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Bruxas, parteiras e enfermeiras

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Barbara EHRENREICH 
 
Deirdre ENGLISH 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
BRUXAS, PARTEIRAS E ENFERMEIRAS: UMA 
HISTÓRIA DE MULHERES CURANDEIRAS 
(VERSÃO PRELIMINAR) 
 
 
 
 
Tradução: Prof. Paulo de Oliveira Perna, 
Depto. Enfermagem/UFPR e Profª Meryl 
Adelman, Depto. Ciências Sociais/UFPR 
 
Obra original: Witches, Midwives and Nurses: a 
history of women healers. The Feminist 
Press/University of New York, New York, 
1973. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CURITIBA 
1999 
 2 
 
INTRODUÇÃO 
 
As mulheres sempre se dedicaram aos afazeres de curar. Elas foram as médicas leigas e as 
anatomistas da história ocidental. Faziam abortos, eram enfermeiras e conselheiras. Eram 
farmacêuticas, cultivavam ervas medicinais e trocavam entre si os segredos de seus usos. Eram 
parteiras, visitavam casa por casa, vila por vila. Durante séculos as mulheres foram médicas sem 
diplomas, impedidas do acesso aos livros e aos ensinamentos, aprendendo umas com as outras, e 
passando suas experiências de vizinha para vizinha e de mãe para filha. As pessoas as chamavam de 
“mulheres sábias”, e as autoridades, por sua vez, de bruxas ou charlatãs. A medicina faz parte da nossa 
herança como mulheres, da nossa história; exercê-la é nosso direito. 
Hoje, no entanto, os cuidados de saúde são propriedade dos profissionais homens1. Noventa e 
três por cento dos médicos, nos Estados Unidos, são homens; e também o são quase todos os diretores e 
administradores de instituições de saúde. As mulheres ainda são a grande maioria na área da saúde – 
70% dos trabalhadores são mulheres – mas fomos incorporadas como trabalhadoras por uma indústria 
onde os patrões são homens. Não somos mais praticantes independentes, conhecidas por nossos 
próprios nomes, pelo nosso próprio trabalho. Somos, na maioria das vezes, peças institucionais, 
preenchendo espaços desprestigiados de trabalho, como secretárias, auxiliares do serviço de nutrição, 
técnicas e serventes. 
Quando nos permitem participar do processo de curar, o espaço reservado para nós é o da 
enfermagem. No exercício desta enfermagem, seja qual for a categoria do integrante da equipe, a 
pessoa fica reduzida a um “trabalhador auxiliar” dos médicos (“auxiliar” vem do latim, ancilla, que 
significa criada, servente). De auxiliar de enfermagem - cujas atribuições subalternas são definidas com 
precisão industrial - à enfermeira com formação universitária, que traduz as ordens médicas em tarefas 
de auxiliares, todas compartilham o status de uma criada uniformizada a serviço de profissionais 
predominantemente homens. 
Nossa subserviência é reforçada por nossa ignorância, e esta ignorância, por sua vez, é imposta. 
As enfermeiras são educadas para não questionar, para não desafiar. “O médico sabe o melhor”. Ele é o 
xamã, em contato com o proibido, complexo e místico mundo da Ciência, que aprendemos a considerar 
como estando além da nossa capacidade de compreensão. As mulheres trabalhadoras da saúde estão 
alienadas da natureza científica do seu trabalho, restringidas ao ofício “feminino” de cuidar dos outros 
e da casa – trabalho que é feito por uma maioria passiva e silenciosa. 
Foi-nos ensinado que nossa subserviência está biologicamente determinada: as mulheres são 
intrinsecamente feitas para serem enfermeiras e não médicos. Às vezes somos tentadas a nos consolar 
com a teoria de que fomos derrotadas pela anatomia, muito antes de sermos derrotadas pelos homens, e 
que nós, as mulheres, somos, de tal maneira vítimas dos ciclos da menstruação e da reprodução, que 
nunca fomos sujeitos livres e criativos fora do âmbito doméstico. Outro mito, alimentado por histórias 
médicas convencionais, é que os profissionais homens venceram pelo poder de sua tecnologia superior. 
De acordo com essa explicação, a ciência (masculina) automaticamente substituiu a “superstição” 
(feminina) – que passou a ser tratada como coisa do folclore feminino. 
Mas a história desmente estas teorias. As mulheres exerceram o trabalho de curar com 
autonomia, e, frequentemente, eram as únicas disponíveis para atender as mulheres e os pobres. 
Enquanto autoras, descobrimos, nos períodos por nós estudados que, se existe alguma diferença nessa 
 
1 Este texto foi escrito em 1973 e a realidade de então certamente mudou. Hoje, as mulheres norte-americanas têm maior 
acesso às profissões em geral, e, portanto, também ao exercício da medicina. Mesmo assim, padrões de dominação 
masculinos ainda prevalecem. (N.T.) 
 3 
história, foi entre os homens - que se aferravam a doutrinas não comprovadas e a práticas ritualísticas – 
e as mulheres curandeiras2, que abordavam o processo de curar de forma mais humana e empírica. 
A posição que hoje ocupamos no sistema de saúde não é “natural”. É uma condição que exige 
ser explicada. Neste livro perguntamos: como chegamos a esta atual posição de subserviência, quando 
em outras épocas ocupávamos uma posição de liderança? 
Com nossas pesquisas aprendemos muito: que a supressão das mulheres trabalhadoras da saúde 
e que a ascensão dominante dos homens não foi um processo “natural”, que teria resultado 
automaticamente de mudanças na ciência médica, e que também não foi o resultado do fracasso das 
mulheres em assumir o trabalho de curar. Foi, isso sim, um ativo processo dos homens em se apropriar 
desse campo. E não foi a ciência que tornou os homens aptos a vencer: as batalhas mais críticas 
aconteceram muito antes do desenvolvimento da moderna tecnologia científica. 
O que estava em jogo nessas batalhas eram grandes privilégios: a monopolização econômica e 
política da medicina significava o controle de suas organizações institucionais, de sua teoria e prática, 
de seus lucros e prestígio. E os privilégios hoje são ainda maiores, quando o total controle da medicina 
significa poder potencial para determinar quem deverá viver e quem deverá morrer, quem é fértil e 
quem é estéril, quem é “louco” e quem é normal. 
A supressão das mulheres curandeiras pelas instituições médicas foi, primeiro, uma luta 
política, na medida em que faz parte da história da luta entre sexos3 em geral. O status de mulheres 
curandeiras prosperou e declinou acompanhando as mudanças no status das próprias mulheres. Quando 
as mulheres curandeiras foram atacadas, elas o foram como Mulheres; quando elas reagiram, reagiram 
em solidariedade a todas as mulheres. 
Em segundo, foi uma luta política na medida em que foi parte de uma luta de classe. As 
mulheres curandeiras eram médicas do povo, e sua medicina fazia parte da subcultura popular. Mesmo 
nos dias de hoje, as práticas médicas de mulheres têm prosperado no interior de movimentos 
contestatórios das classes mais pobres, que têm lutado para se libertar das autoridades estabelecidas. Os 
profissionais homens, por outro lado, serviram às classes dominantes – sob o ponto de vista político e 
médico. Seus interesses têm sido fomentados pelas universidades, pelas instituições filantrópicas e pela 
lei. Os médicos devem sua vitória – não tanto pelos seus próprios méritos – mas pela intervenção das 
classes dominantes às quais serviram. 
Este livro representa o início da pesquisa que precisamos fazer para resgatar nossa história 
como mulheres trabalhadoras da saúde. É uma exposição fragmentária, organizada por mulheres que 
não eram historiadoras “profissionais”, a partir de fontes em geral incompletas e frequentemente 
parciais. Restringimo-nos à história do Ocidente, uma vez que as instituições com as quais nos 
confrontamos hoje são produtos da civilização ocidental. Estamos longe de ser capazes de apresentar 
uma história cronológica completa. Pelo contrário, fixamo-nosem duas fases importantes e distintas na 
apropriação masculina do campo da saúde: o extermínio das bruxas na Europa medieval e o surgimento 
da profissão médica masculina na América do Norte, no século 19. 
Conhecer nossa história é começar a perceber como a luta deve ser retomada.4 
 
 
2 A palavra inglesa healer, tal como aparece no subtítulo desta obra, pode ser traduzida por “curandeiro”, mas é oportuno 
ressaltar que seu significado não indica relação com a magia ou o charlatanismo, como costuma ser entendido no português. 
Aqui, empregamos o termo “curandeiro” para se referir ao trabalho de curar, de cuidar da saúde, de ser um terapeuta. (N.T.) 
3 Na atualidade, o termo “sexo” é restrito por se referir à diferença biológica, enquanto através do termo “gênero” pensamos 
na constituição de homens e mulheres como sujeitos sociais. (N.T.) 
4 A presente obra tornou-se um “clássico” contemporâneo da área, vindo a estimular uma grande produção de pesquisas 
sobre gênero e saúde. (N.T.) 
 4 
 
 
 
 
BRUXARIA E MEDICINA NA IDADE MÉDIA 
 
A existência e o extermínio das bruxas nas fogueiras antecederam em muito o desenvolvimento 
da tecnologia médica moderna. A grande maioria delas era de curandeiras leigas servindo a população 
de camponeses, e seu extermínio marca uma das batalhas inaugurais da história da supressão das 
mulheres como curandeiras, realizada pelos homens. 
O outro aspecto da supressão das bruxas como curandeiras foi a criação de uma nova profissão 
médica masculina, colocada sob a proteção e apadrinhamento das classes dominantes. Esta nova 
profissão médica, na Europa, cumpriu um importante papel na caça às bruxas, subsidiando os 
perseguidores de bruxas com razões “médicas”: 
 
...Porque a Igreja Medieval, com o apoio de reis, príncipes e autoridades seculares, controlava a educação e a 
prática médica, a Inquisição (caça às bruxas) organiza, entre outras coisas, um dos mais antigos exemplos do 
“profissional” repudiando as habilidades e interferindo com os direitos do “não-profissional” em atender o 
pobre. (Thomas Szasz, The Manufacture of Madness) 
 
A caça às bruxas produziu efeitos duradouros: a partir daí um aspecto do feminino sempre se 
associa com a bruxa, e permanece uma aura de impureza – especialmente em torno da parteira e outras 
mulheres curandeiras. Esta exclusão inicial e devastadora das mulheres com relação ao exercício 
independente do trabalho de curar foi um precedente violento e uma advertência: tornar-se-ia um tema 
da nossa história. O atual movimento de mulheres trabalhadoras de saúde tem suas raízes mais antigas 
nas associações medievais, e seus adversários têm seus antecedentes naqueles que impiedosamente 
impuseram a eliminação das bruxas. 
 
 
A FÚRIA CONTRA AS BRUXAS 
 
A era da caça às bruxas prolongou-se por mais de quatro séculos (do século 14 ao século 17), 
estendendo-se da Alemanha até a Inglaterra. Originou-se no feudalismo e durou – crescendo em 
virulência – até a “idade da razão”5. A fúria contra as bruxas assumiu diferentes formas em diferentes 
tempos e lugares, mas nunca perdeu seu caráter essencial: a de ser uma campanha de terror das classes 
dominantes dirigida contra a população de mulheres camponesas. As bruxas representavam uma 
ameaça política, religiosa e sexual tanto para a igreja Protestante como para a Católica, bem como para 
o Estado. 
A extensão da fúria contra as bruxas foi assustadora: no final do século 15 e início do século 16, 
ocorreram milhares e milhares de execuções – em geral queimadas em fogueiras – na Alemanha, Itália 
e outros países. Em meados do século 16, o terror se espalhou para a França e, finalmente, para a 
Inglaterra. Um escritor estimou uma média de seiscentas (600) execuções por ano em algumas cidades 
da Alemanha, ou seja, duas execuções a cada dia, “excetuando os domingos”. Novecentas bruxas foram 
exterminadas em um único ano na região de Wertzberg, e mil em Como (Itália) e arredores. Em 
Toulouse (França), quatrocentas foram mortas num dia. No bispado de Trier (Alemanha), em 1585, 
duas aldeias foram deixadas, cada uma, com apenas uma habitante mulher. Muitos escritores estimam 
 
5 Período do século XVII que sucedeu ao Renascimento e precedeu o surgimento do Iluminismo (séc. XVIII), caracterizado 
como princípio da filosofia moderna. Foi o fim do lento processo que levou à distinção entre filosofia e teologia, ou seja, 
abandonando as explicações da realidade (humana ou não) com base na existência de deus. (N.T.) 
 5 
que a quantidade total de pessoas assassinadas foi de milhões. As mulheres perfaziam em torno de 85 
por cento dos executados – mulheres mais velhas, jovens e crianças*. 
A envergadura da caça às bruxas, por si só, sugere um fenômeno de profundas raízes sociais e 
que vai muito além da história da medicina. Em termos de local e época, os mais virulentos ataques às 
bruxas estiveram associados com períodos de grande convulsão social que abalaram o feudalismo em 
seus fundamentos – insurreições e conspirações da massa de camponeses, as origens do capitalismo e 
o nascimento do Protestantismo. Há evidências fragmentárias – que as feministas devem aprofundar - 
sugerindo que em alguns locais a bruxaria representou uma rebelião de mulheres camponesas. Neste 
texto não cabe explorar com profundidade o contexto histórico de caçada às bruxas. Porém, devemos 
ir além de alguns mitos comuns com respeito à ira contra as bruxas – mitos que tiram das “bruxas” 
qualquer dignidade e imputam culpas a elas e aos camponeses a quem elas serviam. 
Infelizmente, as próprias bruxas – pobres e analfabetas – não nos deixaram sua história. Ela 
foi registrada, como todas as histórias, por uma elite instruída, de tal forma que hoje conhecemos as 
bruxas através dos olhos de seus perseguidores. 
Duas das mais conhecidas teorias sobre a perseguição às bruxas são basicamente interpretações 
médicas, que atribuem o ódio às bruxas como uma inexplicável explosão de histeria das massas 
populares. Uma versão sustenta que os camponeses enlouqueceram. De acordo com ela, o ódio às 
bruxas foi uma epidemia de rancor da massa popular e de pânico, representada em imagens de turbas 
sanguinárias de camponeses carregando tochas de fogo. Outra interpretação psiquiátrica assegura que 
as bruxas eram, elas mesmas, dementes. Um historiador psiquiátrico de renome, Gregory Zilboorg, 
escreveu que: 
 
... milhares de bruxas, feiticeiras, mulheres possuídas e atormentadas, formavam uma enorme massa de 
neuróticos (e) psicóticos graves... por muitos anos o mundo pareceu um verdadeiro asilo de loucos... 
 
Mas, na verdade, o ódio às bruxas não foi nem resultante de um grupo de linchadores nem o 
suicídio em massa de mulheres histéricas. Ao contrário, ele obedeceu a procedimentos legais bem 
constituídos. A fúria contra as bruxas foi fruto de campanhas bem organizadas, iniciadas, financiadas e 
executadas pela Igreja e pelo Estado. Tanto para os caçadores de bruxas católicos como protestantes, a 
autoridade inquestionável sobre como proceder a uma caçada de bruxa era o Malleus Maleficarum, ou 
o Hammer of Witches [O martelo das bruxas], escrito em 1484 pelos Reverendos Kramer e Sprenger 
(os “bem amados filhos” do Papa Inocêncio VIII). Por três séculos este livro sádico esteve na cátedra 
de cada juiz e de cada caçador de bruxa. Numa longa seção sobre procedimentos judiciais, as instruções 
deixam claro como o clima de “histeria” se construía. 
A tarefa de iniciar o julgamento de uma bruxa deveria ser realizada tanto pelo Vigário (sacerdote) 
como pelo Juiz do condado, que devia publicar um anúncio para 
 
orientar, ordenar, exigir e advertir que dentrodo espaço de doze dias... eles devem revelar-nos se alguém 
sabe, conhece ou ouviu falar de alguma pessoa que é denunciada como sendo um herege ou uma bruxa, ou de 
alguém que é suspeito especialmente de ser adepto de certas práticas como causar prejuízos aos homens, ao 
gado, ou aos frutos da terra, com o que o Estado sai perdendo. 
 
Alguém que soubesse de uma bruxa e não a denunciasse encarava tanto a excomunhão como 
uma longa lista de punições temporais. 
Caso esses anúncios ameaçadores levassem à descoberta de, pelo menos, uma bruxa, o seu 
julgamento poderia ser usado para revelar algumas outras mais. Kramer e Sprenger davam instruções 
 
* Estamos omitindo desta discussão qualquer menção aos julgamentos de bruxas ocorridos na Nova Inglaterra (América do 
Norte) nos anos 1600. Esses julgamentos ocorreram em escala relativamente pequena, no final do período de caça às bruxas, 
e num contexto social inteiramente diferente daquele ocorrido na perseguição contra as bruxas na Europa. (Nota das 
autoras) 
 6 
detalhadas sobre o uso de torturas para forçar confissões e acusações posteriores. Como regra geral, a 
acusada era despida de toda sua roupa e tinha todos os pelos do corpo raspados, sendo então submetida 
ao thumbscrew6 e ao ecúleo7, a pregos e a “botas” trituradoras dos ossos, à fome e ao espancamento. A 
questão é evidente: o ódio às bruxas não surgiu espontaneamente entre os camponeses. Ele foi uma 
campanha de terrorismo calculadamente orquestrada pelas classes dominantes. 
 
 
OS CRIMES DAS BRUXAS 
 
Quem eram, então, as bruxas e quais eram os seus crimes para que provocassem tão perversa 
reação por parte das elites? Indubitavelmente, ao longo dos séculos de caça às bruxas, o rótulo de 
“bruxaria” veio para encobrir uma variedade de comportamentos transgressores que iam da subversão 
política e da heresia religiosa à licenciosidade e blasfêmia. Porém, três acusações centrais surgem 
repetidamente na história da bruxaria, no norte da Europa: em primeiro lugar, as bruxas eram acusadas 
de cometerem os mais inconcebíveis crimes sexuais contra os homens. Em rápidas palavras, elas eram 
“acusadas” de exercer a sexualidade feminina. Em segundo lugar, elas eram acusadas de se organizar. 
E em terceiro lugar, elas eram acusadas de possuir poderes mágicos capazes de afetar a saúde – 
causando prejuízos, mas também curando. Com frequência, as bruxas eram incriminadas, 
especificamente, de possuírem habilidades médicas e obstétricas. 
Primeiramente, consideremos a acusação de crimes sexuais. A Igreja Católica medieval 
incorporava o sexismo8 nos seus princípios: o Malleus declara, “quando uma mulher pensa sozinha, ela 
pensa no mal”. Se a misoginia9 da Igreja não se comprova pelo próprio ódio às bruxas, fica 
demonstrada nos seus ensinamentos de que o homem, durante o ato sexual, deposita na fêmea um 
homúnculo, ou uma “pessoa pequena”, já com alma, que simplesmente fica hospedada no ventre 
feminino por nove meses, sem adquirir nenhum atributo da mãe. No entanto, este homúnculo, em 
verdade não está a salvo, até que possa novamente voltar às mãos masculinas, quando um sacerdote o 
batiza, assegurando assim a salvação de sua alma imortal. 
Outra fantasia deprimente de alguns pensadores religiosos do período medieval era que, por 
ocasião da ressurreição, todo ser humano renasceria como homem! 
A Igreja associava mulheres ao sexo, e todo o prazer sexual era condenado, porque ele poderia 
tão somente vir do demônio. Supunha-se que as bruxas tinham prazer na cópula com o diabo (apesar 
dele ter fama de ter o órgão congelado) e que depois infectavam os homens. O apetite sexual tanto do 
marido como da esposa era, então, visto como culpa da mulher. Por outro lado, as bruxas eram 
acusadas de tornarem os homens impotentes e de causarem o atrofiamento de seus pênis. No que diz 
respeito à sexualidade feminina, as bruxas ainda eram acusadas de fornecer contraceptivos e de realizar 
abortos: 
 
Agora existem, tal como está escrito na Bula Papal, sete métodos pelos quais elas infectam com bruxaria o ato 
venéreo e a concepção do ventre: primeiro, induzindo as mentes masculinas a uma paixão desordenada; 
segundo, obstruindo a sua força reprodutora; terceiro, eliminando os membros necessários para o ato; quarto, 
transformando os homens em animais através de suas magias; quinto, destruindo a força reprodutora nas 
mulheres; sexto, provocando abortos; sétimo, oferecendo crianças aos demônios, bem como outros animais e 
frutas com o que provocam bastante danos... 
 (Malleus Maleficarum) 
 
6 thumbscrew: antigo instrumento de tortura com que se comprimiam os polegares dos supliciados. (N.T.) 
7 ecúleo: instrumento de tortura, cavalete (ibidem). (N.T.) 
8 sexismo: conjunto de estereótipos quanto à aparência, atos, habilidades, emoções e papel apropriado na sociedade, de 
acordo com o sexo. Apesar de também estereotipar o homem, mais frequentemente, o sexismo reflete preconceitos contra o 
sexo feminino. (N.T.) 
9 misoginia: antipatia, aversão mórbida às mulheres. (N.T.) 
 7 
 
Aos olhos da Igreja, todo o poder das bruxas derivava, em última análise, de sua sexualidade. Sua 
carreira começava pelo ato sexual com o diabo. Cada bruxa era confirmada numa assembleia geral (o 
Sabbath das bruxas) dirigida pelo demônio, presente, em geral, na forma de um bode, e que mantinha 
relações sexuais com as neófitas. Em troca do seu poder, a bruxa prometia servi-lo com fidelidade. (Na 
imaginação da Igreja até mesmo o mal só poderia ser pensado como dirigido pelos homens!). 
Conforme o Malleus deixa claro, o demônio quase sempre age através da mulher, exatamente como fez 
no Éden: 
 
Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que é insaciável na mulher... Por isso, com o propósito de satisfazer 
seus apetites elas se relacionam com demônios... e está suficientemente claro que não se deve surpreender por 
se constatar que existem muito mais mulheres do que homens contaminados com a heresia da bruxaria... E 
abençoado seja o Altíssimo que preservou o sexo masculino de tamanho crime... 
 
As bruxas não eram somente mulheres – elas eram, sim, mulheres que pareciam estar 
organizadas numa enorme sociedade secreta. Uma bruxa que se comprovasse como membro da “facção 
do Demônio” era mais medonha do que uma que atuasse sozinha, e a literatura sobre caça às bruxas é 
obcecada sobre o que acontecia nos “Sabbaths” das bruxas. (Comilança de bebês não batizados? 
Bestialismo e orgias grupais? Assim seguiam suas especulações sinistras...) 
De fato, há evidências de que as mulheres acusadas de serem bruxas se encontravam 
localmente com pequenos grupos e que esses grupos chegavam juntos em multidões de centenas ou 
milhares para os dias de festival. Alguns escritores especulam que os encontros eram ocasiões para 
cultos religiosos pagãos. Sem dúvida, os encontros eram também ocasiões para permutar 
conhecimentos sobre ervas e passar adiante as novidades. Temos poucas evidências sobre o 
significado político das organizações de bruxas, porém, é difícil imaginar que elas não estavam 
relacionadas com as revoltas de camponeses daquele tempo. Qualquer organização de camponeses, 
exatamente por ser uma organização, atrairia dissidentes, reforçaria a comunicação entre vilarejos, e 
construiria um espírito de coletividade e de autonomia entre os camponeses. 
 
 
AS BRUXAS COMO CURANDEIRAS 
 
Chegamos agora à mais fantástica acusação de todas: a bruxa é acusada não apenas de matar e 
envenenar, de realizar crimes sexuais e conspirações – mas também de ajudar e curar pessoas. Um 
líder inglês na caça às bruxas assim registrou: 
 
Por isso devemos sempre lembrar,como conclusão, que por bruxos entendemos não apenas aqueles que 
matam e atormentam, mas todos os adivinhos, feiticeiros, prestidigitadores e mágicos, vulgarmente 
conhecidos como homem sábio e mulher sábia... e no mesmo grupo nós computamos todas as boas Bruxas, 
aquelas que não prejudicam mas fazem o bem, aquelas que não roubam nem destróem, mas que salvam e 
fazem partos... Seria mil vezes melhor para a terra se todas as Bruxas, mas especialmente a boa Bruxa, fossem 
mortas. 
 
As bruxas-curandeiras eram, frequentemente, as únicas praticantes da medicina geral para uma 
população que carecia de médicos e hospitais, e que sofria amargamente por causa da pobreza e da 
doença. Em particular, era muito forte a associação entre bruxa e parteira: “Ninguém causa maior 
prejuízo à Igreja Católica do que as parteiras”, escreveram os caçadores de bruxa Kramer e Sprenger. 
A própria Igreja tinha muito pouco a oferecer para atender o sofrimento dos camponeses: 
 
Aos Domingos, depois da Missa, os doentes vinham em vintenas, clamando por ajuda – e palavras era tudo 
que eles conseguiam: “Vocês pecaram, e por isso Deus os está afligindo. Agradeçam a Ele; vocês sofrerão 
 8 
bem menos tormentos na vida que está por vir. Suportar, sofrer, morrer. Por ocaso, a Igreja não tem orações 
para mortos? 
 (Jules Michelet, Satanism and Witchcraft) 
 
Quando colocada diante da miséria do pobre, a Igreja alegava o dogma de que a experiência 
neste mundo é fugaz e sem importância. Mas aí havia duas medidas em uso, pois a Igreja não era 
contra os cuidados médicos para as classes mais abastadas. Reis e nobres tinham seus médicos na corte, 
que eram homens e, às vezes, até mesmo sacerdotes. O verdadeiro objetivo era o controle: homens da 
classe dominante que curavam sob os auspícios da Igreja eram aceitáveis; mulheres que curavam, como 
parte da subcultura camponesa, não o eram. 
A Igreja via no ataque aos curandeiros camponeses um ataque à magia, não à medicina. 
Acreditava-se que o diabo tinha real poder na terra, e o uso deste poder pelas mulheres camponesas – 
fosse para o bem ou para o mal – era alarmante para a Igreja e para o Estado. Quanto maior fossem 
seus poderes satânicos de ajudar a si mesmas, menos elas dependeriam de Deus e da Igreja, e mais 
potencialmente hábeis elas seriam para utilizar seus poderes contra a ordem divina. Julgava-se que as 
benzedeiras eram, em última instância, tão eficazes na cura dos doentes quanto as orações; ocorre que a 
oração era sancionada e controlada pela Igreja, enquanto os encantamentos e benzimentos não o eram. 
Portanto, as curas por magia, mesmo quando bem sucedidas, eram uma interferência amaldiçoada 
contra a vontade de Deus, consumadas com a ajuda do demônio, e a própria cura seria um mal. Não 
havia maiores problemas em distinguir as curas feitas por Deus daquelas feitas pelo diabo, pois era 
óbvio que Deus atuaria através de sacerdotes e médicos, antes de fazê-lo através de mulheres 
camponesas. 
A mulher sábia, ou a bruxa, dispunha de um arsenal de remédios que foram testados durante 
anos de uso. Muitos dos remédios na base de ervas desenvolvidos pelas bruxas ainda têm seu lugar na 
moderna farmacologia. Elas dispunham de analgésicos, de digestivos e de agentes anti-inflamatórios. 
Elas usavam o ergot10 para a dor provocada pelo trabalho de parto, num tempo em que a Igreja 
sustentava que a dor do parto era a justa punição de Deus por causa do pecado original cometido por 
Eva. Os derivados do ergot são as principais drogas hoje utilizadas para acelerar o trabalho de parto e 
para auxiliar na recuperação pós-parto. A beladona – ainda usada hoje como antiespasmódico – era 
utilizada pelas bruxas curandeiras para inibir as contrações uterinas em casos de ameaça de aborto. A 
digitalis, uma droga ainda importante no tratamento das doenças cardíacas, diz-se que foi descoberta 
por uma bruxa inglesa. Sem sombra de dúvidas, muitos outros remédios das bruxas eram puramente 
mágicos, e deviam sua eficácia – se eles tinham alguma - à reputação de quem os usava. 
Os métodos das bruxas curandeiras eram tão grande ameaça (para a Igreja Católica, e também 
para a Protestante) quanto seus resultados, pois a bruxa era uma empirista: ela confiava mais no seus 
sentidos do que na fé ou na doutrina, ela acreditava em ensaio e erro, causa e efeito. Sua atitude não era 
passiva diante da religião, mas ativamente questionadora. Ela confiava em sua habilidade para 
encontrar meios de enfrentar doenças, gravidez e nascimentos – fosse por meio de medicamentos ou 
benzimentos. Em resumo, sua mágica era a ciência do seu tempo. 
A Igreja, ao contrário, era profundamente antiempírica. Ela desprezava o valor do mundo 
material, e tinha uma extrema desconfiança dos sentidos. Não tinha sentido procurar leis naturais que 
governassem fenômenos físicos, pois o mundo é recriado por Deus a cada novo instante. Kramer e 
Sprenger, no Malleus, citavam Santo Agostinho quanto ao caráter enganoso dos sentidos: 
 
... Agora o estímulo da vontade é alguma coisa percebida através dos sentidos ou do intelecto, e ambos estão 
sujeitos ao poder do demônio. Pois Santo Agostinho diz no Livro 83: este mal, que provém do demônio, 
 
10 ergot: cravagem do centeio; cravagem é um reserva negra ou roxa-escura de fungos que ocorre em forma de bastonete no 
lugar das sementes de muitas gramíneas, principalmente o centeio. A cravagem do centeio produz várias substâncias 
alcalóides como a ergotamina, a ergonovina, a ergotinina etc. (N.T.) 
 9 
move-se furtivamente e chega através de abordagens sensuais; ele se coloca em figuras, e adapta a si mesmo 
em cores, liga-se a sons, oculta-se em conversas inflamadas e nocivas, permanece nos odores, impregna-se de 
sabores e enche com certas exalações todos os meios de entendimento. 
 
Os sentidos são o “parque de diversões” do demônio, a arena para a qual ele tentará seduzir o 
homem afastando-o da Fé, seja por meio dos conceitos do intelecto, seja pelas ilusões da carnalidade. 
Na perseguição à bruxa coincidem as obsessões antiempirista, misógina e antissexual da Igreja: 
o empirismo e a sexualidade representam, ambos, uma derrota para os sentidos, uma traição à fé. A 
bruxa é uma tripla ameaça à Igreja: ela era uma mulher, e não se envergonhava disso. Ela parecia fazer 
parte de uma organização secreta de mulheres camponesas. E ela era uma curandeira cuja prática estava 
baseada em estudos empíricos. Diante do fatalismo repressivo da Cristandade, ela significou uma 
esperança de mudança neste mundo. 
 
 
O SURGIMENTO DA PROFISSÃO MÉDICA NA EUROPA 
 
Enquanto as bruxas praticavam no meio do povo, as classes dominantes cultivavam sua própria 
estirpe de curandeiros seculares: os médicos treinados em universidades. No século que precedeu o 
início da “fúria às bruxas” – o século 13 – a medicina europeia estabeleceu-se firmemente como uma 
ciência secular e como uma profissão. A profissão médica esteve ativamente engajada na eliminação de 
mulheres curandeiras – a sua exclusão das universidades, por exemplo – muito antes de se iniciarem as 
caças às bruxas. 
Por oito longos séculos, do quinto ao décimo terceiro, a postura antimédica e de valorizar o 
outro-mundo (divino), por parte da Igreja, impediu o desenvolvimento da medicina como uma 
profissão respeitável. Então, no século 13, houve o restabelecimento da vontade de aprender, como 
decorrência do contato com o mundo árabe. Escolas médicas apareceram nas universidades, e cada vez 
mais homens jovens de posses procuravam treinamento médico. A igreja impôs controle rigoroso sobre 
a nova profissão, e permitiu que ela se desenvolvesse apenas dentro dos limites fixados pela doutrina 
católica. Aos médicos comformação universitária não era permitido atuar sem que um sacerdote fosse 
chamado para ajudá-los e aconselhá-los, ou para atender pacientes que se recusavam a fazer confissão. 
No século 14, havia uma demanda entre os ricos pelo exercício profissional dos médicos, desde que 
estes demonstrassem que a atenção dada ao corpo não colocaria em risco a alma. Na verdade, registros 
desses treinamentos médicos parecem mostrar que o que eles colocavam em risco era o corpo. 
Não havia nada nos treinamentos médicos, no período do medieval tardio, que fosse conflitante 
com a doutrina da igreja, e muito pouco do que poderíamos reconhecer como “ciência”. Os estudantes 
da medicina, assim como outros jovens estudantes, passavam anos estudando Platão, Aristóteles e 
teologia cristã. A sua teoria médica estava restrita aos trabalhos de Galeno, o antigo médico romano 
que enfatizou a teoria dos “complexos” ou “temperamentos” dos homens, “segundo a qual o tipo 
colérico é raivoso, o tipo sangüíneo é bondoso, o tipo melancólico é invejoso”, e assim por diante. 
Enquanto era estudante, um médico freqüentemente não via paciente algum e nenhuma experimentação 
era utilizada no ensino. A medicina era bastante distinta da cirurgia, esta sendo considerada uma tarefa 
degradante e braçal em quase toda parte. A dissecação de corpos era algo quase desconhecido. 
Diante de uma pessoa doente, o médico com treinamento universitário não tinha muito o que 
fazer, a não ser usar a superstição. A sangria era uma prática bastante comum, especialmente no caso 
de ferimentos. Sanguessugas eram aplicadas de acordo com o tempo, a hora, o ar e outras 
considerações semelhantes. As teorias médicas eram em geral fundamentadas mais na “lógica” do que 
na observação: “alguns alimentos trazem bons humores, e outros maus humores. Por exemplo, o 
 10 
nasturtium11, a mostarda e o alho produzem bile avermelhada; lentilhas, couve, carne de bode velho e 
carne de gado acarretam bile preta.” Encantamentos e rituais quase religiosos eram tidos como 
eficazes: o médico de Eduardo II [rei inglês, de 1307 a 1327], que chegou ao grau de bacharel em 
teologia e ao doutorado em medicina, por Oxford, prescrevia para dor de dente que se escrevesse nos 
maxilares do paciente, “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém”, ou então que se tocasse 
com uma agulha numa lagarta e depois no dente. Um tratamento comum para leprosos era uma sopa 
feita com a carne de uma serpente negra capturada em terra seca, entre pedras. 
Este era o estado da medicina “científica” no tempo em que as bruxas foram perseguidas por 
serem praticantes de “magia”. Foram as bruxas que desenvolveram um longo conhecimento sobre 
ossos e músculos, ervas e drogas, enquanto os médicos ainda derivavam seus prognósticos a partir da 
astrologia e os alquimistas tentavam transformar chumbo em ouro. Tão grande era o conhecimento das 
bruxas que, em 1527, Paracelsus, considerado o “pai da medicina moderna”, queimou sua obra sobre 
farmacêutica, confessando que ele “havia aprendido de uma Feiticeira tudo que ele sabia”. 
 
 
A SUPRESSÃO DAS MULHERES CURANDEIRAS 
 
E estabelecimento da medicina como uma profissão, tendo como requisito a formação 
acadêmica, facilitou a exclusão legal das mulheres do seu exercício. Com poucas exceções, as 
universidades estavam fechadas às mulheres (mesmo para mulheres da elite que tinham recursos para 
tanto), e leis normatizando a diplomação foram feitas para proibir a prática de todos que não fossem 
doutores treinados em universidades. Mas era impossível fazer cumprir de forma consistente as leis que 
regulavam o exercício da profissão, pois existia um número muito reduzido de médicos universitários 
em comparação com a grande massa de curandeiros leigos. As leis, no entanto, poderiam ser usadas 
seletivamente. O primeiro alvo destas leis não era o camponês curandeiro, mas as mulheres curandeiras 
instruídas e com melhor situação financeira, que competiam pela mesma clientela urbana dos médicos 
universitários. 
Tome-se, por exemplo, o caso de Jacoba Felicie, levada a julgamento em 1322 pela Faculdade 
de Medicina da Universidade de Paris, com acusações de prática ilegal. Jacoba era pessoa letrada e 
tinha recebido alguns “treinamentos especiais” não específicos em medicina. Que os seus pacientes 
eram de boa situação financeira fica evidente a partir do fato de que (como eles atestaram na corte 
judicial) haviam procurado médicos universitários bem famosos, antes de recorrerem a ela. As 
acusações básicas contra Jacoba eram que 
 
... ela curava seus pacientes de doenças internas e feridas ou abcessos externos. Ela visitava os doentes 
assiduamente e continuava a examinar a urina à maneira dos médicos, a sentir o pulso e a tocar o corpo e os 
membros. 
 
Seis testemunhas afirmaram que Jacoba as curou, mesmo depois que diversos médicos tinham 
desistido, e um paciente declarou que ela era tão experiente na arte da cirurgia e medicina quanto 
qualquer mestre doutor ou cirurgião de Paris. Porém, estes testemunhos foram utilizados contra ela, 
pois a acusação não era de que fosse incompetente, mas porque – como mulher – ousou curar. 
Sustentados na mesma argumentação, médicos ingleses enviaram uma petição ao Parlamento 
lamentando que “mulheres desprezíveis e presunçosas usurpavam a profissão” e reivindicando a 
imposição de penalidades e “encarceramento prolongado” para qualquer mulher que procurasse “usar a 
prática da Física”. Durante o século 14, a campanha da profissão médica contra mulheres curandeiras 
urbanas e instruídas estava virtualmente consolidada em toda a Europa. Os médicos homens tinham 
 
11 nasturtium: gênero ao qual pertencem diversas plantas, entre elas o agrião e a capuchinha, como são conhecidas no Brasil. 
(N.T.) 
 11 
conquistado um evidente monopólio das práticas de medicina entre as classes dominantes (com 
exceção da obstetrícia, que permaneceu um campo para parteiras mulheres por outros três séculos, 
mesmo entre as classes abastadas). Eles estavam prontos para desempenhar um papel chave na 
eliminação da grande massa de mulheres curandeiras – as “bruxas”. 
A parceria entre Igreja, Estado e profissão médica atingiu pleno florescimento nos julgamentos 
de bruxas. O doutor foi apresentado como o “expert” médico, conferindo uma aura de ciência a todo o 
processo. Ele era chamado a julgar se certas mulheres eram bruxas, ou se certos agravos tinham sido 
causados por bruxaria. O Malleus afirma que: “e se for perguntado sobre como é possível diferenciar se 
uma enfermidade é causada por bruxaria ou por algum defeito físico natural, nós respondemos que a 
primeira (forma) é através do julgamento de doutores...” (ênfase das autoras). Na caçada às bruxas, a 
Igreja explicitamente legitimou o profissionalismo dos médicos, denunciando a cura feita por não-
profissionais como equivalente à heresia: “se uma mulher ousa curar sem que tenha estudado para isso, 
ela é uma bruxa e deve morrer.” (Por suposto, não havia nenhuma forma para uma mulher poder 
estudar). Finalmente, a fúria contra as bruxas forneceu uma cômoda explicação para as falhas do 
médico em sua prática diária: tudo que ele não podia curar era, obviamente, resultado de feitiçaria. 
A distinção entre superstição “feminina” e medicina “masculina” se afirmava pelas posições 
ocupadas pelo médico e pela bruxa durante o julgamento. O julgamento, num único lance, situava o 
médico homem num plano moral e intelectual muito acima da mulher curandeira a quem ele era 
chamado a julgar. Isto o colocava ao lado de Deus e da Lei, um profissional no mesmo patamar dos 
advogados e teólogos, enquanto a mulher era posta no lado das trevas, do mal e da magia. Ele devia o 
seu novo status não aos seus própriosméritos científicos ou médicos, mas à Igreja e ao Estado, aos 
quais servia fielmente. 
 
 
AS CONSEQUÊNCIAS 
 
A caça às bruxas não eliminou a mulher curandeira oriunda de classes populares, mas 
estigmatizou-a para sempre como supersticiosa e potencialmente malévola. Ela foi tão cabalmente 
desacreditada entre as classes médias emergentes que nos séculos 17 e 18 foi possível aos praticantes 
homens realizar sérias incursões no último campo que restava às mulheres curandeiras – a obstetrícia. 
Homens praticantes não profissionais – os “cirurgiões-barbeiros” - conduziram o ataque na Inglaterra, 
alegando superioridade técnica com base no uso que faziam de fórceps obstétricos. (O fórceps era 
legalmente classificado como um instrumento cirúrgico, e as mulheres estavam legalmente impedidas 
da prática cirúrgica). Nas mãos dos cirurgiões-barbeiros, a prática obstétrica entre as classes médias foi 
rapidamente transformada de um serviço acessível para um negócio lucrativo, no qual os médicos 
legitimados entraram com força no século 18. Mulheres parteiras da Inglaterra organizaram-se e 
acusaram os intrusos do sexo masculino de mercantilismo e de abuso perigoso do fórceps. Porém, era 
muito tarde – as mulheres foram facilmente suplantadas como “velhas” ignorantes, aferradas às 
superstições do passado. 
 
 
 
 
AS MULHERES E O SURGIMENTO DA PROFISSÃO MÉDICA NA AMÉRICA DO NORTE 
 
 
Nos Estados Unidos, a apropriação masculina do campo da saúde se deu mais tarde do que na 
Inglaterra ou na França, mas acabou se consolidando muito mais. Provavelmente não exista um país 
industrializado com menor porcentagem de mulheres médicas do que nos EUA de hoje: a Inglaterra 
 12 
tem 24 por cento; a Rússia, 75 por cento; os Estados Unidos têm apenas 7 por cento. Embora a atenção 
obstétrica feita por mulheres seja ainda uma próspera ocupação na Escandinávia, no Reino Unido, na 
Holanda, etc., ela tem sido virtualmente dizimada nos EUA desde o início do século 20. Por volta da 
virada do século, a medicina norteamericana estava praticamente fechada para todas as mulheres, com 
exceção de uma pequena minoria de mulheres tenazes e abastadas. O que restava para as demais era a 
enfermagem, e esta não era, de modo algum, um substituto para o trabalho autônomo com que as 
mulheres se gratificavam enquanto eram parteiras e curandeiras. 
A pergunta não é tanto como as mulheres foram “afastadas” da medicina e deixadas com a 
enfermagem, mas como estas duas categorias profissionais foram construídas? Colocando a questão em 
outras palavras: como um grupo particular de praticantes na saúde – não por acaso homens, brancos e 
de classe média – conseguiram excluir todos os outros competidores: curandeiros, parteiras e outros 
trabalhadores da saúde que haviam dominado o cenário médico norteamericano no início dos anos 
1800? 
A resposta convencional dada por historiadores da medicina é, naturalmente, que sempre 
existiu, em realidade, uma verdadeira profissão médica na América do Norte – a de um segmento de 
homens cuja autoridade científica e moral provinha diretamente de Hipócrates, Galeno e outros ilustres 
médicos europeus. Nas regiões ainda por desbravar da América do Norte, estes doutores tiveram que 
enfrentar não apenas problemas rotineiros como as enfermidades e a morte, mas também os desaforos 
de uma horda de praticantes leigos – em geral identificados como mulheres, ex-escravos, índios e 
bêbados vendedores de medicamentos. Felizmente para a profissão médica, no final do século 19, a 
população norteamericana rapidamente desenvolveu um saudável respeito pelo conhecimento científico 
dos médicos, superou suas antigas crenças em charlatões e garantiu à verdadeira profissão médica um 
monopólio duradouro nas artes de curar. 
Porém, a resposta verdadeira não está neste falso conflito entre ciência versus ignorância e 
superstição. Ela faz parte da longa história do século 19, quando as lutas de classe e de sexo pelo poder 
aconteciam em todas as áreas da vida social. Quando as mulheres tinham lugar na medicina, tratava-se 
de uma medicina popular. Quando aquela medicina popular foi destruída, não houve mais lugar para as 
mulheres – exceto no papel subserviente de enfermeiras. O grupo de curandeiros que se tornou a 
profissão médica, não se distinguia tanto pelas suas associações com a moderna ciência, mas por suas 
associações com o estabelecimento emergente de negócios na América do Norte. Com o devido 
respeito a Pasteur, Koch e outros grandes pesquisadores médicos europeus do século 19, foram os 
Carnegies e os Rockfellers12 quem interferiram para assegurar a vitória final da profissão médica 
norteamericana. 
Os Estados Unidos, em 1800, apresentavam condições muito pouco promissoras para o 
desenvolvimento de uma profissão médica, ou inclusive, de qualquer outra profissão. Poucos médicos 
com formação acadêmica para lá emigraram vindos da Europa. Havia muito poucas escolas de 
medicina na América do Norte e pouquíssimas instituições de ensino superior em geral. O público, 
recém-saído de uma guerra de libertação nacional, era hostil ao profissionalismo e aos elitismos 
“estrangeiros” de qualquer tipo. 
Na Europa ocidental, médicos formados em universidades já detinham há séculos o monopólio 
do direito de curar. Mas na América do Norte, a prática médica era tradicionalmente livre para qualquer 
um que fosse capaz de mostrar habilidades em curar, independentemente de ter formação acadêmica, 
de raça ou de sexo. Ann Hutchinson, a líder religiosa dissidente dos anos 1600, era praticante da ‘física 
geral”, assim como eram muitos outros ministros religiosos e suas esposas. O historiador médico 
Joseph Kett relata que “um dos mais respeitados médicos do final do século 18 em Windson, 
Connecticut, por exemplo, foi um ex-escravo negro chamado ‘Dr. Primus’. Em New Jersey, a prática 
 
12 Duas das famílias que mais acumularam riquezas no EUA, entre o final do séc. 19 e início do séc. 20. (N.T.) 
 13 
médica, com exceção de casos extraordinários, estava principalmente nas mãos de mulheres até o ano 
1818...” 
As mulheres frequentemente praticavam em associação com seus maridos: o marido dedicando-
se à cirurgia, a esposa dando assistência ao parto e exercendo a ginecologia, e tudo mais sendo 
compartilhado. Uma mulher poderia dedicar-se à sua profissão ou depois de desenvolver habilidades 
praticando cuidados com alguns membros da própria família, ou através da aprendizagem com um 
parente ou outro curandeiro já estabelecido. Por exemplo, Harriet Hunt, uma das primeiras médicas 
norteamericanas, interessou-se por medicina durante a enfermidade de sua irmã, trabalhando durante 
algum tempo numa equipe “médica” formada por um casal (esposa-marido), e depois se estabelecendo 
com o próprio nome. (Apenas mais tarde ela empreendeu os estudos formais). 
 
 
ENTRE EM CENA O DOUTOR 
 
No início dos anos 1800, havia também um crescente número de médicos com formação 
universitária que se esforçava para manter distinção entre eles próprios e o exército de praticantes 
leigos. A distinção concreta mais importante era que os formados em universidades, ou médicos 
“regulares” como eles mesmos se chamavam, eram homens, em geral da classe média, e cujos serviços 
eram, quase sempre, mais caros do que os de seus competidores leigos. O trabalho dos “regulares” era, 
em grande parte, limitado às pessoas de classes média e alta que poderiam dar-se ao luxo de serem 
tratadas por um “cavalheiro” da sua própria classe social. Por volta de 1800, já era moda entre as 
mulheres de classes média e alta utilizarem os serviços de médicos “regulares” homens para o 
atendimento obstétrico – um costume que as pessoas comuns viamcomo muito indecente. 
Em termos de habilidades médicas e conhecimento teórico, os assim chamados “regulares” nada 
tinham a mais para recomendar do que os praticantes leigos. Seus “estudos formais” significavam 
muito pouco mesmo para os padrões europeus da época: Os programas médicos variavam, em 
extensão, de poucos meses a dois anos; muitas escolas médicas não dispunham de recursos para o 
exercício da clínica; os diplomas de segundo grau não eram exigidos para admissão em escolas 
médicas. Não que um sério treinamento acadêmico pudesse ajudar muito em alguma coisa – não havia 
uma ciência médica a ser aprendida. Pelo contrário, os “regulares” aprendiam a tratar muitas das 
doenças com medidas “heróicas”: sangria abundante, doses altíssimas de laxativos, uso do calomel13 e, 
mais tarde, o ópio. (A profissão médica na Europa tampouco tinha melhor a oferecer naquele tempo). 
Não há dúvidas que essas “curas” eram quase sempre fatais ou mais prejudiciais do que a doença 
original. Na opinião de Oliver Wendell Holmes, ele próprio um famoso médico, se todos os 
medicamentos utilizados pelos doutores “regulares” dos EUA fossem lançados ao mar, isso seria bem 
melhor para a humanidade, porém, muito pior para os peixes. 
Os praticantes leigos eram, indubitavelmente, mais seguros e mais eficazes do que os 
“regulares”. Eles preferiam os medicamentos à base de ervas leves, mudanças na dieta e o toque no 
paciente do que praticar intervenções “heróicas”. Possivelmente eles não soubessem muito mais do que 
os “regulares”, mas, ao final, eram menos nocivos aos pacientes. Sem outras injunções, eles poderiam 
muito bem ter ocupado o espaço dos médicos “regulares”, mesmo entre a clientela da classe média, o 
fato é que não tinham os “aliados” necessários. Os “regulares”, com suas ligações muito estreitas com 
as classes dominantes, tinham influência na formulação de leis. Em 1830, 13 estados norteamericanos 
tinham aprovado leis de licenciamento médico proibindo práticas “irregulares” e legitimando os 
“regulares” como os únicos a terem licença legal para curar. 
 
13 calomel, ou calomelano, é um sal branco (Hg2Cl2, cloreto de mercúrio), insípido, encontrado na natureza como mineral, 
obtido pela precipitação de uma solução, ou por sublimação de uma mistura de mercúrio e cloro. É usado como catártico, 
antissifilítico, fungicida e inseticida. (N.T.) 
 14 
Este foi, porém, um passo precoce. Não havia apoio popular para a idéia de um 
profissionalismo médico, e ainda menos apoio para aquele grupo que o pleiteava. Não havia meios de 
se fazer cumprir as novas leis: os curandeiros de confiança da população não perderiam sua 
legitimidade por decreto. Pior ainda - para os “regulares” – esta tentativa prematura de monopolização 
da medicina suscitou a indignação popular, que esteve a ponto de esmagar definitivamente o elitismo 
médico na América do Norte. 
 
 
O MOVIMENTO POPULAR DE SAÚDE 
 
O Movimento Popular de Saúde ocorrido nas décadas de 1830 e 1840 é geralmente interpretado 
pelas histórias médicas convencionais como o ponto alto do charlatanismo e ocultismo médicos. Na 
verdade, ele foi a expressão, na área da saúde, de uma sublevação social mais ampla promovida por 
feministas e movimentos de classes trabalhadoras. As mulheres eram a espinha dorsal do Movimento 
Popular de Saúde. As “Sociedade Fisiológicas de Senhoras”, o equivalente aos nossos cursos de 
“conheça-o-seu-corpo”14, espalharam-se por toda parte, trazendo para plateias arrebatadas 
conhecimentos básicos sobre anatomia e higiene pessoal. A ênfase desses encontros era nos cuidados 
preventivos, em oposição aos “cuidados” sanguinários praticados pelos médicos “regulares”. O 
movimento levantou as necessidades de banhos mais frequentes (comportamento visto como um vício 
por muitos médicos “regulares” da época), roupas femininas mais folgadas, uso de grãos integrais de 
cereais, abstenção do consumo de álcool e uma série de outras questões que pudessem ter relação com 
as mulheres. E, no tempo em que a mãe de Margaret Sanger15 era ainda uma criança, alguns membros 
do movimento já incentivavam o controle da natalidade. 
O Movimento significou uma investida radical contra o elitismo médico, e uma afirmação da 
tradicional medicina popular. “Todo homem é seu próprio médico”, era o slogan de uma ala do 
Movimento, e eles deixavam muito claro que queriam dizer, também, toda mulher. Os médicos 
“regulares”, diplomados, eram atacados como membros das “classes parasitas, não-produtoras”, que 
sobreviviam apenas devido ao “sinistro gosto” das classes abastadas por calomel e sangrias. As 
universidades (onde a elite dos médicos “regulares” se formava) eram denunciadas como lugares onde 
os estudantes “aprendiam a ver o trabalho como algo servil e aviltante” e a identificar-se com as classes 
dominantes. As classes trabalhadoras radicais arregimentavam-se em torno da causa, apontando o 
“ofício do Rei”, o “ofício do Padre”, o “ofício do Advogado” e o “ofício do Médico” como sendo os 
quatro grandes males da época. No estado de New York, o Movimento estava representado junto ao 
legislativo por um membro do “Workingman’s Party”16, que aproveitava toda e qualquer oportunidade 
para atacar os “doutores privilegiados”. 
Os médicos “regulares” rapidamente se acharam em minoria e acuados. Da ala esquerdista do 
Movimento Popular de Saúde vinha uma total rejeição ao fato do trabalho médico ser uma ocupação 
remunerada – ainda mais como uma “profissão” excessivamente remunerada. Da ala moderada, 
originava-se certo número de novas filosofias médicas, ou facções, para competir com os “regulares” 
em sua própria linguagem: o Ecletismo17, o Grahamismo18, a Homeopatia19, e muitas outras de menor 
 
14 As autoras estão se referindo aos cursos organizados pelo movimento feminista, em voga na década de 1970, nos EUA, 
cujo objetivo era levar as mulheres a conhecer e se apropriar de seus corpos. (N.T.) 
15 Margareth Louise Sanger (1879-1966): enfermeira e ativista social norteamericana que dedicou sua vida à luta por tornar 
disponíveis os métodos anticoncepcionais, visando melhorar a qualidade de vida de mulheres e crianças. (N.T.) 
16 “Partido Operário”. Fundado em 1876, foi um dos primeiros partidos de influência marxista nos EUA. Foi extinto em 
1878, quando foi transformado no Socialist Labor Party (Partido Socialista Trabalhista). (N.T.) 
17 Ecletismo: escola filosófica representada pelo francês Victor Cousin (1792-1867), segundo a qual há em todo homem um 
“sentido da verdade”, que lhe permite descobrir um fragmento ou aspecto da verdade total. Ecletismo significa, ainda, 
hábito ou liberdade de escolher o que se julga melhor, na política, nas artes etc. (N.T.) 
 15 
importância. Estas novas facções implantavam suas próprias escolas (enfatizando o cuidado preventivo 
e tratamentos com ervas mais brandas), e passaram a graduar seus próprios médicos. Neste contexto de 
efervescência médica, os tradicionais “regulares” começaram a se parecer como uma outra facção, uma 
facção cuja particular filosofia costumava estribar-se no calomel, nas sangrias e em outros habituais 
recursos da medicina “heróica”. Era impossível apontar, neste quadro, quem era o “verdadeiro” 
médico, e nos anos 1840, as leis de licenciamento médico foram revogadas em quase todos os estados. 
O ponto culminante do Movimento Popular de Saúde coincidiu com os inícios de um 
movimento feminista organizado, e os dois estiveram tão entrelaçados que é muito difícil afirmar onde 
um começava e o outro terminava. “Esta cruzada pela saúde das mulheres (o Movimento Popular de 
Saúde) dizia respeito tanto à causa quanto ao efeito da demanda dos direitos das mulheres em geral, e 
neste ponto, os movimentosda saúde e o feminista tornaram-se indistinguíveis”, segundo Richard 
Shryock, conhecido historiador de medicina. O movimento da saúde interessava-se pelos direitos 
femininos em geral, e o movimento de mulheres era particularmente interessado na saúde e no acesso 
das mulheres à formação médica. 
De fato, líderes de ambos os grupos se utilizavam de estereótipos sexuais então predominantes 
para argumentar que as mulheres sempre foram melhores preparadas para ser médicos do que os 
homens. “Não podemos negar que as mulheres possuem capacidades superiores para o exercício da 
ciência médica”, escreveu Samuel Thomson, um líder do Movimento da Saúde, em 1834. (No entanto, 
ele era da opinião de que as cirurgias e os cuidados dispensados aos homens deveriam ser reservados 
aos praticantes do sexo masculino). Mais adiante, em 1852, feministas como Sarah Hale exclamavam: 
“Falam que esta (a medicina) é a esfera apropriada para o homem e apenas ele! Pois afirmamos com 
dez vezes mais plausibilidade e razão que ela é uma esfera apropriada para a mulher, e somente para 
ela.” 
As escolas das novas facções médicas, de fato, abriram suas portas para as mulheres, numa 
época em que a formação médica “regular” estava totalmente impedida a elas. Por exemplo, Harriet 
Hunt teve sua admissão negada no Harvard Medical College e, por isso, procurou uma escola de outras 
correntes para fazer seus estudos formais. (Na realidade, a faculdade de Harvard fez uma votação para 
admiti-la – bem como para alguns alunos negros do sexo masculino – mas os estudantes ameaçaram 
provocar um motim se eles ingressassem). Os médicos “regulares” poderiam levar o mérito de ter 
formado Elizabeth Blackwell, a primeira mulher médica “regular” na América do Norte, porém, a 
escola onde ela se formou (uma pequena escola do interior do estado de New York) rapidamente 
ratificou uma resolução impedindo a entrada de futuras estudantes mulheres. A primeira escola médica 
mista foi a “irregular” Eclectic Central Medical College de New York, em Syracuse. E, por fim, os dois 
primeiros colégios médicos exclusivamente para mulheres, um em Boston e outro na Filadélfia, eram 
eles próprios “irregulares”. 
 
As pesquisadoras feministas deveriam efetivamente conhecer mais sobre o Movimento Popular 
de Saúde. Da perspectiva do nosso movimento de hoje, ele provavelmente é mais relevante do que a 
luta pelo sufrágio feminino. Para nós, os aspectos mais instigantes do Movimento são: 
(1) O fato de que ele representou tanto a luta de classe como a luta feminista; hoje, está na 
moda em alguns círculos alegar que questões puramente feministas representam interesses 
só das classes médias. Porém, no Movimento Popular de Saúde, vemos uma cooperação 
 
18 Grahamismo: filosofia médica postulada pelo pastor Sylvester Graham (1794-1851), no leste dos EUA, e que se tornou 
popular na década de 1830. Exaltava os benefícios da completa abstenção do álcool, fumo e carne, e advogava o consumo 
de cereais integrais, verduras e frutas. (N.T.) 
19 Homeopatia: sistema terapêutico concebido pelo médico alemão Samuel Hahnemman (1755-1843) e que consiste no 
tratamento das doenças com doses infinitesimais de específicos capazes de produzir em uma pessoa sã efeitos análogos aos 
sintomas das doenças que se pretende combater. Depois de ser, por longo período,mjklç~]ç~]9ommm considerada uma 
medicina não científica, em 1979 é reconhecida como uma especialidade pela Associação Médica Brasileira. (N.T.) 
 16 
entre os esforços de feministas e de classes trabalhadoras. Isto se dava porque o Movimento 
Popular de Saúde naturalmente atraía dissidentes de todos os tipos, ou era porque havia 
alguma identidade de propósitos mais profunda? 
(2) O Movimento Popular de Saúde não foi apenas um movimento por mais e melhor atenção 
médica, mas por um tipo radicalmente diferente de cuidado de saúde: foi um desafio 
substantivo ao modelo, à prática e à teoria médica hegemônica. Hoje, temos a tendência de 
limitar nossas críticas à modalidade de organização dos serviços médicos, e assumimos que 
o substrato científico da medicina é inatacável. Deveríamos permanentemente desenvolver 
a capacidade de realizar estudos críticos sobre a “ciência” médica – ao menos naquilo que 
se refere às mulheres. 
 
 
A OFENSIVA DOS MÉDICOS 
 
No seu apogeu, nos anos 1830 e 1840, o Movimento Popular de Saúde fez com que os médicos 
“regulares” – os profissionais que antecederam aos médicos de hoje – ficassem amedrontados. Mais 
tarde, no século 19, com o declínio da energia proveniente das bases que o mantinha, o Movimento 
degenerou num espaço de competição entre facções, e os médicos “regulares” voltaram à ofensiva. Em 
1848, fundaram sua primeira organização nacional, pretensiosamente intitulada the American Medical 
Association (AMA). As sociedades médicas de âmbito local e estadual, muitas das quais tinham 
praticamente se dissolvido durante o clímax da anarquia médica nos anos 30 e 40, começaram a 
remodelar-se. 
Durante todo o final do século 19, os médicos “regulares” implacavelmente atacavam os 
praticantes leigos, os médicos formados em outras facções e as mulheres praticantes em geral. Os 
ataques eram interligados: as mulheres praticantes podiam ser atacadas por causa de suas inclinações 
faccionistas; as facções podiam ser atacadas por causa de sua abertura às mulheres. Os argumentos 
contra as mulheres médicas estendiam-se do paternalismo (como podia uma mulher respeitável viajar 
durante a noite para atender uma emergência médica?) ao sexismo mais vigoroso. Em seu discurso 
presidencial para a AMA, em 1871, Dr. Alfred Stille dizia: 
 
Algumas mulheres ambicionam rivalizar com o homem em esportes viris... e as mais decididas imitam a eles 
em todas as coisas, até mesmo no vestir. Ao se comportarem assim, elas podem inspirar uma espécie de 
admiração do tipo que todas as produções grotescas inspiram, especialmente quando elas têm em vista um 
modelo superior a elas mesmas. 
 
A virulência da oposição sexista norteamericana às mulheres na medicina não teve paralelo na 
Europa. Isto, provavelmente, porque: primeiro, poucas mulheres europeias aspiravam a carreira 
médica naquela época. Segundo, os movimentos feministas em nenhuma outra parte eram tão fortes 
como nos EUA, e lá os homens médicos associavam o ingresso de mulheres na medicina com o 
movimento feminista organizado, o que era um fato. E, terceiro, a profissão médica europeia já estava 
mais firmemente estabelecida e, portanto, menos apreensiva com competição. 
 
As poucas mulheres que ingressavam numa escola médica “regular” encontravam uma barreira 
sexista após outra. Em primeiro lugar, havia o constante assédio – em geral luxurioso – por parte dos 
estudantes homens. Havia professores que não tratavam de anatomia se uma mulher estivesse presente. 
Havia livros didáticos, como um bem conhecido manual obstétrico de 1848, que declarava: “Ela (a 
mulher) tem uma cabeça quase pequena demais para o intelecto, mas grande o suficiente para o amor.” 
Algumas respeitáveis teorias ginecológicas tratavam de efeitos danosos da atividade intelectual sobre 
os órgãos reprodutivos das mulheres. 
 17 
Tendo completado seus estudos acadêmicos, a mulher que aspirava ser médica quase sempre 
encontrava obstáculos já nos passos seguintes. Geralmente, os hospitais estavam fechados às médicas, e 
mesmo que não estivessem, os estágios internos eram proibidos para elas. Se, finalmente, ela 
conseguisse realizar sua prática, ia encontrar o seu confrade “regular” com má vontade em lhe referir 
pacientes, e absolutamente contrárioa que ela se tornasse um membro em suas sociedades médicas. 
E o que é surpreendente, e ao mesmo tempo lamentável para nós, mulheres, é que aquilo que 
poderíamos chamar de “movimento pela saúde das mulheres” começou, no final do século 19, a 
dissociar-se do seu passado no Movimento Popular de Saúde e a empenhar-se em granjear 
respeitabilidade. Mulheres membros de facções “irregulares” foram retiradas das faculdades de escolas 
médicas femininas. Líderes médicas como Elizabeth Blackwell uniram-se a médicos “regulares” na 
reivindicação pelo fim das parteiras leigas e por “educação médica completa” para todos que 
praticassem a obstetrícia. Tudo isso num tempo em que os “regulares” ainda dispunham de pouca ou 
nenhuma ascendência “científica” sobre os doutores de outras facções ou sobre os curandeiros leigos. 
A explicação disso, supomos, está no fato de que eram mais as mulheres de classe média que, 
na época, procuravam pelos estudos médicos. Elas devem ter achado mais conveniente identificar-se 
com os doutores “regulares” de classe média do que com as mulheres curandeiras de classes populares 
ou com os grupos de médicos faccionistas (que desde o começo foram identificados com os 
movimentos radicais). A nova identificação, provavelmente, foi facilitada pelo fato de que, nas cidades, 
as praticantes leigas eram cada vez mais oriundas dos grupos imigrantes. Ao mesmo tempo, as 
possibilidades de um movimento de mulheres de diferentes classes, sobre qualquer questão social, 
reduziam-se com o ingresso das proletárias ao trabalho fabril e na medida em que as mulheres de classe 
média se acomodavam na domesticidade vitoriana. Qualquer que seja a explicação exata, o resultado 
foi que as mulheres de classe média desistiram de um ataque substantivo à medicina do sexo oposto, e 
aceitaram os termos colocados pela profissão médica masculina emergente. 
 
 
VITÓRIA PROFISSIONAL 
 
Os médicos “regulares” ainda não estavam em condições de fazer uma outra investida para 
conquistar o monopólio médico. Em primeiro lugar, eles ainda não podiam dizer-se possuidores de 
quaisquer métodos eficazes de cura ou de um corpo especializado de conhecimentos. Por outro lado, 
um grupo ocupacional não garante um monopólio profissional apenas com base na superioridade 
técnica. Uma profissão reconhecida não se faz apenas com um grupo de experts autoproclamados; se 
faz com um grupo que tem autoridade com base legal para escolher seus próprios membros e para 
regulamentar sua prática, isto é, para monopolizar um determinado campo de atividade, sem 
interferência de fora. Como um grupo específico conquista pleno status profissional? Nas palavras do 
sociólogo Elliot Freidson: 
 
Uma profissão alcança e mantém sua posição em virtude da proteção e patrocínio de alguns segmentos da 
elite social que já foram persuadidos de que esse trabalho possui algum valor especial. 
 
Em outras palavras, profissões são criações das classes dominantes. Para estabelecer-se como a 
profissão médica, o doutor “regular” precisava, acima de tudo, do patrocínio das classes dominantes. 
Por uma feliz coincidência a favor dos “regulares”, tanto a ciência como o patrocínio 
aconteceram ao mesmo tempo, na virada do século. Cientistas franceses e especialmente alemães 
elaboraram a teoria dos germes que forneceu, pela primeira vez na história humana, uma base racional 
para a prevenção de doenças e para o seu tratamento. Enquanto o médico comum norteamericano ainda 
continuava resmungando sobre “humores” e medicando as pessoas com calomel, uma pequeníssima 
elite médica viajou para visitar universidades alemãs e aprender a nova ciência. Eles voltaram aos EUA 
 18 
cheios de um zelo reformista. Em 1893, os médicos treinados na Alemanha (bancados por filantropistas 
locais) fundaram a primeira escola médica norteamericana no estilo alemão, a John Hopkins. 
No que diz respeito ao currículo, a grande inovação na Hopkins foi integrar a prática de 
laboratório em ciência básica ao treinamento clínico intensivo. Outras reformas incluíam a ocupação 
remunerada em tempo integral na faculdade, com ênfase em pesquisa, e estabelecendo uma associação 
muito próxima da escola médica com a universidade no seu todo. A John Hopkins também instituiu o 
moderno padrão de educação médica – quatro anos de curso universitário básico seguidos de quatro 
anos de curso médico propriamente dito – o que, naturalmente, afastava a maior parte da classe 
trabalhadora e pessoas pobres da possibilidade de formação médica. 
Enquanto isso, os EUA surgiam como liderança industrial no mundo. Fortunas feitas com o 
petróleo, carvão mineral e a impiedosa exploração dos trabalhadores norteamericanos estavam se 
transformando em impérios financeiros. Pela primeira vez na história norteamericana, havia 
concentrações suficientes de riquezas associadas para garantir a filantropia organizada e poderosa, isto 
é, a intervenção organizada das classes dominantes na vida social, cultural e política da nação. 
Fundações foram criadas como instrumentos permanentes dessa intervenção – as Fundações Rockfeller 
e Carnegie apareceram na primeira década do século 20. Um dos primeiros e mais importantes pontos 
em suas agendas foi a “reforma” médica, a criação de uma profissão médica norteamericana respeitável 
e científica. 
O grupo de praticantes médicos que as Fundações escolheram para patrocinar foi, naturalmente, 
a elite científica dos doutores “regulares”. (Muitos desses homens eram eles mesmos de classes 
dominantes, e todos eram “gentis-homens” urbanos e com formação universitária). A partir de 1903, 
milhões de dólares das Fundações começaram a ser aplicados nas escolas médicas. As condições para o 
financiamento, no entanto, eram claras: adotar o modelo John Hopkins ou outro semelhante. Para se 
fazer entender nesta questão, a Carnegie Corporation enviou um de seus funcionários, Abraham 
Flexner [1866-1959], para um giro nacional pelas escolas médicas – desde a própria Harvard até 
escolas comerciais de terceira categoria.Flexner quase que decidia sozinho quais escolas deveriam 
receber dinheiro – e, portanto, sobreviver. Para as escolas maiores e melhores (isto é, aquelas que já 
dispunham de recursos suficientes para iniciar a adoção das reformas prescritas), havia a promessa de 
polpudas doações. Harvard foi uma das felizes ganhadoras, e seu presidente pôde presunçosamente 
dizer, em 1907: “Meus senhores, o caminho para angariar dotações para a medicina é melhorando a 
educação médica”. Quanto às escolas menores e mais pobres - onde estava incluída a maior parte das 
escolas faccionistas e as escolas especiais para negros e mulheres – Flexner não as considerou um 
investimento compensador. As opções que elas tiveram foi a de fechar ou permanecer abertas e 
enfrentar a denúncia pública do relatório que Flexner estava preparando. 
O Relatório Flexner, publicado em 1910, foi o ultimato das Fundações para a medicina 
norteamericana, e no seu rastro, as escolas médicas fecharam em grande número, incluindo seis das 
oito escolas médicas para negros existentes na América do Norte e a maioria das escolas “irregulares” 
que haviam sido um refúgio para as estudantes mulheres. A medicina estabeleceu-se, de uma vez por 
todas, como uma subdivisão do ensino “superior”, acessível somente através de uma formação 
universitária extensa e cara. É bem verdade que o conhecimento médico cresceu e que treinamentos 
mais longos tornaram-se necessários. Porém, Flexner e as Fundações não tinham a intenção de tornar 
tal formação disponível para a grande massa de leigos interessados e de médicos “irregulares”. Ao 
contrário, as portas foram fechadas violentamente para os negros, para a maioria das mulheres e para os 
homens brancos pobres. (Flexner, em seu relatório, lamentava o fato de que qualquer“jovem grosseiro 
ou balconista estafado” pudesse se tornar apto a buscar a formação médica). A medicina tornou-se uma 
ocupação da classe média branca e masculina. 
Mas ela era mais do que uma ocupação. Ela tornou-se, finalmente, uma profissão. Para ser mais 
preciso, um grupo específico de praticantes da saúde, os doutores “regulares”, constituíam agora os 
médicos profissionais. Sua vitória não se baseava em nenhuma habilidade deles próprios: médicos 
 19 
”regulares” comuns não passaram a deter, subitamente, um conhecimento da ciência médica só porque 
o relatório Flexner foi publicado. Porém, eles se beneficiaram da mística da ciência. Com isso, não 
importava se a escola onde se formaram havia sido condenada pelo relatório Flexner; não eram eles 
membros da AMA (American Medical Association), e ela não estava na vanguarda da reforma 
científica? O doutor tornou-se – graças a alguns cientistas estrangeiros e algumas fundações do leste 
norteamericano – o “homem de ciência”: para além da crítica, para além da regulamentação, e quase 
além da competição. 
 
 
BANINDO AS PARTEIRAS 
 
Os Estados, um após o outro, foram ratificando o monopólio dos doutores na prática médica 
com novas e inflexíveis leis de exercício profissional. Tudo o que ainda restava era expulsar a último 
grupo resistente da antiga medicina popular – as parteiras. Em 1910, cerca de 50 por cento de todos os 
nascimentos de bebês eram assistidos por parteiras – sendo a maior parte delas negras ou imigrantes 
proletárias. Esta era uma situação intolerável para a nova especialidade obstétrica emergente: primeiro, 
porque cada mulher pobre que procurava uma parteira era um caso perdido a mais para a pesquisa e a 
prática acadêmicas. Os recursos que a imensa classe popular norteamericana significava como 
“material de ensino” da obstetrícia estavam sendo desperdiçados com parteiras ignorantes. Ao lado 
disso, mulheres pobres estavam gastando cerca de 5 milhões de dólares anuais com parteiras – 5 
milhões que poderiam estar vindo para os bolsos dos “profissionais”. 
Publicamente, entretanto, os obstetras lançavam seus ataques às parteiras, em nome da ciência e 
da reforma. As parteiras eram ridicularizadas como “definitivamente sujas, ignorantes e 
incompetentes.” Especificamente, elas foram responsabilizadas pela prevalência da infecção puerperal 
(infecção uterina) e pela oftalmia neonatal (cegueira devida à infecção por gonorreia materna, por 
ocasião do parto). Estas situações eram ambas facilmente preveníveis por técnicas que podiam muito 
bem estar ao alcance da parteira menos estudada (a lavagem das mãos para o caso da infecção 
puerperal e o uso de colírio próprio para a oftalmia). Portanto, a solução óbvia para uma profissão 
obstétrica verdadeiramente imbuída de espírito público deveria ser a de tornar conhecidas e acessíveis à 
massa de parteiras as técnicas preventivas apropriadas. De fato, isto foi o que aconteceu na Inglaterra, 
na Alemanha e na maioria dos países europeus: as parteiras foram preparadas, através de treinamentos, 
para se tornarem trabalhadoras estabelecidas e independentes. 
Os obstetras norteamericanos, no entanto, não tinham um real compromisso com a melhoria da 
atenção obstétrica. De fato, um estudo realizado por um professor da John Hopkins, em 1912, indicava 
que a maior parte dos médicos norteamericanos era menos competente do que as parteiras. Os médicos 
não apenas agiam de forma discutível na prevenção da infecção puerperal e da oftalmia, mas também 
estavam prontamente predispostos a utilizar técnicas cirúrgicas que ameaçavam ou a mãe ou a criança. 
Se alguém, então, fazia jus ao monopólio legal dos cuidados obstétricos eram as parteiras, não os 
médicos titulados. Porém, os doutores tinham o poder e as parteiras não. Debaixo de intensa pressão 
dos profissionais médicos, um a um os estados norteamericanos aprovaram leis proibindo o trabalho 
das parteiras e restringindo aos médicos a prática da obstetrícia. Para as mulheres pobres e de classes 
trabalhadoras isto efetivamente significava uma atenção obstétrica pior – ou nenhuma. (Por exemplo, 
um estudo sobre taxas de mortalidade infantil em Washington mostrou um aumento da mortalidade 
infantil nos anos imediatamente seguintes à aprovação da lei que proibia o trabalho das parteiras.) Para 
a nova profissão médica masculina, a interdição das parteiras significou uma fonte a menos de 
competição. As mulheres tinham perdido seu último território como praticantes independentes. 
 
 
A DAMA DA LÂMPADA 
 20 
 
A única ocupação que restou para as mulheres no campo da saúde foi a enfermagem. Nem 
sempre a enfermagem existiu como ocupação remunerada – isto teve que ser inventado. No início do 
século 19, uma “enfermeira” era simplesmente uma mulher a quem ocorria o fato de cuidar de alguém 
– uma criança doente ou um parente idoso. Havia hospitais, e eles empregavam enfermeiras. Mas os 
hospitais daquele tempo serviam muito mais como refúgio para os pobres que estavam morrendo, 
dispondo somente de cuidados simbólicos. As enfermeiras hospitalares - conta a história - eram um 
grupo com má reputação, com tendências para a bebida, a prostituição e o roubo. E as condições dos 
hospitais eram, em geral, escandalosas. No final de 1870, uma comissão que investigava o Hospital 
Bellevue, de New York, não encontrou nenhuma barra de sabão nas suas dependências. 
Se a enfermagem não era exatamente um campo atrativo para as mulheres trabalhadoras, era um 
vasto campo aberto para mulheres reformadoras. Para reformar o cuidado hospitalar, era preciso 
reformar a enfermagem, e para tornar a enfermagem aceitável pelos médicos e pelas mulheres de “bom 
caráter” era preciso lhe conferir uma imagem completamente nova. Florence Nightingale conseguiu 
esta mudança nos hospitais do campo-de-batalha na Guerra da Criméia, onde ela substituiu as 
tradicionais “enfermeiras” de acampamento por um grupo de senhoras disciplinadas, sóbrias e de meia-
idade. Dorothea Dix, uma reformadora norteamericana de hospitais, introduziu a nova classe de 
enfermeiras nos hospitais da União, durante a Guerra Civil20. 
A nova enfermeira – “a dama com a lâmpada”, que desprendida de outros interesses cuidava 
dos feridos – caiu no imaginário popular. Escolas de enfermagem começaram a surgir na Inglaterra 
logo depois da Guerra da Crimeia, e nos Estados Unidos, logo após a Guerra Civil. Ao mesmo tempo, o 
número dos hospitais começou a aumentar, para atender às necessidades de educação médica. Os 
estudantes de medicina necessitavam de hospitais onde treinar; e bons hospitais, como os médicos 
estavam começando a entender, precisavam de boas enfermeiras. 
De fato, as primeiras escolas de enfermagem norteamericanas fizeram o melhor para recrutar 
mulheres de classes abastadas como estudantes. Miss Euphemia Van Rensselear, de uma antiga e 
aristocrática família de New York, engrandeceu, com sua presença, a primeira turma do Hospital 
Bellevue. E na John Hopkins, onde Isabel Hampton treinou enfermeiras no hospital universitário, um 
eminente médico apenas se lamentava de que: 
 
Miss Hampton tem sido bem sucedida em conseguir estudantes da elite; mas, infelizmente, ela as seleciona 
todas de acordo com suas boas aparências e a situação do corpo de trabalhadores deste Hospital, no momento, 
é lastimável. 
 
Vamos analisar um pouco mais de perto as mulheres que inventaram a enfermagem, porque, no 
sentido mais verdadeiro, a enfermagem, tal como a conhecemos hoje, é produto da opressão de 
mulheres da elite vitoriana. Dorothea Dix foi herdeira de uma fortuna considerável. Florence 
Nightingale e Louisa Schuyler (incentivadora na criação da primeira escola norteamericana de 
enfermagem no estilo nightingaleano) eram aristocratas genuínas. Elas rejeitavam

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