando pertencentes às entidades locais de direito público ou bens particulares, quando pertencentes às entidades locais de direito privado. Isso revela que “estatal” e “público” não correspondem a adjetivos sinônimos quando se ingressa no direito administrativo dos bens. . 4 Bens municipais reservados Conquanto a Constituição da República silencie em relação aos bens municipais, é inerente a qualquer ente autônomo a existência de um patrimônio individualizado minimamente necessário à sua sobrevivência autônoma na federação e à execução de suas incumbências constitucionais, sobretudo a execução de políticas públicas. Como os bens municipais representam um pilar essencial da autonomia local, eles estão implícitos na estrutura federativa tripartite ancorada no texto constitucional. Em outras palavras, a garantia constitucional, ainda que não expressa, de um patrimônio mínimo configura requisito essencial ao reconhecimento do Município como verdadeiro ente político. No cotidiano da gestão pública, a formação do patrimônio municipal se opera de várias maneiras, a saber: 1) por meio de instrumentos negociais, como a doação e a compra e venda; 2) pela aplicação de instrumentos típicos de direito administrativo, como a desapropriação ou os convênios; e 3) por mecanismos de reserva patrimonial, não previstos de modo geral na Constituição, mas consagrados em normas legais diversas. A única situação em que a Constituição da República previu bem reservado ao Município se encontra no art. 20, inciso IV, dispositivo que lhe garante a propriedade de ilhas costeiras nas quais se incluam suas sedes políticas, com exceção das áreas necessárias a serviços ou a unidades ambientais da União. Afora essa excepcionalíssima previsão constitucional, a consagração de bens municipais reservados resultará somente de dispositivos de hierarquia legal, dentre os quais merecem registro: · O art. 22 da Lei n. 6.766/1979, pelo qual, “desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município, as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo”. · O art. 1.237 do Código Civil, de acordo com o qual um bem descoberto cujo proprietário não se apresente no prazo de sessenta dias da divulgação da notícia na imprensa, ou do edital, será vendido em hasta pública e do seu valor serão deduzidas as despesas e a recompensa do descobridor, cabendo o valor remanescente ao Município em que se deparou o objeto perdido. Ainda que não explícito no Código, entende-se que o insucesso da venda em hasta permitirá a manutenção do bem no patrimônio local, facultando-se ao Município, aí sim por disposição expressa, abandonar a coisa em favor do descobridor caso seja ela de diminuto valor. Não bastasse isso, como já se defendeu anteriormente, afigura-se igualmente aceitável que o Município mantenha o bem em seu patrimônio, deixando de levá-lo a hasta pública, caso o interesse público e o princípio da eficiência assim o recomende. [6] Por interpretação negativa do Código Civil, igual conclusão vale na hipótese de um bem descoberto de alto valor ser levado a hasta pública, mas não se lograr sua alienação. · O art. 39, parágrafo único do Código Civil, de acordo com o qual os bens de heranças vacantes passam ao patrimônio municipal se o ausente não regressar e nenhum interessado promover a sucessão definitiva no prazo de dez anos; e · Os art. 28 a 31 do Estatuto da Cidade, nos quais se reserva ao Município a propriedade do solo criado, ou seja, do direito imaterial de construir na margem de edificação existente entre o coeficiente básico e o coeficiente máximo relativo ao terreno, desde que o direito imaterial de construção seja criado por lei local. Além dos mandamentos previstos em leis editadas pelo Congresso Nacional, nada impede que os Estados da federação, por disposições contidas em suas Constituições ou em lei estadual, transfiram certos bens aos Municípios, como parcela de suas terras devolutas. Referida medida é cabível, desde que não se repute um bem estadual reservado simultaneamente como um bem monopolizado ou exclusivo do Estado. Afinal, há casos em que a reserva constitucional de bens representa efetiva monopolização patrimonial. Isso ocorre em relação a águas públicas, não por disposição expressa em norma, mas por sua própria natureza física e relevância social e econômica para a comunidade de municípios inserida em cada Estado. Por essa razão, seria inconstitucional que um Estado repassasse a titularidade de seu domínio hídrico a qualquer ente local. 5 Aquisição de bens municipais: outras modalidades Afora a aquisição forçosa de bens por transferência compulsória prevista na Lei de Loteamentos ou por recebimento de bens descobertos e pertencentes a heranças vacantes, o direito positivo brasileiro alberga uma série de outras modalidades de aquisição de bens pelos Municípios. Diversos desses mecanismos são típicos do direito administrativo e baseiam-se ora no poder de autoridade, ora no poder negocial. Em outros casos, a formaçãodo patrimônio municipal se dá por instrumentos comuns de direito privado. Na lista a seguir, oferece-se um panorama primário das várias modalidades aquisitivas, incluindo-se institutos de direito público e privado. 5.1 Desapropriação No direito positivo brasileiro, existem basicamente cinco espécies de desapropriação. As duas espécies tradicionais baseiam-se em interesses públicos primários, ou seja, em causas de utilidade pública, necessidade pública ou interesse social e impõem ao Estado a indenização justa, prévia e em dinheiro ao proprietário afetado. Em adição, prevê o ordenamento três modalidades sancionatórias: a desapropriação por descumprimento da função social da propriedade rural, voltada para fins de reforma agrária; a desapropriação sancionatória urbana decorrente do descumprimento da função social do imóvel urbano e a desapropriação confiscatória, hoje incidente sobre imóveis rurais ou urbanos com a finalidade de combater o trabalho escravo ou a plantação ilícita de psicotrópicos. [7] Aos Municípios se autoriza empregar as desapropriações tradicionais e, com exclusividade, a desapropriação sancionatória urbana. Nesse último caso, a desapropriação depende da observância prévia de dois requisitos: 1) o descumprimento, pelo proprietário, da determinação local de edificação ou de parcelamento compulsório do imóvel e 2) a imposição de IPTU progressivo ao longo de, pelo menos, cinco anos, como forma de forçar a adequação da propriedade privada à determinação de edificação ou parcelamento descumprida. Somente após o uso desses dois instrumentos urbanísticos é que caberá executar a desapropriação sancionatória. Já as desapropriações para fins de reforma agrária e a confiscatória para combate a plantações de psicotrópicos e trabalho escravo não estão sob competência municipal, razão pela qual não configuram meios aptos à aquisição de bens para os entes locais. 5.2 Transferência ou doação compulsória Além da transferência patrimonial obrigatória de áreas previstas na Lei de Loteamentos e de bens descobertos, é possível enquadrar nessa categoria todas as medidas jurídicas que gerem bens municipais, como eventuais condicionantes em licenciamentos urbanísticos e ambientais (aqui, caso haja competência do Município). 5.3 Reversão de bens Como modalidade especial de transferência compulsória de bens ao Estado desponta a reversão. Nos termos do art. 35, § 2º da Lei n. 8.987/1995, uma vez extinta a concessão de serviço público ou de obra pública, “haverá imediata assunção do serviço pelo poder concedente, procedendo-se aos levantamentos, avaliações e liquidações necessários”. A assunção do serviço pelo Estado supõe o recebimento de bens essenciais à sua continuidade, ou seja, dos bens reversíveis. De acordo com a lei geral de concessões, o edital e o contrato indicarão referido conjunto patrimonial, suas características e as condições em que será posto à disposição no ato de extinção da concessão (art. 18, X e XI e art. 23, X). Na prática, os reversíveis abrangem três categorias de bens: 1) aqueles que já estavam no patrimônio do Estado, vinculados à prestação dos serviços e foram transferidos ao particular por força do instrumento concessório; 2) os bens provenientes do patrimônio do concessionário ou que são por ele adquiridos ao longo do contrato e que, por sua relevância para a continuidade, passam às mãos do Estado e 3) os bens de terceiros, essenciais ao serviço. Nesse último caso, como preleciona Floriano de Azevedo Marques Neto, [8] ao final da concessão, o Poder Público se substitui ao concessionário nas relações obrigacionais e reais que ele matinha com terceiros proprietários de bens reversíveis. Para além disso, vale ressaltar que, apesar de estarem relacionados com a concessão comum na tradição administrativa brasileira, os bens reversíveis existem em todo e qualquer tipo de delegação de serviços e infraestruturas públicas a particulares, desde parcerias público-privadas, até relações contratuais de fomento e parcerias sociais. 5.4 Perdimento de bens Diferentemente do que ocorre nas situações de transferência ou reversão, o perdimento pressupõe o cometimento de um ilícito pelo particular, daí sua natureza sancionatória e, por conseguinte, a imprescindibilidade de sua previsão legal. Como se trata de medida punitiva por meio de constrangimento patrimonial, aplica-se a reserva legal constitucional. Exatamente por isso, a Constituição da República dispõe que o perdimento de bens, como medida de natureza repressiva, esteja previsto em lei e, de modo excepcional, permite que se o execute inclusive contra os sucessores do condenado até o limite dos valores patrimoniais que lhes tenha sido transferido (art. 5º, XLVI). Menciona ainda alguns casos em que o perdimento se impõe, i.e., mostra-se obrigatório. Isso se verifica no art. 243, parágrafo único, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 81/2014. Prescreve o dispositivo que “todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei”. Na legislação infraconstitucional identificam-se modalidades adicionais de perdimento de bens, valendo mencionar três delas. A primeira se encontra no campo tributário (Lei n. 10.833/2003, art. 75); a segunda, na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992) e a terceira, como medida sancionatória civil da Lei Anticorrupção (Lei n.12.846/2012, art. 19, inciso I). De todas as hipóteses mencionadas, o perdimento previsto em razão de condenação por improbidade administrativa e por ato de corrupção despontam como meios de aquisição de bens municipais. 5.5 Consórcio imobiliário Criado pelo Estatuto da Cidade, tem-se na figura em tela um mecanismo de urbanização negociada e contratual, [9] pela qual o Município se dispõe a colaborar com o particular que foi obrigado a edificar ou a parcelar seu imóvel por reconhecimento objetivo do descumprimento da função social urbana. O dever de edificar ou parcelar no caso concreto surge após notificação feita pelas autoridades urbanísticas locais. Seu descumprimento resulta na possibilidade de imposição de IPTU progressivo e, após cinco anos, na autorização para se decretar a desapropriação sancionatória urbana. Sucede que o Município, em vez de percorrer caminho tão longo, recebeu permissão legal para optar pelo consórcio imobiliário. Nos termos do art. 46, § 1º do Estatuto, trata-se de “forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas”. Daí se extrai que o consórcio depende de previsão em legislação local, manifestação formal de interesse pelo proprietário privado, condições financeiras do Município para assumir a obra e sua manifestação formal de interesse pelo negócio de acordo com um juízo administrativo de conveniência e oportunidade. [10] Cumpridos todos esses requisitos, o Município absorverá a propriedade privada em seu patrimônio e assumirá a tarefa de adaptá-la às diretrizes de política urbana. Nesse cenário, duas serão suas obrigações: 1) harmonizar o imóvel à função social urbanaestabelecida no plano diretor e em legislação dele decorrente e 2) repassar ao proprietário originário parte do imóvel após a sua adaptação como maneira de lhe ressarcir pelo valor originário do bem antes da realização das obras. Diante de sua eventual incapacidade financeira ou por juízo de conveniência, a doutrina especializada, incluindo as vozes de Daniela Libório Di Sarno e Guilherme Dias Reisdorfer, ainda reconhece a possibilidade de o Município repassar a outro particular a operacionalização das funções urbanísticas. [11] 5.6 Compra ordinária O exame da legislação administrativa mostra que a desapropriação e outros institutos baseados no poder de autoridade não esgotam as ferramentas aquisitivas de que dispõe o Estado. O uso de mecanismos típicos do direito privado é frequente no direito administrativo, embora sigam algumas normas especiais de caráter publicístico. Nesse sentido, a compra [12] de bens móveis e imóveis desponta como um dos principais mecanismos de aquisição de propriedade, inclusive de imóveis. Quando envolve móveis, geralmente o contrato de fornecimento de bens é precedido de licitação. No tocante aos imóveis, as regras são mais complicadas. A Lei de Licitações (Lei 8.666/1993, art. 4, X) prevê a possibilidade de dispensa de licitação para “compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de mercado, segundo avaliação prévia” (g.n.). Na prática, ainda que a legislação tenha incluído tal hipótese como dispensa, ela se aproxima muito mais da figura da inexigibilidade, pois se o imóvel detiver características especiais, então se supõe que não haverá concorrentes para viabilizar uma competição. Também existe dispensa para compra e venda de imóveis entre entes públicos de qualquer esfera da federação. Por conseguinte, o Município poderá obter imóvel do Estado ou da União por meio da celebração direta do contrato (art. 17, I e da Lei de Licitações). 5.7 Compra por preempção Ao se caminhar para o direito municipal e urbanístico, encontra-se outro instituto ligado à compra e venda de bens imóveis. Trata-se do direito de preempção previsto no Estatuto da Cidade (art. 25), ou seja, de um direito de preferência na aquisição de imóveis localizados em certas áreas marcadas pelo Plano Diretor municipal. Como o instrumento se associa à política de desenvolvimento urbano, para que sua instituição seja válida, é preciso que os imóveis atingidos pela preferência se mostrem relevantes para regularização fundiária, execução de programa habitacional de interesse social, constituição de reserva fundiária, ordenamento da expansão urbana, implantação de equipamentos urbanos e comunitários, criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes, criação de unidades de conservação, bem como para proteção de áreas de interesse ambiental, histórico, cultural ou paisagístico. Imposta a preempção, “o proprietário que alienar seu imóvel sem oferecê-lo à compra pelo Município estará sujeito a uma série de implicações, quais sejam: (1) a declaração de nulidade do contrato celebrado com o adquirente particular, o que naturalmente dependerá de sentença judicial; (2) a execução forçada da preferência de compra pelo ente local e (3) a imposição de pagamento do imóvel a partir do valor da base de cálculo do IPTU ou pelo valor da proposta do contrato privado, se este for inferior ao primeiro. Nesse cenário, o Estado será privilegiado com um poder de compra exequível facultativamente e com o poder de impor um preço com evidente natureza sancionatória. Reitere-se, porém, que todas as consequências previstas em lei somente serão aceitáveis e válidas caso o Estado deseje, de fato, realizar a aquisição do bem para executar sua política urbanística”. [13] 5.8 Permuta A troca de bens ou permuta configura modalidade de constituição de bens municipais bastante comum. Pela Lei de Licitações (art. 17, I, c), não há ressalva em relação ao contratante, de modo que se faculta à Administração celebrar esse tipo de contrato com ente público ou privado. No entanto, a permuta de bem imóveis somente poderá ser realizada sem licitação quando o imóvel recebido pelo Município for “destinado ao atendimento das finalidades precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização condicionem a sua escolha...” (art. 24, X). Já no caso dos móveis, a permuta será igualmente possível sem licitação, mas apenas entre órgãos ou entidades da Administração Pública (art. 17, II, b). Registre-se, por oportuno, que há dúvidas sobre a constitucionalidade de algumas das restrições legais mencionadas, pois elas exorbitariam o campo das normas gerais de licitações e invadiriam a autonomia estadual e municipal. [14] A despeito dessa discussão, envolva a permuta móvel ou imóvel e seja ela precedida ou não de licitação, será imprescindível que os bens permutados demonstrem valor semelhante. Isso decorre expressamente da Lei n.8.429/1992, cujo art. 10 considera ato de improbidade por lesão ao patrimônio público “IV – permitir ou facilitar a alienação, permuta ou locação de bem integrante do patrimônio de qualquer das entidades (...) por preço inferior ao de mercado” e “V – permitir ou facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem ou serviço por preço superior ao de mercado” (g.n.). Em adição, é preciso verificar se o bem a ser recebido pelo Município na permuta se mostrará útil para fins públicos, afigurando-se incabível o uso do instituto para obtenção de bem sem destinação previsível ou com o intuito de enriquecer indevidamente a outra parte contratante. 5.9 Dação em pagamento e adjudicação Além da permuta, a dação em pagamento serve para que o Município receba bens em troca do pagamento de dívidas não saldadas em dinheiro, inclusive bens por meio de adjudicação judicial. Na Lei de Licitações, permite- se ao ente público a alienação posterior desses bens desde que realizada avaliação prévia, demonstrada a vantagem ou necessidade da alienação e realizada licitação na modalidade de concorrência ou leilão (art. 19). Conquanto a lei mencione de modo expresso apenas os imóveis, não parece haver prejuízo de extensão da regra a móveis. 5.10 Doações puras ou condicionadas Os Municípios, além de se beneficiarem de mecanismos de transferência compulsória da propriedade, estão autorizados a receber bens, públicos ou particulares, por doação. É imperioso que o ente local avalie os impactos da doação, sobretudo em termos de custos de manutenção e conservação do bem. Na doação realizada por ente público a favor do Município, dispensa-se a licitação pelo doador, seja para bens imóveis ou móveis. No caso dos móveis, a Lei de Licitação exige que o bem doado seja utilizado para fins sociais (art. 17, II, a). Em relação aos imóveis, dispõe a lei que, “cessadas as razões que justificaram a sua doação, reverterão ao patrimônio da pessoa jurídica doadora, vedada a sua alienação pelo beneficiário” (art. 17, § 1º). Desde que se considerem constitucionais essas restrições legais, [15] o Município que se beneficiar de doação de imóvel federal ou estadual terá que devolver o bem caso desapareçam os motivos públicos que ensejaram a doação. No tocante às doações condicionais feitas porparticulares, a aprovação do encargo que recairá sobre o ente local deverá ser avaliada e aprovada de modo expresso. Nessas situações, sem prejuízo de iniciativa própria do doador, é possível que o Município induza doações, por exemplo, mediante abertura de procedimento de seleção específico no qual ou o Município fixe o encargo e escolha o doador com base em um critério relativo à maior vantagem gerada pelo bem doado. De maneira alternativa, o Município poderá simplesmente selecionar os doadores de acordo com uma avaliação conjunta da vantajosidade do bem e do encargo livremente fixado pelo particular. 5.11 Sucessão testamentária Além de receber os bens da herança vacante por determinação explícita do Código Civil, é possível que particulares deixem voluntariamente parte de sua herança para o Estado, incluindo os Municípios. Não há óbice a tanto, na medida em que o art. 1.799 do Código permite que pessoas jurídicas sejam chamadas à sucessão. Observe-se, porém, que o ente local pode aceitar ou renunciar a herança, opção que depende de juízo prévio acerca da conveniência e oportunidade do recebimento dos bens e de suas consequências patrimoniais e orçamentárias, sobretudo quando eles vierem acompanhados de algum encargo. Uma vez feita, a renúncia da herança atingirá os bens por completo, não podendo ser parcial ou feita sob condição ou termo. Além disso, o ato será irrevogável (art. 1.808 e 1.812). 5.12 Usucapião Não é raro que os Municípios adquiram bens por meio da usucapião, modalidade de prescrição aquisitiva do direito de propriedade. Nos termos do art. 1.238 do Código Civil, “aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”. Diante de justo título e boa-fé ou em razão de obras e serviços produtivos realizados no imóvel, o prazo diminuirá para 10 anos. Para os móveis, os prazos são de três anos, na existência de justo título e boa-fé, e de cinco anos para demais situações. A usucapião como mecanismo de aquisição da propriedade se restringe a bens particulares, na medida em que os estatais públicos, inclusive os dominicais, caracterizam-se pela imprescritibilidade ancorada em normas constitucionais (art. 183, § 3º e 191, parágrafo único da CF) e no Código Civil (art. 102). Na realidade, o instituto em comento se revela bastante útil em hipóteses de desapropriação indireta na qual o proprietário originário não reclama o objeto ocupado e, por decurso de prazo, perde o direito de fazê-lo, restando ao Município, caso seja o ocupante, solicitar a declaração judicial do direito de propriedade. 6 Escala de regimes jurídicos, bens públicos de direito e de fato A primeira cautela necessária ao se cotejaremos bens no direito administrativo consiste em não se confundir a categoria maior dos bens estatais com a subcategoria dos bens públicos, a qual ainda se subdivide por força do direito positivo em três espécies de bens (de uso comum do povo, de uso especial e dominicais). A segunda cautela imprescindível exige diferenciar a natureza jurídica do regime jurídico de um bem. Natureza indica um rótulo que denota a essência jurídica de um objeto (ou seja, de bem, pessoa ou atividade). Regime consiste no conjunto de normas jurídicas que paira sobre o objeto (bem, pessoa ou atividade) e que varia em razão da natureza e de sua função, daí se afirmar que sobre um mesmo objeto é possível que incidam incontáveis regimes funcionais. No direito administrativo, convencionou-se fixar os regimes jurídicos por paralelismo à natureza jurídica do bem. De acordo com essa linha de raciocínio, prega-se com frequência que o bem público entra em regime administrativo, enquanto o bem particular, em regime de direito privado. A falha do raciocínio resulta da confusão entre natureza e regime e da suposição de que o regime siga necessariamente a natureza e somente ela. No entanto, a função jurídica do objeto, dentro de um determinado contexto, exerce um relevante papel na modulação do regime jurídico. É exatamente isso que permite negar a homogeneidade interna do regime dos bens públicos e do regime dos bens particulares. Para se aproximar a análise doutrinária dos bens à realidade patrimonial do Estado, a teoria contemporânea tem preferido sustentar a existência de uma escala de regimes jurídicos, segundo a qual os bens se distribuem de acordo com sua titularidade, natureza e função. Em um panorama teórico básico, do cruzamento dos fatores mencionados se chega a, pelo menos, cinco regimes no direito brasileiro, os quais se escalonam a partir da maior incidência de direito público em direção à maior submissão ao direito privado. É o que mostra a tabela seguinte: Escala de regimes jurídicos dos bens Titularidade Função Normas Rótulo do regime Pessoa jurídica de direito público (bem estatal público) Uso comum do povo ou uso especial Altíssima incidência de direito público Domínio público estatal Pessoa jurídica de direito privado ou pessoa física (bem privado) Uso em atividade pública Regime híbrido de direito público e privado. Predominância da lógica publicística. Domínio público impróprio Pessoa jurídica de direito público (bem estatal público) Uso público flexível (bens dominicais ou “bens coringas”) Regime híbrido (ou público flexível) Domínio público não afetado Pessoa jurídica de direito privado do Estado (domínio estatal privado) Uso semelhante ao dos particulares Regime mais privatístico, derrogado por algumas normas públicas Domínio privado estatal Bem não estatal privado (pessoa física ou jurídica de direito privado) Uso particular Regime privatístico mitigado apenas por restrições estatais à propriedade (poder de polícia) Domínio privado não estatal Fonte: elaboração própria Diante do escalonamento normativo, observa-se que o regime dos bens públicos propriamente ditos se afasta da homogeneidade. Os bens públicos afetados (de uso comum do povo e de uso especial) ingressam em regime altamente publicístico, enquanto os dominicais inserem-se em um regime marcado pelo direito público, mas com algumas relativizações e flexibilizações de direito privado. De outra parte, ainda se nota que os bens particulares se distribuem por três degraus da escala. Em primeiro lugar, vislumbram-se os particulares tradicionais, aqueles não pertencentes a entes estatais e que estão em função privada, ou seja, são geridos em favor de seu proprietário com limitações mínimas decorrentes da função social da propriedade e de outros interesses públicos gerais (via limitações administrativas). Em segundo lugar, aparecem os bens particulares em função privada, mas estatais. Aqui, a natureza jurídica não varia, mas a titularidade muda, já que o bem se envolve no patrimônio de uma pessoa jurídica de direito privado do Estado, o que atrai normas administrativas em medida superior àquela que atinge os bens particulares do primeiro grupo. Em terceiro lugar, posicionam-se os bens particulares, estatais ou não, vinculados ao cumprimento de funções administrativas ou à geração de utilidades públicas específicas. Pela sua funcionalidade, esse conjunto de bens ingressa em um regime significativamentepublicístico, aqui chamado de domínio público impróprio pelo fato de se aproximarem do regime do domínio público estatal (ou seja, dos bens públicos afetados). Os bens particulares que compõem o domínio público impróprio, pelo seu regime publicístico acentuado, podem ser igualmente denominados de “bens públicos de fato”. Eles não são bens públicos jurídicos, pois não participam do patrimônio de uma entidade estatal com personalidade jurídica de direito público (como uma autarquia ou uma prefeitura), mas são públicos na função que exercem, ou seja, por força da situação fática em que estão inseridos. Exemplo disso são os bens reversíveis de concessionárias de serviços públicos, certos bens adquiridos com fomento estatal, além de alguns edifícios privados de uso coletivo e de utilidade pública à população. O reconhecimento teórico dessa nova categoria de bens, não tratada pelo Código Civil, serve para se compreender uma nova classe de elementos privados essenciais para o funcionamento das cidades e, por conseguinte, dos próprios Municípios. Afinal, no ambiente urbano, esses “bens públicos de fato” muitas vezes desempenharão o papel dos bens públicos municipais afetados a funções estratégicas, como transporte, lazer, saneamento e outros serviços públicos sociais ou econômicos. Por conseguinte, ainda que sejam bens particulares por força do critério subjetivo do Código Civil (baseado na titularidade), seu tratamento jurídico deve se avizinhar ao dos bens públicos de direito, disso derivando uma série de restrições no tocante a seu uso, sua alienabilidade e sua penhorabilidade. 7 Regimes jurídicos dos bens municipais Com suporte na escala de dominialidade, torna-se possível trabalhar os diferentes regimes jurídicos dos bens municipais. Por simetria ao que se sustentou para a teoria geral dos bens, o regime dos objetos patrimoniais do Município variará basicamente de acordo com sua natureza (vinculada à titularidade) e função, daí ser possível dividi-los em quatro categoriais gerais, quais sejam: a) bens municipais públicos afetados (uso comum do povo e uso especial); b) bens municipais públicos não afetados (dominicais); c) bens municipais privados em função pública (domínio público impróprio); d) bens municipais privados sem função pública (domínio estatal privado). Para cada uma das quatro categorias de bens municipais, a diferenciação dos regimes jurídicos implicará variações normativas que se referem, ao menos, a seis quesitos fundamentais. O primeiro diz respeito ao grau de alienabilidade, ou seja, à medida do direito de disposição que o Município exerce sobre o bem. Quanto mais público, mais se limitará a alienação. O segundo quesito se relaciona com as normas de gestão de uso, pois, conforme o enquadramento do bem, os instrumentos de outorga de uso e o conteúdo da função social diferirão. O terceiro se refere à prescritibilidade, isto é, à possibilidade de o bem ser ou não adquirido por usucapião decorrente da posse de pessoas físicas ou jurídicas. O quarto trata da penhorabilidade, da viabilidade de se penhorar judicialmente o bem para executar dívidas contra o Estado. O quinto, de maneira semelhante, aponta a compatibilidade do bem com a instituição de garantias reais e o sexto, dos mecanismos de controle patrimonial, já que algumas formas de controle se aplicam a bens públicos, sobretudo afetados e vinculados a funções essenciais para a coletividade, mas não valem para bens públicos dominicais ou bens estatais privados. Evidencia-se isso quando se examinam os meios de controle social e de controle por órgãos de defesa de interesses coletivos e difusos. [16] Não seria possível examinar à exaustão cada um dos seis quesitos apontados em relação às quatro categorias de bens municipais. [17] Desta feita, oferecer-se-á um breve panorama do regime jurídico com base em alguns dos elementos citados. Vejamos. 7.1 Bens municipais públicos afetados (uso comum do povo e uso especial): Por conta de sua elevada vinculação a finalidades públicas e interesses da coletividade, o regime jurídico aplicável se torna altamente publicístico e, por conseguinte, caracteriza-se por muitas restrições e alguns poderes. A alienabilidade desses bens é bastante limitada, mas não completamente impossível. Isso porque, entre entes públicos, não se deve considerar o bem afetado inalienável. Nesse contexto, subsiste o comércio público, daí ser possível a certo Estado da federação transferir um bem afetado seu a algum Município. Não se vislumbra nisso qualquer violação da regra geral do Código Civil (art. 100), pela qual os bens afetados são inalienáveis, já que o mandamento legal atinge somente o comércio privado. Entretanto, a alienabilidade se mostrará absoluta, caso o bem público seja monopolizado em favor de algum nível federativo, como os potenciais hidráulicos e os recursos minerais da União. No mais, aplicam-se aos bens públicos afetados a imprescritibilidade (art. 102 do Código Civil); a impossibilidade de oneração por garantias reais, já que estão afetados a um fim público, além da impenhorabilidade judicial, pois seus titulares, necessariamente pessoas jurídicas de direito público interno, beneficiam-se do regime de pagamento de dívidas por precatórios (art. 100 da CF). Apesar disso, sobre tais bens permite-se outorga de uso a terceiros, inclusive para fins privativos e mediante remuneração, mas desde que se respeite a afetação ao uso primário. 7.2 Bens municipais públicos não afetados (dominicais) Nesta categoria, a existência de um titular com natureza de pessoa jurídica de direito público atrai regras limitativas à gestão do bem, embora não haja afetação a um fim público. Por conseguinte, o regime desses bens se marca por maior flexibilidade, embora ainda seja permeável a forte incidência do direito administrativo. A alienabilidade existe tanto para o comércio público, quanto para o privado. Porém, a Lei de Licitações estabelece o cumprimento de uma série de requisitos prévios à alienação e cria hipóteses específicas de dispensa (art. 17 a 19). A imprescritibilidade aquisitiva também se aplica a esse grupo patrimonial. Ainda que as normas constitucionais não mencionem a restrição a favor de imóveis (art. 183, § 3º e 191, parágrafo único da CF), o Código Civil a estende aos dominicais móveis (art. 102). Por força do regime de precatórios, a impenhorabilidade judicial igualmente existe, mas não há, em regra, vedação para se gravá-los com garantias reais. 7.3 Bens municipais privados em função pública (domínio público impróprio) O regime desses bens é o mais obscuro de todas as quatro categorias. Isso se explica pela ampla lacuna do direito positivo, que não consagra de modo explícito o conceito de domínio público impróprio ou de bens públicos de fato. Dentro desse conjunto, encontram-se os bens particulares, contidos no patrimônio de entes estatais, mas com personalidade jurídica de direito privado. Como se sabe, alguns desses bens estatais particulares associam-se a funções públicas, como ocorre muitas vezes com os bens de empresas municipais executoras de atividades de polícia de trânsito ou de serviços públicos locais. Por consequência, o bem é particular, mas seu regime recebe limitações em virtude de sua função e relevância pública. A alienabilidade, a prescritibilidade, a penhorabilidadee a sujeição a garantias reais existem a princípio, mas devem ser afastadas quando puderem comprometer interesses públicos primários. Os mecanismos de proteção ora decorrerão de lei específica, ora de disposições administrativas ou até mesmo contratuais. 7.4 Bens municipais privados sem função pública (domínio estatal privado) Os bens estatais privados, mesmo não vinculados a funções públicas, sofrem a incidência qualificada das normas de direito administrativo. Eles são alienáveis tanto no campo do comércio privado, quanto no público. No entanto, nas relações patrimoniais com os particulares, impõe-se o respeito aos princípios da impessoalidade e da moralidade, do que decorre a necessidade de a alienação ser em regra precedida da avaliação do bem, da motivação quanto à conveniência da alienação e da condução de uma licitação. Por conta de sua proximidade ao direito privado, não se vislumbra fundamento para aplicar a regra da imprescritibilidade a tais bens. Ao vedar a usucapião, a Constituição Federal e o Código Civil referem-se exclusivamente a bens públicos, não a qualquer tipo de bem estatal. Por conseguinte, excluem-se da regra protetiva os bens estatais privados. Todos eles se sujeitam plenamente à aquisição por usucapião. Ademais, sobre eles pode recair penhora judicial, pois seus titulares são pessoas jurídicas estatais, mas de direito privado. Enfim, nada impede que sejam objeto de garantia real. 8 Domínio urbano ou bens com função urbanística A delimitação dos bens municipais se pauta em um critério de titularidade pelo qual se separa o patrimônio dos entes políticos locais do patrimônio de outras pessoas, físicas ou jurídicas, particulares ou estatais. A dominialidade municipal deriva em primeiro lugar de um critério subjetivo, enquanto suas subdivisões categoriais resultam de um critério funcional pelo qual cada bem se distribui nos vários degraus da escala de regimes do direito brasileiro. A expressão “domínio público urbano” se entrecruza de certo modo com o chamado “domínio municipal”, mas seus critérios fundadores são completamente distintos. Como já se observou de modo detalhado em tese sobre o tema, o domínio urbano engloba “o conjunto de bens públicos, de uso comum e de uso especial, de propriedade tanto municipal quanto estadual ou federal, assim como os bens particulares que se encontram em regime jurídico derrogatório do direito privado pelo fato de se vincularem à realização da função social da cidade”. [18] Ao se fragmentar esse conjunto de bens por um critério de titularidade encontram-se três blocos patrimoniais, a saber: 1) o domínio urbano municipal, como bloco de bens de uso comum e de uso especial, de propriedade dos Municípios, e essencialmente relacionados à concretização das funções sociais urbanas; 2) o domínio urbano supramunicipal, que abrange bens públicos de uso comum e de uso especial, mas de propriedade dos Estados e da União, bem como de outras pessoas jurídicas de direito público federais ou estaduais que desempenhem funções socioeconômicas de relevo urbanístico; e 3) o domínio urbano impróprio, que abarca os bens de pessoas físicas e jurídicas de direito privado, estatais ou não, e que suportam a prestação de serviços ou funções urbanas essenciais, por conta das quais se estendem a eles algumas limitações típicas de bens do domínio público estatal. O recorte dos elementos do domínio urbano por força de um critério pessoal serve para comprovar a sua peculiaridade em relação ao domínio municipal. Os bens municipais constituem parte essencial do conceito, mas o patrimônio federal, estadual e particular também constrói a base infraestrutural da cidade. Portanto, bem municipal é conceito que jamais poderá ser tomado como sinônimo de domínio urbano. Alguns bens municipais participam do domínio urbano, mas outros desempenham finalidade específica, não ligados ao funcionamento da cidade como um espaço público, razão pela qual devem ser integrados no conceito tradicional de “propriedade urbana”. Na estruturação física da cidade, todos os bens componentes do conceito maior de “domínio público urbano” colocam-se ao lado da “propriedade urbana”, aqui entendida como conjunto de áreas, habitações ou edifícios nos quais se desenvolvem atividades domésticas ou produtivas, industriais ou comerciais em função privatística. [19] Na prática, entretanto, são os bens do domínio público urbano que exercem com predominância a tarefa de promover as funções essenciais da cidade, quais sejam: 1) a função provedora, ou seja, de oferta de acesso a bens e serviços urbanos essenciais (e.g. transporte, saúde, educação etc.); 2) a função integradora, de facilitação do exercício de direitos fundamentais civis, políticos e culturais dos cidadãos no tecido urbano como espaço de socialização; e 3) a função de trânsito ou circulação, imprescindível à proteção da cidade como um espaço natural de fluxos e trocas. A relação do domínio urbano com as três funções essenciais da cidade torna-se mais evidente ao se detalharem os componentes do conceito aqui tratado, quais sejam: 1) os logradouros públicos e 2) o mobiliário urbano. Os logradouros abarcam os bens do domínio viário e as áreas públicas da cidade. O domínio viário representa o conjunto de vias que estabelece as interligações entre os fragmentos do tecido urbano, incluindo as obras acessórias, como pontes, viadutos, passarelas etc. Já as áreas públicas desempenham uma função integradora sob o ponto de via social e abrangem praças, parques e outras áreas públicas de uso comum da população para fins de lazer, cultura, reunião e manifestação. A seu turno, o mobiliário urbano engloba sobretudo os bens públicos de uso especial e bens particulares empregados como suporte à prestação de serviços públicos essenciais ao funcionamento da cidade, como transporte, segurança pública, iluminação pública e saneamento básico. Dentro do conceito de mobiliário, há dois blocos de bens. O primeiro abrange equipamentos públicos, coisas singulares e tangíveis destinadas à prestação de serviços, como cabines telefônicas, totens de medição de temperatura, relógios públicos, barreiras, gradis, cones etc. Esses elementos diferem das chamadas redes de infraestrutura, que representam uma coletividade jurídica. Melhor dizendo: cada rede configura um conjunto de bens, tangíveis ou intangíveis, idênticos ou diferenciados, interligados artificialmente pelo ser humano e destinados ao cumprimento de uma função urbanística ou de um serviço público. 9 Uso de bens municipais: sistematização teórica A disciplina jurídica dos bens municipais não escapa à teoria geral do direito administrativo dos bens. A sistematização doutrinária dos tipos de uso e de suas características centrais, além das considerações teóricas sobre os mecanismos de outorga, serve a princípio para a gestão dos bens dos Municípios. Mas há que se fazer uma advertência relevante. Não se deve confundir teoria administrativa com direito positivo. Diz-se isso, porque a extensão da teoria a todos os entes políticos não significa que as normas legais expedidas pelo Congresso Nacional se apliquem automaticamente a Estados e Municípios. Na verdade, muitas delas tratam exclusivamente da gestão de bens federais, restando aos entes subnacionais editar suas próprias normas. Em outrassituações, mais específicas, o Congresso está autorizado a editar normas gerais nessa matéria, hipótese em que caberá aos Estados e Municípios respeitá-las e detalhá-las. Uma situação a ilustrar a competência do Congresso Nacional para expedir normas gerais se vislumbra no tocante aos instrumentos de direito urbanístico. Como já demonstrado, boa parte dos bens municipais se insere no conceito de domínio urbano, haja vista sua essencialidade para o desempenho de funções essenciais das cidades. Por isso, nessas situações, cabe ao Município, em sua gestão patrimonial, observar as regras nacionais referentes aos instrumentos de política urbana. Além da importante diferenciação entre teoria e direito positivo e entre normas federais e normas nacionais, para se compreender a realidade dos bens municipais é igualmente fundamental que se parta de uma análise da teoria administrativa dos usos, lastreada na realidade normativa federal e que, portanto, pode ou não ser absorvida pelos Municípios conforme decisão discricionária baseada em sua autonomia político-administrativa. A teoria da classificação dos usos de bens hoje consagrada no direito administrativo brasileiro se enraíza na tese de doutorado de Maria Sylvia Zanella Di Pietro. [20] Em linha com sua corrente teórica, os usos de bens estatais podem ser comuns, abertos a todos de modo impessoal, e em regra sem prazo de duração, ou privativos, para finalidades específicas e geralmente restritas a um período temporal determinado. Exemplo da modalidade comum se vislumbra no uso de ruas por veículos ou de praças por transeuntes. O uso privativo encontra exemplos na instalação de barracas de feira ou de bancas de jornal em logradouros públicos ou na instalação de restaurante particular em um campus de uma universidade pública. O uso comum se qualifica como ordinário na hipótese de ocorrer sem restrições, condicionamentos ou cobranças. Em contraste, o uso comum extraordinário se caracteriza por cobranças ou algum tipo de limitação quanto ao modo ou quanto ao acesso (por exemplo, mediante exigência de autorização estatal prévia). Assim, a cobrança de preço para uso da rodovia ou o estabelecimento de idade mínima para o uso de uma biblioteca municipal aberta ao público geram um uso comum extraordinário. No plano teórico, ainda se diferenciam os usos normais dos anormais. No primeiro caso, o uso se dá em conformidade com a afetação do bem, isto é, em harmonia com sua vinculação, por lei ou por ato da Administração, a um ou mais usos primários. É o caso de uso da biblioteca municipal para leitura ou do domínio viário para o trânsito de pessoas e veículos. Todavia, a afetação não exclui a possibilidade de usos secundários dos bens públicos. Muito pelo contrário. A função social dos bens públicos exige que eles gerem o máximo de utilidades sociais, coletivas ou privadas, sempre se respeitando sua sustentabilidade. [21] Por conta disso, é até sugerível que os usos secundários sejam promovidos. E sempre que houver uso secundário, não previsto na afetação, fala- se de uso anormal. A anormalidade não indica a princípio qualquer ilicitude. Desde que não prejudique o uso primário (normal), o uso secundário (anormal) será lícito. A partir do momento em que comprometa a função primária do bem público afetado, o uso anormal se tornará inaceitável e ilegal. [22] A organização de festa junina ou de uma reunião de bairro em uma escola pública municipal configura, pois, uso anormal, lícito na medida em que a afetação primária (uso do bem para atividades de ensino) não seja prejudicada de modo irrazoável. 10 Outorga de uso de bens municipais: mecanismos administrativos Mecanismos de outorga consistem em instrumentos jurídicos, atos ou contratos, que viabilizam o uso de um bem estatal por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas, mediante remuneração ou gratuitamente, por prazo determinado ou não, com ou sem precariedade. Embora a definição do conceito seja relativamente simples, no direito positivo brasileiro, a teorização a respeito dos mecanismos de outorga encontra pelo caminho grandes barreiras. Em primeiro lugar, prescinde a legislação de uma classificação evidente. Os mecanismos de outorga espalham-se pelas mais diversas leis que tratam do riquíssimo e altamente variado patrimônio estatal. Em segundo lugar, nas várias leis que os mencionam e abordam, prescinde-se de uma padronização conceitual e terminológica, de modo que institutos significativamente distintos recebem, por vezes, nomenclatura idêntica, o que gera extremas dificuldades para o intérprete. Em virtude desses e de outros fatores, a doutrina brasileira assumiu um papel de extremo relevo. Coube a ela buscar os elementos comuns dos mais diversos institutos de outorga, traçar alguns conceitos e sugerir classificações que facilitassem a tarefa dos operadores do direito e, ao mesmo tempo, orientasse o legislador na construção de novas normas sobre o tema. Não é possível sustentar, porém, que a legislação brasileira atual se harmonize com os posicionamentos doutrinários e suas sistematizações. Pelo contrário. Basta cotejar o direito positivo dos mais diversos entes políticos da federação para perceber a ausência de padronização terminológica e de precisão conceitual no tratamento da matéria. Não obstante, o papel da doutrina nesse campo permanece relevantíssimo. Daí porque se mostra imprescindível examinar ao menos duas propostas teóricas de classificação de instrumentos administrativos: a de Maria Sylvia Zanella Di Pietro e a de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, há três instrumentos principais a merecer estudo: as concessões, as permissões e as autorizações de uso de bem. [23] O critério de distinção que justifica a tripartição adotada resulta do conteúdo de cada mecanismo de outorga. À luz desse critério, a autorização constitui ato jurídico unilateral, precário e discricionário e destinado a viabilizar tanto o uso comum extraordinário (mediante cumprimento de alguns requisitos), quanto o uso privativo de bem estatais públicos. A permissão segue características similares. No entanto, em comparação com ela, Di Pietro sustenta que a autorização apresenta maior grau de precariedade, além de se caracterizar pela transitoriedade, por menores poderes de uso, pela inexigibilidade de licitação e de autorização legislativa, assim como pela ausência de um dever de utilização pelo particular que dela se beneficia e pelo seu frequente emprego para usos de interesse privatístico e não de interesse coletivo. Por sua vez, a concessão de uso configura outorga de uso privativo a particular, de caráter contratual, onerosa ou gratuita, com prazo determinado, marcada pela pessoalidade e dependente em geral de licitação. A segunda proposta teórica que merece destaque surge na obra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Nela se separam os mecanismos de outorga conforme o tipo de uso que abrangem, pela sua natureza de ato ou contrato e pelo caráter vinculado ou discricionário. Nessa linha, para os usos privativos de bens públicos, separam-se os mecanismos legais (em que a própria lei opera a outorga de uso), os mecanismos unilaterais (permissão de uso e cessão de uso), os mecanismos contratuais (incluindo a concessão de uso, a concessão de direito real de uso e o aforamento público), e as modalidades complexas de outorga (por meio de consórcios, convênios, acordos de programa, contratos de gestão,termos de parceria e outros instrumentos congêneres). [24] A sistematização pautada na natureza vinculada ou discricionária, unilateral ou bilateral, legal ou administrativa dos meios de outorga afigura-se mais flexível e adequada para explicar toda a riqueza de experiências que se vislumbra na gestão de uso de bens estatais no Brasil. Já a proposta tripartite antes examinada, paralela aos mecanismos de outorga de serviços públicos, e baseada na sistematização teórica da concessão, permissão e autorização, nem sempre atinge o mesmo grau de sucesso. Isso se deve a pelo menos quatro fatores. A uma, a legislação e o próprio Executivo confundem os tipos ao criarem o direito administrativo positivo e, frequentemente, ignoram a tripartição teórica. A duas, nem sempre os nomes jurídicos encontrados na legislação correspondem à essência teórica criada pela doutrina para a concessão, a permissão e a autorização – caso esse que se vislumbra, inclusive, na concessão de imóveis públicos para fins de moradia que, pela legislação, seria ato jurídico e não instrumento contratual. A três, a tripartição dos mecanismos de outorga parece insuficiente para abarcar a variabilidade dos mecanismos existentes no ordenamento e, enfim, no contexto federativo brasileiro, em que os entes se caracterizam pela autonomia administrativa ampla, mostra-se difícil sustentar a validade de uma padronização teórica dos mecanismos de outorga que seja aplicável à União, aos Estados e aos Municípios. Por tudo isso, mais importante que o nome jurídico do instituto de outorga de uso é a verificação de sua natureza discricionária ou vinculada, de seu poder de criar direito subjetivo de uso, de sua precariedade e de sua dependência de vínculo contratual ou de mero ato jurídico. Na atividade de gestão dos bens municipais, os entes locais não estão presos aos rótulos teóricos, já que eles não detêm base normativa nacional, salvo em certas áreas específicas, como a de recursos hídricos, recursos florestais, direito urbanístico etc. Fora das áreas em que o Congresso detém competência para edição de normas nacionais, ao editarem sua legislação, mais que atentar aos nomes, os Municípios devem buscar estruturar seus instrumentos de outorga de modo a respeitar: 1) a segurança jurídica por parte dos utentes, inclusive mediante a explícita definição do regime jurídico no intuito de se conferir previsibilidade aos cidadãos; e 2) a defesa dos interesses públicos primários, sobretudo pelo respeito à afetação do bem e ao uso múltiplo sustentável. 11 Outorga de uso de bens municipais: mecanismos urbanísticos Enquanto grande parte dos assuntos de direito administrativo recai no âmbito de competência dos entes políticos autônomos por conta da estrutura federativa brasileira, gerando dificuldades na sistematização dos mecanismos de outorga, no direito urbanístico, a situação é diversa e, felizmente, muito mais previsível. Isso decorre de um fator simples: a competência para expedição de normas gerais nessa matéria se reserva ao Congresso Nacional (art. 24, I da CF), cabendo aos Estados suplementá-las. Já aos Municípios, confere-se a competência secundária de suplementação, impondo-se que respeitem tanto as normas gerais do Congresso, quanto as normas do Estado da federação em cujo território se inserem (art. 30, II). É nesse contexto que o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) desponta como um importante conjunto normativo de sistematização de mecanismos de outorga de bens estatais para finalidades urbanísticas. Os instrumentos nele previstos são de aplicabilidade nacional. Ainda que os Municípios possam optar pelos mecanismos que desejem empregar em seu território (com parcial ressalva quanto ao Plano Diretor, dada sua obrigatoriedade em certas hipóteses), sempre que um instrumento do Estatuto for inserido no ordenamento local, as bases normativas dadas pelo Congresso valerão de forma automática, evitando-se a fragmentação terminológica e a imprecisão conceitual. No campo urbanístico, dos inúmeros instrumentos previstos e detalhados em normas nacionais, alguns merecem especial consideração pelo fato de consistirem ou abrangerem outorgas de usos de bens municipais. São eles: o direito de superfície; a concessão de uso para fins de moradia e a permissão de uso para fins comerciais. 11.1 O direito de superfície A teoria da acessão, pela qual o acessório segue o destino do bem principal, impõe que construções ou plantações sobre um imóvel passem a fazer parte do mesmo. O imóvel atrai acessórios em benefício de seu proprietário. No Código Civil, referida consequência se enraíza em três dispositivos principais. O art. 92, ao tratar dos bens reciprocamente considerados, dispõe: “principal é o bem que existe sobre si, abstrata ou concretamente; acessório aquele cuja existência supõe a do principal”. Já o art. 1.248 enumera os instrumentos que expressam a acessão, incluindo a formação de ilhas, a aluvião, a avulsão, o abandono de álveo, bem como as plantações e as construções. O art. 1.253, a seu turno, dispõe que “toda construção ou plantação existente em um terreno se presume feita pelo proprietário e à sua custa, até que se prove o contrário”. Ao direito municipal e urbanístico, interessa sobretudo a atividade de construção. A previsão do direito de superfície tanto no Código Civil, quanto no Estatuto da Cidade, gera uma exceção à vinculação de bens por acessão, incluindo os casos de construção. Na prática, os regimes jurídicos da superfície civilística e da urbanística diferem levemente. Para dar um exemplo, a do direito civil não abrange subsolo, mas abarca a propriedade urbana e rural e serve para fins de construção e plantação. [25] Diante da existência de dois regimes para um mesmo instituto, caso o Município utilize a superfície, deverá esclarecer a modalidade pela qual opta e as normas aplicáveis. Supõe-se, porém, que a versão mais relevante em matéria municipal venha a ser a regida pelo Estatuto da Cidade, já que ela configura instrumento de política de desenvolvimento urbano, política essa que fica principalmente a cargo dos entes políticos locais. De acordo com o Estatuto da Cidade, permite-se que o proprietário urbano conceda a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura registrada no cartório de registro de imóveis (art. 21, caput). O “proprietário” a que o dispositivo se refere abrange tanto o particular, quanto o próprio Estado em relação a bens públicos dominicais (não afetados) ou a bens estatais privados. Por conseguinte, é possível incluir a superfície inicialmente como uma forma de outorga de uso privativo de terceiros sobre bens municipais. [26] A mesma conclusão vale em relação à figura do superficiário. Ele poderá ser um particular, pessoa física ou jurídica, ou até mesmo um ente estatal que, no território da cidade, venha a colaborar com a execução da política urbanística. Nessa linha de raciocínio, não há dúvidas de que o próprio Município poderá obter o direito de superfície sobre um imóvel privado ou estatal alheio, federal ou estadual, para nele edificar bens úteis ao desenvolvimento da cidade, como infraestruturas de serviços urbanos ou edifícios residenciais de interesse social – sempre observada a finalidade prevista no ajuste. A despeito
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