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AMÂNCIO DA COSTA PINTO PSICOLOGIA GERAL 227 ISBN: 978-972-674-605-8 Amâncio da Costa Pinto PSICOLOGIA GERAL Universidade Aberta 2001 © Universidade Aberta Copyright © UNIVERSIDADE ABERTA — 2001 Palácio Ceia • Rua da Escola Politécnica, 147 1269-001 Lisboa – Portugal www.univ-ab.pt e-mail: cvendas@univ-ab.pt TEXTOS DE BASE; N.o 227 ISBN: 978-972-674-605-8 © Universidade Aberta AMÂNCIO DA COSTA PINTO Doutorou-se em 1985 na especialidade de Psicologia Experimental e é desde 1993 professor catedrático na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e regente da cadeira de “Aprendizagem e Memória”. É autor de vários artigos publicados em revistas científicas na área da “memória humana” e dos livros Metodologia da Investigação Psicológica, Psicologia Experimental: Temas e Experiências e Temas de Memória Humana. © Universidade Aberta 5 13 Prefácio 1. Psicologia: Introdução Geral 19 Definição e âmbito da psicologia 21 Marcos da história da psicologia 25 Psicologia e ciências afins 27 Métodos psicológicos 27 Observação naturalista 28 Estudo de casos 29 Questionários 29 Método correlacional 31 Método dos testes 32 Método diferencial 34 Método experimental 37 Perspectivas de investigação psicológica 38 Perspectiva bio-psicológica 39 Perspectiva evolucionista 42 Perspectiva sócio-cultural 44 Perspectiva cognitiva 45 Áreas de especialização psicológica 46 Psicologia clínica 46 Psicologia educacional 47 Psicologia organizacional 47 Psicologia cognitiva e experimental 47 Psicologia social 48 Psicologia do desenvolvimento 48 Organização e plano da obra 49 Conceitos psicológicos referidos no capítulo 49 Perguntas de auto-avaliação 49 Sugestões de leitura Psicologia Geral © Universidade Aberta 6 2. Aprendizagem 53 Âmbito, definição e tipos 55 Habituação 56 Condicionamento clássico 56 Pavlov: procedimento experimental 60 Generalização e discriminação 61 Relação temporal entre EC e o EI 62 Condicionamento de respostas emocionais 66 Explicações do condicionamento de Pavlov 67 Condicionamento operante 68 Thorndike: procedimento experimental 69 Características de aprendizagem 70 Leis de aprendizagem 71 Skinner: procedimento experimental 72 O papel do reforço 73 Tipos e programas de reforço 74 Comportamento supersticioso 75 Reforço e punição 76 Reforço ou punição? 79 Condicionamento de fuga e evitação 80 Extinção da resposta de evitação 80 O desamparo aprendido 81 Moldagem do comportamento 82 Limitações biológicas do condicionamento 86 Condicionamento clássico e operante 88 Condicionamento e cognição 93 Aprendizagem por observação 95 Observação e imitação 98 Aprendizagem verbal 99 Materiais e parâmetros de avaliação 100 Tarefas de aprendizagem verbal 102 Tipos de aprendizagem verbal 104 Aprendizagem e cognição 105 Conceitos de aprendizagem © Universidade Aberta 7 105 Perguntas de auto-avaliação 106 Sugestões de leitura 3. Memória 109 Âmbito e perspectivas 111 Referências históricas de memória 116 Sistemas e processos de memória 118 Distinções de memória 119 Curva de posição serial 121 Estados de amnésia 122 Memória a curto prazo 123 A capacidade da MCP 125 A codificação na MCP 126 Duração e esquecimento na MCP 130 Memória operatória 132 Memória a longo prazo 132 Modelos de MLP 135 Codificação na MLP 137 Retenção na MLP 138 Categorização e hierarquização 140 Formação de imagens 143 Recuperação da informação na MLP 144 Provas de memória 148 O problema do esquecimento 149 Teoria do desuso 151 Teoria da interferência 154 Incongruência contextual 156 Recalcamento 158 Esquecer é recordar 159 Recordação e reconstrução 163 Conceitos de memória 164 Perguntas de auto-avaliação © Universidade Aberta 8 164 Sugestões de leitura 4. Inteligência 167 Âmbito e definições 170 Medidas de inteligência 170 História breve dos testes de inteligência 173 O significado do QI 175 Inteligência geral: o factor g 175 Características psicométricas de um teste 176 Fidelidade e validade 177 Estabilidade e previsão dos testes de inteligência 179 O efeito Flynn 180 Testes de inteligência: prós e contra 180 Limitações dos testes 181 Vantagens dos testes 182 Teorias e modelos de inteligência 182 Teorias psicométricas 183 Spearman: o factor g 183 Thurstone: habilidades mentais primárias 184 Guilford: o cubo da inteligência 185 Cattell e Horn: inteligência fluida e cristalizada 185 Carroll: a teoria dos estratos de inteligência 186 Jensen: o factor g de inteligência 188 Estrutura de inteligência e análise factorial 189 Teorias de processamento de informação 190 Haier: inteligência e o metabolismo da glucose 190 Nettelbeck: inteligência e tempo de inspecção 191 Jensen: inteligência e tempos de reacção de escolha 191 Hunt: inteligência e acesso lexical 192 Simon: inteligência e resolução de problemas 192 Sternberg: inteligência e analogias 194 Teorias de desenvolvimento cognitivo © Universidade Aberta 9 195 Teoria de Piaget 196 Teoria de Vygotsky 196 Teorias contextuais 197 Sternberg: teoria triárquica de inteligência 198 Gardner: teoria das inteligências múltiplas 200 A inteligência emocional 201 O problema da hereditariedade-meio 202 Factores genéticos 204 Adopção de crianças 204 Factores ambientais e sócio-culturais 206 Interacção hereditariedade-meio 208 Observações complementares 209 Conclusão 210 Conceitos de inteligência 211 Perguntas de auto-avaliação 211 Sugestões de leitura 5. Motivação 215 Definição 216 Conceitos motivacionais 218 Teorias da motivação 219 Teorias biológicas 219 Teoria dos instintos 220 Teoria sociobiológica 221 Teoria de Freud 222 Teorias comportamentais 222 Teoria de redução de impulsos 224 Teoria da excitação 226 Teoria do incentivo 227 Teoria humanista de Maslow 229 Teorias cognitivas 230 Teoria da dissonância cognitiva de Festinger 232 Modelos de atribuição causal © Universidade Aberta 10 233 Teorias da aprendizagem social 234 Teoria da expectativa x valor 234 Teoria de Nuttin 235 Modelo de Bandura 236 Motivação intrínseca e extrínseca 238 Não há uma teoria … 239 Conclusão 240 Conceitos de motivação 240 Perguntas de auto-avaliação 240 Sugestões de leitura 6. Emoção 243 Âmbito da emoção 244 Funções da emoção 245 Conceitos emocionais 247 Emoções primárias e secundárias 249 Teorias da emoção 249 Teoria de James-Lange 250 Teoria de Cannon-Bard 251 Teoria de Schachter e Singer 255 Teoria cognitiva de Lazarus 257 Expressão e feedback facial da emoção 259 Perspectiva neurológica 259 Modelo de LeDoux 260 Modelo de Damásio 262 Emoção e cognição 266 Emoção e terapia 267 Cognição e congruência emocional 269 Conclusão 270 Conceitos de emoção 270 Perguntas de auto-avaliação 270 Sugestões de leitura © Universidade Aberta 11 7. Personalidade 274 Teorias da personalidade 274 Teorias psicodinâmicas 275 Freud 276 Mecanismos de defesa 277 Erik Erikson 280 Teorias humanistas 280 Carl Rogers 282 Teoria dos tipos e dos traços 282 Tipos de personalidade 283 Traços de personalidade 284 Modelo de Hans Eysenck 286 Modelo de Cattell 287 Modelo dos cinco grandes factores 290 Teorias beavioristas 291 Teorias situacionistas 294 Teorias interaccionistas 296 Teorias e conclusão 297 Instrumentos de medida da personalidade 297 Métodos projectivos 298 Questionários e inventários 301 Avaliação comportamental 301 Origem das diferenças de personalidade 304 Conclusão 305 Conceitos de personalidade 305 Perguntas de auto-avaliação 306 Sugestões de leitura309 8. Referências © Universidade Aberta Página intencionalmente em branco © Universidade Aberta Prefácio © Universidade Aberta Página intencionalmente em branco © Universidade Aberta 15 Os temas e as áreas de investigação psicológica são muito mais vastas do que pode sugerir uma leitura apressada do Índice deste livro de Psicologia Geral. Há já muitos anos que os conhecimentos psicológicos são de natureza enciclopédica, de modo que um livro desta dimensão terá de ser necessariamente uma selecção de temas que pela sua relevância e diversidade possam ser considerados fundamentais em psicologia. Os temas seleccionados estão incluídos nas principais publicações deste tipo e tentam representar um certo equilíbrio em termos da aprendizagem da psicologia entre as dimensões mais cognitivas do comportamento humano com três capítulos sobre Aprendizagem, Memória e Inteligência e os aspectos mais afectivos e emocionais com capítulos sobre Motivação, Emoção e Personalidade. A redacção deste livro foi para mim uma oportunidade e um desafio. Um desafio porque não sendo eu um especialista em algumas das áreas focadas neste livro (na verdade não há ninguém que o seja actualmente em qualquer parte do mundo em psicologia geral) tive necessidade de actualizar conhe- cimentos, ganhando assim a oportunidade de obter uma visão mais actualizada e abrangente da investigação psicológica que se pratica actualmente. Na realidade esta tarefa foi mais delicada do que inicialmente julgara, ao verificar a pouco e pouco que escrever uma obra generalista é mais complexo do que escrever uma obra específica sobre um tema da nossa especialidade. Um livro de autor, ao contrário de um livro organizado por um autor-editor, é um livro que permite desenvolver uma perspectiva. Este livro tem subjacente a perspectiva de que a psicologia é uma ciência empírica e o seu objecto não se reduz ao das ciências afins. A psicologia é uma ciência empírica; não é um enlatado de psicologia popular, senso comum, conselhos da avòzinha e especulação de gabinete sob a forma de sugestões, conselhos e horóscopos para revistas e jornais. A psicologia é uma ciência constituída por modelos e teorias, racionalmente desenvolvidas e empiricamente fundamentadas, cuja natureza condiciona a recolha de dados comportamentais que por sua vez vão apoiar ou desconfirmar os modelos e teorias subjacentes sobre o funcionamento da mente humana. É esta perspectiva que está subjacente às apreciações críticas dos vários modelos e explicações psicológicas descritas ao longo do livro. A psicologia é uma ciência autónoma face à biologia e medicina ou à sociologia e antropologia. Neste livro não há capítulos específicos sobre condicionalismos biológicos e sociais do comportamento humano, embora estas variáveis sejam consideradas e às vezes valorizadas em várias secções desta obra. Apesar dos condicionalismos a que o comportamento humano está sujeito, a psicologia é sobre a psique, a mente, as estruturas e processos mentais que ultimamente são os responsáveis pela tomada de decisões humanas no dia a dia. Os seres humanos têm um passado, uma história de desenvolvimento, uma estrutura © Universidade Aberta 16 mental, valores, planos e projectos futuros. Não estão agrilhoados a cadeias biológicas ou sociais, mesmo quando em certos casos as pessoas parecem agir ou reagir em função das suas pulsões instintivas ou da sua honra familiar. É a mente humana em toda a sua organização e complexidade que avalia a informação que tem ao dispor para dirigir o comportamento. Sou fortemente crítico em relação às orientações psicológicas que desvalorizam os processos cognitivos em detrimento do papel concedido às influências sociais e biológicas. Se a realidade fosse aquilo que defendem certas orientações psicológicas, as cadeias estavam vazias, porque haveria sempre justificações biológicas e sociais atenuantes para os actos humanos. Do mesmo modo ninguém valorizaria o comportamento pacífico e ordeiro da maior parte das pessoas, assim como os prémios e as recompensas pelas realizações humanas brilhantes. Às vezes até parece que uma concepção humana deste tipo apenas é ensinada e discutida nos cursos de filosofia, direito e economia. Por complexos de saber em relação a outras ciências ou mesmo por ignorância, a redução da psicologia, da mente e do comportamento às influências biológicas e sócio-culturais tem tido uma divulgação exagerada e infeliz, mesmo por parte daqueles que deveriam defender mais de perto a especificidade do conhecimento psicológico. A redacção deste livro tem por objectivo dar a conhecer aos estudantes universitários no início da sua formação um conhecimento fundamentado e actual sobre alguns dos temas mais centrais da psicologia. O livro é o resultado de um convite feito pela Universidade Aberta, por intermédio do meu colega e amigo Félix Neto a quem agradeço especialmente, com restrições específicas no que se refere ao formato e extensão da obra. A ordem dos capítulos do livro não é arbitrária e há alguma vantagem na leitura sequencial para efeitos de aprendizagem escolar. Apesar de tudo, creio que o leitor ocasional interessado apenas num ou noutro capítulo específico não será especialmente afectado em termos de compreensão. Todo o esforço foi feito para expor os temas de forma clara e interessante. Se o consegui ou não, a última palavra pertence naturalmente ao leitor. Um agradecimento especial ao Dr. Nuno Gaspar pela leitura das provas tipográficas e pelas correcções sugeridas. Esta obra foi o resultado de cerca de um ano de trabalho intenso. Foi durante este período que faleceu o meu pai, Manuel Pinto. À memória do meu querido pai e à vida e saúde do meu amado filho João, que me causou tantas interrupções e chamadas de atenção com os seus ternos 5 anos, dedico este livro. Porto, 21 de Junho de 2000 amancio@psi.up.pt © Universidade Aberta 1. Psicologia: Introdução Geral © Universidade Aberta Página intencionalmente em branco © Universidade Aberta 19 De psicologia todos sabemos um pouco. Pelo tom da voz, pelo aspecto do rosto, pela posição corporal somos capazes de perceber se o nosso interlocutor está feliz ou triste, nos quer ajudar ou fazer mal. O que o comportamento dos outros revela parece ser uma indicação das intenções ou planos que têm para connosco e dessa percepção e interpretação organizamos os nossos comportamentos e respostas para melhor nos adaptarmos e interagimos com as pessoas e o meio. Em geral somos bem sucedidos nestas tarefas, mas às vezes cometemos erros graves. Escolhemos para amigos pessoas que se vêm a revelar falsas e enganadoras, confiamos o nosso voto a dirigentes corruptos, enamorámo-nos da pessoa errada e divorciámo-nos da pessoa que no fundo nos amava de verdade. Podemos desculparmo-nos destes ou de outros erros dizendo que o comportamento humano é em grande parte um mistério, mas rapidamente nos damos conta de que o nosso comportamento não deixa de ser menos misterioso. Assim porque é que esta manhã acordei tão bem disposto e agora à tarde estou tão irritadiço, porque é que ainda não cumpri as intenções do Ano Novo de fazer ginástica, deixar de fumar, estudar mais ou tentar um melhor relacionamento com a família? O conhecimento psicológico que possuímos sobre nós e os outros parece ser paradoxal. Por um lado, temos algum conhecimento de psicologia ao conseguirmos adaptarmo-nos às pessoas e ao meio apesar das adversidades, de contrário a espécie humana teria já sido extinta. Mas, por outro, damo-nos conta rapidamente de que o conhecimento que possuímos é tão escasso e limitado que é uma sorte termos chegado onde chegámos. 1.1 Definição e âmbito da psicologia A psicologia é o estudo científico do comportamento e da mente em termos de organização e diversidade. A função da psicologia é constituir um corpo coerente de enunciados, empiricamentefundamentados, de forma a explicar o comportamento e a organização mental das pessoas e proporcionar previsões correctas. A psicologia é uma ciência que tem por objectivo descobrir leis e regularidades entre fenómenos de modo semelhante às ciências físicas e biológicas. A psicologia é ainda uma ciência, porque formula modelos e teorias consistentes para compreender, explicar e prever os fenómenos humanos e depois avalia, modifica, retém ou abandona tais modelos explicativos se não forem capazes de resistir às provas empíricas, à replicação dos resultados e ao escrutínio dos especialistas, ao contrário da psicologia popular e do senso comum que apresentam um corpo de saberes praticamente imutável ao longo de gerações. © Universidade Aberta 20 A psicologia científica e a psicologia popular podem ter alguns aspectos comuns em termos de conteúdo, mas são saberes de natureza diferente em termos de pesquisa de dados, organização do saber, previsão e controlo da acção. O saber não-científico de natureza popular, que se reclama de psicologia, é contraditório nas suas afirmações, não tem consistência interna, as fronteiras do saber são obscuras e indefinidas, as circunstâncias da sua aplicação são vagas e confusas, e falta-lhe precisão na capacidade preditiva. Nesta pers- pectiva, a psicologia científica tem uma especificidade própria e não precisa de se preocupar em servir de contraponto à psicologia popular e ao senso comum (e.g., Pinto, 1999). Qual é o âmbito da psicologia científica? Como antes foi dito, a psicologia é o estudo científico do comportamento, das funções da mente e da sua organização mental. O objecto da psicologia é analisado sob diferentes perspectivas com o objectivo de se vir a obter um dia uma perspectiva integradora. Estas perspectivas são a biológica, a comportamental, a cognitiva, a sócio-cultural, a psicanalítica e a fenomenológica. Como exemplo das diferentes perspectivas de investigação psicológica na análise do comportamento humano, considere- -se a investigação sobre o comportamento de ira ou cólera. Na perspectiva biológica, a ira pode ser analisada a partir da activação de certos circuitos neuronais do cérebro, lesões cerebrais provocadas pelo parto, alterações cromossomáticas ou genéticas e da presença ou ausência de certo nível hormonal no organismo. Na perspectiva comportamental, a ira pode ser analisada a partir dos gestos e expressões faciais produzidos, do rubor da face e dos estímulos externos que precederam e acompanham a manifestação da ira. Na perspectiva cognitiva, a ira pode ser analisada a partir das experiências passadas vividas, do modo como um indivíduo as organiza, representa e manifesta, e ainda do modo como tais vivências afectam a maneira de pensar e raciocinar em situações específicas. Na perspectiva sócio-cultural, a ira pode ser analisada a partir da pertença a certos grupos sociais, meios residenciais ou ainda em contextos em que há ou não um público presente. Os acessos de ira são raros na ausência de público. Na perspectiva psicanalítica, a ira pode ser analisada a partir de conflitos parentais não resolvidos na infância, de traumatismos de natureza sexual que foram depois reprimidos pela pessoa para evitar a ansiedade daí resultante, podendo no entanto irromper de forma inesperada e abrupta. Na perspectiva fenomenológica, a ira tende a ser analisada a partir da história de vida de uma pessoa, tendo em conta os ultrajes e afrontas vividos e sofridos, da imagem que se tem de si próprio e do controlo que se julga ter sobre as situações. © Universidade Aberta 21 A ira está associada a guerras, violência e agressões entre pessoas, grupos e nações. É um fenómeno que foi estudado desde a antiguidade clássica por filósofos como Aristóteles na “Ética a Nicómaco” e Séneca em “De Ira”. A ira é um fenómeno comportamental e social de enorme complexidade, cuja análise, compreensão e explicação científica constituiria um avanço considerável para o saber psicológico. Quer em relação a este, quer a outros fenómenos psico- lógicos, a psicologia fez já bastantes progressos, mas ainda há um longo caminho a percorrer em termos de formulação de teorias integradoras das diversas perspectivas de análise. 1.2 Marcos da História da Psicologia Nos dias de hoje a psicologia é um ramo do saber bastante popular e um dos cursos universitários mais escolhido pelos estudantes nos países desenvolvidos. É uma ciência que aparece no entanto para muitos estudantes como sendo um produto americano ou anglo-saxónico, tal é o número de referências biblio- gráficas atribuídas a investigadores destes países nos dias de hoje. No entanto a psicologia, cientificamente falando, é uma construção cultural europeia. Surgiu e desenvolveu-se na Europa, onde se verificaram nos finais do séc. XIX e na primeira metade do séc. XX algumas contribuições notáveis por parte de muitas figuras da história da psicologia, das quais destaco a seguir as mais importantes. Na Alemanha, Wundt (1832-1920) fundou em 1879 o primeiro laboratório de psicologia experimental, possibilitando a autonomização da psicologia como ciência; Ebbinghaus (1850-1909) realizou importantes estudos experimentais sobre memória e esquecimento. Na Áustria, Freud (1856-1939) atribuiu ao inconsciente um papel fundamental na origem das desordens do compor- tamento e propôs a psicanálise como método de tratamento. Na Rússia, Pavlov (1849-1936) fez importantes descobertas no domínio do condicionamento com aplicação ao estudo da aprendizagem. Na Inglaterra, Galton (1822-1911) investigou e desenvolveu o importante tema das diferenças individuais. Em França, Binet (1857-1911) elaborou uma escala de medida da actividade intelectual, cujos desenvolvimentos e ramificações posteriores, influenciaram a psicologia aplicada ao longo do século XX. Na Suíça, Piaget (1896-1980) fez descobertas notáveis no domínio do desenvolvimento intelectual da criança e do adolescente. Outros psicólogos e investigadores europeus notáveis poderiam ainda ser referidos, mas tal será feito ao longo dos capítulos do presente livro. Ebbinghaus afirmou que a psicologia tinha um longo passado, mas uma curta história. De facto, o passado da psicologia remonta a algumas questões já © Universidade Aberta 22 reflectidas e pensadas pelos filósofos gregos na antiguidade como o problema da relação entre mente e o corpo, o problema da consciência, o livre arbítrio e a percepção da realidade. Por sua vez, a história da psicologia é mais recente e oficialmente remonta a 1879 com a criação do primeiro laboratório de psicologia experimental por Wundt na cidade de Leipzig na Alemanha. Wundt definiu a psicologia como a ciência da consciência e propôs a intros- pecção como método de estudo da experiência imediata. Muito do trabalho realizado no laboratório de Wundt foi sobre sensação, percepção e tempos de reacção. Num estudo sensorial, uma pessoa provava um alimento, por exemplo, e depois esta experiência imediata era analisada através da introspecção em elementos simples, como o sabor amargo, doce ou ácido presente na consciência. À maneira do químico, a psicologia partia depois para a síntese dos elementos em compostos e para o estabelecimento de leis e princípios que governavam estes compostos e estruturas psicológicas. Assim a psicologia de Wundt e do seu discípulo americano Titchener (1867-1927) ficou a ser conhecida por psicologia estruturalista. No início do séc. XX a introspecção foi fortemente contestada, enquanto método de observação dos próprios estados da cons- ciência, devido em grande parte ao facto dos dados obtidos por introspecção divergirem bastante entre si, mesmo quando obtidos por observadores treinados. Por volta da segunda e terceira décadas do séc. XX, um grupo de psicólogos alemães, nomeadamente Wertheimer, Köhler e Koffka, questionaram a conclusão dos estruturalistas de que a experiência imediataera elementar e defenderam a posição de que os fenómenos perceptivos eram antes percebidos imediatamente no seu todo (em alemão gestalt) em vez de serem percebidos nos seus elementos constituintes. Este sistema de investigação ficou conhecido por psicologia da forma ou gestaltismo. Os gestaltistas propuseram ainda que o todo era mais do que a soma das suas partes. Este enunciado pode ser melhor entendido, se se olhar para uma série de pontos, onde é possível perceber às vezes linhas, círculos ou outras figuras geométricas, conforme o conhecimento e a atitude da pessoa, em vez de se perceber pontos meramente isolados entre si e carecidos de qualquer organização perceptiva. Paralelamente nos EUA no princípio do séc XX surgiu o beaviorismo, uma perspectiva radicalmente diferente das perspectivas psicológicas europeias da época, proposta por John Watson (1878-1958) num célebre artigo publicado em 1913 com o título “A psicologia vista por um beaviorista” (Watson, 1913). Para o aparecimento do beaviorismo muito contribuíram os estudos pioneiros do americano Thorndike (1874-1949) e do russo Pavlov sobre aprendizagem animal, ao introduzirem um tipo de investigação experimental que apresentava © Universidade Aberta 23 maior rigor e objectividade na obtenção de dados e revelava grandes similaridades com os métodos usados nas ciências naturais da época. O beaviorismo de Watson rejeitava qualquer recurso à instrospecção e pretendia reduzir a psicologia a uma ciência natural que tinha por objecto apenas e somente o comportamento observável, excluindo do seu âmbito a consciência e os processos mentais que aí tinham lugar, como a atenção, a memória, a inteligência e a vontade. Segundo Watson (1913), a consciência era um fenómeno privado. Só o comportamento da pessoa era uma resposta pública que podia ser observada por outra qualquer pessoa. A ciência analisa dados e fenómenos públicos e observáveis como o comportamento de uma pessoa numa situação. A ciência não se interessa por fenómenos privados, estados de consciência, cujo acesso só é possível através da introspecção. Watson e os beavioristas posteriores como Skinner (1904-1990) concentraram- -se apenas na investigação do comportamento observável, fixando-o numa cadeia que se iniciava com um estímulo (E) e terminava com a resposta (R) produzida, dando origem à expressão psicologia do E-R. A maior parte deste tipo de estudos foi realizado com animais, nomeadamente, ratos, pombos, cães e macacos. De acordo com os beavioristas mais radicais, entre o (E) e a (R) há como que um vazio, ou uma caixa-negra. Se há ou não há consciência, atenção e memória para atender, registar e recordar os estímulos, são temas que não interessam. O que interessa é apenas e somente a resposta do organismo a um estímulo ou situação. O beaviorismo e o uso que fez do modelo animal na investigação psicológica propagou-se rapidamente pelas escolas de psicologia americana, tendo domi- nado a maior parte da psicologia que se produziu nos EUA na primeira metade do séc. XX. Na Europa da primeira metade do séc. XX, o beaviorismo teve uma influência mínima e circunstancial. Havia a desconfiança no dizer de Marx e Hillix (1973) de que “a soma de informação gerada pelos quilómetros percorridos pelo rato [no labirinto ou gaiolas de investigação] durante os últimos 50 anos não era grande”. Embora esta desconfiança fosse exagerada, os estudos de psicologia realizados na Europa até à década de 60 raramente faziam uso do modelo animal, concentrando-se antes em problemas humanos. Em Inglaterra, os problemas de investigação psicológica relacionavam-se com a memória, a cognição e o papel dos factores humanos como a atenção na interacção homem-máquina (Bartlett e Broadbent), assim como o estudo psicológico das diferenças individuais, da inteligência e da personalidade (Spearman, Burt, Hans Eysenck). Na França, os problemas diziam respeito à relação entre cérebro e pensamento (Piéron) e na Bélgica à percepção da causalidade (Michotte) e motivação (Nuttin). Na Suíça, os temas foram a © Universidade Aberta 24 memória e as desordens de reconhecimento mnésico (Claparède) e o desenvolvimento intelectual da criança (Piaget). A psicologia da personalidade e o seu desenvolvimento na perspectiva de Freud e do movimento psicanalítico teve também uma aceitação bastante generalizada na Europa deste período. Neste período, em Portugal, a investigação psicológica foi praticamente inexistente, apesar dos esforços pioneiros de Alves dos Santos que em 1913 fundou o primeiro laboratório de psicologia experimental em Portugal na Universidade de Coimbra e de Sílvio Lima que em 1928 publicou uma tese notável de doutoramento no domínio da memória humana e do reconhecimento sob a direcção do suíço Claparède. Em meados do séc. XX, a explicação beaviorista do comportamento passou a ser objecto de contestação crescente e vigorosa. Algumas das críticas vieram do interior do sistema beaviorista, como as objecções feitas por Tolman (1886- 1959) ao introduzir variáveis cognitivas, como expectativas e mapas cognitivos, na explicação da aprendizagem dos ratos em labirintos. Outras críticas foram feitas por jovens investigadores, como o psicolinguista Chomsky (1959) que tentou provar com grande eficácia que a maior parte dos dados sobre a linguagem não podia ser explicada e compreendida em termos de associação entre estímulo e resposta (E-R), como propunham os beavioristas. A visão simplista do ser humano, que o beaviorismo pressupõe, foi substancialmente refutada por George Miller et al. (1960) no influente livro Planos e Estrutura do Comportamento onde defenderam que o ser humano é um processador e um intérprete activo do seu meio ambiente, respondendo em função da própria experiência que tem do meio, em vez de reagir de forma mecânica e irreflectida. As pessoas, longe de serem meros figurantes passivos que reagem ao meio, são antes vistas como organismos activos que no comportamento do dia a dia usam planos, estratégias e regras de acção. Esta nova perspectiva veio a ser cunhada de psicologia cognitiva por Neisser (1967) no livro com o mesmo título, onde define a psicologia cognitiva como “o estudo dos processos pelos quais uma pessoa capta, retém, manipula e recupera a informação”. Os temas que organizam os capítulos deste livro de Neisser foram os temas ignorados pelos beavioristas, como a atenção, a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento. A importância central dos processos cognitivos em relação ao comportamento foi-se desenvolvendo nos anos seguintes a ponto de Chomsky numa entrevista dada em 1986 afirmar que “a psicologia não é a ciência do comportamento, mas antes o estudo da mente, da organização mental e das estruturas mentais, servindo-se dos comportamentos enquanto dados de estudo” (Baars, 1986, p. 347). Os cognitivistas não são necessariamente anti-beavioristas, como às vezes se ouve ou lê, antes consideram o beaviorismo um sistema incompleto em termos de explicação do comportamento. O comportamento não pode ser explicado © Universidade Aberta 25 apenas através das suas características métricas mais salientes, como a frequência, intensidade ou robustez da resposta. A explicação do compor- tamento tem de ter em conta as explicações ao nível dos processos e represen- tações mentais da pessoa, crenças e intenções. Sem a perspectiva cognitiva em psicologia não seria possível caracterizar e explicar satisfatoriamente os processos mentais como o reconhecimento e a recor- dação, a atenção, a linguagem, o pensamento, o raciocínio e a tomada de decisões. Para melhor se perceber este aspecto, Chomsky propôs uma analogia com a ciência física. Se a física não é a leitura métrica dos fenómenos, mas antes a compreensão e explicação das forças da matéria, assim também a psicologia não é a leitura métrica do comportamento, mas antes a compreensão das estru- turas eprocessos mentais que afectam o comportamento (in Baars, 1986, p. 347). Desde a década de 60 até ao presente, a psicologia cognitiva alargou progres- sivamente a sua influência a todos os ramos e actividades da psicologia, de modo que se pode dizer que poucos são hoje os investigadores que não se consideram cognitivistas, pelo menos em sentido lato. Em contraste, a influência do beaviorismo foi diminuindo progressivamente ao longo dos últimos 30 anos. Segundo Robins et al. (1999) o equilíbrio entre estes dois sistemas, em termos de publicações próprias e importância explicativa, terá sido atingido durante a década de 70, altura onde se terá verificado um cruzamento da função ascendente da perspectiva cognitiva com a função descendente da perspectiva beaviorista. Robins et al. (1999) analisaram ainda a influência da psicanálise e das neuro- ciências na literatura psicológica e concluíram existir, no que se refere à psica- nálise uma influência diminuta mas constante ao longo dos últimos 30 anos; no que se refere às neurociências, houve um aumento progressivo ascendente nas últimas duas décadas, mas bastante aquém do que se poderia pensar, tendo em conta a popularidade existente em certos círculos académicos. 1.3 Psicologia e ciências afins A psicologia não é a única ciência a estudar o comportamento humano e animal, nem o cérebro e a mente, o que torna confuso para muita gente perceber quais as áreas de investigação psicológica e as práticas de intervenção. A psicologia apresenta similaridades com outras ciências afins, nomeadamente a sociologia, antropologia e biologia, cujas relações são referidas a seguir. A sociologia estuda o comportamento de grupos de pessoas em larga escala, nomeadamente sociedades, culturas e sub-culturas. A antropologia estuda a espécie humana e o modo como esta forma comunidades, sociedades e nações, © Universidade Aberta 26 e como evoluiu ao longo dos tempos em termos somáticos, raciais, étnicos e geográficos. A biologia estuda a origem, o desenvolvimento, as funções, as estruturas e a reprodução dos organismos vivos. A psicologia estuda o comportamento de animais e pessoas, individualmente ou em pequenos grupos. Estuda ainda a organização mental da pessoa, as suas estruturas e funções e o modo como estas afectam o comportamento. Em termos metodológicos, a sociologia usa mais frequentemente métodos observacionais e correlacionais; a antropologia cultural aplica métodos qualitativos e descritivos; a biologia e a psicologia utilizam além destes ainda o método experimental. Psiquiatria e psicologia, nomeadamente a psicologia clínica, são por vezes confundidas pelo público em termos de áreas de intervenção, na medida em que ambas as especialidades diagnosticam e tratam problemas comportamentais e desordens mentais. Mas estas profissões diferem em pontos importantes. A psiquiatria é uma especialidade médica, estuda o comportamento dito anormal, como as desordens comportamentais e mentais e os profissionais estão auto- rizados a receitar medicamentos para efeitos de tratamento. A psicologia clínica é uma especialidade obtida numa licenciatura e pós-graduação em psicologia, e em princípio estuda, diagnostica e orienta terapias psicológicas específicas em todos os tipos de problemas de comportamento, dito normal ou anormal. Em termos práticos, a diferença mais nítida entre psicologia e as outras especialidades afins é a obtenção de um grau superior a nível universitário e a pertença a uma sociedade científica que torne credível o grau académico obtido. Houve no entanto algumas excepções notáveis no passado. No estudo dos problemas psicológicos houve investigadores brilhantes que não possuíam qualquer grau académico ou pertenciam a qualquer sociedade psicológica. Os pais fundadores da psicologia nos finais do séc. XIX foram filósofos, fisiologistas e físicos, como William James, Wundt e Fechner, cujas contribuições constituiram um avanço notável para a ciência psicológica. No século XX houve ainda fisiologistas como Pavlov, prémio Nobel da medicina em 1904, que marcou profundamente a psicologia da aprendizagem; médicos como Freud que propôs um modelo de organização mental e um tipo de tratamento das desordens mentais que influenciou toda a prática de intervenção psicológica; biólogos e epistemólogos como Jean Piaget, que renovou radicalmente a psicologia do desenvolvimento; economistas como Herbert Simon (n. 1916), prémio Nobel da economia em 1978, que contribuiu de forma marcante para a psicologia cognitiva; grandes analistas e humanistas como Erik Erikson (1902-1994) que nem sequer tinha um grau universitário e no entanto repôs o desenvolvimento da personalidade numa nova perspectiva. Daqui se conclui que ao longo do séc XX, o conhecimento psicológico avançou imenso com a contribuição das investigações realizadas em ciências afins à © Universidade Aberta 27 psicologia. Tudo leva a crer que no séc. XXI os temas, os problemas e os procedimentos de investigação psicológica continuem a ser arejados e renovados não só com o esforço e a criatividade dos estudantes de psicologia, mas também com as contribuições e o saber dos estudantes das ciências afins. 1.4 Métodos psicológicos Método refere-se a procedimentos ou técnicas específicas para recolha e análise de dados. A investigação científica não implica um único método ou abordagem de estudo, porque os métodos de investigação variam de problema para problema e de disciplina para disciplina. Para responder cabalmente a uma questão pode haver procedimentos científicos mais apropriados do que outros e a resposta dada está limitada pela natureza do método seguido. No entanto fazer investigação científica significa muitas vezes usar métodos quantitativos e estes métodos incluem de uma maneira geral a observação sistemática, um controlo experimental exigente, instrumentos de medida e recolha de dados fieis e precisos, a aleatoriedade das amostras de sujeitos e uma análise estatística rigorosa (e.g., Pinto, 1990). Os métodos psicológicos de recolha de dados mais usados são a observação naturalista, o estudo de casos, os questionários, o método correlacional, o método dos testes, o método diferencial e o método experimental. Uma descrição abreviada de cada um destes métodos será apresentada a seguir. 1.4.1 Observação naturalista A observação naturalista é um dos métodos mais antigos e refere-se à recolha atenta e cuidada de dados de animais e pessoas no seu ambiente natural. A observação é realizada de modo flexível de forma a tirar partido, não só de todos os comportamentos sob observação, mas também de acontecimentos inesperados, que eventualmente possam ocorrer. Os comportamentos sob observação não estão limitados a quaisquer restrições humanas de movimento e acção e tanto podem ser o comportamento de nidificação e reprodução de uma ave rara, como o comportamento competitivo e agressivo dos rapazes no recreio da escola, ou o comportamento dos condutores de automóvel no meio de um engarrafamento matinal de trânsito. Margaret Mead (1901-1978) foi uma das primeiras investigadoras a aplicar o método da observação naturalista ao estudo do comportamento humano. Esta antropóloga viveu durante algum tempo no meio de uma tribo asiática, observando e registando várias informações sobre o comportamento do dia a © Universidade Aberta 28 dia dos membros da tribo e tirando ilações sobre o sistema de organização social, distribuição do poder, divisão do trabalho, sistema de parentesco e valores culturais e religiosos. Os métodos naturalísticos têm sido também usados em psicologia para estudar o comportamento humano em diversas situações. Algumas das observações mais frequentemente efectuadas em psicologia foram o estudo do comportamento social das crianças na sala de aula ou no recreio, o comportamento dos condutores em cruzamentos, estradas e em situações de engarrafamentode trânsito, manifestações de violência em locais desportivos, o impacto psicológico e social causado nas populações por desastres naturais ou industriais, o comportamento de fumar em locais proibidos, entre outros. 1.4.1.1 Estudo de casos O estudo de casos refere-se à descrição detalhada de um único indivíduo em termos de passado e história, usando às vezes a entrevista, efectuando avaliações ou aplicando testes e discutindo os resultados. É um método muito usado em psiquiatria, em psicologia clínica e em neuropsicologia. Freud foi talvez o investigador que inicialmente mais contribuiu para o uso e divulgação deste método. Um exemplo de estudo de casos foi a análise efectuada por Freud em 1909 de uma fobia num rapaz de 5 anos, de nome Hans (Freud, 1909/1955). Mais recentemente, o russo Luria e o inglês Oliver Sacks descreveram alguns casos famosos usando também o método dos casos. Luria (1968) descreveu o caso de S., um homem com uma memória excepcional e Sacks (1990) referiu o caso de um paciente com um problema neurológico grave que o levava a confundir a mulher por um chapéu. Em geral são relatos verídicos e fundamentados, normalmente muito expressivos e de leitura estimulante, sobre aspectos específicos do comportamento de uma pessoa. O estudo de casos tem sido considerado como o menos científico de todos os métodos empíricos usados pelos psicólogos. A justificação apresentada refere que este tipo de método envolve apenas o caso específico de uma pessoa que é única e não pode ser reproduzido; interpreta o comportamento sob uma certa perspectiva teórica; implica em muitos casos uma relação de tipo terapêutico, que pela sua natureza de ajuda dificilmente pode ser objectiva em termos de análise. Há estudo de casos em que a análise é meramente qualitativa sem qualquer tipo de medição ou análise estatística como no caso de Freud ou Sacks. Noutros estudos, como o de Luria, foram feitos registos e medições de natureza quantitativa para se saber até que medida a memória era ou não excepcional em relação a casos considerados normais e estabelecido algum controlo sobre certas variáveis. © Universidade Aberta 29 1.4.1.2 Questionários Os questionários são formados por um conjunto de perguntas planeadas sobre um certo tema para serem administradas a um grande número de pessoas a fim de se obter informação sobre atitudes, opiniões e comportamentos. Um exemplo destes é o questionário de metamemória de Zelinski et. al. (1980). Estes investi- gadores estudaram a frequência do esquecimento e a qualidade de recordação em várias situações do dia a dia, como a memória para nomes, faces, encontros, entrevistas, datas, tarefas, direcções e números de telefone, entre outros aspectos. Os questionários têm a vantagem de permitir recolher muita informação em pouco tempo de um grande número de pessoas, mas têm grandes limitações. O investigador parte do pressuposto de que os participantes respondem honestamente a todas as perguntas. Se é possível que a maioria das pessoas o faça, é preciso contar também com a eventualidade de um pequeno número não ser assim tão franco e honesto. Sondagens efectuadas à boca das urnas, depois da votação sobre a escolha política ter sido efectuada, revelaram discrepâncias significativas entre os resultados oficiais da eleição e os resultados da sondagem e cuja explicação pode ser em parte devida à ocultação da verdade por parte dos eleitores. Os questionários estão ainda sujeitos a limitações resultantes do contexto em que são administrados, do sexo do entrevistador e do modo como este obtém a cooperação do entrevistado e formula as perguntas. Mesmo que estes factores sejam devidamente controlados resta ainda a eventualidade do problema em estudo estar sujeito a variações cíclicas ou passageiras, como acontece provavel- mente com o caso dos comportamentos sexuais ou de atitudes face ao aborto, pena de morte, imigração e racismo, restringindo assim temporalmente as conclusões obtidas. Os questionários estão ainda sujeitos a um problema que é comum a toda a investigação psicológica: Será que as avaliações feitas são fieis, isto é consis- tentes, e válidas, isto é precisas? No caso dos questionários de meta-memória, o grau de fidelidade é elevado, quando expresso pelo grau de correlação das avaliações do mesmo instrumento efectuadas entre dois momentos distanciados no tempo, mas apresentam um grau de validade reduzido, quando as avaliações são comparados com provas objectivas de memória a curto prazo (memória de números) ou a longo prazo (evocação de listas de palavras). 1.4.2 Método correlacional Os estudos correlacionais ultrapassam a simples fase de contagem e descrição de dados e representam um nível superior de conhecimento face à observação © Universidade Aberta 30 naturalista e ao estudo de casos. Quando um investigador observa que os pais com mais livros em casa têm filhos com melhor rendimento escolar, que as crianças que vêem mais horas de televisão são mais violentas e agressivas, ou que o grau de poluição industrial está relacionado com o declínio cognitivo, e for ainda capaz de efectuar medições quantitativas precisas de cada variável, então o investigador fica em condições de determinar qual o grau de relação e de direcção entre as variáveis observadas. Os estudos correlacionais têm por objectivo determinar uma relação entre duas ou mais variáveis e esta relação pode ser positiva, negativa ou inexistente. O tipo de relação é determinado a partir de uma análise estatística, o teste de correlação. Os valores de correlação variam entre -1 a +1. Quanto mais as variáveis estiverem relacionadas entre si, tanto mais o coeficiente de correlação se aproxima de +1 ou de -1. Se a relação for nula, o coeficiente de correlação aproxima-se do zero. O coeficiente de correlação descreve de forma precisa e quantitativa o grau de relação verificada entre duas variáveis. A direcção do relacionamento é dada pelo tipo de sinal positivo ou negativo que acompanha o coeficiente. Um sinal positivo significa que os valores da grandeza de uma variável estão positiva- mente relacionados de forma linear com os valores da outra variável e um sinal negativo significa que o relacionamento dos valores das duas variáveis é linearmente negativo. O coeficiente de correlação traduz a força da ligação linear entre duas variáveis. Quando a ligação entre variáveis não é linear mas curvilínea, o coeficiente de correlação pode estar próximo do zero, mas mesmo assim existir uma relação forte entre duas variáveis. O teste estatístico para medir tal relação é que terá de ser outro. O método correlacional é útil no domínio da psicometria, tendo sido possível determinar satisfatoriamente os traços comuns de um determinado estilo de personalidade (por ex., a introversão ou a extroversão) ou de uma habilidade cognitiva (por ex., o raciocínio espacial ou fluência verbal). O método correlacional é ainda usado com frequência em psicologia na determinação dos índices de fidelidade (isto é, a consistência entre várias aplicações do mesmo teste) e de validade (isto é, a medição adequada daquilo a que o teste se destina) dos questionários e testes de inteligência e de personalidade. O método de correlação tem todavia limitações, a maior das quais é a incapa- cidade de se estabelecer uma relação causal entre variáveis que apresentam um coeficiente de correlação elevado. Neste caso pode-se suspeitar da presença de alguns factores causais comuns, mas não é possível afirmar que uma variável é a causa de outra. Esta dificuldade pode ser ilustrada a partir de uma ocorrência grave verificada na década de 80 em Itália onde se registaram uma série de mortes sem haver uma explicação clara. No entanto as mortes estavam © Universidade Aberta 31 significativamente relacionadas com o consumo de azeite, o que levou o governo a concluir que o azeite vendido era tóxico. No entantoestudos mais aprofundados indicaram que a causa das mortes tinha sido a ingestão de tomates contaminados com pesticidas e comidos em saladas temperadas com azeite. Numa outra situação verificou-se que o coeficiente de correlação entre o tempo de estudo e o desempenho escolar universitário era baixo e negativo (-0.10). Se o coeficiente fosse interpretado em termos causais, então a conclusão óbvia seria deixar de estudar para se obter um bom desempenho académico! Uma leviandade que nenhum estudante responsável seguirá. Então porque é que o coeficiente de correlação foi tão baixo e negativo? Possivelmente porque muitos alunos tentam compensar através de um maior tempo de estudo algumas das limitações que têm à partida em termos de preparação académica ou de recursos cognitivos. Outros estudantes, que se consideram melhor preparados à partida, usam métodos de estudo mais eficazes, ou fazem uma gestão mais económica do tempo de estudo. Estes dois exemplos, entre muitos outros, mostram que um coeficiente de correlação significativo não prova que uma variável é a causa de outra, antes indica que as variações no valor de uma variável prevêem até certo ponto variações noutra variável. A determinação da causa de um fenómeno só é possível a partir de uma investigação experimental. 1.4.3 Método dos testes Para ser valorizada ou denegrida, a psicologia é muitas vezes associada aos testes psicológicos. Os testes constituem a única indústria que a psicologia produziu até hoje e estão sujeitos a controvérsias cíclicas. Os testes são porém métodos objectivos de observação e medida de variáveis. Os testes são constituídos por tarefas uniformes administradas individualmente ou em grupo com o objectivo de medir uma ou mais variáveis ou construtos teóricos. Os testes são instrumentos que permitem obter facilmente um grande número de dados sobre as pessoas, sem lhes provocar transtornos de maior em termos de rotina diária ou exigir meios complexos de aplicação como acontece por vezes a nível laboratorial. Historicamente a expressão teste mental surgiu num artigo publicado pelo americano Cattell em 1890, que juntamente com o inglês Galton e o francês Binet são considerados os pioneiros da avaliação mental e psicológica. Em 1905, Binet e Simon publicaram uma escala de inteligência, um instrumento elaborado a pedido do Ministério da Instrução francês a fim de permitir detectar deficiências intelectuais em crianças de idade escolar. A função básica dos © Universidade Aberta 32 testes era medir diferenças entre indivíduos de forma a permitir uma classi- ficação de natureza mental e comportamental. Em psicologia há centenas de testes, escalas e medidas que podem dividir-se em vários grupos: Testes de aptidão e inteligência; testes de realização; medidas de personalidade e escalas de valores e atitudes. Através de testes elaborados para o efeito podem ser analisadas variáveis de comportamento, como a ansiedade ou o autoritarismo; a inteligência geral ou aptidões específicas, como a fluência verbal ou o raciocínio espacial; realização escolar, como o nível da leitura ou de aritmética; atitudes, como as crenças e predisposições face à religião, grupos étnicos ou o aborto. Os testes são importantes instrumentos de medida em psicologia, principalmente após terem sido normalizados e aplicados a amostras representativas. A cons- trução e normalização de um teste é uma tarefa muitas vezes longa e complexa em termos de preparação dos itens do teste, aplicação a amostras representativas, aferição e normalização, sendo a descrição das respectivas fases e procedi- mentos objecto de uma literatura bastante especializada. Desde o começo do século XX, os testes psicológicos são uma área importante da psicologia com aplicações ao nível da selecção e classificação escolar, militar, profissional e organizacional. Porém a importância dos testes não se limita apenas à psicologia aplicada, tendo ainda um papel importante ao nível da investigação. Assim os testes podem esclarecer, quer na medição das diferenças individuais ou nas diferenças de grupo, qual o nível de desenvolvimento intelectual de uma criança desde a infância até à adolescência, ou o eventual declínio cognitivo de uma pessoa durante a vida adulta. Os testes são ainda um meio indispensável para ajudar a esclarecer diferenças de grupo em função de variáveis como a instrução ou o meio sócio-cultural. Quando um investigador pretende saber se um programa de instrução aplicado a um grupo de alunos é melhor do que outro programa alternativo, precisa de estabelecer uma equivalência entre os participantes dos dois grupos em diversas variáveis cognitivas, nomeadamente ao nível da inteligência. Ora o grau de inteligência determina-se com a aplicação de um teste. 1.4.4 Método diferencial O método diferencial tem por objectivo investigar o desempenho de dois ou mais grupos que se distinguem na base de uma variável pre-existente, seja o género, a idade, os anos de escolaridade ou um traço de personalidade como a ansiedade. © Universidade Aberta 33 Um exemplo de estudo diferencial é a análise dos resultados de uma prova de memória entre dois grupos, um do género masculino e outro do género femi- nino. O género é a variável independente, isto é, a variável responsável pela definição dos grupos. O desempenho de memória registado é a variável dependente. Um problema com o método diferencial é a dificuldade de controlo das variáveis que concorrem com a variável independente. No exemplo anterior, os grupos podem diferir na base de outras variáveis para além do género, a variável independente medida. Se os grupos diferem à partida numa determinada variável, como o género, é muito provável que também se diferenciem noutras variáveis que possam afectar os resultados, como a idade, o número de anos de escolaridade, o raciocínio, o estilo cognitivo, entre outras. Nesta situação a obtenção de diferenças de memória entre o género masculino e feminino seria um resultado artificioso. Na investigação diferencial, as diferenças entre os grupos pré-existem ao início da investigação propriamente dita. Assim a variável independente não é mani- pulada pelo investigador como na investigação experimental, mas apenas medida. Sendo a variável independente apenas medida e não manipulada não é possível ir além do grau e direcção de relacionamento das variáveis estudadas, isto é, do grau de correlação registado. Este método torna a investigação dife- rencial muitas vezes mais difícil de interpretar do que a investigação experimen- tal, pois não é possível usar os controlos típicos da investigação experimental. Na investigação experimental, a distribuição aleatória dos sujeitos pelos diferentes grupos proporciona uma equivalência inicial dos grupos em todas as variáveis (teoricamente falando) que concorrem com a variável independente. Neste sentido a investigação diferencial é, em termos de explicação, concep- tualmente semelhante à investigação correlacional. A investigação diferencial substitui por vezes a investigação experimental, como acontece na área da educação. Em educação não é viável distribuir aleatoriamente os estudantes de uma escola, metade pelo método X e a outra metade pelo método Y para se verificar se um método é melhor ou pior do que outro. Se se quiser comparar os efeitos de dois métodos de instrução é habitual comparar duas escolas que adoptaram tais métodos de ensino, e depois esperar que os estudantes que as frequentam sejam equiparáveis nas variáveis mais relevantes, exercendo-se todo o controlo possível ao nível da equivalência de tais variáveis. O método de ensino é a variável independente que diferenciava as escolas e é responsável pela definição dos grupos que existiam antes da experiência começar; os resultados escolares finais dos alunos de cada escola são a variável dependente. © Universidade Aberta 34 1.4.5 Métodoexperimental A investigação experimental tem um papel crucial na investigação científica. O método experimental é considerado o único método científico em que é possível estabelecer-se uma relação de causalidade entre duas ou mais variáveis ou fenómenos. A análise dos fenómenos por meio de uma experiência é a aspiração de muitos cientistas. Caixa 1.1 Um Estudo Experimental Quer a partir da simples observação da relação mãe-bebé, quer a partir do modelo teórico de Freud sobre o desenvolvimento das crianças, é possível formular a hipótese de que a alimentação é o factor crucial no desenvolvimento da ligação afectiva entre a mãe e a criança. Mas será de facto o factor alimentação? Não será antes o contacto corporal que a mãe estabelece com a criança durante a amamentação? Harlow (1959) tentou investigar esta hipótese através de uma experiência científica realizada com oito macacos recém- nascidos. Harlow produziu dois modelos de “mães substitutas”, um modelo em que o corpo do animal era formado por uma estrutura de arame, cabeça de madeira e rosto meio tosco e um outro modelo em que uma estrutura semelhante era revestida de tecido aveludado. Os oito macacos foram colocados em gaiolas individuais com acesso igual às “mães substitutas”, recebendo metade deles o leite da “mãe de arame” e a outra metade da “mãe de veludo”, em ambos os casos através do bico de um biberão, parcialmente escondido no corpo de cada modelo. Durante o período de observação, os macacos beberam uma quantidade de leite equivalente e obtiveram um peso semelhante, no entanto passaram a maior parte do tempo agarrados ao modelo de veludo, independentemente de terem sido ou não alimentados por este modelo. Este estudo desconfirmou a hipótese da importância da alimentação no desenvolvimento da ligação afectiva em favor da importância do contacto corporal. Na sequência deste projecto, Harlow verificou ainda que os macacos, quando se sentiam ameaçados pela aproximação de um urso mecânico, refugiavam-se todos no modelo de veludo. Noutra situação quando tinham a oportunidade de pressionar uma alavanca que permitia abrir uma janela para observarem ou um macaco real ou o modelo de veludo, os macacos pressionavam igualmente a alavanca de cada janela, mas não mostravam qualquer interesse © Universidade Aberta 35 pelo modelo de arame. Estes resultados provaram que o modelo de veludo é capaz de reduzir a ansiedade dos jovens macacos e atrair a atenção de modo equivalente ao de um macaco real. O modelo de veludo mostrou-se no entanto inadequado em termos de desenvol- vimento social. Os macacos, “criados” pelo modelo de veludo, mas mantidos isolados, tornaram-se socialmente inaptos ao crescerem. Todavia quando os macacos “criados” pelo modelo de veludo tive- ram a oportunidade de brincar uma hora por dia com três outros macacos, o crescimento e desenvolvimento deles tornou-se indife- renciável dos macacos criados pelas mães naturais, provando ainda que um factor importante no desenvolvimento saudável dos macacos era o contacto social. Em termos gerais, uma experiência é um arranjo de condições, procedimentos e equipamento com o objectivo de se avaliar uma hipótese e mantendo sob controlo todos os restantes factores. Em termos específicos, uma experiência é uma observação objectiva de um fenómeno que é forçado a ocorrer numa situação rigorosamente controlada, e em que um ou mais factores são manipulados enquanto os restantes são controlados (Zimney, 1961). As variáveis manipuladas designam-se por variáveis experimentais, independentes ou de tratamento e os resultados da experiência designam-se por variável dependente. É crucial em qualquer experiência estabelecer-se condições de controlo das variáveis concorrentes face à variável independente e ainda uma distribuição aleatória dos diferentes factores. Um exemplo de estudo científico de acordo com o método experimental está descrito na Caixa 1.1, onde se referem vários factores que tiveram de ser controlados para se conseguir descobrir uma relação de causa e efeito sem ambiguidade entre os factores estudados. Estes controlos são necessários para se obter uma conclusão definitiva sobre o tipo de antecedentes que causam e originam um evento subsequente. Além do controlo das variáveis, o experimentador manipulou sistematicamente variáveis no ambiente em que decorria a experiência de forma a observar o efeito desta manipulação em certos tipos de comportamento. A manipulação sistemática dos valores da variável independente tem por objectivo demonstrar um efeito causal directo na variável dependente. Os pontos fortes da investigação experimental são o controlo das variáveis, a precisão das medições obtidas e a possibilidade de se estabelecer uma relação causal entre variáveis. Uma experiência tem validade interna, quando os resultados obtidos resultam única e exclusivamente da manipulação da variável © Universidade Aberta 36 independente, conseguindo-se controlar toda a influência de outras variáveis concorrentes. Frequentemente este grau de controlo é apenas conseguido através de recursos laboratoriais com a apresentação das condições da variável inde- pendente, controlo das variáveis concorrentes e registo preciso da variável dependente. Mas as circunstâncias que tornam forte a aplicação do método experimental têm a contrapartida de o fragilizar em termos de aplicação dos resultados a outros sujeitos, situações e contextos. Assim quando o método experimental é forte em termos de validade interna costuma ser fraco em termos de validade externa ou validade ecológica. Por exemplo, Ebbinghaus (1885) obteve alguns princípios ou efeitos de memória importantes, como a curva de esquecimento, usando sílabas sem significado. No entanto, Bartlett (1932) sublinhou a falta de validade externa deste tipo de estudos ao usar-se material verbal sem significado. Em contraste, Bartlett usou figuras e contos populares, um tipo de material verbal mais próximo da aprendizagem e memória que ocorre no dia a dia das pessoas. O estudo de Ebbinghaus era forte em termos de validade interna, mas fraco em termos de vali- dade externa; por sua vez, os estudos de Bartlett foram acusados do contrário. A discussão sobre a importância da validade externa da investigação experimental é por vezes mais um problema para certos especialistas de metodologia do que para os investigadores que fazem investigação laboratorial a sério no dia a dia. No caso da investigação efectuada por Harlow (1959), os modelos “mãe de arame” e “mãe de veludo” não têm qualquer represen- tatividade em termos de aplicação dos resultados ao meio ambiente da selva. Na selva não há “mães de arame” ou “mães de veludo”. São situações labora- toriais de uma artificialidade extrema. No entanto este estudo pôs irremediavel- mente em causa o factor alimentação considerado até então como o factor essencial no estabelecimento da ligação afectiva entre a mãe e a criança. Noutro aspecto, por exemplo, é altamente improvável que as leis do condi- cionamento, descobertas por Pavlov e Skinner em situações laboratoriais extremamente artificiais de que falaremos no capítulo seguinte, fossem alguma vez estabelecidas, se estes investigadores se tivessem limitado a observar simplesmente o comportamento do cão do vizinho ou o do rato no sótão da casa de campo. Dito isto, não se pretende insinuar que a investigação experimental deva desinteressar-se da generalização dos resultados a situações reais do dia a dia. Os investigadores estudam propositadamente os comportamentos das pessoas em ambientes simplificados de forma a obter um maior controlo das variáveis e conseguirem testar os princípios gerais que explicam os comportamentos animais e humanos. Os investigadores esforçam-se tenazmente por evitar a © Universidade Aberta 37 artificialidade na investigação, planeando experiências que simulem o mais possível anatureza e a realidade externa, mas quando têm de sacrificar algo, preferem fazê-lo em termos de validade externa, mesmo sendo acusados de artificialismo, do que em termos de validade interna, para evitar arruinar a experiência e ficarem impossibilitados de testar e avaliar adequadamente as hipóteses experimentais. O estudo experimental ideal será aquele que permite manipular as condições da variável independente e obter resultados em situações de controlo efectivo das variáveis concorrentes e ao mesmo tempo estudar os comportamentos dos sujeitos em situações e contextos quotidianos e reais. Não há nada de errado na aplicação do método experimental à investigação psicológica. O que é preciso é engenho e criatividade no planeamento dos estudos de forma a conciliar o controlo mais elevado e a generalização mais extensa dos resultados. Na literatura psicológica não há muitos estudos que consigam preencher simultaneamente os dois requisitos de validade interna e de validade externa, mas uma excepção notável é o estudo de Sheriff (1956). Sheriff, numa experiência realizado com rapazes de 11 e 12 anos num campo de férias, estudou o aparecimento de conflitos e preconceitos entre-grupos por razões de competição; a seguir estudou a redução desses mesmos conflitos através da participação em objectivos essenciais para a comunidade da colónia de férias. O recurso à investigação experimental nem sempre é o mais adequado. Há razões práticas, éticas e dificuldades de controlo que impedem a aplicação generalizada da metodologia experimental a muitos problemas, alguns deles com um real interesse de investigação. No entanto só a investigação experi- mental é capaz de reduzir ou eliminar interpretações controversas sobre uma eventual relação causal entre variáveis. 1.5 Perspectivas de investigação psicológica Ao longo da história da psicologia, o objecto e a definição da psicologia não foi, nem parece ser tão cedo, consensual. Uns concentram-se na análise do comportamento, outros consideram este objectivo limitado se não se tiver em conta a influência dos processos mentais. Outros pensam ainda que o comportamento pode ser explicado, ou em termos genéticos ou em termos sócio-culturais, dando origem a duas perspectivas antagónicas: a bio- psicológica e a sócio-cultural. Em contraste, outras perspectivas alternativas foram apresentadas de modo a valorizar o papel da mente e dos processos mentais na génese do comportamento, como a perspectiva evolucionista e sobretudo a perspectiva cognitiva. © Universidade Aberta 38 1.5.1 Perspectiva Bio-Psicológica A bio-psicologia é uma área de estudo e investigação psicológica que tenta explicar o comportamento numa base orgânica. Para o efeito, a bio-psicologia procura analisar os factores que iniciam e condicionam os comportamentos individuais a partir da análise do sistema nervoso, sistema glandular, organização e funcionamento do cérebro, genes e bioquímica celular. É uma área também conhecida por psicofisiologia, neuropsicologia e genética comportamental. Neste sentido a bio-psicologia partilha muitas das técnicas de investigação com a fisiologia, a biologia e a genética. A bio-psicologia é uma área importante e muito activa em termos de investigação, tendo o interesse crescido proporcionalmente com os avanços tecnológicos que se foram registando nos últimos 20 anos em termos de exames imagiológicos do cérebro. O recurso crescente e valioso a equipamento altamente sofisticado, como a electroencefalografia (EEG), o microscópio electrónico, a tomografia axial computadorizada (TAC), a obtenção de imagens por ressonância magnética (MRI), a tomografia por emissão de positrões (PET), entre outro equipamento do género, permitiu estudar o corpo e o cérebro das pessoas em estado de vigília e a realizar tarefas específicas. No passado, quando um investigador pretendia estudar o corpo e o cérebro, apenas o podia fazer através da cirurgia ou de uma autópsia. Actualmente o investigador pode observar directamente a actividade do cérebro em descanso ou a realizar uma actividade cognitiva específica sem causar danos ou incómodos de maior à pessoa que está a ser examinada. A importância deste equipamento para a observação biológica do corpo humano é de tal ordem elevada, que o seu papel já foi comparado ao da descoberta do telescópio na revolução do conhecimento em astronomia. O electroencefalograma é o registo da actividade eléctrica do cérebro e é importante para se compreender os estados de vigília e sono e certas doenças como a epilepsia. As imagens obtidas por TAC e MRI permitem uma observação de natureza anatómica e as imagens por PET uma observação mais de natureza neuronal. Assim é possível através de um TAC detectar-se tumores e obstrução de vasos sanguíneos, através de MRI detectar casos de esclerose múltipla e através de PET zonas e níveis de actividade metabólica cerebral específica, como as relacionadas com o reconhecimento da fala ou do reconhecimento de um rosto humano, de memórias recentes e memórias antigas e doenças como a esquizofrenia. Alguns dos temas mais importantes estudados no âmbito dos fundamentos biológicos do comportamento e integrados na área da bio-psicologia são o sistema nervoso central com relevo para a estrutura e a organização do cérebro, o papel das diferentes áreas cerebrais e dos neurotransmissores em relação © Universidade Aberta 39 com as funções cognitivas de percepção, atenção, memória, linguagem e raciocínio; o sistema nervoso autónomo com funções de controlo sobre diferentes órgãos e sistemas como o digestivo, respiratório, circulatório e as implicações a nível do comportamento emocional; o sistema endócrino e os efeitos das várias hormonas sobre a actividade geral do organismo; o papel dos genes e da hereditariedade, não apenas a nível corporal como a cor e a altura, mas principalmente ao nível das características psicológicas como a inteligência e o raciocínio, ou características de personalidade como a ansiedade, tomada de riscos, felicidade e estabilidade emocional. No estudo dos fundamentos biológicos do comportamento, há duas grandes perspectivas: Uma de natureza correlacional procurando identificar as correspondências ou correlatos fisiológicos do comportamento deixando para a psicologia e para outras ciências humanas, a elaboração de explicações complementares e alternativas; Outra mais extrema, de natureza reducionista, reivindica a explicação final da cognição e do comportamento com base em processos fisiológicos e genéticos. É a corrente que pretende reduzir a psico- logia à biologia, prevendo que o futuro da psicologia ficará limitado apenas às explicações que a genética não for capaz de proporcionar. Embora os genes, a produção hormonal, a fisiologia e a organização cerebral tenham uma influência importante no comportamento e na personalidade de cada um, esta influência não é decisiva. Os genes condicionam a altura de uma pessoa, mas não é o facto de um homem ter uma altura de 2,10 metros que o torna um jogador de basquetebol amador ou de elite, ou até mesmo interessar-se por basquetebol. Os genes determinam também a raça, afectam a tomada de riscos e a estabilidade emocional, mas pertencer ou não a uma determinada raça não torna um indivíduo mais agressivo ou pacífico, mais inteligente e empreendedor ou mais socialmente dependente, mais depressivo ou mais feliz. É antes o conjunto das informações internas e externas, assim como a interpretação das experiências passadas, que levam o cérebro e a mente humana a estabelecer um critério de comportamento e de acção e a tentar alcançar o equilíbrio que uma pessoa julga mais adequado para se adaptar ao meio onde habita. 1.5.2 Perspectiva evolucionista Darwin defendeu que as plantas e animais evoluiram ao longo de milhares e milhares de anos, acumulando características que os tornaram mais capazes de sobreviver e de se reproduzir. Nofinal do seu livro A Origem das Espécies publicado em 1859 Darwin afirmou que um dia a psicologia instituir-se-ia sobre uma nova base ou fundação. © Universidade Aberta 40 A psicologia evolucionista é uma perspectiva psicológica desenvolvida nos últimos anos que, ao assumir o legado de Darwin, procura integrar as explicações do comportamento na série causal da biologia evolucionista. A psicologia evolucionista defende que os processos psicológicos como a percepção, a memória, a linguagem e o pensamento, e mecanismos como a atracção sexual, relações parentais, a escolha e adaptação aos alimentos, entre muitos outros, evoluiram ao longo de milhões de anos por meio de um processo de selecção natural. A selecção natural é considerada como o único processo causal conhecido capaz de produzir organismos funcionalmente complexos. As características que no passado ancestral da espécie humana se revelaram úteis em termos de resolução de problemas associados com a capacidade de sobrevivência e com o aumento das probabilidades de reprodução foram sendo incorporados no património genético ao longo de milhões de gerações. Em termos globais isto significa que a mente e os processos cognitivos são melhor compreendidos e explicados no âmbito das forças da biologia evolutiva expressas ao nível dos genes. Uma das reacções humanas que foi objecto de uma boa explicação por parte da psicologia evolucionista foi a do mal-estar matinal ou doença das grávidas. Uma grávida sente habitualmente por volta do segundo e terceiro meses de gravidez enjoos frequentes e aversão a certos alimentos. Freud explicou este comportamento dizendo que o mal-estar significava a aversão que a mulher tinha pelo marido e o seu desejo inconsciente de abortar o feto pela boca. Por sua vez a medicina propôs uma explicação de natureza hormonal, mas esta explicação parece insuficiente. Afinal porque é que as hormonas provocam especificamente enjoos e mal-estar em vez de induzir agressividade ou sedução? Margie Profet (1992) propôs uma explicação alternativa, afirmando que este período de mal-estar deveria trazer algum benefício à mãe e ao feto compensando os custos de uma alimentação mais reduzida ou de uma menor produtividade. Segundo Profet, durante o período de mal-estar os vómitos protegiam a mulher de comer alimentos, muitos deles portadores de toxinas, cuja ingestão prejudicaria o desenvolvimento do feto. No passado ancestral humano a alimentação era constituída à base de plantas, mas as plantas para sobreviver produziam toxinas e venenos. Profet apoiou a sua hipótese explicativa numa série de resultados dos quais destaco os seguintes: A mesma dose de vegetais portadoras de toxinas pode ser tolerada por um adulto, mas provocar um aborto ou defeitos no feto; as grávidas evitam alimentos novos e bastante temperados e condimentados, os que têm mais probabilidades de conter toxinas; os vómitos ocorrem mais frequentemente no período em que os órgãos do feto estão a ser criados e desaparece quando os órgãos estão quase formados e aumenta a necessidade de maior quantidade © Universidade Aberta 41 de ingestão de alimento; o olfacto torna-se hiper-sensível neste período, mas fica menos sensível no período seguinte; as grávidas que sentem um mal-estar mais agudo são as que têm menos probabilidades de abortar ou de ter bebés com defeito; o mal-estar da gravidez ocorre em todas as culturas humanas. O conjunto destas e de outras observações sugerem que o mal-estar nos primeiros meses de gravidez é uma reacção geneticamente programada de forma a aumentar as probabilidades de reprodução humana. Explicações do comportamento humano em termos de psicologia evolucionista foram, entre outras, a preferência por alimentos e o comportamento sexual. Assim a preferência humana por alimentos doces teria origem no passado ancestral em que a procura de frutos com sabor mais doce e maior valor nutritivo faria aumentar as hipóteses de sobrevivência. No que se refere ao compor- tamento sexual, vários estudos indicaram que dentro da nossa cultura os homens desejam ter em geral uma maior variedade de parceiros sexuais do que as mulheres, verificando-se esta mesma tendência no caso dos homossexuais em relação às lésbicas. Nesta perspectiva psicológica, o comportamento dos homens seria explicado em termos do aumento de disseminação reprodutiva dos seus genes, cujos custos em tempo e gasto de energia seriam reduzidos. Em contraste, o comportamento selectivo das mulheres teria a vantagem reprodutiva de assegurar o parceiro que se revelasse não só como o mais apto, mas também o mais colaborante no longo processo de gestação, nascimento e crescimento dos filhos. Steven Pinker (1997), psicólogo cognitivo e adepto da psicologia evolucionista, defendeu que o que está inscrito nos genes, resultante do nosso passado ancestral, não são comportamentos específicos como o egoísmo, o altruísmo ou o adultério que os genes se encarregariam de manipular à maneira de marionetas. O que estaria efectivamente inscrito nos genes seria antes a organização da mente e dos processos e mecanismos mentais que processam a informação e são responsáveis pela tomada de decisão. A mente é uma adaptação biológica resultante da selecção natural, mas isto não significa que todos os processos cognitivos que ocorrem na mente sejam biologicamente adaptativos. Em termos de propagação e disseminação dos genes, as pessoas cometem muitas “asneiras”: Umas ficam solteiras, outras usam contraceptivos, não querem ter filhos, ou têm o menor número possível. A mente humana foi planeada para gerar comportamentos que no passado ancestral se revelaram, em média, adaptativos, mas qualquer acto realizado no presente é o efeito de dúzias de causas. Analise-se o caso do adultério. Mesmo que o desejo de adultério seja um produto indirecto dos nossos genes, há também outros desejos opostos que também são o produto indirecto dos genes, como ter uma relação matrimonial ou de acasalamento estável. O comportamento adúltero é o resultado de uma série de cálculos e decisões © Universidade Aberta 42 mentais que têm a ver com a presença de um parceiro disponível que tenha o mesmo desejo, a conveniência ou não da manutenção de um casamento feliz ou os riscos de um divórcio. Segundo Pinker (1997) o comportamento não evoluiu; o que evoluiu foi a mente. A psicologia evolucionista tem vindo a receber uma grande atenção nos anos mais recentes. Grande parte desta atenção está relacionada com a escolha de certas questões, que além de populares têm um papel importante em termos de sobrevivência e reprodução humana, como a escolha sexual, as relações parentais, as interacções sociais e a escolha de alimentos. Veja-se Crawford e Krebs (1997) para uma revisão actualizada deste tema. No entanto, a psicologia evolucionista não está isenta de apaixonadas contro- vérsias, sendo a razão de muitas delas a tese de que é o comportamento que está directa ou indirectamente inscrito nos genes. Mas segundo Pinker, não é o comportamento que está inscrito nos genes nem é adaptativo, mas apenas a mente e os programas mentais que processam a informação. Ao privilegiar-se o papel adaptativo da mente sobre o comportamento, torna-se possível incorporar mais facilmente os efeitos da cultura e da sociedade no aumento do grau de sobrevivência e de reprodução bem sucedida da espécie humana. As explicações do comportamento humano em termos evolutivos não estão isentas de dificuldades. Repare-se no caso da alimentação e do vestuário que têm um papel enorme em termos de adaptação humana ao meio, mas não parecem ser programados pelos genes, pelo menos de modo significativo. Antes parecem ser adquiridos em cada geração e sociedade pelo processo de aprendizagem. Por outro lado, a fala, que nos humanos tem uma origem significativamente genética, está quase inteiramente sujeita no seu desenvol- vimento ao meio sócio-cultural
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