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1 CITAÇÃO: MALISKA, Marcos Augusto. Os Desafios do Estado Moderno. Federalismo e Integração Regional. Curitiba/Munique, 2003. Tese de Doutorado. Programa de Doutorado em Direito da Universidade Federal do Paraná (estágio de doutoramento na Ludwig Maximilian Universität). OS DESAFIOS DO ESTADO MODERNO. FEDERALISMO E INTEGRAÇÃO REGIONAL PRIMEIRA PARTE – O ESTADO MODERNO CAPÍTULO I – AS ORIGENS DO ESTADO MODERNO 1. Da Idade Média ao Absolutismo Monárquico 2. Nicolau Maquiavel 3. Jean Bodin 4. Do Absolutismo Político ao Estado Liberal CAPÍTULO II – O CONTRATUALISMO E O ESTADO DE DIREITO 1. Thomas Hobbes 2. John Locke 3. Jean-Jacques Rousseau CAPÍTULO III – KANT E A RAZÃO ILUMINISTA UNIVERSAL 1. O Estado de Natureza e o Estado Civil 2. O Estado e a questão da Liberdade 3. O direito cosmopolita 2 CAPÍTULO IV – HEGEL, IDEALISMO E NACIONALISMO. 1. A Teoria política de Hegel no seu contexto histórico 2. O conceito de Estado 3. A Liberdade 4. Hegel, Marx e o Estado Social CAPÍTULO V – KARL MARX E A CRÍTICA RADICAL AO ESTADO MODERNO 1. Estado e Sociedade Civil 2. O caso Holzdiebstahlsgesetz 3. Os Fundamentos do Estado Social CAPÍTULO VI – MAX WEBER E O ESTADO RACIONAL MODERNO 1. O Estado Racional 2. As três formas de Legitimação do Poder 3. A Burocracia CAPÍTULO VII – KELSEN E O DIREITO UNIVERSAL 1. Estado e Direito 2. A Unidade do Sistema Jurídico Nacional e Internacional 3. Centralização e descentralização da Ordem Jurídica 4. A união de Estados 3 PRIMEIRA PARTE – O ESTADO MODERNO CAPÍTULO I – AS ORIGENS DO ESTADO MODERNO 1. Da Idade Média ao Absolutismo Monárquico A superação do modelo feudal medieval e o início do período absolutista determinaram o surgimento do Estado Moderno. Os autores identificam diversos momentos como marco inicial da concepção moderna de Estado, resgatando desde o episódio da prisão do Papa Bonifácio VIII por Felipe, o Belo, Rei da França, no século XIV, como o Tratado de Paz de Westphalia, assinado em Münster, na Alemanha, em 1648, onde se reconheceu o princípio fundamental dos direitos das gentes: a igualdade entre Estados.1 A idade média caracterizou-se pela existência de diversas ordens jurídico-políticas.2 Ainda que estando o rei no ápice da estrutura social, seu poder político era partilhado com o clero, com os senhores feudais e ainda 1 ACCIOLI, Wilson. Teoria Geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 199, e MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado. 22º ed. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 115. Segundo Kimminich, a Soberania foi reconhecida no Tratado de Paz de Westphalia como um instituto do direito e passou a ser o conceito central da ordem jurídica sobre a qual os Estados Europeus passaram a exercer os seus domínios e justificar o colonialismo e o imperialismo em todo o mundo. KIMMINICH, Otto. Deutsche Verfassungsgeschichte. Frankfurt am Main: Athenäum, 1970, p. 216. 2 Sobre o pluralismo jurídico na idade média, ver: MALISKA, Marcos Augusto. Pluralismo Jurídico e Direito Moderno. Notas para pensar o direito na atualidade. Curitiba: Juruá, 2000; e WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Ômega, 1994. 4 com os incipientes comerciantes e seus territórios de comércio.3 A estrutura política, descentralizada em razão do desmonte do antigo império romano, era identificada com um grande número de pequenos feudos, cidades livres, todos com relativa autonomia política, situação que caracterizava uma verdadeira confusão entre os direitos. 4 A necessidade da unificação do poder encontrou na monarquia absolutista a forma ideal. O estabelecimento de uma ordem contínua, unitária, previsível e eficaz determinou as linhas fundamentais do Estado Moderno. O absolutismo, segundo escreve Alfonso Catania, “teve uma origem dramática, entrelaçada com as guerras religiosas dos séculos XVI e XVII. É a forma do Estado em si mesma, pois sua função é especificamente política, com a renúncia a legitimação do poder em qualquer credo religioso. Em um tecido social de profundas tensões ideológicas, afirma-se a função técnica do Estado como mantenedor de uma ordem unitária, contínua, previsível e eficaz.”5 O absolutismo monárquico representou a ruptura do modelo feudal- medieval para aquilo que foi o início do caminho até o Estado de Direito Liberal das Revoluções Burguesas do final do Século XVIII. Sua 3 Zippelius ao tratar das instituições do Heiligen Römischen Reichs chama a atenção para algumas cidades que já se caracterizavam por espaços livres de comércio, com autonomia política, e para a posição de supremacia que se encontrava o Rei na estrutura social e política. ZIPPELIUS, Reinhold. Kleine deutsche Verfassungsgechichte. Vom frühen Mittelalter bis zur Gegenwart. München: Beck, 1999, p. 67. 4 Segundo Dalmo Dallari, o Estado Medieval caracterizou-se mais “como aspiração do que como realidade: um poder superior, exercido pelo Imperador, com uma infinita pluralidade de poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontável multiplicidade de ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da Idade Média pelas corporações de ofícios. Esse quadro, como é fácil de compreender, era a causa e conseqüência de uma permanente instabilidade política, econômica e social, gerando uma intensa necessidade de ordem e de autoridade, que seria o germe de criação do Estado Moderno.” DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19º ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 59. 5 CATANIA, Alfonso. Lo Stato Moderno. Sovranità e Giuridicità. Torino: G. Giappichelli Editore, 1996, p.11. 5 importância está em definir os traços característicos do Estado Moderno, em especial a centralização do poder político. Ainda que distante da divisão de poderes que será estabelecida posteriormente, bem como do domínio racional legal que caracteriza os Estados atuais, o Estado absolutista apresentou-se historicamente como o meio possível para fazer frente à instável estrutura medieval. O absolutismo tinha como fundamento teórico o direito divino dos reis, em que a autoridade do soberano era considerada como de natureza transcendental, proveniente diretamente de Deus. O poder de imperium era exercido exclusivamente pelo Rei, cuja pessoa era sagrada e desligada de qualquer liame de sujeição pessoal. O fundamento divino do direito dos reis é uma característica do início do Estado Moderno enquanto Estado Absolutista. No entanto, ainda que o domínio racional do Estado seja uma característica do Estado de Direito e, portanto, não absolutista, a ciência política que surge no período do renascimento é, se não racionalista, ao menos profundamente realista. “O absolutismo monárquico que compõe o período de transição para os tempos modernos teve as suas fulgurações produzidas pelo verniz teórico dos humanistas da renascença, os quais, afastando os fundamentos teológicos do Estado, passaram a encarar a ciência política por um novo prisma, exageradamente realista.”6 Segundo escreve Roermund, o quadro constitucional da Monarquia é originário da Monarquia absolutista,fazendo com que não se possa dizer que a Monarquia absolutista não teve Constituição ou forma Constitucional. Também na Monarquia absolutista é possível identificar teoricamente a diferença entre lei e lei constitucional. No entanto, as normas do direito são expressão da vontade do soberano (Königswillens). Nesse plano, não é possível diferenciar a Constituição de outra forma de produção do direito, 6 MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado, p. 115. 6 uma vez a ausência do sentido formal de Constituição. Em razão dessa específica diferenciação a lei, na Monarquia absoluta, diz Roermund, é constitucional, uma vez o Rei dizer que é.7 2. Nicolau Maquiavel Dois pensadores desta época destacaram-se: Nicolau Maquiavel e Jean Bodin. Segundo Norberto Bobbio, com Maquiavel (1469-1527) “começam muitas coisas importantes na história do pensamento político, inclusive uma nova classificação das formas de governo.”8 Segundo Maquiavel, “todos os Estados, todos os domínios que imperaram e imperam sobre os homens, foram e são repúblicas ou principados.”9 Em sua obra clássica, O Príncipe, Maquiavel tratou dos principados, dando especial atenção a maneira como eles podem ser governados e mantidos.10 Das repúblicas tratou o autor em outro momento, no Livro I da obra Discursos sobre a primeira década de Tito Livio. Maquiavel buscou despir e dissecar sem escândalo, restrições, hipocrisias e moralismos o cerne da alma humana, distanciando das alturas metafísicas e aproximando das baixezas políticas, baseado tão-só no estudo da História e principalmente no prosaico conviver com seu semelhante nas pouco sublimes refregas políticas de seu dia-a-dia de diplomata em 7 ROERMUND, Bert van. Die Alte Eiche. Verfassungsgerichtsbarkeit in philosophischer Perspektive. Constitucional Review – Verfassungsgerichtsbarkeit – Constitutionele Toetsing. The Netherlands: Kluwer Law and Taxation Publishers, 1993, p. 139. 8 BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Trad. Sérgio Bath. 4º ed. Brasília: Ed. da UNB, 1985, p. 83. 9 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Edson Bini. 12º ed. São Paulo: Hemus, 1996, p. 46. 10 “Em verdade, é bom que se frise que o significado real da obra de Maquiavel – De Principatibus – comportaria a expressão Os Principados, mas em virtude ‘quiça’ de algum lirismo e dolo (aí sim), adotou-se errônea e repetidamente a denominação de O Príncipe. In. LEAL, Eduardo Costa Coelho. Por uma nova Teoria Geral do Estado ou o Estado que se pretende praticar. Bagé: Ed. da Urcamp, 1992, p. 19. 7 Florença.11 A obra de Maquiavel inovou na forma de tratar o político, deixando de lado o místico no trato da coisa pública para concebe-la unicamente como conquista e manutenção através da razão.12 O clássico O Príncipe, que no dizer de Themistocles Cavalcanti, “é um tratado relativamente pequeno, com um volume que se divide em 26 capítulos, nos quais o autor procura reunir uma série de preceitos e de conselhos relativos à maneira e aos meios pelos quais os Estados se organizam, se governam, se estendem e se desenvolvem”, pode ser resumido aqui em quatro questões: (i) o livro foi escrito com intenções positivas, ou pretenderia Maquiavel somente expor aos povos, em forma de sátira, a iniqüidade dos Príncipes? (ii) é possível em política afastar-se dos preceitos da moral? (iii) foi Maquiavel o criador de uma verdadeira ciência política? (iv) Maquiavel criou realmente uma arte política, ou um manual de política? 13 A primeira questão é respondida pelo próprio Maquiavel ao recomendar a malícia apenas quando necessária em face de homens maus. A segunda questão implicaria uma tese inteira, “porque a idéia generalizada é a que existe uma moral política, como existe uma ética profissional com princípios peculiares e que se orientam por um lema muito conhecido e muito mal aplicado: os fins justificam os meios”.14 A resposta à terceira questão implica dizer que não foi Maquiavel o primeiro autor “a tratar os assuntos políticos com objetividade. Ele se utilizou do material histórico, imprescindível para esses estudos, utilizou-se ainda da crítica histórica, o que 11 BINI, Edson. Apresentação do livro O Príncipe. São Paulo: Hemus, 1996, p. 16. 12 No dizer de Zippelius, a separação verdadeira das questões teológicas das éticas nós vamos encontrar no começo da era moderna com Maquiavel, o qual no seu O Príncipe investigou as condições técnicas necessárias para se chegar e se manter no Poder. ZIPPELIUS, Reinhold. Allgemeine Staatslehre. München: Beck, 1969, p.2. 13 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Teoria do Estado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, p. 94-96. 14 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Teoria do Estado, p. 95-96. 8 é talvez mais importante, mas ele se utilizou principalmente da análise do homem diante dos fatos históricos e do seu comportamento diante do fato político”15. Quanto a quarta questão, segundo Themistocles Cavalcanti, não se encontra em O Príncipe “nenhuma sistematização que permita chegar a essa conclusão. Talvez em Aristóteles encontrem-se elementos indicativos muito mais seguros para uma boa política do que em o Príncipe de Maquiavel, escrito em uma época tenebrosa e na qual não se primava pelo respeito aos princípios da moral pública”.16 A obra de Maquiavel foi utilizada pelas monarquias absolutistas para retirar o poder político da aristocracia feudal e da Igreja, criando os Estados Nacionais unificados. A influência de O Príncipe em sua época só se compara ao Contrato Social de Rousseau. A palavra [Estado]17, como o nome de um corpo político soberano, parece ter sido tornada amplamente corrente no pensamento moderno, através de seus escritos. “O Estado como uma força organizada, supremo em seu próprio território, e adotando uma política conscienciosa de engrandecimento em suas relações com outros Estados, tornou-se não apenas a típica instituição política moderna, mas, crescentemente, a mais poderosa instituição na sociedade moderna. Couberam-lhe mais e mais o direito e a obrigação de regular e controlar todas as outras instituições da sociedade, e orientá-las ao longo de linhas claramente estabelecidas pelos interesses do próprio Estado. A parte que o Estado, assim concebido, tem desempenhado na política moderna é uma 15 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Teoria do Estado, p. 96. 16 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Teoria do Estado, p. 96. 17 “Rigorosamente é verdade, que a referida obra [O Príncipe], notabilizou a expressão ESTADO, quando em 1513, Maquiavel utilizou o termo ‘Stato’ de Florença.” LEAL, Eduardo Costa Coelho. Por uma nova Teoria Geral do Estado, p. 22. Observa Krüger que a palavra latina “status” na idade média não tinha nenhuma relação com a utilizada hoje. Para designar a vida em comunidade (Gesamtleben) se utilizavam outras expressões, em especial a “res publica”. KRÜGER, Herbert. Allgemeine Staatslehre. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1966, p. 9-10. 9 indicação da clareza com que Maquiavel apreendeu a tendência da evolução política.”18 3. Jean Bodin Quanto ao pensamento de Jean Bodin (1529-1596), Bobbio observa que “a obra mais importante do período de formação dos grandes Estados territoriais é De la République, de Jean Bodin. Publicada em 1576, em francês (uma edição latina sairá dez anos mais tarde), o livro é, sem exagero, a obra de teoria política mais ampla e sistemática desde a Política de Aristóteles”.19 O nome de Bodin passou paraa história do pensamento político como o teórico da soberania. Alerta Bobbio, no entanto, que “o conceito de soberania como caracterização da natureza do Estado não foi inventado por ele. (...) Já os juristas medievais, comentaristas do Corpus Juris, tinham traçado uma distinção entre as civitates superiorem recognoscentes e as civitates superiorem non recognoscentes – só estas últimas possuíam o requisito da soberania, podendo ser consideradas Estados, no sentido moderno do termo”.20 No dizer de Jean Bodin, “República é um justo governo de muitas famílias e do comum a elas com suprema autoridade”.21 Cada República tem 18 SABINE, George. A history of Political Theory. Londres: Harrap, 1961, p. 180, citado por ACCIOLI, Wilson. Teoria Geral do Estado, p. 201-202. 19 BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo, p. 95. 20 BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo, p. 95. Henri Baudrillart escreve que foi Bodin o primeiro a fazer uma clara distinção entre Soberania e Governo, não obstante, segundo ele, o erudito tradutor de Aristóteles M. Barthélemy atribuir ao pensador grego tal distinção. Segundo Baudrillart os textos de Bodin são de incontestável prioridade. BAUDRILLART, Henri. Bodin et son Temps. Tableau des Théories Politiques et des idées économiques au 16ème Siècle. Réimpression de L’édition Paris 1853. Darmstadt: Scientia Verlag Aalen, 1964, p. 267. 21 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República. Trad. para o espanhol por Gaspar de Añastro Isunza. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1992, p. 147. A presente tradução para o espanhol foi realizada em 1590, com a autorização da Santa Inquisição, por Gaspar de Añastro, tesoureiro da infanta Catalina Micaela, filha do Rei Felipe II. 10 uma suprema autoridade que serve de meio para se julgar qual é a sua forma de Estado. Tem-se uma Monarquia quando a autoridade suprema está no Príncipe; um Estado Popular quando a autoridade suprema está em todo povo; e um Estado Aristocrático, quando a autoridade superior está na menor parte do povo. 22 Segundo Bodin chama-se cidadão o súdito livre dependente da suprema autoridade do outro. Todo cidadão é súdito, mas nem todo súdito é cidadão. Por exemplo, o escravo é mais súdito da República que o seu senhor, mas, no entanto não é cidadão.23 Bodin ainda observa que o Príncipe é obrigado a manter com as armas e com as leis a segurança dos súditos, em suas pessoas, bens e famílias e os súditos são obrigados reciprocamente para com o Príncipe dando-lhe fé, sujeição, obediência, ajuda e socorro.24 O pensamento de Bodin deu contornos a estrutura política que estava se consolidando. As suas investigações quando analisadas no contexto em que foram escritas demonstram claramente a genialidade do pensador francês. Escritas no contexto do absolutismo as idéias de Bodin já anteviam os novos rumos que o pensamento político iria seguir nos séculos seguintes. 4. Do Absolutismo Político ao Estado Liberal No ambiente da época a burguesia, ainda que não figurante do cenário político, já desempenhava certa influência em razão das transformações econômicas que estavam acontecendo. No dizer de Paulo Bonavides, “a monarquia absoluta - e aqui vai uma das suas aparências mais enganadoras - já sem meio de qualquer ação impeditiva à expansão capitalista da primeira idade do Estado moderno, entra a estimulá-la com a adoção da política 22 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República, p. 383. 23 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República, p. 216-217. 24 BODIN, Jean. Los Seis Libros de la República, p. 245. 11 mercantilista, política dos reis sequiosos de fundos com que manter a burocracia e os exércitos permanentes, política da qual a aristocracia tirava também sua fatia de participação ociosa, mas sobretudo política, verdadeira, profunda, necessária, dos interesses arraigados da classe mercantil e industrial.”25 Por fim, o absolutismo apresentou uma profunda contradição, ao manter a superestrutura política tradicional e abrir caminhos à infra-estrutura econômica da burguesia que lhe foram fatais. O desenvolvimento econômico capitalista em determinado momento não suportou mais a antiga estrutura política absolutista. Surge a necessidade do Estado de Direito. Segundo Nelson Saldanha, “a presença social da burguesia, apenas sensível de início [no período absolutista], torna-se dominante em seguida [no período liberal]. Ela condiciona historicamente uma nova perspectiva. Em vez do escalonamento feudal, baseado na tradição e no rang, um individualismo baseado no dinheiro e no ‘êxito’. Em vez de leis variáveis e de privilégios, leis iguais para todos – uma igualdade ainda formal apenas, mas isto só depois se notaria. O poder do Estado, concentrado no rei durante a fase inicial, passa dialeticamente às mãos de todos por força das revoluções liberais-burguesas: às de todos, ao menos em princípio. O desejo burguês de generalidade e impessoalização condicionam o novo conceito de lei, tirado das severas tradições clássicas e retemperado pelas conveniências do tiers- état.”26 25 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3º ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 70. 26 SALDANHA, Nelson. Sociologia do Direito. 4º ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 119-120. 12 CAPÍTULO II – O CONTRATUALISMO E O ESTADO DE DIREITO O absolutismo político dos reis tornou-se incompatível com a estrutura econômica que estava se formando. A reação anti-absolutista, que afirmava ser o Estado um contrato entre o Rei e o povo, presumia um direito natural do homem anterior ao Estado, que deveria ser respeitado. Surge a necessidade da limitação da autoridade real pela soberania do povo, o Estado Liberal. O contratualismo, neste sentido, abriu caminhos para o Estado de Direito Liberal, pois provocou uma profunda reflexão acerca dos fundamentos do Estado ao questionar a legitimidade da ordem jurídica e política. São três os autores que retratam a trajetória do pensamento político que conduziu ao Estado de Direito Liberal: Hobbes, Locke e Rousseau. 1. Thomas Hobbes A trajetória da Teoria do Contrato Social tem seu início com Thomas Hobbes (1588-1679). O inglês de Westport é considerado o primeiro autor de um tratado sistemático de filosofia política publicado na Inglaterra. Segundo Mintz, o impacto de Hobbes foi sutil, pois ele provocou uma intensa hostilidade ao obrigar os seus críticos empregarem o seu método racional de Argumentação.27 No dizer de Bobbio, “Hobbes é o maior filósofo político da Idade Moderna, até Hegel”.28 As obras mais importantes de Hobbes para a compreensão do Estado Moderno são The Elements of Law Natural and Politic (1640), De Cive (1642 e 1647) e Leviathan (1651). Segundo M.M. Goldsmith na introdução da segunda edição The Elements of Law, esta foi a primeira obra da doutrina 27 MINTZ, Samuel I. The Hunting of Leviathan. Seventeenth-Century reactions to the materialism and moral philosophy of Thomas Hobbes. New York: Cambridge, 1970, p. viii. 28 BOBBIO, Norberto. A Teoria das formas de governo, p. 107. 13 de Hobbes, pois terminada em 1640, foi o seu primeiro trabalho sistemático sobre Política.29 Hans-Dieter Metzger sustenta que Elements of Law foi o primeiro Tratado Político da Revolução Inglesa, pois nele existem fundamentos que contribuíram ao discurso político que culminaram com a Revolução.30 Hobbes é um clássico e, como tal, as interpretaçõessobre o seu pensamento são várias. Themistocles Cavalcanti descreve Hobbes como filosoficamente filiado a Spinoza, marcado por uma visão cética e fatalista que conduzia ao egoísmo moral e ao absolutismo político.31 Hobbes “representa o reacionarismo, o totalitarismo, o domínio do indivíduo pelo Estado, representado este pela figura do Leviatã, que serviu de nome à sua obra fundamental”.32 Para Mintz “Hobbes foi Nominalista e Materialista; ele elaborou seu sistema com base para uma descrição nominalista fundamental do conhecimento e uma descrição materialista fundamental do universo. As conseqüências ele deduziu dessas fundações filosóficas que fez tão intensidade na opinião pública contemporânea. Essas conseqüências foram claramente não religiosas; nas mãos de Hobbes Nominalismo e Materialismo tornaram-se instrumentos para um poderoso ceticismo sobre o real ou sobre a objetiva existência do absoluto, e em particular sobre o absoluto da divina providência, do bem ou do mal e da imortalidade da alma”.33 Sobre o pensamento político de Hobbes, Mario A. Cattaneo sustenta que não obstante Hobbes ter sido identificado por muito tempo como o teórico do absolutismo político, ou seja, como o fundador dos princípios do 29 HOBBES, Thomas. The Elements of Law Natural and Politic. London: Frank Cass, 1969, p. V. 30 METZGER, Hans-Dieter. Thomas Hobbes und die Englische Revolution 1640-1660. Stuttgart-Bad Cannstatt: frommann-holzboog, 1991, p. 13. 31 Sobre a relação entre Hobbes e Spinoza ver também: WILLMS, Bernard. Der Weg des Leviathan. In. Der Staat. Zeitschrift für Staatslehre, Öffentliches Recht und Verfassungsgeschichte. Beiheft 3. Berlin: Duncker& Humblot, 1979, p. 44. 32 CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Teoria do Estado, p. 98. 33 MINTZ, Samuel I. The Hunting of Leviathan, p. 23. 14 direito natural moderno e do poder absoluto do Estado, mais recentemente se tem o desenvolvimento de uma interpretação que reconhece a existência de muitos elementos do liberalismo na sua doutrina política. Dois pólos desta tendência são encontrados, por um lado em Leo Strauss, que tem devido ao direito natural de conservação de si o fundamento da filosofia política de Hobbes, e de outro lado Mayer-Tasch, que assinalou a presença de um direito à resistência no pensamento de Hobbes.34 No tocante a alguns pontos específicos da obra de Hobbes vale lembrar que para o pensador político inglês o Direito de Natureza é “a liberdade de cada homem em utilizar seu poder como bem lhe aprouver, para preservar sua própria Natureza, isto é, sua Vida e de, conseqüentemente, fazer tudo aquilo que segundo seu Julgamento e Razão é adequado para atingir esse Fim”.35 “Todo homem em natureza tem o direito a todas as coisas, tudo que ele possa listar para posse, uso e usufruto”.36 Deste modo, “a Condição Humana é a Guerra de uns contra os outros, cada qual governado por sua própria Razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim, perdurando esse Direito de cada um sobre todas as coisas, não poderá haver segurança para ninguém (por mais forte e sábio que seja), de viver durante todo o tempo que a Natureza permitiu que vivesse.”37 Desta forma, no Estado de Natureza o Homem está em 34 CATTANEO, Mario A. Hobbes Théoricien de l’Absolutisme Eclairé. In. KOSELLECK, Reinhart e SCHNUR, Roman (org.) Hobbes-Forschungen. Berlin: Duncker & Humblot, 1969, p.199. Ver também: STRAUSS, Leo. Hobbes’ politische Wissenschaft. Berlin: Luchterhand, 1965 e MAYER-TASCH, Peter Cornelius. Thomas Hobbes und das Widerstandsrecht. Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1965. 35 HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. Rosina D’Angina. São Paulo: Ícone, 2000, p. 99. 36 HOBBES, Thomas. The Elements of Law Natural and Politic, p. 72. 37 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 99. 15 condição de igualdade, livre arbítrio e, por conseqüência, de permanente insegurança e guerra.38 No entanto, é também uma lei natural aquela que obriga os homens a procurarem a paz. Desta Lei Fundamental deriva uma segunda lei que dispõe que o “homem deve concordar com a renúncia de seus Direitos a todas as coisas, contentando-se com a mesma Liberdade que permite aos demais, à medida em que considere a decisão necessária à manutenção da Paz e em sua própria defesa.” Diz Hobbes, “se cada qual fizer tudo o que tem Direito, reinará a Guerra entre os homens, não haverá razão para que alguém se prive daquilo que tem Direito, pois isso significará oferecer-se como Presa (ao que ninguém é obrigado) e não dispor-se à Paz”.39 Da segunda lei da natureza acima referida deriva uma terceira, que dispõe: Que os homens cumpram os pactos que celebrarem. “Se esta lei não vigorar, os pactos serão vãos, não passando de palavras Vazias e uma vez que o Direito de todos os homens a todas as coisas continuaria a vigorar, prevaleceria a condição de Guerra”.40 A origem e a Fonte da Justiça se encontram nessa Lei da Natureza, que segundo Hobbes implica na existência de “uma espécie de Poder coercitivo que obrigue igualmente os homens a cumprirem seus Pactos e esse poder deve infundir o temor de alguma pena superior ao benefício esperado com o rompimento do Pacto e capaz de dar força à Propriedade adquirida pelos homens através do Contrato mútuo, como recompensa do Direito universal a que renunciaram. Esse Poder não pode existir antes da constituição do Estado”.41 38 Sobre o pensamento político de Hobbes, em especial sobre a condição humana no Estado de Natureza, ver SCHELSKY, Helmut. Thomas Hobbes. Eine Politische Lehre. Berlin: Duncker & Humblot, 1981, p. 333 e seg. 39 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 100. 40 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 108. 41 HOBBES, Thomas. Leviatã, p. 108. 16 A doutrina política de Hobbes, desta forma, encontra-se entre a justificativa de um absolutismo racional e os pré-elementos de um Estado de Direito. Ao mesmo tempo em que enfatiza a necessidade de se cumprir os pactos como forma de dar “força à propriedade adquirida pelos homens através do Contrato mútuo”, Hobbes recente que a doutrina do direito natural sustentada pelos antimonarquistas poderia conduzir à anarquia. O seu culto profundo à ordem o leva a sustentar um posicionamento que não se fundamenta no direito divino, mas, no entanto, exige a presença de um Estado forte e de governo absoluto com embasamentos racionais. 42 2. John Locke O Contratualismo encontrou em John Locke (1632-1704) o teórico da Revolução Inglesa de 1688 que produziu na sua obra clássica Two Treatises of Government a defesa doutrinária do partido parlamentar.43 No Segundo Tratado sobre o Governo, também conhecido como Ensaio sobre o Governo Civil, Locke engendra todo um sistema a propósito da origem, da natureza e do alcance da intervenção do Governo. Segundo Bobbio, “o Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1690) de Locke, pode ser considerado como a primeira e mais completa formulação do estado liberal. É um dos três ou quatro livros decisivos da história do pensamento político moderno. Sua importância está na clara solução que dá aos principais problemas que haviam sido debatidos naquele século, muito rico em disputas e lutas 42 ACCIOLI, Wilson. Teoria Geral do Estado, p. 147. Cattaneo sustenta também que a concepção de Hobbes é a elaboração e a justificaçãodo absolutismo iluminado. CATTANEO, Mario A. Hobbes Théoricien de l’Absolutisme Eclairé, Ob. Citada, p. 200. 43 No excelente trabalho realizado pelo Prof. Peter Laslett, do Trinity College, de Cambridge, com comentários críticos a obra de Locke, encontra-se, sobre a relação da obra do filósofo político inglês e a Revolução Gloriosa de 1688, o consenso, não em absoluto, de que a obra justificou a Revolução, pois parte do texto foi escrito em 1689. LASLETT, Peter. Introdução a obra Dois Tratados sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 67. 17 políticas na Inglaterra”. 44 Da mesma forma observa Walter Euchner, quando escreve que “Locke desenvolveu o modelo de uma Monarquia Liberal Constitucional dando forma ao moderno Estado Constitucional”.45 A obra de Locke Two Treatises of Government é uma crítica a teoria de Robert Filmer, exposta em sua obra Patriarcha: or the Natural Power of Kings, refutando a tese do direito divido dos reis.46 No Primeiro Tratado, Locke esclarece que não há legitimidade no argumento que o fundamento da autoridade dos reis deriva do domínio particular e a jurisdição paterna de Adão. Escreve o autor que “o conhecimento de qual é a linhagem mais antiga da descendência de Adão foi há muito tanto tempo completamente perdido que em todas as raças da humanidade e famílias do mundo não resta, a nenhuma mais que a outra, a menor pretensão a ser a casa mais antiga e a ter o direito de herança”.47 Segundo Locke, para se compreender o Poder Político é necessário entender o estado em que todos os indivíduos naturalmente estão, qual seja, um estado de liberdade perfeita e igualdade.48 Por liberdade perfeita, entende Locke, a liberdade “para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas de modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”, e por 44 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 4º ed. Brasília: Ed. UNB, 1997, p. 37. 45 EUCHNER, Walter. John Locke. Zur Einführung. Hamburg: Junius, 1996, p. 81. 46 Michael Rostock observa que a obra de Locke dirige-se contra Filmer e contra Hobbes. Contra o primeiro em razão da tese inaceitável para Locke do direito divino dos reis (göttlichen “Vaterschaftsrechten” der Monarchen), e contra Hobbes em razão da situação fática de constante opressão que se encontravam os cidadãos perante o Monarca. ROSTOCK, Michael. Die Lehre von der Gewaltenteilung in der politischen Theorie von John Locke. Meisenheim am Glan: Anton Hain, 1974, p.11-12. 47 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.380. 48 Segundo A. John Simmons, “o Estado de Natureza é sobre diversos aspectos o conceito central da obra Treatises de Locke. (...) O Estado de Natureza definido por Locke é o limite da política.” SIMMONS, A. John. On the Edge of Anarchy. Locke, Consent, and the Limits of Society. New Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 13. 18 igualdade, “que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, promiscuamente nascidas para todas as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem subordinação ou sujeição...”.49 Sobre a questão da igualdade no Estado de Natureza, observa Rolf Meyer, que é injustificada a crítica de Rainer Rotermundt a Locke, feita em seu trabalho Das Denken John Lockes, acerca de uma mistificação do ao mesmo tempo dualismo entre igualdade e desigualdade natural. Segundo Meyer, Locke pensa em uma igualdade de direitos e não em uma igualdade de poder. Todos os Homens são iguais em espécie e posição. Assim, ainda que os Homens em geral sejam dotados de igual aptidão e senso, alguns em especial podem se destacar em relação à média dos outros. Ainda assim esses não são corretamente em relação aos outros superiores, senão que estão na mesma posição. A partir daí, afirma Meyer, é que se pode dizer que um Homem segundo o direito natural não pode ser senhor de outro Homem.50 Locke coloca duas questões como fundamentais para a necessidade do fundamento do Estado Civil e do abandono do Estado de Natureza. Segundo ele, “se o homem no estado de natureza é livre como se disse, se é senhor absoluto de sua própria pessoa e suas próprias posses, igual ao mais eminente 49 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo, p. 382. 50 MEYER, Rolf. Eigentum,Repräsentation und Gewaltenteilung in der politischen Theorie von John Locke. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1991, p. 44-45. É necessário observar, no entanto, que a crítica de Rotermundt é feita no contexto de um trabalho de analise minuciosa da lógica do pensamento não só político como também econômico burguês. Neste sentido, Rotermundt discute o pensamento de Locke, que segundo ele não é só fundamento do liberalismo político, mas também da clássica economia política (p.7), numa extensão e profundidade que a crítica de Meyer aqui citada pende muito mais para uma visão ideológica em prol de uma interpretação liberal do que propriamente uma discussão de fundo sobre o tema. Tal discussão, ainda que de grande importância, infelizmente, esse trabalho não comporta realizar. Ver: ROTERMUNDT, Rainer. Das Denken John Lockes. Zur Logik bürgerlichen Bewuβtseins. Frankfurt am Main, Campus Verlag, 1976. 19 dos homens e a ninguém submetido, por que haveria ele de se desfazer dessa liberdade? Por que haveria de renunciar a esse império e submeter-se ao domínio e ao controle de qualquer outro poder?”51 Escreve Walter Euchner que por mais que o Estado de Natureza de Locke seja um Estado repleto de direitos, é uma questão de pura sorte estar livre da vontade de outros nesse estado. A liberdade no Estado de Natureza significa o direito a dispor de sua pessoa e de seus bens nos limites da lei natural. Se o Homem abdica da liberdade natural isso não significa abdicar da liberdade em si, mas sim de ter uma verdadeira garantia de que a liberdade será protegida.52 Locke ao responder as questões por ele próprio formuladas acima escreve que é “evidente de que o Homem, embora tivesse tal direito no estado de natureza, o exercício do mesmo é bastante incerto e está constantemente exposto à violação por parte dos outros, pois que sendo todos reis na mesma proporção que ele, cada homem um igual seu, e por não serem eles, em sua maioria estritos observadores da eqüidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da propriedade é bastante incerto e inseguro. Tais circunstâncias o fazem querer abdicar dessa condição, a qual, conquanto livre, é repleta de temores e de perigos constantes. E não é sem razão que se procura e almeja unir-se em sociedade com outros que já se encontram reunidos ou projetam unir-se para a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens, aos quais atribuo o termo genérico de propriedade”.53 Ao buscar um conceito de propriedade em Locke observa Rolf Meyer que Locke ficou devendo uma definição de propriedade, pois em várias passagens da sua obra encontram-se definições com duplo sentido o que 51 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo, p. 495. 52 EUCHNER, Walter. Naturrecht und Politik bei John Locke. Frankfurt am Main: Europäische Verlagsanstalt, 1969, p. 193. 53 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo, p. 495. 20 possibilitam diferentes interpretações.Meyer faz referência a duas passagens da obra Dois Tratados em que Locke utiliza, num primeiro momento, propriedade como sinônimo de vida, liberdade e bens e num segundo momento como tudo aquilo que o Homem tem na sua pessoa como qualidade de bom. Este último conceito, que Locke recomenda que seja entendido em todos os momentos, é um conceito bem mais abrangente. No entanto, a interpretação própria de Locke acerca do conceito de propriedade é dada no sentido de propriedade material e, desta forma, segundo Meyer, conceitos como possessão e bens não estão mais subordinados ao conceito de propriedade, senão que possuem igual forma.54 Para Locke, desta forma, o governo tem por finalidade a conservação da propriedade privada, pois “é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza, que certamente devem ser grandes quando aos homens é facultado serem juizes em suas próprias causas, pois é fácil imaginar que aquele que foi injusto a ponto de causar injúria a um irmão dificilmente será justo o bastante para condenar a si mesmo por tal”.55 O Estado de Locke é, portanto, uma união livre de proprietários que encontram no governo civil a forma adequada de proteger os direitos naturais os quais lhes são legítimos por natureza, uma vez no estado de natureza estarem ausentes de garantias de sua manutenção. 3. Jean-Jacques Rousseau No Século XVIII o contratualismo encontrou em Jean-Jacques Rousseau (1712-1788) o autor que deu fundamento teórico a Revolução 54 MEYER, Rolf. Eigentum,Repräsentation und Gewaltenteilung in der politischen Theorie von John Locke, p. 51-52. Sobre o conceito de propriedade em Locke ver também: THOMAS, D. A. Lloyd. Locke on Government. London e New York: Routledge, 1995, Cap. 4. 55 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo, p. 391-392. 21 Francesa. O autor genebrino, filho de uma família de Relojoeiros, tem a sua obra principal Contrat Social considerada como l’Évangile de la Revolution de 1789.56 No dizer de Vossler “com Jean Jacques Rousseau encontrou o pensamento ocidental sobre o Estado uma grande transformação, que eu acho, pode se dizer, de modo geral, a mais significativa transformação desde a cristianização. Rousseau diferencia-se de todo pensamento sobre o Estado da idade média e da idade moderna até ele, pois coloca a questão da Teoria do Estado sobre uma nova e completa transformação de fundamentos, ele abre com um golpe a nova época do pensamento e prática política, uma época que até hoje nós nos encontramos e trabalhamos”.57 Não obstante a importância de Rousseau para a ciência política, “a questão política em geral – e o condicionamento e levantamento ainda novamente fragmentário das respostas através de Rousseau – não se encontram no centro de seu interesse; Rousseau não provém da Política, pois para ele ela se encontra com, ao lado ou atrás de outras questões. Ela é assim uma parte, e na verdade uma subordinada e dependente parte, de um grande sistema de pensamento, no qual o ponto central em outro lugar se encontra. Somente a partir da compreensão deste grande esquema é que é possível compreender o pensamento de Rousseau. Toda frase e pensamento da Teoria Política de Rousseau têm sua raiz na pedagogia, nos costumes, na religião etc”.58 A interdisciplinaridade do pensamento de Rousseau lhe possibilitou uma análise livre acerca do homem e da sua condição social. Essa perspectiva emancipadora do pensamento de Rousseau lhe colocou numa posição muito à frente de sua época. Sob essa perspectiva, expõe Rousseau 56 DERATHÉ, Robert. Jean-jacques Rousseau et la science politique de son temps. Paris: J.Vrin, 1970, p. 7. 57 VOSSLER, Otto. Rousseaus Freiheitslehre. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1963, p. 9. 58 VOSSLER, Otto. Rousseaus Freiheitslehre, p. 21. 22 em Du Contrat Social uma teoria política que tem no Contrato Social a garantia da liberdade civil e da propriedade.59 Segundo Rousseau, “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, se unindo a todos, obedeça apenas, portanto, a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes (...) é o problema fundamental a que o Contrato Social dá a solução”.60 Rousseau distingue a liberdade natural da liberdade civil.61 Com o Contrato Social o homem perde a liberdade natural, mas ganha a liberdade civil. A primeira é a “que tem por limites as forças do indivíduo”, a liberdade civil é a “que é limitada pela vontade geral”.62 O Contrato Social de Rousseau não é um contrato, senão uma tentativa, com o auxílio de antigas palavras, de esclarecer uma nova descoberta da idéia de Estado, na qual o sentido, que significa vontade livre, é por si próprio definido e próprio realizado nos Estados, isto é a volonté générale.63 A Lei é a expressão da vontade geral. Por Lei entende Rousseau que “quando todo o povo estatui algo para todo o povo, considera apenas a si mesmo, e forma-se então uma relação, isto é, do objeto inteiro sob um ponto de vista ao objeto inteiro sob outro ponto de vista, sem nenhuma divisão do 59 Anota Fetscher que Rousseau não concorda com a idéia de que já no Estado de Natureza possa se ter como de direito a propriedade, em todo caso não também o seguinte, ou seja, de que a ausência de propriedade possibilite, para todos, em igual caso no Estado de Natureza, o direito a tudo. Ele apresenta, por isso, que toda posse antes da realização do contrato social é usurpação. FETSCHER, Iring. Rousseaus Politische Philosophie. Zur Geschichte des demokratischen Freheitsbegriffs. Neuwied: Hermann Luchterhand, 1960, p. 33. 60 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social e Discurso sobre a Economia Política. Trad. Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima. Curitiba: Hemus, s/d., p. 27. 61 Rousseau ao sustentar o princípio da socialibilidade natural do Homem diverge da posição assumida pela Escola do Direito Natural, em especial Hobbes, mas também Locke. Ver: DERATHÉ, Robert. Jean-jacques Rousseau et la science politique de son temps, p. 151, 132 e 142. 62 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p. 31. No dizer de Fetscher o conceito central do pensamento político de Rousseau não é o de Contrat Social, senão o de volonté générale. FETSCHER, Iring. Rousseaus Politische Philosophie. Zur Geschichte des demokratischen Freheitsbegriffs, p. 111. 63 VOSSLER, Otto. Rousseaus Freiheitslehre, p. 244. 23 todo. Então a matéria sobre a qual se estatui é geral como a vontade que estatui”.64 A Lei só é legítima se houver a participação dos homens na sua elaboração. “As leis são propriamente e apenas as condições de associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor destas; (...) Aquele que redige as leis não tem, portanto, ou não deve ter nenhum direito legislativo, e o próprio povo não pode, ainda que o queira, despojar-se desse direito incomunicável uma vez que, segundo o pacto fundamental, apenas a vontade geral obriga os particulares, e que só podemos nos assegurar que uma vontade particular é conforme a vontade geral senão após tê-la submetido ao sufrágio livre do povo”.65 Segundo Rousseau, pela mesma razão que a soberania não pode ser alienada ela não pode ser representada. A soberania consiste na vontade geral, e a vontade não é representada: “é a mesma, ou é outra, não há meio termo”. A idéia da representação é moderna66, pois nas antigas Repúblicas e mesmo nas Monarquias o povo jamais foi representado. Escreve Rousseau“que o povo inglês pensa ser livre, mas engana-se grandemente; só o é durante a eleição dos membros do parlamento: assim que estes são eleitos, é escravo, nada é. Nos curtos momentos de sua liberdade, o uso que dela faz bem merece que a perca”.67 Ainda que o povo não possa ser representado no Poder Legislativo, observa Rousseau que ele “pode e deve ser representado no poder executivo, que é a força aplicada à lei”.68 O emprego da lei geral em um caso concreto 64 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p. 48. 65 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p. 52. 66 “...nos vem do governo feudal, deste iníquo e absurdo governo no qual a espécie humana é degradada, e onde o nome de homem é desonrado.” ROUSSEAU, Jean- Jacques. Do Contrato Social, p. 102. 67 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p. 101-102. 68 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social, p. 102. 24 não compete ao Povo senão ao Governo, que é dependente do povo unido e por esse também controlado.69 CAPÍTULO III – KANT E A RAZÃO ILUMINISTA UNIVERSAL Immanuel Kant (1724-1804) é um marco no pensamento filosófico. Estudado em diversas áreas Kant é o autor da transição do antigo ao moderno. O interesse por Kant começa pela sua biografia, marcada por uma disciplina pessoal extraordinária, de horários rígidos, pontualidade e imutabilidade. Kant está na tradição do Iluminismo. Karl Popper descreve Kant como o último defensor do Iluminismo.70 Kant viu com simpatias, ainda que com alguns perigos, as Revoluções Americana e Francesa. Tais acontecimentos serviram de fundamentos para a sua filosofia política, trabalhada por ele na sua velhice.71 O pensamento de Kant permite muitas coisas dizer. Para os objetivos desse trabalho revela-se suficiente o resgate de seu pensamento na extensão que possa retratar a concepção de Estado e a sua importância no cenário da modernidade, e nesse sentido entram em cena questões como os direitos naturais e as situações de tais direitos na natureza e no governo civil, a ordem 69 FETSCHER, Iring. Rousseaus Politische Philosophie, p. 138. 70 POPPER, Karl R. Immanuel Kant. Der Philosoph der Aufklärung. Eine Gedächtnisrede zu seinem hundertfünfzigsten Todestag. In. KOPPER, Joachim und MALTER, Rudolf. (orgs.) Immanuel Kant zu ehren. Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1974, p. 335. Segundo Popper, “enquanto eu vejo Kant como o último defensor do Iluminismo se apresenta ele também como fundador daquela escola que destruiu com o Iluminismo, a Escola Romântica do Idealismo alemão, a Escola de Fichte, Schelling e Hegel. Eu afirmo que essas duas opiniões são inconciliáveis”. 71 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. 4˚ ed. München: Beck, 1996, p. 209-210, e SANER, Hans. Widerstreit und Einheit. Wege zu Kants politischen Denken. München: R. Piper, 1967, p. 13 e 17. Saner observa que o pensamento político de Kant encontra-se na periferia da sua obra, pois tratou ele desse tema já quase no fim de sua vida, porém isso não é dizer periferia do pensamento. 25 interna dos Estados e os fundamentos de um Estado de Direito, bem como, e de grande atualidade, os seus escritos sobre um direito cosmopolita, ou seja, de um direito além dos limites do Estado. 1. O Estado de Natureza e o Estado Civil Na concepção de Kant, o estado de natureza é um estado provisório que deve levar ao estado civil. Essa passagem não significa a eliminação do estado de natureza, mas a sua conservação. “O estado civil é aquele estado que deve de fato possibilitar o exercício dos direitos naturais através da organização da coação, motivo pelo qual não é um estado completamente novo, mas é, deve ser, tanto quanto possível análogo ao estado de natureza, e inclusive é tanto mais perfeito quanto mais numerosos são os direitos naturais que consegue salvaguardar (Locke)”.72 Observa Kant que se antes de entrar no estado civil não se quisesse reconhecer nenhuma aquisição como legítima, nem provisoriamente, este estado seria, por sua vez, impossível. Porque no que se refere à forma as leis contêm sobre o Meu e o Teu no estado natural o que prescrevem no civil concebido somente segundo as noções da razão pura. Existe, todavia, a exceção de que no estado civil se dão as condições segundo as quais deve ser executada a lei natural de conformidade com a justiça distributiva. Se não houvesse Meu e Teu exterior no estado natural, ao menos provisoriamente, não haveria nenhum dever de direito sob esta relação, nem, portanto, nenhuma obrigação de sair desse estado.73 72 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 4º ed. Brasília: Ed. UNB, 1997, p. 119. 73 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 431. 26 É importante também anotar que, segundo Kant, o estado natural não deveria ser um estado de injustiça (injustus), no qual os homens unicamente se tratassem segundo a medida exclusiva de suas forças; porém, é ao menos um estado de justiça negativa (status justitae vacuus), no qual, se o direito fosse controvertido, não haveria juiz competente para ditar uma sentença legítima em virtude da qual cada um pudesse obrigar o outro a sair desse estado de guerra e fazê-lo entrar num estado jurídico. Com efeito, ainda que, segundo as noções de direito de cada um, se pode adquirir por ocupação ou por contrato algo exterior, esta aquisição não é, todavia, nada mais que provisória, enquanto lhe falte a sanção da lei pública, porque não está determinada por nenhuma justiça pública (distributive) e não está garantida por nenhuma potência que exerça o direito.74 Observa Höffe que a distinção do pensamento de Kant e de Hobbes encontra-se justamente no fato do primeiro discordar do segundo quanto aos motivos que levam o Homem procurar a paz propiciada pelo Estado Civil. Para Hobbes o Homem procura a paz em razão do receio da morte e o desejo de felicidade. Para Kant os motivos pragmáticos em face dos rígidos fundamentos racionais não possuem mais espaço. A felicidade dos Estados não se encontra em sorte, mas no Direito, na comunidade racional como liberdade externa. Conseqüentemente reina sozinho o argumento de que as decisões em um Estado de Direito Público sobre o direito e o não direito não estão fundamentadas no arbítrio, mas no Direito.75 O pensamento de Kant, desta forma, está em harmonia com a corrente jusnaturalista que entende o estado civil como complemento do estado de natureza, ou seja, está na tradição de Locke e contrário a posição assumida por Hobbes. No entanto, Kant também difere do pensamento de Locke quanto a justificativa do estado civil, pois para Locke o Estado Civil é 74 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 430. 75 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, p. 229. 27 entendido como uma utilidade, pois o estado de natureza seria inconveniente, e segundo Kant o Estado Civil é uma obrigação moral. 2. O Estado e a questão da liberdade O Estado é no pensamento de Kant “construção a posteriori, que serve a uma necessidade racional da convivência humana. É dado ético e não empírico”.76 O pensamento de Kant, no dizer do pensador italiano Norberto Bobbio, é uma das expressões teoricamente mais rigorosas do Estado Liberal77. Para Kant o Estado é uma instituição de segunda ordem que está a serviço das instituições de primeira ordem, a saber, a Propriedade sobre as coisas, o Casamento e a Família. Kant fala de um Estadode Direito Público (öffentlichen Rechtszustand), o qual não se encontra em qualquer Estado, mas na República, que segundo Höffe, podemos hoje dizer corresponde ao Estado Constitucional.78 O Estado de Direito apresenta-se através de duas características, ou seja, as decisões sobre o direito não estão junto a uma pessoa privada, mas junto ao Poder Público, ou seja, o Estado de Direito tem um caráter estatal; e segundo ele não se trata de qualquer Estado, senão de uma ordem política de domínio de conflito (politische Ordnung der Konfliktbewältigung), a qual segundo a norma kantiana da Crítica da Razão Prática é determinada através de uma rigorosa lei geral.79 Segundo Kant, “uma cidade (civitas) é a reunião de um número maior ou menor de homens sob a lei de direito. (...) Cada cidade encerra em si três 76 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 4º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 104. 77 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 09. 78 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, p. 225-229. 79 HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant, p. 229. 28 poderes, isto é, a vontade universalmente conjunta numa pessoa tripla (trias politica): o poder soberano (soberania) na pessoa do legislador; o poder executivo (segundo a lei) na pessoa do governo e o poder judicial (como reconhecimento de o Meu de cada qual segundo a lei) na pessoa do juiz (potestas legislatoria, rectoria et judiciaria)”.80 O poder legislativo somente pode pertencer à vontade coletiva do povo, que como membros reunidos de tal sociedade (societas civilis ou Gesellschaft) chamam-se cidadãos (cives ou Staatsbürger). Os atributos inseparáveis da natureza de cidadãos são, primeiro, “a liberdade legal de não obedecer a nenhuma outra lei além daquelas a que tenham dado seu sufrágio”; segundo, a igualdade civil, “que tem por objeto o não reconhecer entre o povo nenhum superior além daquele que tem a faculdade moral de obrigar juridicamente da mesma maneira que, por sua vez, pode ser obrigado”; terceiro, o atributo da independência civil (der bürgerlichen Selbständigkeit), “que consiste em ser devedor de sua existência e de sua conservação, como membro da república, não ao arbítrio de outro no povo, mas sim aos seus próprios direitos e faculdades, e, por conseguinte em que a personalidade civil não possa ser representada por nenhum outro nos assuntos de direito”.81 A doutrina de Kant, colocando como fim do Estado a liberdade, entendida como “independência do arbítrio de outro na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal,”82 “opõe-se à concepção, prevalecente na sua época, que atribuía ao Estado, e por isso ao príncipe, o fim principal de dirigir os súditos para a felicidade, e era a concepção que correspondia ao regime chamado de despotismo (ou absolutismo) iluminado.”83 80 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 431. 81 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 432. 82 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 337. 83 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 134. 29 Anota Paulo Bonavides que em Kant o problema da Liberdade não se reveste mais em “saber se a liberdade existe” para se converter em outro muito mais profundo, qual seja, “como é possível a liberdade”.84 Essa questão está ligada ao dualismo que Kant anuncia existir entre o mundus intelligibilis e o mundus sensibilis, entre o noumenon e o phaenomenon, entre a experiência e o imperativo categórico. O noumenon é a coisa em si (das Ding an sich), já o phaenomenon é a coisa como ela se apresenta ou manifesta. A doutrina Kantiana da liberdade repousa, por conseguinte nessa consideração essencial do homem sob dois aspectos: o homem fenômeno, como ente empírico, e o homem como noumenon, como ser inteligível: “o homem como phenomenon, recebe, como noumenon, dá a lei”. Como ser empírico, o homem se submete às leis psicológicas; como ser racional, inteligente, “ele se ergue acima de toda condicionalidade empírica, movido por força que lhe confere a consciência do dever, que existe na intimidade dele mesmo e que sempre intervém no domínio das suas ações, qual supremo agente da razão, elevando-o a uma ordem moral superior”.85 A força que move o ser racional chama-se imperativo categórico, que se reveste na ação em si mesma, objetivamente necessária, sem relação com qualquer outro fim. A fórmula do imperativo categórico: “Age como se a máxima de tua ação se devesse tornar, pela sua vontade, em lei universal da natureza”, é um imperativo formal, que prescreve apenas a forma e não o 84 Escrevendo sobre o direito no pensamento de Kant, anota Müller que o Homem é um fim em si, e não meio para se atingir outro fim. O ser do Homem encontra-se na sua liberdade. A liberdade de um encontra seu limite na liberdade do outro, e ela é pensada apenas nessa condição.O direito, nesse sentido, constitui-se sempre em uma lei geral, no qual eu encontro o meu dever de igual modo que os outros. MÜLLER, Jörg Paul. Das Weltbürgerrecht (§ 62) und Beschluβ. In. HÖFFE, Otfried. (org.) Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. Berlin: Akademie Verlag, 1999, p. 260. 85 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social, p. 92-99. Sobre esta distinção ver também LUDWIG, Bernd. Kommentar zum Staatsrecht (II). In. HÖFFE, Otfried. (org.) Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. Berlin: Akademie Verlag, 1999, p. 174-175. 30 conteúdo (matéria) da ação: agir por respeito ao dever.86 “A existência deste imperativo moral tem como corolário a realidade das condições que tornam factível a moralidade assim definida. Estas condições são os chamados postulados da razão prática, quais sejam, a liberdade, a imortalidade da alma, Deus. O imperativo categórico não teria sentido se o homem não fosse livre em seu agir.”87 A felicidade para Kant é algo pessoal e incomunicável, sendo que o Estado deve propiciar a liberdade para o cidadão através da constituição legal, para que a partir daí cada um possa alcançar a sua felicidade pessoal. O Estado de Kant é um Estado de Direito, na concepção que entende que o Estado tem como função principal e específica a instituição de um Estado jurídico, ou seja, de um Estado no qual cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal. Kant tem muito claro que o Estado deve estabelecer as condições segundo as quais cada indivíduo possa perseguir os próprios fins sem prejudicar os outros e sem ser prejudicado por eles, ou seja, o Estado deve ser o instrutor e o conservador da ordem somente mediante o direito. Esse entendimento está em posição inversa ao Estado paternal, que pretende buscar a felicidade do cidadão. O maior filósofo alemão antes de Kant, Wilhelm Leibniz, escreveu em A Justiça como Caridade do Sábio (1677-78), as tarefas do soberano ao pretender dar a felicidade para seus súditos: “Em primeiro lugar se deve agir de maneira que todos os cidadãos estejam, dentro do possível, satisfeitos e tranqüilos de ânimo... Em segundo lugar se deve agir de maneira a fazer com que todos os cidadãos sejam moderados, isto é, capazes de dominar as paixões .... Quinto, que sejam devotos... Nono, que sejam bonitos de corpo, 86 Sobre o conceito kantiano ver LUDWIG, Ralf. Der Kategorische Imperativ. Eine Lese- Einführung. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1995. 87 LEITE, Flamarion Tavares. O Conceito de Direitoem Kant. São Paulo: Ícone, 1996, p. 33. 31 ágeis e ao mesmo tempo robustos; ... Décimo, que estejam treinados para qualquer virtude da alma e do corpo... Décimo primeiro, que disponham dos meios necessários à vida, porque a miséria deixa os homens infelizes e malvados”.88 Para Kant, o Estado não deve se substituir ao cidadão na realização de tarefas que efetivamente não lhe cabem; o Estado agindo assim torna-se, inevitavelmente, despótico. Kant adverte: “Disso se vê claramente o mal que pode causar na vida do Estado, não menos do que na moral, o princípio da felicidade..., ainda que com a melhor das intenções dos seus sustentadores. O soberano quer fazer feliz o povo segundo a sua visão e torna-se déspota; o povo não quer deixar-se despojar do direito comum a todos os homens à própria felicidade e torna-se rebelde”.89 3. O direito cosmopolita A teoria de Kant não se limitou a análise das condições do Direito e do Estado nos limites de um território com poder definido, mas estendeu-se à análise do Direito Internacional (Das Völkerrecht) chegando a proposição de um direito cosmopolita (Das Weltbürgerrecht). Observa Jochen von Bernstorff que para Kant a relação entre os estados é marcada por uma situação de liberdade natural em constante situação de guerra. O objetivo do direito internacional seria buscar segundo o subjetivo arbítrio dos estados a paz universal através de uma situação de direito. A paz perpétua seria 88 Citado por BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 138. 89 Citado por BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 139. 32 atingida por meio de uma permanente união de Estados ou Congresso de Estados.90 Inicialmente é necessário pontuar, em harmonia com a citação acima, que o direito internacional proposto por Kant está condicionado ao “subjetivo arbítrio dos estados”, e isso significa dizer que os estados permanecem titulares de suas vontades como entes independentes, ou em outros termos, como afirma Pinzani, a Soberania para Kant é indivisível, pois uma vez renunciada uma parte, perde-se toda. Na analogia entre Estado e Indivíduo, como os indivíduos também os Estados possuem autonomia, traduzida esta na soberania estatal. 91 Segundo Kant, o direito dos estados nas suas relações recíprocas, o qual em língua alemã não corretamente se expressa, chama-se Völkerrecht. A expressão em alemão Völkerrecht foi traduzida do latim ius gentium, que seria o direito dos povos. Para Kant a terminologia adequada seria Staatenrecht. Segundo Pinzani, Kant rejeita qualquer constituição étnica do Estado e todo conceito emocional de Estado Nacional, como os Românticos mais tardes desenvolveram. O Estado é uma pessoa moral e os seus cidadãos podem, em sentido intelectual e jurídico, serem vistos como uma família. Sua mãe é a República e não qualquer característica étnica ou de língua e cultura de definida Nação; eles não pertencem a um sangue, mas a uma comunidade estatal, eles não formam gens, mas civitas. 92 Os quatro elementos do Direito Internacional são, segundo Kant: i) que os Estados nas suas relações internacionais estão em situação de não direito; ii) que esta situação é uma situação de guerra, ou seja, do direito do 90 BERNSTORFF, Jochen von. Der Glaube an das universale Recht. Zur Völkerrechtstheorie Hans Kelsens und seiner Schüler. Baden-Baden: Nomos, 2001, p. 15. 91 PINZANI, Alessandro. Das Völkerrecht. In. HÖFFE, Otfried. (org.) Immanuel Kant. Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre. Berlin: Akademie Verlag, 1999, p. 253. 92 PINZANI, Alessandro. Das Völkerrecht, p. 237 e KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p.466. 33 mais forte; iii) que uma União de Povos (Völkerbund), através da idéia de um prévio Contrato Social, é necessária, seja em razão da clareza da relação entre estados como da proteção contra agressões externas: iv) que a união entre Estados não implica na existência de um poder soberano, como na hipótese de uma Constituição Burguesa, senão em uma Comunidade (Genossenschaft) ligada por uma Federação.93 O Congresso de Estados pensado por Kant não se aproxima do modelo americano de união das colônias britânicas, com a constituição de um Estado, senão uma forma civilizada de resolver os conflitos.94 A idéia de uma paz universal através da associação dos diversos povos da terra não é filantrópica (ethisch) senão um Princípio do Direito.95 A Natureza dispôs todos como ocupantes do globus terraqueus em determinadas fronteiras e o possuidor de Terras, onde os habitantes podem viver, sempre como possuidores de um pedaço determinado do todo, conforme um direito anterior. Pode-se pensar como justo então que assim encontram-se todos os povos originários em uma comunidade de Terras, não, porém uma comunidade de possuidores e por isso de uso, ou de proprietários, senão da possibilidade física do comércio (Wechselwirkung), ou seja, em relações de uns com outros e do direito de se tentar essa relação, sem a qual o estrangeiro paira sempre como um inimigo. Esse direito tão longe quanto possível da união de todos os povos, sob a determinação de uma lei universal, chama-se ius cosmopoliticum (weltbürgerliche).96 93 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 467. 94 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 475. Ao comentar sobre a necessidade de um permanente Congresso de Estados faz referência Kant a uma Assembléia que reuniu diversas Cortes e pequenas Repúblicas Européias na primeira metade do Século XVIII na proposta de uma Europa Federal, mas que acabou por não prosperar (p. 474- 475). 95 Segundo Muller o direito cosmopolita para Kant tem força jurídica, é direito positivo, para todos em sua autoridade interna como direito racional. MÜLLER, Jörg Paul. Das Weltbürgerrecht (§ 62) und Beschluβ, p. 269. 96 KANT, Immanuel. Die Metaphysik der Sitten, p. 475-476. 34 Kant apresenta três definitivos aspectos para uma Paz Perpétua (Ewigen Frieden). O primeiro se apresenta pela necessidade de toda Constituição Burguesa de um Estado ser republicana; o segundo definitivo aspecto se apresenta através do direito internacional como um sistema federativo de Estados Livres. Segundo o Filósofo de Königsberg o povo não quer a guerra e por isso forma um Estado, com a existência de um Juiz imparcial que irá resolver os conflitos. Da mesma forma, os Estados não querem a guerra entre eles, porém eles não reconhecem um legislativo superior, fato que para Kant apresenta-se como inconcebível, pois como o cidadão irá confiar o seu direito a um Estado que não garante esse direito em relação a outros estados, no momento em que a união de Estados Livres em Federação é uma condição necessária do direito internacional. O terceiro definitivo aspecto de uma paz perpétua, segundo Kant, é o direito cosmopolita como condição de uma geral hospitalidade.97 Neste ponto anota Muller que os Homens tem a necessidade natural não apenas de coexistência, mas também de trânsito, de encontro, de trocas também além dos limites do Estado. Esse direito elementar autoriza que se visite qualquer lugar da terra e lá não se encontre hostilidade. Este é o direito do visitante, o direito de tentar no mínimo um contato com o morador. Este não tem o direito de exprimir hostilidades somente pelo fato do outro ser estrangeiro.98 CAPÍTULO IV – HEGEL, IDEALISMO E NACIONALISMO. No Século XIX surge no cenário do pensamentopolítico e filosófico europeu Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), o grande pensador 97 KANT, Immanuel. Zum Ewigen Frieden. In. Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik und Pädagogik 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, p. 204-217. 98 MÜLLER, Jörg Paul. Das Weltbürgerrecht (§ 62) und Beschluβ, p.266. 35 alemão que ficou deslumbrado com a Revolução Francesa, plantando uma árvore na Praça do Mercado, em Tübingen, juntamente com Schelling; que se impressionou com a figura de Napoleão quando, montado em seu cavalo, passou em revista pelas ruas da cidade de Jena após o ataque do exército francês; que com a restauração das monarquias, apresentou-se como o teórico oficial do Império Prussiano; e que não obstante a sua inclinação para a Monarquia Constitucional festejou todos os anos da sua vida, com uma garrafa de vinho, o aniversário da tomada da Bastilha. Um pensador complexo como sua filosofia, o professor imperial que chocou os ovos socialistas. Não é tarefa fácil sistematizar o pensamento de Hegel. A profundidade e a dialética com que ele trata dos assuntos faz com que Hegel só seja compreensível no seu todo. As obras que tratam de sua filosofia mostram que estudar Hegel é também estudar o momento histórico em que ele viveu, pois como ele mesmo definiu, a filosofia é a teoria do seu tempo, e o tempo de Hegel é o da sociedade burguesa (bürgerlichen Gesellschaft) que veio em especial com a Revolução Francesa e com a transformação na Indústria.99 O pensamento político de Hegel tem especial importância nesse trabalho, pois ele é um marco importante no desenvolvimento da Teoria do Estado Moderno. Com Hegel surgem muitas questões que serão depois interpretadas sob os mais diversos pontos de vista, desde a ligação de Hegel com o Hiltherstaates, com a Teoria Marxista-Leninista e com o pensamento burguês.100 Portanto Hegel é um autor de múltiplas interpretações que fez uma profunda analise quando dos fundamentos do modelo de Estado que hoje está sendo posto em questão frente às estruturas supranacionais. 99 BARION, Jakob. Hegel und die Marxistische Staatslehre. Bonn: H. Bouvier Verlag, 1963, p. 11. 100 BARION, Jakob. Hegel und die Marxistische Staatslehre, p. 11 e AVINERI, Schlomo. Hegels Theorie des modernen Staates. Traduzido do inglês para o alemão por R. u. R. Wiggershaus. Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1976, p. 7. 36 1. A Teoria Política de Hegel no seu contexto histórico Para Hegel toda discussão política é também uma discussão histórica, pois a história é o sentido da chave da transformação, e como atualização do mundo é o hieróglifo da razão do qual a filosofia tem a tarefa de decifrar.101 A compreensão do pensamento político de Hegel implica, desta forma, também no conhecimento dos acontecimentos históricos de sua época. A abstração dos conceitos que se encontram em todo o texto, por exemplo, dos Fundamentos da Filosofia do Direito, abstração essa reconhecida pelo próprio Hegel no prefácio da obra é o resultado de investigações que datam de muito tempo antes de sua ida para Berlin para assumir a Cátedra de Filosofia.102 O interesse de Hegel pela política data do período em que residiu em Bern, onde teve uma clara influência dos acontecimentos da Revolução Francesa.103 A Revolução Francesa tem uma importância central no pensamento de Hegel. A modernização trazida pela Revolução e nesse sentido o rompimento com o antigo regime eram para Hegel a única esperança de transformação das relações sociais existentes. Hegel foi um crítico do ancien régime na Alemanha. Analisando a situação alemã, Hegel alterou com o 101 Citado por AVINERI, Schlomo. Hegels Theorie des modernen Staates, p. 11. 102 Hegel nasceu em Stuttgart em 1770, estudou em Tübingen entre 1788-1793 depois foi ser Hauslehrer em Bern na Suíça entre 1793 e 1796. Foi para Frankfurt em 1797 e lá permaneceu até 1800. Em 1801, em razão da morte do seu pai em 1799 o que lhe propiciou uma herança que lhe deu independência financeira decidiu-se transferir para Jena, um centro avançado do pensamento alemão no final do Século XVIII, sendo que lá permaneceu como Privatdozent junto a Universidade até 1807. No período entre 1805 e 1807 Hegel escreveu Phänomenologie des Geistes. Entre 1807 e 1808 Hegel foi redator do Bamberger Zeitung; entre 1808 e 1816 foi ele Reitor do Ginásio em Nürnberg e entre 1816 e 1818 foi ele Professor em Heidelberg. Em 1818 Hegel assumiu a Cátedra de Filosofia da Universidade de Berlin. Em 1821 ele publicou Grundlinien der Philosophie des Rechts. Hegel permaneceu em Berlin até a sua morte em 1831. HELFERICH, Christoph. Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Stuttgart: Metzler, 1979. 103 AVINERI, Schlomo. Hegels Theorie des modernen Staates, p. 14-15. 37 passar dos anos o seu entendimento sobre o estado e a política na Alemanha.104 Em seu texto Die Verfassung Deutschland, datado de 1802, escreve Hegel que a Alemanha não é mais um Estado, pois não está organizada como poder de Estado. Escreve ele que enquanto os teóricos do Estado de Direito ainda se ocuparem com as questões do Heiligen Römisch- Deutschen Reichs entre a Hungria, Polônia, Prússia etc. como também sobre questões politicamente irrelevantes, mais ainda estará distante a unidade alemã.105 Analisando essa questão, relata Avineri que para Hegel o azar da Alemanha e também, neste sentido, da Itália encontrava-se na ausência de uma distinção conceitual de Estado, o qual está assentado sob uma defesa da comunidade e em um efetivo exercício do poder estatal, e a quimera de um Império Mundial (Weltreichs), que é sempre mais uma abstração e impede um verdadeiro Poder de Estado. Para Hegel a Alemanha necessitava libertar- se desse medieval romântico sonho de um Römisch-Deutschen Reiches e também da pretensão de universalidade da Igreja Católica. O Estado Moderno está fundado em um poder central e na tolerância religiosa.106 A unidade alemã, e nesse sentido encontra-se a transformação do pensamento político de Hegel sobre a situação na Alemanha, segundo ele seria mais bem guiada sob a liderança da Áustria do que da Prússia. É necessário ponderar que Hegel em seus estudos posteriores acompanhou as transformações ocorridas na realidade, e nesse ponto a restauração da monarquia prussiana sob a forma constitucional se aproximou em muito do ideal de Estado por ele definido. Portanto, a postura de Hegel variou 104 Segundo Hocevar Hegel até 1802 era Republicano e partidário da Revolução Francesa. HOCEVAR, Rolf. K. Hegel und der Preuβische Staat. Ein Kommentar zur Rechtsphilosophie von 1821. München: Wilhelm Goldmann Verlag, 1973, p.57. 105 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Die Verfassung Deutschland. In. Politische Schriften. Nachwort von Jürgen Habermas. Frankfurt am Maim: Suhrkamp, 1966, p. 55. 106 AVINERI, Schlomo. Hegels Theorie des modernen Staates, p. 74. Sobre a formação do Estado Nacional Alemão, ver: DANN, Otto. Nation und Nationalismus in Deutschland. 1770-1990. München: Beck, 1993. 38 conforme a mutação dos acontecimentos históricos. De toda forma, sustentou Hegel naquele momento anterior que a Prússia era um mecânico, hierárquico e autoritário aparelho estatal, onde todas as coisas encontravam- se nas mãos do Estado, onde tudo era regulado e regulamentado. Para Hegel a Prússia não vinha em questão, pois a característica do Estado Moderno estava na representação e nesse sentido os Reinos da Áustria e da
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