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GÊNERO - Margareth Rago

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GÊNERO E VIOLÊNCIA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA
Margareth Rago
Depto de História - IFCH
UNICAMP
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O útero nômade
Não é novidade alguma falar na violência constitutiva das relações entre os sexos, nem mesmo quando se trata de mostrar as formas que assumiu ao longo da História. São muitos os estudos históricos, sociológicos e antropológicos produzidos na atualidade, que nos revelam como as mulheres foram oprimidas, excluídas ou estigmatizadas pelo poder masculino, ao mesmo tempo em que denunciam as inúmeras dificuldades que caracterizaram as relações da sociedade com a sexualidade, em geral localizada na figura feminina. A feiticeira na Idade Média, a prostituta e a "mulher fatal" na modernidade, por exemplo, são figuras que se hoje provocam mais riso do que tristeza, tamanha a fantasia que as envolve, Não deixam de demonstrar a violência através da qual cada época se relacionou com a figura da mulher e/ou com o feminino.
Talvez uma das maiores violências sofridas pelas mulheres tenha sido a própria construção de sua suposta "essência" como algo situado no útero. Knibiehler e Fouquet nos contam como desde os primeiros tratados médicos dos egípcios, passando depois por Hipócrates e Galeno, lidos e relidos pela medicina da era vitoriana, no século 19, o saber médico definiu a mulher como sendo essencialmente útero e , portanto, destinada à maternidade.� Todas as suas doenças e afecções foram pensadas em função dos deslocamentos deste órgão nômade pelo corpo, em sua inquietação sexual instintiva, provavelmente carente do grande protetor masculino. Entre assexuada e perversa, a sexualidade feminina foi povoada por fantasias negativas e assustadoras que justificavam o exercício da violência física e da repressão moral contra as mulheres. Lembremos, por exemplo, das loucas de Pinel, indubitavelmente percebidas como histéricas; das prostitutas modernas, consideradas como "degeneradas natas" e "loucas", portanto, irracionais, e sem nenhum direito à cidadania.� Em artigo recente sobre a construção histórica do conceito de ninfomania, Carol Groneman informa que os médicos do século passado progressivamente passaram a considerar uma série de práticas como adultério, flerte, divórcio, sentir-se mais apaixonada do que o marido, o uso de perfumes fortes, etc, como característicos desta doença sexual, o desejo feminino.�
Assim, com base na noção de que a principal razão de ser da mulher era a maternidade, a ciência moderna forneceu os fundamentos teóricos que justificaram sua exclusão política do espaço público, desde o final do século 18. Um dos médicos franceses mais importantes do período das Luzes, Pierre Roussel, autor do SYSTÈME PHYSIQUE ET MORAL DE LA FEMME, de 1775, que influenciou muitas gerações, argumentava que as mulheres não deveriam forçar sua natureza biológica e que deveriam aceitar seu lugar privilegiado, isto é, o lar e a vida privada, já que:
"os ossos (da mulher) são menores e menos duros, a caixa torácica é mais estreita; a bacia, sendo mais larga, força uma obliquidade nos fêmures que atrapalha o andar, pois os joelhos se tocam, as ancas balançam para reencontrar o centro de gravidade,o andar se torna vacilante e incerto".�
Em suma, a construção de um estereótipo de mulher e de um padrão de feminilidade vigentes, com algumas modificações, até pelo menos os anos 1960, e respaldados pela ciência médica burguesa foi uma das maiores violências cometidas em relação às mulheres, já que de uma só vez fomos todas enclausuradas em uma única fôrma masculina, cientificamente definida de cima para baixo. A oposição binária "mulher honesta" e "mulher da vida" foi vivenciada por uma quantidade muitíssimo grande das mulheres, pelo menos no mundo ocidental, por muitas décadas. Evidentemente, muitas foram as rebeliões e contestações a esses modelos e formas de normatização dos comportamentos, mas é inegável que até muito recentemente a identidade, tanto individual quanto grupal, era considerada uma decorrência da natureza e raramente se falava em construção cultural.
Introduzindo o gênero
 É aqui que a questão do gênero pode nos interessar mais particularmente. Ninguém duvida do impacto do feminismo no sentido de transformar as relações entre os sexos, de denunciar a violência contra as mulheres e de obrigar os homens a repensarem suas condutas. Nesse sentido, as feministas forçaram a academia e a ciência a sexualizarem o saber, reconhecendo que os conhecimentos que têm organizado a nossa vida em sociedade, ao longo dos séculos, foram construídos pela razão masculina, em geral extremamente misógina e justificadora das desigualdades sexuais. Tratava-se, então de desconstruir os saberes produzidos por esta lógica, evidenciando e denunciando as redes de poder que os constituíam. Evidentemente, a crítica feminista à cultura e à racionalidade masculina exigia novas formas de pensar e novas tecnologias conceituais.
A entrada em cena da "questão feminina" se deu de maneiras diferenciadas. Considerando um período mais recente, da década de 1970 para cá, o "feminismo organizado" defendeu os direitos da mulher, lutou pela introdução dos estudos sobre a mulher na academia, pesquisou e valorizou os assuntos e temas femininos. Já na década de 1980, as próprias feministas se deram conta das limitações de pensar em termos do sujeito "mulher", em oposição ao sujeito "homem" e da armadilha a que estavam se amarrando. Afinal, descobriam elas, a "mulher" não era uma natureza dada por Deus ou por alguma necessidade orgânica e biológica, como queriam os médicos do passado, mas referia-se a um conceito, a uma entidade abstrata, a uma formação discursiva que designava um X número de práticas, comportamentos e experiências historicamente variáveis, que fundamentalmente explicavam muito pouco a respeito das mulheres em sua multiplicidade e em sua experiência cotidiana. Enfim, quando falávamos da "mulher" não sabíamos exatamente a quem nos referíamos, supondo que as experiências femininas pudessem ser generalizadas num só termo. Perdíamos, assim, as diferenças entre as jovens, velhas, judias, brasileiras, japonesas, norte-americanas, solteiras, casadas, mães, alunas, filhas, esposas, operárias, artistas, prostitutas, loucas, etc, etc. 
Estas discussões evidenciaram, portanto, que não havia práticas femininas ou masculinas anteriores à própria definição imaginária da sociedade, e que estas divisões binárias eram construções simbólicas e não imposições da natureza. Por exemplo, vários estudos mostraram que, desde o século 19, a dança se torna uma atividade tipicamente feminina, ao contrário do que ocorria na sociedade de Corte dos séculos 17 e 18. Se a pintura, maquilagem, cuidados com os cabelos eram até recentemente atividades puramente femininas, não o foram no mundo da aristocracia do Antigo Regime. Casanova, que lembramos na brilhante interpretação de Marcelo Mastroiani, era capaz de se vestir elegantemente, com rendas, babados e brocados e de usar cabeleiras postiças tão ou mais incrementadas que as femininas.�
Ora, concluíram as feministas, pensar em termos de identidades sexuais significava um alto preço a ser pago, já que implicava em aceitar e reproduzir uma construção cultural e ideológica definidora dos espaços e comportamentos de cada sexo.
Nesse momento, recorreu-se teoricamente à categoria do gênero para designar uma nova forma de trabalhar a questão das diferenças sexuais. Assim sendo, seja como categoria analítica ou empírica, designa a diferença sexual enquanto construção cultural e social.� A categoria do gênero aponta fundamentalmente para a desnaturalização das diferenças sexuais, libertando tanto homens quanto mulheres de uma pretensa identidade que estaria contida em algum órgão físico desde a primeira infância e que, portanto seria eterna e inalterável. Além do mais, ao postular que as diferenças sexuais são construções culturais e não naturais, coloca a importância do trabalho de desconstrução das arquiteturas conceituais que nos encapsularam em códigos rígidos ebipartidos.
A título de ilustração, gostaria de indicar como o conceito da prostituição, por exemplo, foi produzido pelo saber médico, ao longo do século 19, enquanto uma doença proveniente da má formação estrutural do organismo do indivíduo, resultado da degenerescência da espécie humana. Para os doutores do período, a prostituta era uma "degenerada nata", caracterizada por um quadril maior do que o da "mulher normal", uma testa menor, dedos mais curtos, apetite sexual exaltado, assim como acentuado gosto dos excessos e aversão ao trabalho. Assim construída, esta identidade foi reproduzida na literatura e no cinema e foi principalmente consumida por aquelas que partiam para uma opção diferenciada de vivenciar a própria sexualidade.�
A categoria do gênero vem, portanto, neutralizar a idéia de que existe uma dominação de mão única, exercida apenas do homem para a mulher ao longo da História, e que se fundaria numa diferença natural. Entendendo que as relações entre os sexos são constituídas por relações de poder, aponta para a dinâmica dos jogos que se estabelecem entre uns e outros. Fundamentalmente, a categoria do gênero vem responder, no campo intelectual, à necessidade de se repensar a questão das relações entre os sexos, e a maneira como trabalhamos as demarcações simbólicas entre o feminino, de um lado e o masculino, de outro, questionando a oposição binária que permeia estas colocações.
O gênero apresenta-se como um instrumento de análise relacional e não identitário, já que não se trata mais de trabalhar a questão da mulher, como se esta existisse fora das relações sociais e não se relacionasse com o sexo oposto, e sim de recuperar este campo de heterogeneidade social. Pensar, portanto, a questão das identidades sexuais não como determinações biológicas, mas como construções culturais e simbólicas, de um lado; de outro, desguetizar a "questão da mulher", apontando para sua inserção e interação com múltiplos sujeitos sociais, étnicos e sexuais.
Além disso, segundo esta nova referência, e enquanto uma categoria relacional, não se fecharia no entendimento da "condição feminina", pois também a realidade masculina é percebida como construção cultural. Em outras palavras, se a identidade da mulher foi definida enquanto mãe restrita à esfera doméstica, desde finais do século 18, a do homem foi elaborada enquanto provedor do lar, guerreiro destinado ao espaço público, com atributos definidos e bastante limitados, convenhamos.
Nessa direção, vemos surgirem hoje, vinte anos após uma extensa produção dos estudos sobre as mulheres, trabalhos que problematizam e historicizam a construção da masculinidade. Elisabeth Badinter, por exemplo, autora do importante estudo sobre a invenção histórica da maternidade, discute a historicidade do modelo de masculinidade fundado no guerreiro, nômade, corajoso e forte, reforçado por Tarzan, figura cinematográfica que empolgou multidões desde os inícios dos anos 1910.� Outros trabalhos passam a analisar de maneira sexuada a construção da esfera pública como espaço da sociabilidade masculina, oposto à esfera privada, tido como espaço natural da feminilidade. 
Enfim, desconstrução, de um lado; caráter relacional da análise, de outro: parece que aqui esbarramos com alguns dos pontos de maior importância em relação à introdução da categoria do gênero.
Os usos do gênero
Mas, afinal, trata-se de uma categoria marxista, positivista, ou o quê? Várias intelectuais feministas, a exemplo da historiadora norte-americana Joan Scott, procuraram conceitualizar esta categoria analítica, já que ao contrário do conceito de classe social, ela não emerge no interior de um sistema de pensamento já constituído e acabado, como é o marxismo.
Evidentemente, isto não significa que paira solta no ar, mas indica que tem sido utilizada no interior de várias correntes de pensamento. As marxistas esforçam-se para articular a categoria do gênero com o conceito de classe social, entendendo que ambos são fundamentais para compreender as diferenças sociais e as formas específicas da dominação. Aliás, vão além propondo que também a questão racial seja aí articulada, sob pena de perdermos uma dimensão fundamental da experiência e dos conflitos vividos na sociedade. Do mesmo modo, as pós-estruturalistas e as feministas ligadas à psicanálise procuram fundamentar sua utilização do gênero num campo de análise diferenciado.�
Em outras palavras, o gênero tem sido apropriado por várias correntes de pensamento, sem que felizmente nenhuma se coloque como sua proprietária exclusiva. Compreende-se antes a complexidade da vida em sociedade, buscando-se tecnologias conceituais e instrumentos de análise que permitam dar conta, ao menos parcialmente, das inúmeras dimensões constitutivas das relações sociais e das formas de constituição da subjetividade em relação com a sociabilidade.
� Knibiehler, Yvonne e Fouquet, Catherine - LA FEMME ET LES MEDECINS, Paris, Hachette, 1983 
� . Veja-se por exemplo Lewis, Jane - WOMEN IN ENGLAND (1870-1950): Sexual Divisions and Social Change, Indiana University Press, 1984.
� Groneman, Carol - "Nymphomania: The Historical Construction of Female Sexuality", SIGNS, Winter, 1994.
� Rago, Margareth - OS PRAZERES DA NOITE.PROSTITUIÇÃO E CÓDIGOS DA SEXUALIDADE EM SÃO PAULO, RJ, Paz e Terra, 1991, P.146
� Elias, Norbert - A SOCIEDADE DE CORTE, Lisboa, Estampa, 1989; Sennett, Richard - O DECLÍNIO DO HOMEM PÚBLICO, SP, Cia das Letras, 1989.
� Scott, Joan - GENDER AND THE POLITICS OF HISTORY, New York , Columbia University Press.
� Rago, Margareth - op. cit., cap. 2
� Badinter, Elizabeth - XY, LA IDENTIDAD MASCULINA, Barcelona, Editorial Norma, 1993.
� Veja-se a respeito a coletânea organizada por Bruskini, Cristina e Oliveira, Albertina de - UMA QUESTÃO DE GÊNERO, SP, Fundação Carlos Chagas e RJ, CIEC, 1991.
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