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Anpuh Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ Praia de Botafogo, 480 – 2º andar - Rio de Janeiro – RJ CEP 22250-040 Tel.: (21) 9317-5380 A “crise da dívida” e o Estado na América Latina. Christiane Laidler - UERJ-FFP O presente trabalho tem por objetivo mostrar a situação de estrangulamento das economias em desenvolvimento a partir da crise da dívida externa desencadeada em fins dos anos 70 e início dos 80 com a elevação das taxas de juros norte-americanas. Na América Latina, a crise representou a redução do investimento, do produto e, mais grave, a conseqüente alteração do papel do Estado que tornou-se o garantidor das transferências de riquezas da região para o sistema financeiro internacional. Na primeira parte, destacamos os contornos do contexto de financeirização do capital e endividamento de economias nacionais na década de 1970. Na segunda parte, tratamos da crise da dívida na América Latina e de seu impacto sobre o crescimento das economias, destacando os casos do Brasil e da Argentina. Na terceira parte, sistematizamos a atuação do FMI e as condicionalidades impostas aos países socorridos. Na quarta e última, buscamos discutir alguns aspectos sobre o papel do Estado, suas transformações em relação à economia, sua natureza e atuação. I – A Conjuntura do Endividamento nos 70. Depois de mais de duas décadas de grande expansão produtiva após a Segunda-Guerra Mundial, o capitalismo mundial entrou em uma fase de alta financeirização, marcada por um significativo aumento de transações puramente monetárias, que em fins da década de 1970 já ultrapassavam o valor do comércio mundial. Essa expansão finaceira das décadas de 1970 e 1980 tornou-se a tendência predominante da acumulação de capital em escala mundial, o que caracterizaria uma reação às pressões competitivas após o enorme avanço produtivo das décadas de ouro (Arrighi,1996:309). A acumulação de fundos líquidos nos mercados de eurodólares tornara-se explosiva já em 1968 . Havia uma restrição cada vez maior à expansão das corporações norte- americanas após a reestruturação da produção e do comércio europeus e também das antigas regiões coloniais. A competição entre os mais significativos agentes capitalistas se deu através da ampliação dos investimentos externos diretos que buscavam consolidar os espaços no mercado mundial, o que se efetivou na forma de intensa transnacionalização do capital. Entretanto, o movimento já não se traduziu ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2 em expansão produtiva. Havia uma saturação de mercados e matérias-primas que determinavam a financeirização. No plano monetário, o padrão de paridades cambiais fixado em Breton Woods (1944) e administrado pelo Fundo Monetário Internacional foi abandonado pela decretação da inconversibilidade pelos Estados Unidos em 1971. Começava um sistema de flutuação livre de câmbio onde movimentos especulativos contra determinadas moedas tornaram-se possíveis.O sistema de taxas de câmbio flutuantes resolvia o problema do déficit americano na medida em que tornava possível uma grande liberalidade na emissão de dólares na circulação internacional.1 Por outro lado, se antes os países precisavam se esforçar para ganhar no comércio externo os recursos que necessitavam para os seus pagamentos, após 1971, a liquidez nos mercados financeiros mundiais permitia o financiamento através de empréstimos. Essa tendência tornou-se ainda mais evidente após o primeiro choque do petróleo. Com o preço do barril quadruplicado em 1973, além da geração de um excedente de petrodólares no sistema financeiro internacional, há um impacto no balanço de pagamentos de diversas economias nacionais que são levadas a empréstimos a fim de cumprir seus compromissos e de manter seus sistemas produtivos devidamente abastecidos de petróleo. Dessa forma, compôs-se um ciclo em que o capital era devidamente remunerado na sua forma financeira. Países Exportadores de Petróleo divisas petróleo depósitos empréstimos Países Dependentes de Petróleo Sistema Financeiro Internacional pagamentos/juros A liqüidez dos anos setenta não apenas permitiu, mas praticamente empurrou as economias em desenvolvimento a buscar recursos externos para financiar a manutenção de sua industrialização. Sem restrições desde 1971, a oferta de dólares se expandiu e permitiu um acúmulo de moedas nos mercados offshore maior do que era possível reciclar com lucratividade e segurança. Na disputa por clientes os bancos competiam para fornecer créditos a países considerados capazes de honrar seus compromissos e dignos de confiança. Governos latino-americanos devidamente obedientes a Washington encaixavam- se perfeitamente neste critério, assim como algumas das ditaduras mais odiosas da África. Todos em defesa da liberdade do capital. 1Parboni,R.(1981), The dollar and its rivals. Londres:Verso, apud Arrighi, Giovanni. (1996), O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto/ São Paulo:Editora da UNESP. p. 319. Arrighi aponta as vantagens competitivas que os Estados Unidos alcançaram entre 1971 e 1979 em razão do fim daconversibilidade e da desvalorização do dólar na medida em que se dava a expansão monetária. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3 No final da década de 1970, a confiabilidade da moeda de troca internacional estava em risco, assim como a capacidade de controle dos fluxos financeiros internacionais por parte dos agentes norte- americanos (empresários e governo). Alguns acontecimentos importantes sinalizavam para o mundo que a potência norte-americana perdia terreno no controle de recursos e de governos no Terceiro Mundo. A Revolução Islâmica no Irã, o segundo choque do petróleo e a invasão do Afeganistão pelos soviéticos levaram os agentes árabes da produção e comércio de petróleo a fugir das aplicações em dólares. No último ano do governo Carter, e mais vigorosamente no governo Reagan, os Estados Unidos assumiram uma política de moeda forte com a finalidade de recuperar a credibilidade do dólar e de centralizar o fluxo financeiro privado internacional nos Estados Unidos. Sob a batuta de Paul Volker, que então dirigia a Reserva Federal norte-americana, uma política de elvação dos juros reais foi implementada onerando os países endividados, muitos dos quais tiveram suas economias verdadeiramente asfixiadas. Nos anos oitenta, com a tendência deflacionária da economia americana, que passou a sofrer da falta de liqüidez, os juros nominais que haviam se elevado desde a década de setenta acompanhando a inflação, passaram a significar um enorme salto no custo real do dinheiro nos mercados internacionais. Além dos ganhos atrativos que as taxas praticadas permitiram, o governo norte-americano desregulamentou as transações financeiras estimulando o livre fluxo de transações nos Estados Unidos. II – A crise da dívida. Em agosto de 1982, o México decretou a moratória de sua dívida externa, iniciando a chamada “crise da dívida”, que levaria ao estrangulamento do fluxo de capitais externos para a América Latina com custos econômicos e sociais de larga duração. Mas o México apenas refletia uma crise que já se anunciava, com países recorrendo ao FMI para conseguir renegociar suas dívidas com os credores externos. A dívida de países em desenvolvimento era de U$100 bilhões antes do primeiro choque do petróleo em 73, e chegara a U$ 450 bilhões em 81 e a U$ 500 bilhões em 82. Em setembro de 82, os ingressos externos que então atingiam U$ 1,5 bilhão ao mês deixaram de chegar à América Latina ( Cerqueira, 1997). A década de 80 seria marcada pelo aumento da dívida pública, do volume de pagamentos de juros e da diminuição dos gastos públicos como forma de viabilizar esses pagamentos( Santos,199:145). O Valor total da dívida na região passou de 220.256 bilhões de dólares em 1980, para 377.615 bilhões em 1985, e 448.231 bilhões em 1990( Comunidade Andina, 2001). As medidas tomadas de incentivo às exportações e penalização de importações esbarraram na queda progressiva de preços internacionais, na esteira do aperto de liqüidez e ampliação da competição internacional por ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4 mercados. Se, por um lado, havia um esforço tremendamente recessivo para manter os pagamentos, por outro, o fim da entrada de dinheiro novo levou os países da região a negociarem empréstimos-ponte que aumentavam o principal de suas dívidas. E embora o problema da dívida afetasse diversos países em situação de insolvência, o cronograma de pagamentos de cada um, a conjuntura política interna e a realidade das atividades econômicas particulares levaram a processos negociais individuais, o que favoreceu enormemente os credores internacionais, ameaçados por uma crise efetiva de todo o sistema financeiro no caso de uma suspensão generalizada dos pagamentos. Alguns países devedores fizeram tentativas de estabelecer um processo conjunto de ação, esperando dividir a solução da questão com os credores interessados em garantir seus pagamentos. Em janeiro de 1984, chefes de Estado reuniram-se em Quito para debater o problema, e na declaração que formularam afirmavam a necessidade do reconhecimento dos efeitos sociais da crise e da co-responsabilidade da comunidade internacional para um equacionamento das dívidas, o que deveria incluir uma flexibilização das negociações de prazos, comissões e créditos adicionais. A tabela a seguir mostra o impacto da crise na América do Sul e México. Tabela I: Taxa anual de crescimento do PIB 1979 1980 1981 1982 1983 Argentina 7,4 3,1 -5,9 -3,1 3,8 Bolívia 0,1 -1,4 0,9 -4,4 -4,5 Brasil 6,8 9,2 -4,2 0,7 -2,9 Chile 7,8 7,4 5,8 -12,6 -2,6 Colômbia 5,3 4,3 2,3 1 1,9 Equador 5,3 4,2 4,4 1,2 -2,5 México 9,2 8,2 8,8 -0,6 -4,2 Paraguai 11,1 11,3 8,8 -0,8 -3 Peru 6 4,4 4,3 0,3 -12 Uruguai 6,4 5,6 1,9 -9,5 -5,9 Venezuela 0,7 -5,4 -2 -1,6 -3,1 Fonte: BADEINSO, CEPAL. Percentagem calculada com base em valores em dólares a preços de 1995. No final de 1982, o Brasil tinha um déficit do balanço de pagamentos de U$ 8,8 bilhões e apenas U$ 3,9 bilhões em reservas internacionais. As linhas de crédito para bancos brasileiros no exterior haviam sido cortadas e o país recorreu à ajuda finceira do FMI. A partir de então levantou uma série de empréstimos de curto prazo num total de U$3 bilhões para honrar os compromissos imediatos. Internamente foram anunciadas medidas que tinham por objetivo a diminuição da dependência externa. Entre elas estavam a redução do déficit público, de 6% para 3,5% do PIB, a diminuição do investimento das estatais em 21%, o reajuste da taxa de juros, a eliminação gradual de subsídios agrícolas, desvalorizações cambiais e aumento da produção de petróleo e derivados, com preços ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 5 reajustados acima da inflação. O FMI exigiu do Brasil o cumprimento de metas que não foram atingidas, atrasando os desembolsos, o que tornou o Brasil insolvento já no início de 83. O país colocou sua situação de pagamentos em dia com os primeiros desembolsos dos acordos de 82, mas não tinha recursos para garantir os pagamentos de 84, permanecendo em negociação com os credores (Cerqueira,1997). Ao longo da década as negociações prosseguiram com acordos que permitiam pagamentos imediatos seguidos de novas suspensões de pagamentos. Na Argentina, o ano de 1982 marcou não apenas a grave crise econômica, mas a desmoralização final da ditadura militar que , através da tentativa de retomada das Ilhas Malvinas, buscou despertar um sentimento de unidade nacional que pudesse superar a insatisfação com o regime e com as perdas econômicas da população. Com relação à dívida externa, existe na Argentina uma percepção de ilegitimidade assemelhada a que ocorreu nas ditaduras africanas. Os militares são acusados de terem endividado estatais que jamais receberam recursos, de contraírem empréstimos não contabilizados pelo Banco Central – a despeito de este contar com a supervisão permanente do FMI - e de manterem os recursos depositados em bancos internacionais, servindo unicamente para a demonstração de um montante em reservas internacionais. Ou seja, houve uma série de créditos contratados que não significaram quaisquer investimentos produtivos ou sociais e cuja necessidade é até hoje questionada, o que confirma a proposição anterior de que havia uma extrema facilidade senão uma verdadeira disputa entre banqueiros para fornecerem tais créditos aos PED. Portanto, o que muitos argentinos esperavam era, no mínimo, uma auditoria das dívidas cobradas. O primeiro presidente civil, Raúl Alfonsín, percebendo a dificuldade de uma negociação em bloco, iniciou negociações nos moldes costumeiros. Refinanciou a dívida vencida e por vencer até 1985, e conseguiu créditos que cubrissem o déficit no balanço de pagamentos. Na prática, como ocorria no Brasil, havia um aumento do endividamento, comprometendo toda a perspectiva de investimento do Estado, de crescimento, e de melhorias sociais (Ayerbe, 1998:58). A década de 1980 será de permanente instabilidade. Se em 1984, os países viveram uma conjuntura internacional melhor, com juros internacionais em queda, o comprometimento de suas receitas era grande o suficiente para impedir investimentos que significassem um crescimento duradouro. Em 1986, o presidente do Peru, Alan Garcia, declarou à comunidade internacional que não remeteria ao exterior um valor superior a 10% do valor das exportações do país. Em 1987 era a vez do Brasil suspender os pagamentos por uma falta de recursos determinada pelo aumento de importações durante o Plano Real. Em 1988, era a vez da Argentina atrasar pagamentos depois de uma má safra agrícola decorrente de inundações em 1986, e da conjuntura de queda dos preços internacionais. Os ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 6 pagamentos externos passaram a representar progressivamente maiores percentuais dos valores das exportações e o montante da dívida crescente representava percentuais cada vez maiores de um PIB em retração, ao menos nos anos de auge da crise, e sem sinais de recuperação ao longo da década. De acordo com o Banco Mundial, uma economia é altamente endividada quando três dos quatro coeficientes a seguir estão acima do nível crítico: dívida sobre PIB de 50%, dívida sobre exportações de 275%, serviço da dívida sobre exportações de 30%, e juros sobre exportações de 20%. Para Buratto e Porto Jr., considerando estes critérios, em 1982 apenas El Salvador, Guatemala, Haiti e Paraguai não estavam em situação de alto endividamento. A Nicarágua foi excluída da lista por falta de dados. A conclusão dos autores é de que, na presença de uma situação de estrangulamento da dívida externa, quando o fluxo de créditos diminui por conta da desconfiança em relação à capacidade de pagamento do país tomador, a variável dívida externa sobre PIB exerce significativa influência negativa sobre a variável investimento (Buratto,Porto Jr:2001). O que se segue é uma retração dos investimentos que determina um ritmo de crescimento menor ou um cenário de estagnação. Tabela II – Média da taxa anual de crescimento na América Latina 70/79 80/89 Argentina 3,04 -0,48 Bolívia 4,55 -0,44 Brasil 8,61 3,01 Chile 2,18 3,4 Colômbia 5,7 3,73 Equador 10,35 2,16 México 6,36 2,1 Paraguai 8,11 4,03 Peru 3,97 0,09 Uruguai 2,6 1,06 Venezuela 3,2 0,7 Fonte: Cálculos a partir de taxas anuais da CEPAL- BADEINSO. No Brasil e na Argentina, a falta da moeda internacinalpromoveu grandes desvalorizações cambiais. Se por um lado esse processo estimulava os setores exportadores e impactava negativamente as importações, constituindo inclusive parte das recomendações do FMI para a manutenção de uma balança favorável, por outro, foi um importante elemento de processos inflacionários que tornaram-se descontrolados. Cada país, através de planos econômicos “heterodoxos”, buscou uma solução que permitisse o crescimento sem inflação e , como resultante, uma melhor relação com a dívida. O primeiro foi o Plano Austral, de junho de 1985, do presidente Alfonsín, que promoveu a estabilização ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 7 da economia através do congelamento de preços e salários. A inflação caiu de 30,5% em junho, para níveis próximos a 2% nos meses finais do ano. Com relação à recuperação econômica os resultados não foram tão satisfatórios. Novos investimentos eram necessários e as diretrizes do plano assumiam uma postura de privatização do crescimento, com fontes de financiamento da iniciativa privada nacional e estrangeira. No primeiro ano os efeitos do plano foram auspiciosos, com crescimento de 5,8% do PIB e redução do déficit público. Mas a balança comercial não correspondeu às necessidades, com queda do comércio de produtos agrícolas e dos preços internacionais. Em 1987, o governo argentino recebeu recursos do FMI, além de um empréstimo dos EUA, e liberação de recursos do Banco Mundial, mas em 1988, já não conseguiu honrar os compromissos externos e voltou ao quadro de crise inflacionária. Sete meses depois do Austral o Brasil entraria na era do Cruzado. Além do congelamento de preços e do câmbio, e da desindexação da economia, o plano pretendia produzir um crescimento baseado no incremento do mercado interno, promovendo um aumento real dos salários de 6% antes do congelamento. Os juros baixos também contribuíram param a ampliação da demanda. O primeiro ano teve uma taxa de crescimento de 7,5%. A manutenção dos preços, entretanto, dependeu do aumento de importações de estoques reguladores por parte do governo. Em muitos setores, como o da pecuária, havia denúncias de que produtores se recusavam a abastecer o mercado com os preços fixados, o que se confirmava na medida em que era possível adquirir os produtos com ágio. As reservas brasileiras diminuíram, e em 1987, o país deixava de honrar seus compromissos externos e, no ano seguinte, voltaria a firmar um acordo de ajuda com o FMI . Comparativamente, a economia brasileira mostrou maior resistência à crise da dívida do que a economia argentina. No Brasil, o modelo desenvolvimentista havia promovido uma diversificação da economia que significava maior robustez em momentos de crise. Entretanto, as demandas sociais resultantes da acelerada urbanização e industrialização dos anos 50 estiveram reprimidas desde o golpe militar e o baixo crescimento acumulado da década foi extremamente danoso para uma sociedade já muito desigual e de baixo investimento em políticas públicas. Na Argentina, havia menos alternativas de dinamização interna da economia, que já diminuíra, durante a ditadura, os níveis de sua produção industrial, e não promovera investimentos de infra-estrutura compatíveis com um projeto de desenvolvimento. Na década, o PIB acumulado da Argentina sofreu uma redução de 5,75%, enquanto no Brasil houve crescimento de 33,35%. A década de 1970 já havia representado baixo crescimento na Argentina, de apenas 34,48%, mas o Brasil havia crescido 128,75%.2 A dívida da Argentina subiu de 27,2 bilhões de dólares em 1980 para 62,2 bilhões em 1990, representando um aumento da relação 2Os indicadores foram calculados apartir das mesmas taxas anuais usadas nas tabelas, do BADEINSO, CEPAL. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 8 dívida/PIB de 35,3% para 44%. No mesmo período, a dívida brasileira passou de 71 bilhões de dólares para 120 bilhões, mas o crescimento do período garantiu uma melhora da relação entre dívida e PIB , que era de 30,3% em 1980 e de 25,8% em 1990. Tabela III – Total da dívida em bilhões de dólares e percentual do PIB Países 1980 1990 1980 1990 Argentina 27,2 62,2 35,3 44 Bolívia 2,7 4,3 108,1 87 Brasil 71 120 30,3 25,8 Chile 12,1 19,2 43,8 63,4 Colômbia 6,9 17,2 20,2 42,8 Equador 6 12,1 51,1 113,3 México 57,4 104,4 25,7 39,7 Paraguai 1 2,1 20,8 40 Peru 9,4 20,1 45,4 59,2 Uruguai 1,7 4,4 16,4 47,2 Venezuela 29,3 33,2 42,4 68,3 Fontes: PNUD, UTAL. Os Planos Econômicos – o Austral e o Cruzado – demonstraram a iniciativa governamental de retomar o controle sobre as economias dos dois países, embora as necessidades de redução de déficits fiscais impusessem a ambos uma significativa redução de suas capacidades de expandir investimentos em infra-estrutura, produção, financiamentos, ou bens sociais. A queda dos investimentos estatais, que tiveram importante papel no crescimento econômico, significavam a queda nos patamares de investimento global das economias, além disso, a redução de investimentos sociais, sobretudo saúde e educação, comprometeriam os fundamentos do crescimento futuro. Diferentemente do Brasil, que entrara no período de crise da dívida com uma participação do Estado na economia de grandes proporções, sendo responsável pelo investimento em mega projetos de infra-estrutura, e reconhecido como importante agente de desenvolvimento econômico, na Argentina, o papel do Estado foi bastante menor, sobretudo porque durante o governo militar, o projeto de política econômica tinha por base a liberação dos mercados, inclusive os financeiros, sob a crença de que era possível gerar grandes benefícios numa economia aberta capaz de aproveitar suas vantagens competitivas (Ayerbe: 1998:44). O desenvolvimentismo não deitou raízes na Argentina como no Brasil. O momento de grande participação do Estado na economia havia sido com Perón, até 1955, e o resultado foi a dependência de créditos externos sem avanço significativo nas estruturas produtivas do país. Além disso, para o empresariado e grandes proprietários, o custo da política salarial e garantias trabalhistas permanecia como memória do tempo de uma política intervencionista. Nessa medida, as idéias liberais que emergiram nos anos 80, depois de cinco décadas de hegemonia do credo keynesiano no mundo, tiveram melhor acolhida na Argentina. Lá, a memória do liberalismo remetia ao período de maior ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 9 crescimento econômico e prosperidade, entre 1880 e 1914, quando a Argentina ostentou o primeiro lugar em exportações e expansão econômica na América do Sul. III – O FMI e as condicionalidades Com o fim do padrão ouro, embora tenha perdido sua jurisdição para administrar as paridades cambiais, o FMI viu aumentada sua responsabilidade de realizar intervenções financeiras de estabilização em economias nacionais em momentos de crise e adquiriu, com a crise da dívida, um papel importante não apenas para financiar, mas para supervisionar as economias nacionais. A função de auditor foi convalidada pelo mercado internacional que transformou o acordo com o FMI em certificação necessária para a negociação de refinanciamentos. Os principais credores então eram fundamentalmente da banca privada, e conseguiram diminuir sua posição na América Latina entre 82 e 88, de U$ 250 bilhões para U$225 bilhões . Essa diminuição explica a dificuldade que enfrentaram os países para ter acesso a dinheiro novo. Também explica o fracasso do plano Baker de 1985, que previa o refinanciamento da dívida com entrada de U$ 9 bilhões de organismos multilaterais e de U$ 20 bilhões de instituições financeiras privadas(Comunidade Andina, 2001). Por outro lado, se a banca privada conseguiureaver parte dos seus créditos, diminuindo sua posição na região, foi o FMI a principal fonte de socorro dos países, garantindo os pagamentos internacionais através de acordos que significaram a ampliação do endividamento. Imediatamente após a moratória do México e ao fim do fluxo de financiamentos para a América Latina, os países começaram uma corrida ao FMI para viabilizar acordos que permitissem a continuidade dos pagamentos e renegociações das suas dívidas.O México foi o primeiro a fechar um acordo, em janeiro de 1983, e foi seguido pelo Chile, Brasil, Uruguai, e Equador , no mesmo ano. Em 1984, foi a vez do Peru e da Argentina, que assumia a partir de então toda a dívida cobrada contra a opinião de diversos segmentos nacionais que pediam uma auditoria rigorosa do endividamento do período militar. Em 1985, o Chile, o Equador e o Uruguai voltariam a pedir empréstimos ao FMI, em 1986, a Bolívia e novamente o México e o Equador, em 1987, a Argentina, em 1988 novamente o Brasil, o Equador e a Bolívia, e em 1989, a Argentina, o Equador, o México e a Venezuela. Os empréstimos do FMI eram desembolsados em parcelas. Isto permitia que a liberação do dinheiro se desse somente quando as condições impostas pela agência fossem efetivamente cumpridas. Condicionalidade é o termo formal que o FMI utiliza para determinar as políticas que os países devem seguir para usar os seus recursos. Essas políticas são expressas e cobradas através de critérios estabelecidos pelo FMI sob o princípio de que a ajuda deve ser temporária e consistente com um ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 10 programa de ajuste que corrija a situação da balança de pagamentos. Recuperar a capacidade de pagamentos das economias nacionais, garantir os direitos dos credores internacionais, preservando a banca privada, eram os objetivos a serem atingidos. Nas palavras de Stiglitz,“O Fundo Monetário Internacional pode não ter se tornado o cobrador de impostos do G-7, mas deixou claro que trabalhou duro para garantir que os credores do G-7 fossem pagos”(2002:254) Inicialmente, os governos foram levados a desvalorizar suas moedas para facilitar as exportações, além de promoverem ajustes fiscais que significavam a diminuição ou o fim de investimentos e subsídios em todas as áreas. Na década de 1990, a austeridade fiscal, a privatização e a liberalização de mercados – comerciais e de capitais – já constituíam os pilares sólidos das recomendações do FMI para quaisquer países. A América Latina voltou a ter acesso ao circuito financeiro internacional em razão da alta liqüidez do mercado internacional e da reestruturação das dívidas nos marcos do plano Brady, de 1989. O então secretário do Tesouro norte-americano organizou um esquema de refinanciamento das dívidas comerciais dos países que previa descontos para países que se comprometessem com as reformas estruturais. Os créditos podiam ser trocados por bônus com descontos de até 35% que recebiam o aval dos organismos multilaterais. Este procedimento reabilitou os países no mercado financeiro internacional. As reestruturações foram feitas individualmente e não em bloco, cada país renegociando seus compromissos com a mediação do FMI e do Tesouro dos EUA. O México começou sua reestruturação em 1989, o Uruguai em 1990, a Argentina e o Brasil em 1992, o Equador em 1995, e o Peru em 1997. Os bônus lançados pelos países endividados devia ser aceito como moeda na compra de estatais. Assim, parcelas da dívida puderam ser trocadas por ativos, de forma que as privatizações nem sempre significavam a entrada de recursos novos nos países, embora pudessem servir para diminuir o peso do endividamento. O déficit americano acumulado ao longo dos anos 80 levou a uma mudança nas recomendações iniciais da desvalorização cambial para uma valorização cambial que, na década de 1990, levaria diversos países a acumularem déficits comerciais e a dependerem de um fluxo internacional de recursos que, não raro, era obtido através de altas taxas de juros e de privatizações em massa. Mesmo assim, crises financeiras se abateram sobre o México, o Brasil e a Argentina. Depois das liberalizações, dos ajustes fiscais recessivos, e das privatizações, estes países já não possuíam instrumentos eficazes de promoção do crescimento econômico. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 11 IV – Crise do Estado? Na América Latina, o modelo de desenvolvimento com participação importante do Estado entrou em processo de estrangulamento. O déficit comercial a partir dos 70 contribuiu para que a região não conseguisse resistir à crise. Cabe, entretanto, que se avalie a crise não como uma crise do modelo, que demonstrou suas virtudes através de crescimento econômico, industrialização e modernização, em alguma medida. Sem a liqüidez mundial dos anos 70, o modelo teria resultados mais lentos, mas provavelmente tornar-se-ia menos vulnerável. O fato é que as fontes externas de financiamento secaram nos anos 80, e o Estado nacional, para responder ao endividamento, deixou o papel de financiador ou investidor direto. O modelo desenvolvimentista não entra em crise por contradições internas ou por exaustão de suas potencialidades, ele é levado ao desmantelamento pela extorsão dos juros impostos internacionalmente. Em perspectiva ampla, a crise econômica dos anos 70 atingiu duramente o Estado nacional. Era grande o universo de fenômenos pelos quais os Estados eram afetados passivamente, a começar pelo choque do petróleo, mas somando-se a ele todos os demais eventos do chamado mercado mundial. Em contrapartida, o poder de controle sobre as muitas variáveis do sistema eram pequenos, resumidos aos negócios internos. Nos países industrializados, os governos no pós-guerra haviam assumido responsabilidades abrangentes que incluíam a continuidade no nível de qualificação do capital – através de políticas de ciência e tecnologia - e do trabalho, através de políticas de educação, além de investimentos na infraestrutura coletiva nos campos da comunicação, energia, desenvolvimento urbano e regional, saúde e previdência. A estagflação colocou em xeque os pressupostos keynesianos desse Estado (Santos,1999:137). Os Estados tornaram-se super endividados, com déficits nas relações com o mercado mercado mundial e também nas relações com a sociedade civil. E o resultado foi a redução das pretensões de sua agenda, de suas competências e responsabilidades. Offe aponta que a substituição do modelo social democrata não significou apenas uma escolha política, mas correspondeu ao descrédito teórico de uma concepção de política econômica aceita por um longo período. E o retraimento ao qual o estatismo reformista se viu forçado deu ímpeto a uma variedade de teorias neoliberais, neoconservadoras e pós-modernas (Offe,1996), que ganharam maior autoridade com o fim do socialismo real. Mesmo nas economias onde as políticas de bem-estar levaram a um acúmulo de responsabilidades maior do que as capacidades dos Estados, que se viram em dificuldades diante da estagnação econômica, a opção por deixar a cargo de empresários livres do controle do Estado e movidos pelo lucro o rol de decisões sobre investimento e emprego deve ser discutida, afinal o ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 12 privatismo significou a diminuição dos instrumentos de manejo econômico nas mãos dos Estados. Mas o principal argumento é que esta receita não seria tão simplesmente aplicada pelas economias industrializadas. Como não chamar de intervencionista a política dos EUA, que nos anos 80 aumentaram o gasto público e o déficit fiscal? Segundo Theotônio dos Santos, ”não se pode aceitar tranqüilamente a afirmação de que vivemos sob uma política liberal , quando o déficit público, o investimentomilitar e a especulação financeira a partir dos títulos das dívidas públicas foram as molas propulsoras da economia deste período em que os neoliberais exerceram o poder” (120). Os EUA iniciaram com Reagan um programa de recuperação baseado na idéia de que a maior produção gerava maior renda e se atingia com a queda dos impostos(139).Geraram o maior déficit fiscal da história, com aumento de gastos militares e renúncia fiscal para o capital. Déficit financiado por títulos que beneficiaram o setor financeiro nacional e internacional(142). O Estado tem cumprido papel fundamental para o processo de transferência de riquezas dos setores produtivos para os setores financeiros em todo o mundo E no sistema financeiro, bem como nos demais setores de produção e comércio, os argumentos liberais valem pouco, pois o que se vê é o comando das decisões monopolizado, altamente concentrado em grandes bancos e operadoras de investimentos ( Chesnais,1996:29). Os países da América Latina têm cumprido o seu papel neste processo. Desde a crise da dívida transferem recursos na forma de pagamento de juros, de suas dívidas externa e interna. Desregulamentaram seus mercados de capitais, tornando possível a todos os agentes externos a aquisição de bancos e a participação nas operações dos mercados financeiros nacionais. E todas essas ações são resultantes de decisões políticas. Mesmo sob constrangimentos ou condicionalidades, o Estado tem um papel fundamental como garantidor do atual ciclo financeiro de acumulação. O Estado aparece ainda como ator indispensável para aparar as arestas deixadas pela concentração do capital global. O sistema gera permanentemente miséria, marginalização e um desemprego estrutural. O mercado puro não pode existir porque o capitalismo é um sistema que não elimina as contradições sociais, ao contrário, as amplia, e hoje não especialmente nas relações entre capital e trabalho mas nas relações entre os que participam do processo de acumulação e os que dele estão excluídos, porque trata-se de um processo não apenas hierarquizador, explorador, mas estruturalmente excludente. O capital depende do Estado para controlar os grandes conflitos que engendra.(Santos, 1999:131) O resultado de todo esse processo de transformações tem sido muito discutido, com inúmeras críticas que apontam os custos sociais e a desigualdade que se ampliou acentuadamente. Mas o Estado ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 13 nacional continua sendo o ente que responde aos desafios internos e externos, mesmo quando sua resposta é ceder espaços de sua atuação para o mercado. É a unidade histórica e territorial que reconhecemos como Estado que é chamada por agentes internos e externos, do mercado e da sociedade civil, a atuar diante de diversas demandas, através de seu sistema legal e de sua burocracia, que ainda não foram substituídas por outros atores nacionais ou supranacionais. A Argentina é um bom exemplo da permanência das funções de tomada de decisões do Estado. O país promoveu, depois de uma aguda crise, uma reestruturação de sua dívida em janeiro de 2005. 81 bilões de dólares de dívidas não pagas foram trocados por títulos novos no valor de 41,8 bilhões com prazo maior. As sanções econômicas são uma realidade menos dura do que a asfixia total de uma economia cujo endividamento beirou os 150% do PIB. A opção pela reestruturação e pela sua forma foi uma decisão política, soberana, tomada por um Estado com menos mecanismos de ação econômica do que os que tinha quando adotou a agenda neoliberal. A parceria com a Venezuela, que vem financiando dívida nova argentina, é uma estratégia política que aponta para o fortalecimento de um bloco regional que poderá fortalecer a autonomia política da região. Conclusão O festejado primado do mercado foi fruto de políticas intervencionistas que alteraram, ao longo das décadas de 1980 e 1990, de maneira significativa, o equilíbrio das diversas economias nacionais. Este intervencionismo não foi arbitrário, ao contrário, representou as necessidades de remuneração do capital e correspondeu ao dirigismo norte-americano que se movimentou de acordo com as conjunturas econômicas e as necessidades geopolíticas e, sobretudo das corporações. Na América Latina, o modelo desenvolvimentista foi desmontado através da asfixia de suas fontes de financiamento, mas o Estado permaneceu atuando como importante agente garantidor da reciclagem e acumulação do capital. Desde 82, as suspensões de pagamentos foram breves e nunca decididas em bloco, de sorte que o FMI sempre conseguiu receber com juros os empréstimos que disponibilizou e os credores privados garantiram seu lucro, com elevado custo para as economias e as populações da região. Ou seja, o Estado mudou o seu papel, de Estado empresário a cliente especial do capital rentista. Entretanto, a prática liberalizante é uma construção histórica, efetivada sob inúmeros constrangimentos, é certo, mas o Estado ainda detém os mecanismos de decisão e ação política que permitem uma mudança de rumos. ‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 14 Bibliografia ARRIGHI, Giovanni. (1996), O longo século XX. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora UNESP/ Contraponto. 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