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Rousseau e a relação entre liberdade e propriedade

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Rousseau e a relação entre liberdade e propriedade*
 
Convenhamos, pois, em que a força não faz o direito e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos. Rousseau (Contrato Social, 1983b, I, 3).
 
Preliminares
O problema da propriedade e do latifúndio no Brasil suscitou e ainda suscita inúmeras discussões e conflitos no campo. Freqüentemente esses acontecimentos relacionados à crise da terra e do latifúndio têm levado os principais envolvidos – o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (que exige a reforma agrária) e os ruralistas (que exigem o respeito ao direito de propriedade) – a algumas declarações e ações unilaterais. É comum a sociedade brasileira se deparar com uma série de invasões, protestos e declarações bombásticas advindas dos citados movimentos, gerando polêmicas e uma certa instabilidade política interna.
Geralmente, em meio às declarações e ações provocativas, o governo reage apelando para a ordem e a consolidação do Estado de Direito. Nada melhor do que nesses momentos de constantes crises agrárias, resgatarmos por intermédio da filosofia política de Rousseau as tensões e as saídas para a questão da terra e da propriedade. Bem longe de querer resolver o problema nesse trabalho, nosso principal objetivo é, efetivamente, situar o problema e colocá-lo em questão a partir da filosofia de Rousseau.
Rousseau e o jusnaturalismo
Os ventos da modernidade trouxeram consigo o jusnaturalismo e as idéias liberais. O jusnaturalismo moderno é caracterizado pela idéia racional de um Direito original fundante e universal conhecido como Direito de Natureza. Esse Direito pressupõe a existência originária de homens que vivem em um estado pré-social conhecido como estado de natureza, no qual os homens gozam de direitos inalienáveis.
Para garantir esses direitos ameaçados pelo estado de guerra ou pelos apetites humanos devido à fragilidade do estado de natureza, foi necessário aos homens, por meio de uma espécie de contrato, ingressarem em uma ordem civil na qual esses direitos seriam invioláveis.
Nesse caso, a propriedade é interpretada como um direito inviolável, sendo um dos temas centrais do jusnaturalismo, como afirma Norberto Bobbio: “O jusnaturalismo a exalta como um direito fundamental, junto com a vida e a liberdade” (1992, p. 1.034).
Locke, por exemplo, considera a propriedade como um direito natural que todos os homens detinham ainda no estado de natureza:
O homem, nascendo, conforme provamos, com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e os bens – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por outros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa, mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror do fato o exija, conforme a sua opinião (1978, p. 67).
Como no estado de natureza não é possível garantir a propriedade como direito natural inviolável, é preciso uma associação civil que garanta a partir de leis estabelecidas a inviolabilidade da propriedade (p. 82).
Praticamente todos os jusnaturalistas seguiram à risca esse modelo, exceto Rousseau, para quem o estado de natureza é a garantia de dois princípios inalienáveis: a liberdade e a igualdade; princípios esses violados com a formação da sociedade civil e a instituição da propriedade. Tal violação é descrita por Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754. Para restabelecer a ordem seria preciso um Contrato Social, pelo qual fossem asseguradas a liberdade e a igualdade. Tal ordem é explicitada por Rousseau em seu Do Contrato Social, de 1762.
Por esse motivo escolhemos basicamente essas duas obras de Rousseau para discutir a questão da propriedade, haja vista entendermos que nesses escritos a questão foi mais aprofundada.[1]
Rousseau: estado de natureza, propriedade e estado civil
No Prefácio do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau descreve a constituição do homem e a sua degeneração na sociedade. Para ele, entender a origem da desigualdade pressupõe entender a origem do homem (1983a, p. 228). Essa mesma temática também se encontra na Introdução do Discurso, na qual encontramos o seguinte trecho: “É do homem que devo falar, e a questão que examino me diz que vou falar a homens, pois não se propõem questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade” (p. 235).
Perguntar pela origem da desigualdade é indagar pela origem do homem, ou seja, pelo homem no estado de natureza, pois vimos que o jusnaturalismo moderno, quando se refere à origem do homem, remonta ao estado de natureza. Nesse aspecto, Rousseau concebe dois tipos de desigualdade na humanidade: uma natural ou física fruto da natureza, “que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma”, e a outra, que é chamada de desigualdade moral ou política “porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens” (p. 235).
A origem do homem, entretanto, não pode ser confundida com a origem da desigualdade, pois não há duas origens do homem como há duas origens da desigualdade, não há um homem que se origina da natureza e outro, da sociedade. Em Rousseau a natureza é anterior à sociedade, logo, só há originariamente um homem, o homem natural, o qual pode degenerar para tornar-se o homem civil, sem deixar de ser homem. A desigualdade, não. Ela é ou natural (quando relacionada com o homem originário), ou civil (quando o homem está degenerado em sociedade). Concluímos afirmando que só há um homem e duas desigualdades: uma inerente ao gênero humano que Rousseau denomina de natural, e outra fruto da convenção social que Rousseau chama de desigualdade moral ou política.
Podemos dizer também que a desigualdade natural ou física, uma vez estabelecida pela natureza, não pode ser anulada ou transformada, ao passo que a desigualdade moral ou política, enquanto originada pela convenção, pode ser anulada e transformada. É incumbência do Discurso sobre a desigualdade denunciar as mazelas da desigualdade política desde sua origem, é tarefa do Contrato eliminar essa desigualdade a partir de uma nova ordem civil.
Para Rousseau, a essência do homem está em seu estado primitivo, tal como o moldou a natureza. No Prefácio do Discurso sobre a desigualdade Rousseau nos oferece uma interessante indicação sobre o estado de natureza, como “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que possivelmente nem existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente” (1983a, p. 229). Essa citação pode caracterizar a preocupação do jusnaturalismo rousseauísta em colocar o homem em um estado natural racional pré-social, com o escopo de revelar as mazelas sociais de sua época.
Parece que a preocupação crucial de Rousseau na elaboração do Discurso sobre a desigualdade é demonstrar como o direito natural foi submetido à lei civil que teve como substrato à violência legitimada pelo engano do povo ao entregar-se aos ricos, poderosos e senhores, em troca de uma suposta segurança.[2]
No estado de natureza, o homem vivia de forma simples, solitária, inocente e feliz. Preocupava-se apenas com a sua conservação. Entregue aos cuidados da natureza, correndo livre pelas florestas imensas, sem precisar de seu semelhante e sem nenhuma obrigação legal para o trabalho, o homem natural desfrutava o seu repouso sem se preocupar com o dia de amanhã (p. 251). O homem no estado natural também não possuía a idéia do teu e do meu, quer dizer, no estado de natureza não havia a idéia de posse ou de propriedade em seu sentido estrito, ou seja,indicando que algo era de alguém. O homem natural não tinha a consciência daquilo que possuía, nem tampouco do que possuía o semelhante. Isso parece fazer parte da idéia de que tudo era de todos. E, se tudo era de todos, o egoísmo, a vaidade e a ambição eram sentimentos inexistentes. A terra nesse estado estava virgem, abandonada à fertilidade natural e coberta por florestas imensas que o machado jamais mutilou (p. 238).
A idéia de propriedade vai aparecer no início da segunda parte do Discurso sobre a desigualdade como último termo do estado de natureza. Tendo como pressuposto fundamental a idéia do isto é meu, a instituição da propriedade representa efetivamente a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil. O isto é meu, além de identificar a posse de algo a alguém, identifica também a acomodação daqueles que permitiram a violação do estado natural com a instituição da propriedade:
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (p. 259).
Para Rousseau, o contrato não se dá aqui. Essa é diferença fundamental entre Rousseau e os demais jusnaturalistas. Ainda assim, não podemos identificar essa passagem do texto como uma simples negação de Rousseau à propriedade. O filósofo não pode ser confundido com os socialistas do século XIX. Veremos que a propriedade tem um lugar importante no Contrato social.
Rousseau segue a teoria de Locke ao vincular a origem da propriedade à idéia de trabalho[3], mas se distancia desse autor ao não considerar a propriedade um direito natural inalienável. A propriedade, em Rousseau, é entendida no seguinte contexto: alguém que diz que tem algo, e esse algo é delimitado (pedaço de terra). É nesse pedaço de terra que se exercem as artes como a metalurgia e a agricultura, para satisfazer às necessidades humanas. É devido a essas necessidades que os homens, antes livres, se tornam escravos uns dos outros, quer sejam ricos, senhores, escravos ou pobres. A ambição em querer ficar acima dos outros faz com que os homens produzam os frutos da terra não mais para suprir suas necessidades básicas, mas para lucrar à custa do suor dos outros.
Um outro fator importante relacionado à propriedade está em uma frase de Locke citada por Rousseau: “Não haveria injustiça se não houvesse propriedade” (p. 264, tradução corrigida). A propriedade, uma vez estabelecida, é origem de inúmeros conflitos diante da ganância e da ambição dos homens. É impossível, para Rousseau, conceber a idéia de propriedade sem conceber também esses conflitos entre o primeiro ocupante e o mais forte.
Esse conflito foi muito bem destacado por Rousseau na obra Emílio ou Da Educação (1762). Na ocasião o preceptor faz Emílio aprender a não violar o direito do primeiro ocupante. Emílio, ao plantar suas favas, se sente injustiçado quando as vê todas arrancadas, pois essa terra já estava ocupada pelo jardineiro Robert, que havia primeiramente semeado melões. Diante do suposto impasse entre Robert (o primeiro ocupante) e Emílio (o invasor de uma terra já cultivada), Rousseau fala ao seu pupilo: “não trabalharemos na terra antes de saber se alguém não a lavrou antes de nós” (1999, p. 100).[4] Com isso Rousseau torna-se o intermediário de um acordo importante entre as partes conflitantes. Ele propõe um acordo entre Emílio e Robert: “Que ele nos ceda, a meu amiguinho e a mim, um canto do seu jardim para cultivá-lo, com a condição de receber metade do produto” (p. 101). Nesse caso Rousseau quer resolver um dos problemas jurídicos fundamentais, que é a legitimidade do direito de propriedade. Como esse direito pode ser legítimo?
É a posse contínua da terra resultante do trabalho e da colheita que gera o direito de propriedade. É assim que se institui esse direito.[5] Logo, porém, que os homens não se limitaram mais a suas necessidades básicas, os mais fortes e os mais habilidosos, descontentes com o que tinham, passaram a submeter outros homens a seus serviços, gerando a dominação, a servidão, a violência e o roubo. Decorreu daí verdadeira guerra entre poderosos e miseráveis, cada um alegando para si o direito de propriedade.[6] Nesse caso, o direito de propriedade em Rousseau se afasta explicitamente daquele. Em Rousseau o direito de propriedade é fruto da convenção humana, portanto não encontra sua legitimidade no estado de natureza:
Além disso, o direito de propriedade sendo apenas de convenção e instituição humana, qualquer homem pode a seu arbítrio dispor daquilo que possui; isso, porém, não acontece com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, de que cada um pode gozar e dos quais é pelo menos duvidoso se tenha o direito de despojar-se (1983a, p. 234).
Uma vez acuados pela multidão de miseráveis, e sem conseguir unir suas forças devido aos ciúmes mútuos, os ricos astutamente deixaram de atacar os pobres para se dizerem seus defensores, acalmando a revolta e instituindo seu domínio de uma forma mais sutil, porém não menos perigosa. Com discursos eloqüentes, os ricos e poderosos clamavam pela segurança de ambas as partes quando instituíram para sempre a lei de propriedade. Assim, diziam-se defensores dos fracos e afirmavam conter a ambição, instituindo o governo e as leis. Com o intuito de defender os pobres, os ricos desejavam na verdade estender guirlandas de flores em suas ainda mais grossas e terríveis algemas, fazendo-os escravos legítimos ao preço de uma liberdade fictícia. Foi desse modo que, para Rousseau, se constituiu o fundamento da sociedade, do governo e das leis:
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei de propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (p. 269-270).
Assim, Rousseau denuncia a fragilidade das leis e da sociedade civil. O percurso da humanidade é pernicioso porque o homem esqueceu de sua origem na formação da sociedade e foi se perdendo pelo caminho. Entregou sua liberdade, dissipou a igualdade. Ainda não é nessa obra, contudo, que ele vai propor uma solução. A solução para o problema virá em Do Contrato Social.
Rousseau: propriedade e contrato
Denunciando a ordem social descrita no Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau experimenta esboçar no Contrato Social uma nova regra de administração legítima e segura que garanta os direitos inalienáveis da igualdade e da liberdade.[7] No Livro I Rousseau trabalha com duas noções de liberdade: a liberdade natural e a civil. A liberdade natural no homem consiste em um “direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar” (Rousseau, 1983b, p. 36). Não podemos entender a liberdade natural como um direito que o homem pode usar para dominar os outros. Em Rousseau isso é praticamente impossível, porque até o rico e o senhor, na proporção em que dominam os outros, passam a ser tão escravos quanto estes. O homem não é livre para dominar, ele domina porque depende do outro.[8]
Da mesma forma que o homem não é livre para dominar, também não é livre para obedecer. O homem que entrega a sua liberdade para ser escravo é um louco, e loucura não faz o direito. E o que faz o homem obedecer e ser escravo de outro? Rousseau é categórico na sua explicação: a obediência é fruto do direito do mais forte. Quando a questão é força, não há possibilidade de se extrair a moralidade, porque a força é um poder físico: “Ora, que direito é esseque perece quando cessa a força?” – pergunta Rousseau. E é efetivamente em nome do direito do mais forte que um homem acha que pode aviltar a propriedade do outro, tomando posse de uma coisa que não é sua, legitimando a força que pretensamente faz o direito. Como evitar tamanha injustiça que ameaça a liberdade e a igualdade? A liberdade natural está ameaçada pela força e pela dominação. Ela “só conhece limites nas forças do indivíduo” (p. 36). Por esse motivo a liberdade natural é infensa à coerção. Como a propriedade não pode simplesmente sumir do estado civil, é preciso que haja novas leis que garantam o uso da propriedade para assegurar a inviolabilidade da liberdade. Essa liberdade terá um novo adjetivo: liberdade civil.
O homem perde, segundo o Contrato Social, a liberdade natural ou “o direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar”, e ganha a liberdade civil “e a propriedade de tudo que possui” (p. 36). Para que haja um contrato social genuíno, é necessário a cada indivíduo alienar sua liberdade natural para ingressar na nova ordem civil, formando uma vontade geral que garanta a condição de igualdade para todos. Uma vez estabelecida a vontade geral, está estabelecido o verdadeiro Direito. A lei é o povo que faz, ao mesmo tempo em que o próprio povo lhe é submetido.[9] O Direito deve ter como meta a utilidade pública e o bem-estar dos cidadãos.
Na questão da propriedade, tanto o direito do primeiro ocupante (muito mais legítimo) quanto o pretenso direito do mais forte devem se submeter ao julgamento do Direito de propriedade advindo da associação civil que forma a vontade geral.
Rousseau descreve as condições do direito do primeiro ocupante:
primeiro, que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura, únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos (p. 38).
A liberdade e a igualdade civil estão asseguradas devido às leis advindas da vontade geral que soberanamente garante à propriedade um caráter de inviolabilidade na nova associação civil. Desse modo, Rousseau parece garantir a liberdade e a igualdade na nova ordem civil preservando a propriedade mediante um novo direito de propriedade.
Conclusão
Vimos como Rousseau apresenta a relação entre homem, trabalho e terra no estado de natureza. Essa relação é apresentada de forma favorável por garantir dois princípios básicos: a liberdade e a igualdade. A propriedade vai se inserir no processo como último termo do estado de natureza, ou seja, como a passagem entre dois mundos: o natural e o civilizado. É com base na noção de propriedade que um homem vai afirmar “Isto é meu”, iniciando efetivamente a sua degeneração. O início da civilização é corrupto, e não menos corrupto é o seu desenvolvimento dentro dessa complexidade de relações. Cada vez mais os ricos e poderosos encontraram meios para manter seus domínios desde a força bruta pelo direito do mais forte, até o domínio mais sutil e bem mais perigoso que é o surgimento do governo e das leis que vieram legitimar tal dominação.
Denunciando a pretensa ordem civil Rousseau elabora, no Contrato Social, uma nova tese pela qual se garantem os princípios inalienáveis da liberdade e da igualdade. Deparando-se necessariamente com a questão da propriedade dentro da ordem civil, Rousseau vê como necessárias novas cláusulas e leis que re-desenham o uso da propriedade suprimindo a força e elevando o Direito. A liberdade civil fica assim garantida.
O direito ao trabalho e o direito à propriedade são de todos. A concentração de renda anda de braços dados com a concentração de terras. Ambas aviltam a liberdade e a igualdade na proporção que seus domínios geram exclusão e violência. Que a reforma agrária possa ser feita para que todos tenham acesso à vida, liberdade e igualdade. Assim, quem sabe, poderíamos nesse final almejar a propriedade como um bem a ser preservado e partilhado, desde que a terra produtiva não seja invadida e o grande latifúndio ocioso seja partilhado. O MST e os ruralistas poderiam aprender lições como essas antes de optarem por caminhos tão intransigentes.
Marx
E sob essa ótica de poder Karl Marx elaborou uma tese em que o Direito, como regra de conduta coercitiva, encontra sua origem na ideologia da classe dominante, que é precisamente a classe burguesa. Necessário fazer-se uma ressalva a esse pensamento, uma vez que o Direito não é o efeito exclusivo da vontade da classe econômica senão a síntese de um processo dialético de conflito de interesses entre as classes sociais, que Marx denominava de luta de classes. E aí se insere a Sociologia Jurídica com o intuito de explicar as causas e os efeitos do Direito, uma vez que este se imiscui com os fenômenos sociais, construindo e organizando uma hierarquia social em que o poder é exercido de forma legítima pela classe dominante, que é de fato quem legisla, ainda que não ilimitadamente em razão da resistência da classe operária, entendida lato sensu.
Marx acreditava existir uma ingerência extraordinariamente forte do poder econômico sobre o Direito, atingindo também a cultura, a história e as relações sociais. Não estão por completo equivocados aqueles que vêm a gênese da dominação secular, laicizada, de uma classe sobre a outra tendo como marco a Revolução Francesa de 1789, momento em que os detentores do poder econômico conquistam também o poder político do Estado, rompendo com o "ancien regime" que tanto lhes comprimia a expansão mercantil. Com a Revolução Francesa, ao lado das revoluções industriais, torna-se premente a regulação das relações sociais (12), surgindo então o direito comercial e mais adiante o direito do trabalho, configurando-se este num autêntico direito de classes. Assim, a dominação econômica de uns poucos sobre tantos outros se legitima por intermédio de um Estado de Direito, cujo princípio basilar é a lei.
Não se pode olvidar, como lembra Marx, que o processo de dominação encontra suas raízes na origem da humanidade, haja vista que inicialmente deu-se por força do "direito escravagista; depois, feudal; finalmente burguês ou capitalista, acompanhando o desenvolvimento das forças produtivas que vão fazendo história" (13).
Marx acreditava que "as forças econômicas numa sociedade eram as principais responsáveis pelas modificações em todos os outros setores e, conseqüentemente, pelos rumos do curso da história" (14), o que não significa dizer que o Direito é exclusivamente efeito da vontade da superestrutura econômica, e não a sua causa. Afinal, não se pode responder sem maiores reflexões à seguinte questão: o Direito, enfim, é causa ou efeito das relações sociais, dos fenômenos sociais, do poder econômico, da classe dominante etc.? A história responde a esta indagação, pois houve momentos em que os fenômenos sociais precederam e determinaram o Direito, quando das revoluções francesa, russa e mexicana, por exemplo. Em outros momentos da história, tal como hoje ocorre no Brasil, em que a Constituição Federal vem sendo diuturnamente vilipendiada a ponto de fazer o povo ajoelhar-se à vontade do rapinante e volátil capital alienígena, o Direito serviu como causa determinante sem a qual o capitalismo não floresceria, haja vista a necessidade de garantir-se um mínimo de estabilidade social, econômica e jurídica para a expansão de um mercado inserido na eterna e conflitante relação do capital com o trabalho.
Hodiernamente, pode-se vislumbrar uma dissonância entre o fato social e o Direito, uma vez que o primeiro é dinâmico e multifacetado e o segundo, conservador, consegue abrigar em sua "proteção" somente parte das relações sociais. Nesse sentido, urge um aperfeiçoamento do Direito frente à evolução da sociedade, se não pela via legislativa, ao menos jurisprudencial, cujas bases devem pautar-se na democracia, na solidariedadee no respeito à dignidade das pessoas.
Consentâneo observar que o Direito é ao mesmo tempo causa e feito das relações sociais, porquanto se configura em si um fenômeno social. Desse modo, não é difícil perceber que "causa e efeito estão inextrinsicavelmente entrelaçados e o efeito de uma causa, num processo de mudança, torna-se, por seu turno, uma causa em mudança ulterior" (15). Afinal, o Direito não é determinado por si próprio ou a partir de normas ou princípios superiores abstratos, mas por sua referência à sociedade como fenômeno social que produz.
Por fim, mister repisar o fato de que Marx defendeu a tese segundo a qual a evolução econômica é ponto de partida para as evoluções política, jurídica, filosófica, religiosa, literária etc., mas também afirmou que a base econômica não é causa única do complexo processo de mudança social, uma vez que todas as evoluções encontram-se umbilicalmente jungidas, reagindo umas sobre as outras. De fato, "a afirmação de que Marx reduziu toda a vida social à vida econômica é fundamentalmente falsa, pois ele fez exatamente o contrário: revelou que a vida econômica não é mais do que uma parte integrante da vida social e que a nossa representação do que se passa na vida econômica é falseada precisamente na medida em que não percebemos que atrás do capital, da mercadoria, do valor, dos preços, da distribuição dos bens se esconde a sociedade dos homens que nela participam" (16), que serão a posteriori pelo direito regulados e, em certa medida, alienados.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/2474/o-direito-como-fenomeno-social-na-visao-de-marx#ixzz2b1NWkIpN
Filosofia
 
Filosofia do Direito: a cidadania em Rousseu e Marx
Marcelo Alves Pereira Eufrasio
 
 
 
 
Tomando por base o pensamento de Rousseau e a construção da teoria marxista, o autor discorre sobre a idéia de cidadania que leva em consideração seus elementos integrantes, etimológica e historicamente a luz da jusfilosofia. A partir daí, a cidadania é refletida na ótica da filosofia jurídica como sendo uma garantia de direito fundamental que requer do cidadão a participação ativa na sociedade. 
Introdução
A noção de cidadania enquanto participação cívica da população nos negócios públicos, como momento de deliberação das questões que dizem respeito a toda coletividade será objeto de reflexão neste trabalho a partir do pensamento dos jusfilósofos Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx.
Em certos aspectos, Rousseau como Marx comungam do mesmo pensamento, como na divisão política imposta pela economia para que se gerencie as relações sociais e os meios de produção, mas a construção da cidadania é um fenômeno que pressupõe a garantia de certos direitos fundamentais. Para tanto, a concepção de cidadania marxista e rousseauniana tem como objetivo a exaltação dos direitos do homem em sociedade, deliberando sobre os assuntos que dizem respeito à coletividade. 
1.1. O que é cidadania?
A cidadania, como fenômeno social de relevante importância, tem suscitado acaloradas discussões em diversos seguimentos da sociedade. Com efeito, a preocupação em construir conceitualmente a cidadania é extremamente importante porque elege os elementos necessários para a compreensão dos direitos do cidadão.
Assim sendo, inicialmente a noção de cidadania, em linhas gerais, compreende os aspectos da vida em sociedade como um todo, na medida que representa tanto o direito ao sufrágio do voto como a possibilidade de colaborar, seja direta ou indiretamente, nos destinos da sociedade através da participação cívica. 
A idéia de cidadania sugere que se leve em consideração seus elementos integrantes, etimológica e historicamente, conforme assinala Manzini Covre (2003, p.11) no que:
[...] penso que a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos do atendimento às necessidades básicas, mas de acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do(s) homem(s) no Universo.
Etimologicamente, o termo cidadão é entendido como habitante da cidade. Assim como cidadania é o exercício indistinto daquele que habita a cidade, ou seja, o cidadão. O termo assumiu um sentido político, social e jurídico à medida que os habitantes da cidade assumiram a luta pela consagração de certos direitos e garantias ao longo da história.
Sendo assim, a cidadania é entendida como sendo o próprio direito à vida em plenitude, conforme sugere Rousseau (1991), que acaba incorporando elementos como liberdade, dignidade e participação cívica ao exercício de direitos, bem como a mobilização social em nome da melhoria da qualidade de vida, desde a salvaguarda dos direitos civis e políticos em um determinado Estado até o desempenho dos direitos e deveres reservados aos cidadãos, por exemplo, através do sufrágio do voto nas eleições, da reivindicação por políticas públicas eficazes, pelo direito à greve e pela iniciativa popular na sugestão da elaboração de legislações ao Congresso Nacional (art.14, III, Constituição Federal). 
Dessa forma, cidadão constitui no entendimento de Pinsky (2003), aquele que é possuidor do direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei, enfim dos direitos civis. Da mesma forma, quem participar dos destinos da sociedade, votando e sendo votado, traduz os direitos políticos. Sendo que os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva. 
Por conseguinte, a cidadania plena construída historicamente pelos indivíduos deve comportar os direitos civis, políticos e sociais. Observa ainda Pinsky (2003, p. 9) que:
Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. [...] Mesmo dentro de cada Estado-nacional o conceito e a prática da cidadania vêm se alterando ao longo dos últimos duzentos ou trezentos anos. Isso ocorre tanto em relação a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população (por exemplo, pela maior ou menor incorporação dos imigrantes à cidadania), ao grau de participação política de diferentes grupos (o voto da mulher, do analfabeto), quanto aos direitos sociais, à proteção social oferecida pelos Estados aos que dela necessitam.
Para tanto, a noção de cidadania enquanto participação cívica da população nos negócios públicos, como momento de deliberação das questões que dizem respeito a toda coletividade, se refere a luta pelo saneamento básico, acesso à escola, seguridade social, lazer, dentre outros aspectos da vida social, que contribuem para uma melhor qualidade de vida e que necessitam fundamentalmente da participação e fiscalização dos cidadãos para sua efetiva aplicabilidade. 
1.2. Abordagem jusfilosófica da cidadania
A cidadania pressupõe a idéia de salvaguarda de direitos e deveres, bem como da participação ativa para que estes não se tornem letra morta. Sendo assim, a concepção de cidadania pode ser fundamentada em dois dos mais conhecidos pensadores políticos da história, indistintamente comunistas, cada um fundamentado segundo sua teoria filosófica.
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), defensor da democracia direta através do contratualismo social e Karl Marx (1818-1883), articulador do comunismo, tendo como rito de passagem a fase da ditadura do proletariado para se chegar ao comunismo maduro, onde será aplicado o princípio “de cada um segundo suas possibilidades, cada um segundo suas necessidades” (LOWY, 1988, p. 63).
Em certos aspectos, Rousseau como Marx comungam do mesmo pensamento, como na divisão política imposta pela economia para que se gerencieas relações sociais e os meios de produção, conforme destaca Machado (1991), mas sem dúvida, o tema da bondade natural é um aspecto dos mais comuns entre ambos, ressaltado nestes termos:
Marx sustenta que os membros da espécie humana são naturalmente propensos à cooperação, quando não afetados por relações alienantes. Essa tese, de inspiração rousseauniana (bondade natural do homem), é um dos fundamentos da teoria do proletariado como classe universal, cuja revolução conduzirá à superação da sociedade de classes, bem como à possibilidade de se constituir uma sociedade comunista, em que se superem todas as formas sociais de alienação (MACHADO, 1991, p.167).
É importante destacar que, suas principais idéias não ficaram apenas no plano teórico, já que o contratualismo rousseauniano serviu de fundamento aos ideais revolucionários franceses (1789) e às constituições democráticas modernas. 
Dessa forma, Marx e Engels foram os responsáveis pelas idéias que serviram para a construção do modelo político-econômico-social do socialismo burocrático implementado na ex-União Soviética e demais países do bloco socialista. 
A cidadania em Rousseau e Marx apresenta algumas distinções importantes a destacar, quanto a compreensão e a finalidade que são atribuídas ao Estado: direitos do homem, liberdade, cidadão, convenções sociais etc. Entretanto, o cerne da cidadania que é a participação ativa dos cidadãos e a co-responsabilidade mútua, estes concordam, “numa palavra, a sua tarefa consiste em tirar ao homem as suas próprias forças e dar-lhe em troca forças alheias que ele só poderá utilizar com a ajuda dos outros homens” (ROUSSEAU apud MARX, 1975, p.63). 
1.3. Concepção rousseauniana
A figura mais singular do iluminismo francês, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é também autor do Contrato Social (1757), obra de natureza política que remete ao problema da conciliação entre a liberdade e autoridade, indivíduo e Estado. Na teoria contratual, o papel do Estado e da sociedade é tutelar os direitos e a liberdade do indivíduo na qual os homens tenham condições de expressar sua vontade comum.
Com efeito, a cidadania sustentada por Rousseau é um elemento que sofre diversas implicações do ponto de vista político-educacional e no campo dos costumes e da moral.
Assim sendo, a noção de cidadania, como concepção rousseauniana de direito político, é extremamente importante para uma reflexão de natureza jurídica, na medida em que os direitos do cidadão são compreendidos como uma prática efetiva (práxis), fruto da conscientização política e educacional do indivíduo, que dotado de direitos e deveres, pode coletivamente promover a justiça, a igualdade e a liberdade.
No Contrato Social, Rousseau acredita na necessidade da presença do cidadão para dar sua contribuição na constituição de um ente político no estado civil e suas implicações disso decorrentes para o fundamento legítimo da sociedade política.
O cidadão, na acepção corrente, é o habitante de uma cidade, o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado que precisa de identidade política. Porém, na concepção rousseuaniana, o cidadão adquire uma nova função na constituição do estado civil, pois ele é parte da história política, dado ser responsável pela elaboração das leis mediante uma consciência pública (coletiva). Isso se dá quando desvencilha de seus interesses privados em favor da vontade geral, ou seja, a socialização dos seus valores enquanto cidadão.
Tal impressão é percebida por Rousseau (1991, p. 120), pois segundo ele:
O cidadão conserva todas as leis, mesmo as aprovadas contra sua vontade e até aquelas que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado é a vontade geral: por ela é que são cidadãos e livres. Quando se propõe uma lei na assembléia do povo, o que se lhes pergunta não é precisamente se aprovam ou rejeitam a proposta, mas se estão ou não de acordo com a vontade geral que é deles.
Nesse contexto da assembléia popular, a cidade é a associação organizada e transmissora da vontade geral e tem em cada cidadão uma tarefa imprescindível, qual seja, de desenvolvimento de sua liberdade em função dos outros associados pelo pacto social.
Para traduzir um novo conceito rousseauniano engendrado a partir da noção do homem-cidadão:[1] é a cidadania, idéia que representa por demais o exercício da cidade, da moral cívica e da virtude escondida em cada homem, que sonha em ser livre e gozar com os outros da soberania do bem comum, consagrando o sentimento da moralidade.
Com isso, cidadão e cidadania são elementos de uma virtude humana única: a moral cívica. É quando as relações sociais (convenções) deságuam no pacto social entre os homens,
tendo em vista aquela “segunda natureza” (estado civil) e incorporando novos conceitos, podem acolher a compreensão da liberdade civil e a constituição da liberdade moral como um acontecimento extraordinário nas relações humanas, acrescentando ainda a possibilidade do homem enquanto senhor de si mesmo, que incorpora as leis como suas, como identidade coletiva e ação libertária.
Nesse sentido, o exercício da cidadania está intimamente ligado a noção de vontade geral. Quanto a isto, Bobbio (1997, p. 1298) em seu Dicionário de Política, no verbete a vontade geral assim se expressa:
De fato, este, enquanto é participante da vontade geral, pode considerar-se soberano e, enquanto é governado, é súdito, mas súdito livre, por que, obedecendo a lei que ele ajudou a fazer, obedece assim a uma vontade que é também a sua autêntica vontade, o seu natural desejo de justiça. [...] Somente assim o homem pode realizar sua virtude plena, tanto ética quanto civil. [...] A vontade geral, mesmo sem ser a rigor a vontade de todos, declara-se, na prática, através da vontade de muitos, onde todos os cidadãos participam do direito do voto.
Então, a vontade geral é necessária devido a esse exercício prático, na sociedade, por parte de cada cidadão como compreensão do indivíduo, na cidade, que tem como dar legitimidade enquanto ação, participação, educação, justiça, política, liberdade civil etc.
Assim, a relação concreta do indivíduo (eu em si) com a vontade geral (eu comum) implica necessariamente num pacto social, ou seja, uma livre associação de seres humanos civitas (cidadãos) que, deliberadamente, desejam formar um tipo de sociedade, à qual passam a prestar obediência às leis. Ademais, os cidadãos devem ter como tarefa primordial a concretização de um modelo de sociedade em que eles estejam pactuados entre si nos moldes contratuais.
Na verdade, com o pacto social que se elabora com as disposições dos cidadãos dão-se os passos para o nascimento de uma nova entidade, ou seja, a instituição de um corpo moral e coletivo, cuja unidade não é mais o eu em si (indivíduo isolado), trata-se do eu comum, que não é simples agregação de homens, mas a polis (cidade), isto é, os cidadãos que vivem cidadania quando da instituição do corpo político. 
O Contrato Social, nesses termos, concretiza a vontade geral como a única forma legítima para a comunidade viver a experiência da cidadania de acordo com os pressupostos da liberdade convencional e civil. A autoridade que advém da vontade geral é resultado da associação por todos os membros do corpo político, moralmente falando, como também adquirem liberdade, obedecendo à lei que prescrevem para a cidade que lhes dá cidadania através da interação com os outros associados.
Finalmente, o que acaba sendo imprescindível destacar na trajetória da cidadania rousseauniana é a possibilidade do homem-cidadão ser livre e, com essa liberdade poder desfrutar das virtudes mais lapidares (honestidade, bondade, moralidade etc.), da condição humana que acabam por remetera felicidade não só de um indivíduo, mas de todos os associados no pacto social.
Sendo assim, existem quatro principais pontos no tocante a formação da cidadania, que merecem destaque pelo valioso respaldo teórico que representam para o exercício da cidade, que são, status na polis; ter direitos de legislar; mudança moral e civil, e, o status de cidadão que é exercido por qualquer membro do Estado justo.
Com efeito, é fundamental para a noção rousseauniana de cidadania os títulos de citoyen e citoyenne, que acabam sendo o cerne da participação ativa na concretização do Contrato Social, nestes termos, os quatro principais pontos dizem (DENT, 1996, p. 63): 
São quatro os principais pontos a assinalar no tocante à cidadania. Primeiro, ser cidadão é possuir um certo status ou posição no Estado. É ter certos direitos e qualificações (assim como deveres e responsabilidades) conferidas à pessoa pelas leis positivas do Estado, para cujo tranqüilo gozo está dirigida toda a força do corpo político. Segundo, para a cidadania propriamente dita, conforme a entende Rousseau, um direito ocupa uma posição central: é o de participação na formação ou ratificação, de legislação soberana [...] Terceiro, a aquisição do status de cidadão introduz nas pessoas, diz Rousseau, uma ‘mudança moral’, a qual se refere nos atos
de indivíduos que estavam até então apenas ‘naturalmente’ relacionados.[...] e tem justificação moral e civil para as ações [...]. Tais ações não expressam somente desejo; elas consubstanciam projetos racionalmente justificados tendo atrás de si o peso da razão legitima. Quarto, Rousseau sustenta que em qualquer estado justo e bem ordenado o status de cidadão é desfrutado de modo precisamente idêntico por todos os membros do Estado, sem exceção; e esse é o mais importante status de que qualquer indivíduo pode gozar. Uma pessoa pode ocupar outras posições no Estado, mas nenhuma delas lhe dá o direito de anular os títulos de cidadania de outrem. 
O título de cidadão é condição compartilhada igualmente por todos, nessa perspectiva, não requer nenhum tipo de servidão, exploração ou dominação e, é somente com base nessa igualdade que a posição da cidadania contemplada em Rousseau pode ser verdadeiramente estabelecida.
1.4. Concepção marxista
O teórico do pensamento socialista científico ou marxismo, Karl Marx (1818-1883) é o idealizador da teoria revolucionária que entende os acontecimentos políticos e ideológicos (superestrutura) condicionados aos elementos econômicos (infra-estrutura) sendo que, o motor desses acontecimentos seria a materialismo histórico, que de certo modo constitui o ponto em que se fixa cientificamente o sistema socialista.
Essa luta pela existência une os grupos de igual situação para formar as classes sociais, as quais lutam entre si pela existência, ou seja, a luta de classes. O objeto dessa luta é a exploração da classe operária pelas classes que detêm o status quo, a burguesia. No que ficou convencionado chamar àquela de teoria da luta de classes e, esta de teoria da exploração, respectivamente. 
Entretanto, dentro da literatura marxista não se encontra um estudo específico sobre o Direito ou a cidadania, mesmo sabendo que seus trabalhos são perpassados por questões que dizem respeito a temática do direito do homem.
Diante dessa aparente dificuldade de investigação, não há que se perder de vista a importância que o marxismo atribui ao Direito enquanto superestrutura ideológica e disciplinar, Reale (1998) destaca em sua obra que o materialismo histórico atribui ao Direito,enquanto uma superestrutura governada pela infra-estrutura econômica, uma relação entre o Direito e a economia, no sentido de que o Direito é um conjunto de regras coercitivas destinadas a servirem a classe dominante, que possui os meios de produção.
Quanto a questão da cidadania marxista, cuja natureza está intimamente ligada aos direitos do homem, sua obra intitulada. A Questão Judaica (1843) faz referência a temática dos direitos e da liberdade dos judeus na Alemanha feudal.
Assim, Marx analisa a influência que o Estado e conseqüentemente o Direito alemão recebiam do modelo teocrático (cristão), que submetiam a segundo plano os direitos e a liberdade dos judeus. 
De fato, a idéia central da crítica marxista ao capitalismo é sua concepção de alienação sócio-econômica, isto é, a separação que o modelo de exploração dispõe entre o homem e as relações de forças sociais.
Nesse sentido, Marx (1975) destaca quatro modalidades da alienação sócio-econômica: a separação entre o homem e o trabalho, privando-o de controle sobre o que faz; a separação entre o homem e o produto de seu trabalho, privando-o de controle sobre o que faz; a separação entre o homem e seu semelhante, com competição em vez de cooperação; a separação entre o indivíduo e a espécie, ou seja, a vida da espécie humana se convertendo em meio de vida para o indivíduo.
Sendo assim, a idéia de alienação que se constitui na separação entre o homem e seu semelhante, que tem na competição e no individualismo a força motriz das relações sociais, acaba desvirtuando as idéias de cidadão e cidadania. Marx (1975, p. 37) sugere que “temos de emancipar-nos a nós próprios antes de podermos emancipar os outros”. Essa emancipação constitui para o judeu alemão ou mesmo para qualquer individuo que almeja seus direitos reconhecidos uma tarefa árdua e persistente, na medida que para o marxismo, a emancipação do homem exige deste suprimir todas as forças que alienam e atrapalham sua liberdade de cidadão.
Ao destacar uma destas forças[2] que alienam o Estado e o homem, Marx (1975, p. 42-43) assim se expressa:
A emancipação política do judeu, do cristão – do homem religioso em geral – é a emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo e à religião em geral. O Estado emancipa-se da religião à sua maneira, segundo o modo que corresponde à sua própria natureza, libertando-se da religião de Estado; quer dizer, ao não reconhecer como Estado nenhuma religião e ao afirmar-se pura e simplesmente como Estado. [...] O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade humana. 
Com essa defesa da emancipação do homem, não está em jogo suprimir toda e qualquer religião, muito pelo contrário, o que o marxismo propõe é a transferência das instituições religiosas do domínio público para introduzi-las na esfera privada, dando ênfase ao Estado laico e a confissão da fé sem que esta ou aquela religião interfira nos assuntos públicos que dizem respeito aos cristãos, judeus, ateus, enfim a todos. Com isso, a separação da pessoa pública e pessoa privada é uma idéia que visa a emancipação política, no sentido que “a emancipação política não abole, nem sequer procura abolir, a religiosidade real do homem” (1975, p. 48). 
Desta feita, ao constituir o direito do cidadão uma emancipação política, o modelo de Estado democrático é o mais apropriado para que os direitos do judeu sejam os mesmos direitos do cristão, direitos do homem, que se conquistam pela luta contra as tradições históricas em que a sociedade foi formada.
Nestes termos, a concepção de cidadania marxista pode ser entendida como o momento de exaltação dos direitos do homem em sociedade, deliberando sobre os assuntos que dizem respeito à coletividade. Essa cidadania coletiva pressupõe a desmistificação do direito do homem isolado, que possui as garantias consagradas pelas declarações de direito, burguesa, salvaguardadas na igualdade, liberdade, segurança e propriedade, enquanto garantias que tutelam o isolamento do homem emrelação aos seus semelhantes. Isto é, direito à liberdade
individualista (liberdade, fruto do sistema capitalista), e não necessariamente de convivência entre os homens.
Por conseguinte, afirma Marx (1997, p.56-57) que: “É o direito de tal separação, o direito do indivíduo circunscrito, fechado em si mesmo. A aplicação prática do direito humano de liberdade é o direito da propriedade privada”.
Na verdade, a cidadania, na perspectiva marxista, deve pautar pela emancipação do citoyen (cidadão), em relação ao homem egoísta, pois somente o homem, livre de seus egoísmos e convivendo comunitariamente com os outros homens em sua comunidade, pode tornar-se citoyen como “homem verdadeiro e autêntico” (MARX, 1975, p.59).
Assim, Marx (1997, p. 63) afirmar quanto ao direito do cidadão, por conseguinte a cidadania, que estas constituem uma atitude de superação e emancipação política e social, conforme entendimento a seguir:
A emancipação humana só será plena quando o homem real e individual tiver em si o cidadão abstracto; quando como homem individual, na sua vida empírica, no trabalho e nas suas relações individuais, se tiver tornado um ser genérico; e quando tiver reconhecido e organizado as suas próprias forças (forces propres) como forças sociais, de maneira a nunca mais separar de si esta força social como força política.
Com efeito, a emancipação humana constitui atitude de pertença e autonomia própria que fica evidenciada como sendo uma desmistificação das forças que atrapalham a relação de superação do homem em comunidade, enquanto ser que dispõe da força social e da força política como cidadão para efetivo exercício da cidadania. 
Considerações finais
A cidadania constitui o exercício dos direitos civis e políticos que o individuo dispõe, juntamente com as prerrogativas sociais para salvaguardar seu bem mais valioso: a vida, segundo o pensamento de Rousseau e Marx.
Nessa acepção jusfilosófica de atribuição da cidadania, o cidadão que estiver no gozo dos direitos cívicos (jus civitatis), bem como no exercício do direito de vontade ou eleição (votar e ser votado), para ocupar cargos públicos e para manifestar suas opiniões sobre o governo do Estado pode assegurar a prerrogativa de reivindicar direitos sociais, pois estas garantias são conquistas históricas de lutas em defesa dos interesses e dos direitos difusos da população, constituindo-se assim, numa ordem valorativa para todos, erga omnes.
Na verdade, a cidadania é um exercício de participação dos cidadãos nos negócios públicos, tendo a democracia (demo – povo cracia – governo) como fundamento para deliberação dos interesses comuns por todos os cidadãos, trata-se do consensus omnium (consenso de todos), para que a democracia e, conseqüentemente a cidadania atinjam a todos participativamente, por intermédio de garantias legais e políticas sociais eficazes.
As idéias que surgem com os iluministas franceses, mais tarde com os socialistas utópicos e os marxistas são de respaldo para construção da cidadania e da nacionalidade como elementos determinantes para o respeito a dignidade humana, no âmbito político, social e econômico.

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