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Que África Escreve o Escritor Africano?

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Que África escreve o escritor africano? 
 
O tema desta cerimónia é a relação do escritor com a luta por um mundo mais humano e 
democratizado. A pergunta poderia ser: qual é a responsabilidade do escritor para com a democracia e com 
os direitos humanos? É toda. Porque o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. 
Para combater pela verdade o escritor usa uma inverdade: a literatura. Mas é uma mentira que não mente. 
O escritor, porém, tem outros compromissos. Uma das obrigações do escritor africano é estar 
disponível para, em certas circunstâncias, deixar de ser escritor e não se pensar “africano”. Explico-me: o 
escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas. Deve 
estar disponível para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades. E é isso que um 
escritor é – um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa 
condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os 
territórios da interioridade. 
O nosso papel é o de criarmos os pressupostos de um pensamento mais nosso, para que a 
avaliação do nosso lugar e do nosso tempo deixe de ser feita a partir de categorias criadas pelos outros. E 
passarmos a interrogar aquilo que nos parece natural e inquestionável: conceitos como os direitos humanos, 
a democracia, a africanidade. É esta a nossa relação com África que eu gostaria de interrogar. Porque essa 
“africanidade” erguida como uma identidade tem sido objecto de sucessivas mistificações. 
Alguns se apressam a encontrar uma essência para aquilo que chamam de “africanidade”. Na 
aparência, eles estão ocupados em encontrar uma raiz para o orgulho de serem africanos. Mas, afinal, eles 
se assemelham à ideologia colonial. África não pode ser reduzida a uma identidade simples, fácil de 
entender e de caber nos compêndios de africanistas. O nosso continente é o resultado de diversidades e de 
mestiçagens. Quando falamos de mestiçagens falamos com algum receio como se o produto híbrido fosse 
qualquer coisa menos “pura”. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. E se nos 
mestiçamos significa que alguém mais, do outro lado, recebeu algo que era nosso. Defensores da pureza 
africana multiplicam esforços para encontrar essa essência. 
Alguns vão garimpando no passado, outros tentam localizar o autenticamente africano na tradição 
rural. Como se a modernidade que os africanos estão inventando nas zonas urbanas não fosse ela própria 
igualmente africana. Essa visão restrita e restritiva do que é genuíno é, possivelmente, uma das principais 
causas para explicar a desconfiança com que é olhada a literatura produzida em África. A literatura está do 
lado da modernidade. E nós perdemos “identidade” se atravessamos a fronteira do tradicional: é isso que 
dizem os preconceitos dos caçadores da virgindade étnica e racial. 
A oposição entre tradicional – visto como o lado puro e não contaminado da cultura africana – e o 
moderno é uma falsa contradição. Porque o imaginário rural é também produto de trocas entre mundos 
culturais diferentes. A maior parte dos jovens da cultura rural do meu país sonham ser Michael Jackson ou 
Eddy Murphy. Sonham, numa palavra, ser negros americanos. 
“Eis-me aqui”, escreveu Senghor, “tentando esquecer a Europa no coração do Senegal.” O poeta e 
estadista nunca conseguiu esse esquecimento. Ele próprio foi uma ponte entre os dois continentes. Nem de 
outro modo poderia ser. Esquecer a Europa não pode ser eliminar os conflitos interiores que moldaram as 
nossas próprias identidades. A Europa estava dentro do poeta africano e não podia ser esquecida 
por imposição. 
Entre o convite ao esquecimento da Europa e o sonho de ser americano a saída só pode ser vista 
como um passo para a frente. Os intelectuais africanos não têm que se envergonhar da sua apetência para a 
mestiçagem. Eles não necessitam de corresponder à imagem que os mitos europeus fizeram deles. Não 
carecem de artifícios nem de fetiches para serem africanos. Eles são africanos assim mesmo como são, 
urbanos de alma mista e mesclada, porque África tem direito pleno à modernidade, tem direito a assumir as 
mestiçagens que ela própria iniciou e que a tornam mais diversa e, por isso, mais rica. 
É preciso sair dessa armadilha, e isso só pode ser feito por esses africanos que encaram sem medo 
a sua pertença ao mundo mestiço. Alguns dos chamados africanistas, por mais que esbracejem contra 
conceitos chamados europeus, continuam prisioneiros desses mesmos conceitos. Nem que seja para lhes 
dar importância, ainda que essa importância seja concedida pela negativa. Não se trata de encontrar 
identidade em recuos para uma pureza ancestral. Os mais ferozes defensores do nacionalismo cultural 
africano estão desenhado casas ao avesso mas ainda no quadro da arquitectura do Outro, daquilo que 
chamamos o Ocidente. De pouco vale uma atitude fetichista virada para os costumes, o folclore e as 
tradições. A dominação colonial inventou grande parte do passado e da tradição africana. Alguns 
intelectuais africanos, ironicamente, para negarem a Europa acabam abraçando conceitos 
coloniais europeus. 
De facto, a obsessão de classificar o que é e não é “africano” nasce na Europa. Por essa 
preocupação caminharam a etnografia e a antropologia, disciplinas que, até recentemente, procuravam 
identificar essências em lugar de processos. Os descobridores de identidades pareciam-se com os 
navegadores do século XVI: ansiosos, uns, por baptizar territórios que, afinal, já há muito estavam 
baptizados; outros, apressados em nomear categorias populacionais cujos contornos nem mesmo eles 
conheciam: as tribos, as etnias, os clãs. Pense-se por exemplo, na produção cultural dos africanos. Em lugar 
de valorizar a diversidade dessa produção e olhar o livro como produto cultural substitui-se a apreciação 
literária por uma visão mais ou menos etnográfica. A pergunta é – quando este autor é “autenticamente 
africano”? Ninguém sabe exactamente o que é ser “autenticamente africano”. Mas o livro e o autor 
necessitam ainda de passar por esta prova de identidade. Ou de uma certa ideia de identidade. 
Exige-se a um escritor africano aquilo que não se exige a um escritor europeu ou americano. 
Exigem-se provas de autenticidade. Pergunta-se até que ponto ele é etnicamente genuíno. Ninguém 
questiona quanto José Saramago representa a cultura de raiz lusitana. É irrelevante saber se James Joyce 
corresponde ao padrão cultural desta ou daquela etnia europeia. Porque razão os autores africanos devem 
exibir tais passaportes culturais? Isso acontece porque se continua a pensar a produção destes africanos 
como algo do domínio antropológico ou etnográfico. O que eles estão produzindo não é literatura mas uma 
transgressão ao que é tido como tradicionalmente africano. 
O escritor não é apenas aquele que escreve. É aquele que produz pensamento, aquele que é capaz 
de engravidar os outros de sentimento e de encantamento. Mais do que isso, o escritor desafia os 
fundamentos do próprio pensamento. Ele vai mais longe do que desafiar os limites do politicamente 
correcto. Ele subverte os próprios critérios que definem o que é correcto, ele questiona os limites da razão. 
Os escritores moçambicanos cumprem hoje um compromisso de ordem ética: pensar este Moçambique e 
sonhar um outro Moçambique. Correm o risco, como todos os criadores de todos os outros países, de 
serem devorados por essa mesma pátria que eles ajudaram a libertar. Passamos de um período em que os 
nossos heróis acabam sempre mortos – Eduardo Mondlane, Samora Machel, Carlos Cardoso – para um 
outro tempo em que os heróis já nem sequer nascem. Estamos aguardando pelo renovar de um estado de 
paixão que já experimentámos, esperamos pelo reacender do amor entre a escrita e a nação enquanto casafeita para sonhar. O que queremos e sonhamos é uma pátria e um continente que já não precisem 
de heróis.” 
 
(Intervenção na cerimônia de atribuição do Prêmio Internacional dos 12 Melhores Romances de África, 
Cape Town, Julho de 2002) 
 
Publicado em Pensatempos, editorial Caminho, 2005

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