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Educação de crianças em creches ISSN 1982 - 0283 Ano XIX – Nº 15 – Outubro/2009 Ministério da Educação Secretaria de Educação a Distância SUMÁRIO Educação dE crianças Em crEchEs Aos professores e professoras ................................................................................... 3 Rosa Helena Mendonça Apresentação da série Educação de crianças em creches ............................................. 5 Ana Paula Soares da Silva e Rosa Virgínia Pantoni Texto 1 – História e concepções do atendimento em creches ..................................17 A surpreendente descoberta: quem é e o que pode aprender uma criança de até três anos Maria Isabel Pedrosa Texto 2 – Desenvolvimento da criança de 0 a 3 anos .............................................. 25 Qual currículo para bebês e crianças bem pequenas? Maria Carmen Silveira Barbosa e Sandra Regina Simonis Richter Texto 3 – Orientações curriculares e propostas pedagógicas ................................. 32 Formação de professores e apropriação de modos historicamente elaborados de pensar, sentir e agir na educação infantil Zilma de Moraes Ramos de Oliveira 3 Educação dE crianças Em crEchEs Aos professores e professoras, “(…) como tem sido organizado o cotidiano das crianças nas instituições de educação infantil? Em que medida as crianças pequenas participam das rotinas, alteram e trans- formam as regras, os tempos e espaços instituídos? Que espaços e tempos se abrem para as manifestações infantis, consideradas as diferenças que existem entre as crianças das diferentes faixas etárias da educação infantil? Os professores exercem uma escuta sen- sível e um olhar atento a essas manifestações? Quais são as práticas culturais que as crianças vivenciam nessas instituições? Que elaborações acontecem entre as culturas das crianças, as culturas dos adultos, as culturas infantis e institucionais? O que as crianças produzem nas ações e interações que ali ocorrem? Qual é o lugar da brincadei- ra e das diferentes linguagens e expressões artístico-culturais das crianças?”(2009:10)1. Esses questionamentos feitos por Patrícia Corsino fazem parte da introdução do livro que inclui textos produzidos para a série O cotidiano na Educação Infantil (2006)2. A temática da educação infantil retorna ago- ra à grade do programa, desta vez com ênfa- se na educação das crianças de 0 a 3 anos de idade no contexto da creche. Certamente, nessa nova série, estaremos re- tomando algumas dessas indagações e apre- sentando outras, nesse momento tão signi- ficativo do debate em relação às cheches, instituições que são dever do Estado, direito das crianças e opção das famílias, e que, fi- nalmente, foram incorporadas aos sistemas de ensino. A série Educação de crianças em creches con- ta com a consultoria de Ana Paula Soares da Silva (CINDEDI/USP) e Rosa Virgínia Pantoni (COSEAS/USP), e apresenta aspectos histó- ricos e concepções de infância e do traba- lho nas creches. Dessa forma, o programa Salto para o Futuro, da TV Escola, pretende contribuir para a formação de professores, educadores e gestores que atuam cotidiana- mente nas creches, a partir dos textos desta publicação e das experiências e entrevistas 1 CORSINO, Patrícia (org.) . Educação infantil: cotidiano e políticas. Campinas, SP: Autores Associados, 2009. 2 Ver em www.tvbrasil.org.br/salto. 4 que fazem parte dos programas televisivos. A poesia da infância, certamente, envolve- rá a todos que participarem da série. Assim, deixamos aqui o ‘Convite’, expresso no poe- ma de José Paulo Paes3: 3 PAES, José Paulo. Poemas para Brincar. São Paulo: Ática, 1990. 4 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV Escola. Rosa Helena Mendonça4 5 APRESENTAÇÃO Educação dE crianças Em crEchEs Ana Paula Soares da Silva1 Rosa Virgínia Pantoni2 Um ambiente espaçoso, atraente, almofa- das, obstáculos macios e seguros, túneis de tecidos e caixas de papelão, espelhos no rodapé da sala, cantinhos aconchegantes, li- vros e brinquedos, móbiles, canaletas para brincadeiras com água, painéis de azulejos para pintura, objetos e materiais de diferen- tes texturas, cheiros e cores... Nesse espaço, organizam-se tempos e atividades para aco- lher e educar crianças de 0 a 3 anos de idade. Esse espaço: a creche! Há poucas décadas, era impossível pensar na creche como um ambiente assim. Eram prin- cipalmente os berços que tomavam conta de toda a sala. Não que eles não sejam neces- sários, mas seus lugares e a centralidade na creche foram aos poucos sendo dimensiona- dos frente às novas concepções de criança e de educação coletiva de bebês e crianças bem pequenas em espaços coletivos. No senso comum ou nos meios acadêmicos, essa nova concepção é pautada pelo olhar para as capacidades interativas do bebê, para o direito de exercer a sua expressivida- de como sujeito que age no mundo, contra- riamente ao entendimento do bebê a partir da falta e de sua incompletude. São exatamente os estudos das formas como os bebês constroem conhecimento e interagem com os outros que têm contribu- ído para as novas construções sobre as suas competências e habilidades interacionais, físicas e cognitivas. Durante muito tempo, as formas de comunicação dos bebês, mar- cadas pela expressividade corporal e moto- ra, foram negligenciadas, orientando ações no interior das instituições que reforçavam uma suposta incapacidade relacional dos bebês com o mundo físico e social. Essas concepções, junto com as ideias de creche como “mal necessário” e da família como único espaço adequado para a educação da criança bem pequena, formavam um terre- 1 Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI / FFCLRP-USP). Consultora da série. 2 Creche Carochinha COSEAS-USP. Consultora da série. 6 no fértil para práticas que também ajuda- vam a constituir um bebê pouco ativo. A nova concepção de criança e o olhar para os processos comunicativos e interacionais dos bebês têm emergido dos estudos que revelam a sensibilidade dos bebês às mani- festações afetivas e estéticas do seu meio cultural, assim como o compartilhamento da emoção e atenção desde cedo nas rela- ções interpessoais e a capacidade de inte- ragir com o outro por meio dos recursos de que dispõem. Essas ideias romperam com uma concepção da infância como uma fase marcada pela negatividade, pelo vir a ser. O bebê passou a ser compreendido como um sujeito que é agora, inteiro. Essa inteireza do bebê não significa, contu- do, independência do adulto e de seu meio. Ao contrário, como nos ensina o médico, psicólogo e filósofo francês Henri Wallon, o bebê humano é biologicamente social, ou seja, necessita do outro para sobreviver, para movimentar-se, para interagir com o mundo, para discriminar e descrever cores e sons, sabores e cheiros, para pegar e ro- lar, para narrar e significar o mundo, enfim, para construir sua identidade pessoal e co- letiva. Essa construção de identidade neces- sariamente só pode ser compreendida como um empreendimento relacional e coletivo, dependente principalmente do outro e da mediação que esse outro faz da relação da criança consigo mesma, com o mundo, com a cultura. Na creche, essa visão passa a disputar com formas tradicionais de educar e cuidar os bebês e nos remete a novos modos de orga- nização dos ambientes, de rotinas, de intera- ção com as crianças pequenas. O ambiente de aprendizagem favorável emerge quando o professor é sensível às potencialidades in- terativas das crianças,às suas falas, aos bal- bucios, aos gestos, às movimentações e aos modos como se relacionam com o mundo, exigindo-lhe que esteja atento às melhores formas de organização do tempo e ativida- des para a promoção dessas situações. Essa atitude faz da mediação cultural exercida pelo professor um processo que potenciali- za a condição da criança como sujeito. Essa atitude ajuda a construir a criança ativa, que investiga, pesquisa, interroga, pergunta, reclama, incomoda-se com os desafios co- locados pelo ambiente e intencionalmente escolhidos pelo professor. Nesse processo, novos recursos vão sendo construídos. O professor tem o poder de organizar para as crianças vivências ao longo de todo o dia; vivências com o mundo físico e sensorial; vivências com o ambiente social. A dispo- sição dos móveis, os objetos escolhidos, as possibilidades de movimentação da criança, os modos de relação com o corpo da crian- ça, os tipos de materiais disponibilizados, a organização dos tempos no interior das cre- ches, os momentos de acolhida, as formas de relacionamento com processos de adoe- cimento, a quantidade, a qualidade e varie- dade de experiências oferecidas, as formas 7 de comunicação com a criança, os modos de acolhimento das demandas das crian- ças, a disposição para estar com a criança, escutá-la e ser continente às suas necessi- dades constituem sempre ações orientadas por concepções e formadoras de subjetivi- dades. É por meio das práticas sociais e ins- titucionais que as crianças compreendem o mundo e a si mesmas. Por isso, o profes- sor é chamado a pensar sua prática numa perspectiva crítico-reflexiva, que lhe forneça elementos para o trabalho cotidiano de co- nhecimento dos sujeitos que se formam por meio de suas ações. Nesse modelo contemporâneo da educação infantil, a creche é então concebida e valori- zada por sua função formadora das crianças como sujeitos históricos e culturais. Esse modelo ganha força quando os professores passam a ser considerados como impor- tante apoio relacional e afetivo e como me- diadores de relações significativas para as crianças, e também com o crescimento da consciência de que, embora compartilhem a educação das crianças com os membros da família, exercem funções diferentes destes. A ampliação do entendimento acerca do pa- pel peculiar da creche em relação a outros contextos de educação da criança aponta assim para um modelo que profissionaliza suas práticas. Essa função formadora de sujeitos históricos e culturais também se verifica na valorização atual das aprendiza- gens que ocorrem nas relações estabeleci- das entre as crianças. Organizam-se tempos e atividades que promovem a interação das crianças de mesma idade, assim como de crianças de idades diferentes, gerando opor- tunidades interativas complexas. No caso da interação entre os coetâneos, por exemplo, as crianças exercem e constroem a capaci- dade de negociar em posições homogêne- as e menos hierarquizadas do que aquelas estabelecidas nas interações entre adultos e crianças. Hoje estamos convencidos de que essas oportunidades constroem as ca- pacidades das crianças de criar estratégias e posições em relação ao comportamento dos parceiros. Ao longo dos últimos anos, tem crescido a consciência coletiva acerca das necessida- des educativas das crianças de 0 a 3 anos e as creches têm se consolidado como tempo/ espaço construído culturalmente para pos- sibilitar a ampliação das experiências assim como o desenvolvimento das potencialida- des cognitivas, estéticas, sociais e relacio- nais da criança em grupo. Nesse contexto, essas construções e concep- ções têm necessariamente chamado as insti- tuições a consolidarem a identidade da edu- cação de crianças em creche, a conhecerem profundamente o seu trabalho, a distingui-lo das práticas educativas em contextos familia- res, não coletivos ou não-formais de educa- ção, a desenharem a sua especificidade. Mi- litantes e pesquisadores da educação infantil 8 vêm insistentemente recorrendo à defesa da especificidade do processo educativo nesse momento de inserção das crianças em insti- tuições educacionais. Reivindica-se tal especi- ficidade com base em estudos sobre infância a partir de diferentes campos de saber, como a psicologia, a sociologia, a pediatria, a enfer- magem, a linguística, a filosofia e as artes. Se o contexto da educação infantil possui essa especificidade no seu conjunto, que a distin- gue da educação realizada na família ou no ensino fundamental, ela se torna ainda mais evidente no caso das crianças bem pequenas. O momento da inserção da criança na cultu- ra caracteriza-se de modo bastante peculiar e as creches são instrumentos sociais criados com a função atual de compartilhar com a família esse processo. Controlar os esfíncte- res, andar, falar, alimentar-se, relacionar-se com o próprio corpo, cuidar de si, construir vínculos afetivos, negociar papéis e posições sociais, negociar objetos, brincar, partilhar experiências e emoções com adultos e crian- ças fora do círculo familiar, enfim, dominar os signos da cultura, são aprendizagens que, mediadas de modo competente, contribuem para que a educação infantil cumpra a sua função de promoção do desenvolvimento in- tegral da criança. É inegável que, apesar dos avanços, são ne- cessários estudos que forneçam elementos para orientar a educação coletiva de crian- ças tão pequenas. Junto com a ampliação das matrículas, a construção de orientações curriculares para o trabalho com a crian- ça de 0 a 3 anos de idade vem se revelan- do como um dos maiores desafios dos sis- temas de ensino. Se a história da política e do financiamento da área resultou em grave déficit de vagas e problemas para o atendi- mento da demanda, não menos complexos são os problemas a serem enfrentados no âmbito da organização das atividades e do tempo e da elaboração e efetivação de pro- postas pedagógicas para a educação coletiva de crianças tão pequenas. Apesar da existên- cia de alguns centros nacionais de pesqui- sa que vêm acumulando conhecimento na área, ainda são poucos os estudos que tra- tam principalmente das práticas e propos- tas pedagógicas para essa faixa etária. Essa carência de estudos, por um lado, revela o quanto a educação vem demorando para in- corporar a creche como objeto de investiga- ção e, por outro, atesta a necessidade de que o campo evidencie seus saberes construídos a partir da experiência. Ademais, a carência de estudos nos fala também do status que atribuímos às crianças de 0 a 3 anos de ida- de no país. Essa ausência indica o não reco- nhecimento dessas crianças como sujeitos de direitos e como atores sociais. Urgente ainda se faz estabelecer meios e ins- trumentos para interlocuções entre as institui- ções, de modo a produzir uma rede social de trocas de experiências exitosas daquelas práti- cas que cotidianamente são desenvolvidas nas creches e que, inventivamente, superam for- 9 mas historicamente construídas de educação dos bebês e de crianças bem pequenas. São essas práticas que vêm consolidando as creches no diálogo que a área busca estabele- cer com os profissionais das outras etapas da educação básica que, muitas vezes, em virtu- de de uma série de fatores, não reconhecem, no interior das creches, ações educativas pro- fissionalizadas. A vinculação institucional das creches aos órgãos de assistência, até meados dos anos 90, não requeria da Educação esfor- ços nosentido da apropriação de temas especí- ficos da criança bem pequena e repercutiu na ausência dessa temática em grande parte dos cursos de formação de professores. Essa é uma questão que, se não impede, ao menos dificul- ta o diálogo entre os diferentes segmentos que compõem os sistemas de ensino. Também são essas práticas pedagógicas que contribuem para os debates que vêm sendo feitos na área e que apontam para a recorrente invisibilida- de das crianças de 0 a 3 anos, seja nos estudos científicos, na elaboração da agenda política ou na mídia. Essas práticas, afinadas aos de- safios impostos pela LDB, superam o modelo tradicional marcado pela precariedade na po- lítica e nas condições concretas no interior das instituições, orientado pela perspectiva da necessidade e pouco comprometido com a perspectiva dos direitos, seja das famílias seja das crianças. Essas práticas criativas e de boa qualidade colaboram para construir um novo quadro na educação de crianças em creche no país, um novo momento histórico caracteriza- do pela busca de consolidação das creches no sistema de ensino, por um conjunto de regula- mentações que orientam as políticas, os pro- gramas e as práticas cotidianas nas creches, assim como por referenciais teórico-práticos que vêm ganhando corpo na produção do co- nhecimento da área. TExTos da sériE Educação dE crianças Em crEchEs3 A série pretende abordar o tema da educação das crianças de 0 a 3 anos de idade no contex- to da creche, apresentando o quadro atual em que esta área vem se constituindo na etapa da educação infantil. A especificidade deste traba- lho tem sido defendida com base em estudos sobre a infância a partir de diferentes campos de saber, como a psicologia, a sociologia, a pe- diatria, a enfermagem, a linguística, a filosofia e as artes. O momento de inserção da criança na cultura tem características bastante pecu- liares e as creches são instrumentos sociais criados com este objetivo, de forma que a edu- cação infantil possa cumprir a sua função le- galmente estabelecida: a promoção do desen- volvimento integral da criança. 3 Estes textos são complementares à série Educação de crianças em creches, que será veiculada no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 26 a 30 de outubro de 2009. 10 TEXTO 1 - HISTÓRIA E CONCEPÇÕES DO ATENDIMENTO EM CRECHES A surpreendente descoberta: quem é e o que pode aprender uma criança de até três anos As concepções sobre infância e o olhar so- bre como a criança se desenvolve e aprende mudaram bastante nos últimos anos. Estas mudanças ocorreram em grande parte por exigências sociais que transformaram os pa- péis sociais dos homens e mulheres e, conse- quentemente, fizeram emergir instituições que compartilham com as famílias a edu- cação das crianças pequenas em ambientes coletivos. Estas novas práticas também fo- ram acompanhadas de novas maneiras de se estudar a criança por parte de estudiosos de diferentes áreas. Os estudos atuais têm mostrado que os bebês apresentam um re- pertório sofisticado para interagir com o ou- tro (parceiro adulto ou criança), sendo esta interação social um fator de grande impor- tância para o desenvolvimento e aprendiza- gem dos mesmos. Dentre as muitas aprendi- zagens e aquisições que ocorrem nas e pelas interações merece destaque o que se deno- mina de construção da subjetividade, que se constitui e ao mesmo tempo é constituída por um processo chamado de intersubjeti- vidade. Este processo envolve regulações so- cioafetivas nas quais os adultos vão signifi- cando os gestos, vocalizações e as falas dos bebês; envolve também a identificação (ser como o outro) e a diferenciação, onde ocor- re uma oposição ao outro. Assim, a criança vai aprendendo sobre si mesma e sobre os outros, podendo assim constituir-se em su- jeito singular e construir sua autoimagem. Ao longo dos três primeiros anos de vida, a criança passa por transformações mui- to rápidas e contínuas. Além de aprender a sentar, engatinhar, ficar de pé, andar ocor- re uma das grandes aquisições que é o sur- gimento da fala, através da qual a criança compartilha tópicos de brincadeira e expres- sa suas emoções e sentimentos para o ou- tro. Inicialmente, com vocalizações não tão inteligíveis em que a intenção comunicativa acaba ficando subentendida, aos poucos a fala emerge nas interações sociais das crian- ças como constituição do pensamento e possibilita um salto no que se refere às pos- sibilidades de trocas, significações e apren- dizagens no contato com os outros, adultos e crianças. Observando os processos interacionais de be- bês e crianças, podemos constatar o quanto o brincar se faz presente, sendo uma atividade de alta prioridade para eles. Existe um con- senso entre os estudiosos da infância de que é fundamental que a criança brinque para poder aprender e se desenvolver. Compreender, en- tão, porque a criança brinca, como ela brinca e as complexas relações entre o brincar e os processos de desenvolvimento e aprendizagem se mostra um instrumento para promovermos interações de qualidade no cotidiano das crian- 11 ças. O olhar atento dos adultos para os proces- sos interacionais que se constituem nestes brincares é fundamental para pensarmos as ações a serem desenvolvidas no cotidiano das creches. Refletir sistematicamente sobre os diversos aspectos que se fazem presentes nes- tas interações, como, por exemplo: que obje- tos dispor para as crianças, em quais espaços, que ações realizar, as formas como podemos nos relacionar (um olhar, um gesto, um toque, uma fala...), as maneiras como as acolhemos e as desafiamos para as inúmeras conquistas que podem acontecer nos seus primeiros anos de vida, tudo isto deve ser um compromisso de todos os professores que trabalham nas cre- ches. TEXTO 2 – DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA DE 0 A 3 ANOS Qual currículo para bebês e crianças bem pequenas? Apesar da grande importância que o tema currículo ou orientações curriculares assu- me quando se discutem os processos educa- tivos, estes ainda são bastante controversos, especialmente no que se refere aos conteú- dos a serem oferecidos nas instituições es- colares. Quando se trata de propostas curri- culares que abordam a educação de bebês e crianças muito pequenas, esta discussão se torna ainda mais complexa, pois é preciso lidar não apenas com diferenças de concep- ções, mas com a falta de pesquisa, estudos e publicações que abordam diretamente a organização curricular nas creches. Como pensar esta organização? Pensamos ser fun- damental, nesta discussão, considerar não somente a incorporação das novas concep- ções sobre criança e infância, em que se des- taca a ideia de sujeitos de direitos e o papel ativo que os bebês exercem no seu processo de desenvolvimento, mas também as espe- cificidades da educação infantil. Considerar que as demandas deste segmento educacio- nal possuem especificidades implica pensar em um currículo sustentado nas relações, nas interações e em práticas educativas intencionalmente voltadas para as experi- ências concretas da vida cotidiana, para a aprendizagem da cultura pelo convívio no espaço coletivo, no qual os professores pro- movem vivências que ampliam os potenciais cognitivos, afetivos e sociais, considerando as diferentes linguagens que compõem os processos comunicativos e a maneira como as crianças significam suas experiências. Pensar as orientações curriculares nessa perspectiva implica problematizar ascon- cepções que apontam para a ideia de cur- rículo como sendo o conjunto de objetivos educacionais previamente determinados a serem alcançados por meio de áreas disci- plinares, nos quais os conhecimentos cien- tíficos são destacados em detrimento de saberes cotidianos. Essa visão implica a mu- dança da concepção de aprendizagem como 12 aquisição e acumulação para uma concep- ção de aprendizagem como um processo de narração em que o foco de atenção se colo- ca nas práticas sociais que ocorrem no coti- diano das instituições educativas. Organizar um currículo para e com os bebês e crianças pequenas implica a articulação entre sabe- res de distintas ordens. TEXTO 3 – ORIENTAÇÕES CURRICULARES E PROPOSTAS PEDAGÓGICAS Formação de professores e apropriação de modos historicamente elaborados de pensar, sentir e agir na educação infantil Podemos dizer que, em termos históricos, é recente a incorporação da Educação Infantil no âmbito educacional. Essa novidade gera uma série de debates sobre qual é a identida- de e qual é a função deste segmento educa- cional. Estas discussões também envolvem uma reflexão sobre qual o perfil e quais as competências que os professores precisam desenvolver para melhor atender às necessi- dades e aos desafios colocados pelo atendi- mento de crianças tão pequenas em espaços coletivos. Para a definição deste perfil, o debate acu- mulado na área tem trazido a necessidade de pensarmos o cuidar e o educar como di- mensões indissociáveis de todas as ações do professor de Educação Infantil, em especial dos que atuam nas creches. Mas como incor- porar esta dimensão nos cursos de formação inicial e continuada destes profissionais? Isto implica necessariamente uma revisão e refle- xão sobre o que se entende por ensino neste âmbito educacional e no desafio de conciliar teorias e práticas pedagógicas. Os programas de formação docente para Edu- cação Infantil hoje têm como importante ta- refa ajudar os professores a saírem do lugar de mudança de discursos para mudança de procedimentos e atitudes. Para tanto, é preci- so incorporar aos processos formativos uma articulação entre os aspectos políticos do tra- balho educacional e as discussões sobre as formas mais eficientes de ação pedagógica, de maneira a ajudar os professores a construírem seus conhecimentos a partir da apropriação e de reflexão de novas formas de trabalhar com as crianças. Desta maneira, os programas de formação precisam contemplar situações para que os professores construam e visualizem o papel político da sua atuação, tenham opor- tunidades para se apropriarem de conceitos e habilidades para uma atuação promotora de aprendizagem e desenvolvimento e participem de situações em que possam ser incentivados a examinarem o modo como agem e reagem nas interações que estabelecem com as crianças, famílias e coletivo de profissionais no interior das instituições educacionais. Podemos dizer que o grande desafio da formação de profes- 13 sores se coloca na possibilidade de ajudá-los a se assumirem como protagonistas de seus pro- cessos de crescimento profissional e pessoal. Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para o quarto programa, com entrevistas que refle- tem sobre esta temática (Outros olhares sobre a Educação de crianças em creches) e para as dis- cussões do quinto e último programa da série (Educação de crianças em creches em debate). BIBLIOGRAFIA AMORIM, Katia de Souza; VITORIA, Telma; ROSSETTI-FERREIRA, Maria Clotilde. Rede de Significações: perspectiva para a análise da inserção de bebês na creche. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 109, mar. 2000, pp. 115-144. Disponível em: http://www.scielo. br/pdf/cp/n109/n109a06.pdf AMORIM, Katia de Souza; CARVALHO, Ana Maria A.; ANJOS, Adriana M. dos; ROSSETTI- FERREIRA, Maria Clotilde; VASCONCELOS, Cleido Roberto F. A incompletude como vir- tude: interação de bebês na creche. 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Nuances, Presidente Prudente, v. 15, p. 185-206, 2007. KISHIMOTO, M. Tizuko. O Brincar e suas teo- rias. São Paulo: Pioneira, 1998. REVISTAS • Revista Pátio Educação Infantil – Or- ganizada pela Faculdade de Educação – PUC – RS. Editora Artes Médicas Sul. Email: artemed@pro.via-rs.com.br • Revista Criança. Publicada pelo MEC (distribuição gratuita). • Revista Mente e Cérebro – Série: A Mente do Bebê. Composta por 4 edi- ções especiais. Editada pela Ediouro, Segmento - Duetto Editorial LTDA., São Paulo, SP. • Revista Eletrônica Zero a Seis – Edita- da pelo Núcleo de Estudos e Pesqui- sas da Educação na Pequena Infância – Centro de Ciências da Educação – UFSC. Eletrônica http://www.ced.ufsc. br/~zeroseis/ • Número Especial da Revista Psicologia da USP: “Um olhar multidisciplinar so- bre as crianças de 0 a 3 anos: pistas e desafios para a educação infantil”, nú- mero 20, vol. 3, 2009 VÍDEOS: • Bebê interage com Bebê? Vídeo reali- zado pelo CINDEDI (FFCLRP/USP). • Programa Canto na Tela. Vídeos reali- zados pelo CINDEDI (FFCLRP/USP) e Creche Carochinha/COSEAS-USP: 1) O fazer do bêbê; 2) Processos de adapta- ção na Creche; 3) Nanando na Creche; 4) O lobo que virou bolo: práticas edu- cativas alimentares; 5) O conto que as caixas contam; 6) Ambiente; 7) Fazen- do arte na Creche. 17 TEXTO 1 hisTória E concEpçõEs do aTEndimEnTo Em crEchEs A SURPREENDENTE DESCOBERTA: QUEM É E O QUE PODE APRENDER UMA CRIANÇA DE ATÉ TRÊS ANOS Maria Isabel Pedrosa1 O período de vida de zero a três anos ca- racteriza-se por transformações muito rá- pidas e contínuas. Observar um bebê hoje e observá-lo novamente daqui a um mês causa admiração em qualquer observador. Identifica-se sempre uma nova conquista! E esse contínuo vai sendo marcado por aqui- sições e aprendizagens cada vez mais com- plexas e sutis, como por exemplo: um olhar orientado para um foco, o tônus muscular mais firme, a cabeça que se sustenta sem escoras, a mão que se desloca “curiosa- mente” para um objeto, o movimento dos dedos em oposição ao polegar formando uma pinça para alçar o objeto, um pezinho que já é levado à boca, um sorriso que en- canta e cativa o interlocutor, sons de diver- sas intensidades e ritmos que são emitidos, um corpo que se ergue e se firma, experi- mentando movimentos de deslocamentos, e ainda mais difíceis, movimentos de equi- líbrio, de firmeza, de ficar parado, etc. O engatinhar e o andar surgem possibilitan- do novas explorações e a fala emerge em meio a tantas trocas sociais, organizando- se, complexificando-se e atingindo sofisti- cados propósitos comunicativos, mas sen- do também objeto de reflexão, ela própria, como num jogo de experimentações do fa- lar, encantando e envolvendo a criança em desafios e novas descobertas. São inúmeras as conquistas dessa fase! Há poucas décadas, a criança, no primeiro ano de vida, era considerada um ser imatu- ro. Pelo fato de não andar, não correr, não falar, pensava-se que ela não sabia outras coisas. Fazia-se uma generalização inade- quada, pois se estendia essa incompletude para todos os outros processos! Enfatizava- se também a comunicação linguística so- bre a não-verbal, a cognição sobre o afeto, e se estudava a criança sozinha, em situa- ções de exames, seguindo-se parâmetros de escalas de avaliação. A virada de perspecti- va em relação a novas concepções sobre a criança pequena ocorreu, em parte, por exi- gências sociais - as mães que queriam par- ticipar do chamado mercado de trabalho, conquistando independência financeira e, 1 Professora da Universidade Federal de Pernambuco. 18 em decorrência, liberdade e autonomia, exigiram ambientes compartilhados de criação dos filhos e a necessária qualidade nesse compartilhamento. Por outro lado, modificaram-se as perguntas dos estudio- sos sobre a criança (educadores, psicólogos e sociólogos da infância) que passaram a questionar, por exemplo: como deveria ser um ambiente coletivo de convivência, do tipo creches e pré-escolas? Como repercu- te nas crianças esse novo modo de criá-las, afastando-as algumas horas do dia do con- vívio familiar? Como elas iriam assimilar os objetos, as normas e valores culturais de seu convívio? As crianças passaram a ser observadas em seu cotidiano e com muita curiosidade. Nas pesquisas, isso foi aliado à possibilidade de ver e rever cenas de crianças por meio da nova tecnologia da videogravação que se tornou mais ao alcance de todos. Foi pos- sível descobrir um repertório sofisticado para interagir com o outro; que boa parte da comunicação da criança é não-verbal, es- tendendo-se essa descoberta para todas as idades, inclusive adultos; e que as trocas afe- tivas constituem a base das aquisições cog- nitivas e culturais porque por meio dessas trocas é que são estruturados os diálogos linguísticos. Dentre as muitas descobertas, a orientação preferencial ao parceiro adulto ou ao parceiro de idade é talvez um ponto que merece destaque nesse percurso de de- senvolvimento. A INTERAÇÃO SOCIAL Desde o nascimento, o outro ser humano é o estímulomais relevante para a criança em seu meio. Essa preferência é identificada pela orientação do olhar para o outro; pela discriminação sutil da voz humana em con- fronto com outros sons do ambiente; pela evidência de que, com apenas três dias de nascido, o bebê discrimina o odor de sua mãe do odor de uma estranha; pela mani- festação de preferência para a configuração de rostos humanos, etc. Muitos indicadores são inferidos da frequência e ritmo de seus batimentos cardíacos e de sua respiração, comparados à medição de respostas dadas a outros estímulos. Será isso coincidência? Ou essas descobertas trazem evidências de que, na espécie humana, essa característi- ca de orientação diferenciada e preferencial ao parceiro foi selecionada como um padrão consistente do comportamento do bebê? Alguns teóricos da Psicologia lançam hipó- teses sobre essas preferências, pondo-as em perspectiva com os desdobramentos que ocorrem no curso do desenvolvimento in- fantil. Em primeiro lugar, essa preferência parece não ser aleatória na medida em que a “imaturidade” motora exige esse padrão comportamental refinado para que a criança possa sobreviver, pois ela depende do outro para a satisfação de suas necessidades de ali- mento, higiene, proteção e conforto, dentre tantas. Em segundo lugar, percebe-se que o 19 ambiente humano é o único que lhe confere insumos para as conquistas importantes que fará. Como ela aprenderá a falar uma língua se não for convivendo com pessoas que fa- lam e dominam aquele código linguístico? Como ela se constituirá enquanto indivíduo se não for pela oposição com o/s outro/s? De que maneira os bens culturais seriam construídos e acumulados, se a cada ser humano tudo tivesse que co- meçar do zero? Facilmente se descobre que a resposta a essas questões impli- ca considerar o ambiente socio- cultural o único relevante para o desenvolvimen- to humano. Isso também forta- lece a hipótese de que a prefe- rência do bebê pelo parceiro social não é uma casualidade, mas um comportamento consistente. Nas interações com os parceiros ocorrem muitas aprendizagens e aquisições; uma de- las, considerada entre as mais significativas, é a construção da subjetividade que consti- tui e ao mesmo tempo é constituída por um processo chamado intersubjetividade. Mas como se pode caracterizar esse processo? Aos dois meses de idade o bebê já exibe dife- renças de comportamentos em sua relação com objetos ou pessoas, isto é, movimentos de seu corpo, mãos e face são diferenciados em respostas aos sor- risos e vocalizações de seus cuidadores, que podem ser a mãe, o pai, a avó, mas pode ser também a educa- dora, se a criança fre- quenta uma creche. Essas pessoas, por sua vez, também respon- dem ajustadamente ao bebê, formando uma espécie de esti- lo próprio de diálogo da díade (mãe-bebê; pai-bebê; educadora- bebê; etc.). O parcei- ro, geralmente adulto, fala sentenças curtas, repetitivas e sincronizadas aos sons emitidos pelo bebê. Cada um, a seu turno, ocupa o lu- gar de interlocutor: quando o bebê vocaliza, o parceiro espera atentamente, buscando pistas que o autorizem a interpretar seu ros- to, ritmo e movimentos de seu corpo, atri- buindo-lhe intenção e sentimento; quando o adulto fala, o bebê se cala e reage de modo Aos dois meses de idade, o bebê já exibe diferenças de comportamentos em sua relação com objetos ou pessoas, isto é, movimentos de seu corpo, mãos e face são diferenciados em respostas aos sorrisos e vocalizações de seus cuidadores, que podem ser a mãe, o pai, a avó, mas pode ser também a educadora, se a criança frequenta uma creche. 20 orientado para ele, mas, em seguida, vocali- za em sintonia responsiva à sua fala e expres- sões, evidenciando engajamentos regulados emocionalmente. O olhar e sorriso mútuos são vistos como características deste proces- so ao regular o contato interpessoal. O adulto que lida com o bebê depreende dessa dinâmica interacional uma vivência íntima, referindo-se a uma experiência sub- jetiva do bebê. Há uma espécie de predispo- sição precoce para o encontro com o outro, denominada de intersubjetividade primária. Ela envolve o re- conhecimento e a coordenação de intenções na comunicação presente da día- de, mesmo que seja de modo rudimentar, por meio de regulações socioafetivas. Desses en- contros, à medida que vão ocorrendo novos desdobramentos, a criança aprende sobre si e sobre o outro. Identificar-se significa ser como o outro, mas também diferenciar-se dele: um pro- cesso único que se constitui por oposições (ser igual e diferente, ao mesmo tempo!). Existe o outro genérico (todos que não são a criança), e existem outros, identificáveis, cada um do outro (e são muitos!), com quem a criança se relaciona, em graus vari- áveis de proximidade, com afetos múltiplos, positivos ou negativos. Essa construção se inicia nos primeiros anos de vida, mas se complexifica ao longo de toda a existência com eventos que unem (e implicam a ideia de pertencimento) e eventos que separam (implicam a ideia de diferente, às vezes, de oposto). Assim, por exemplo, ser filho é ser igual a todos que também são filhos; e ser filho é o oposto de ser pai. Vários ou- tros processos parecem compartilhar dessa construção. O “eu” e o “outro” são con- ceitos; fazem parte de uma área de estudo chamada de proces- sos cognitivos; mas esses conceitos têm relevância afetiva e estão implicados na construção da subje- tividade. A BRINCADEIRA INFANTIL O brincar é sem dúvida a dimensão do inte- ragir mais frequente porque é uma atividade de alta prioridade para a criança. Aparente- mente ela não tem importância, porque a criança brinca de qualquer coisa em qual- quer lugar, basta ter liberdade para iniciar uma atividade ou seguir a proposta de um parceiro. Mas a sua relevância repousa exa- tamente nesse aspecto e daí a pergunta: o que acontece no brincar infantil? Qual o pa- pel que a brincadeira parece desempenhar? O brincar é sem dúvida a dimensão do interagir mais frequente porque é uma atividade de alta prioridade para a criança. 21 Apesar de inúmeras tentativas para se defi- nir o que é brincadeira, não se chegou a um consenso; essa não é uma tarefa de fácil rea- lização. Quando a criança brinca com outra de faz-de-conta não se tem dúvida de que estejam brincando: a não realidade da situ- ação (o espaço que se transforma em casa; a vassoura que representa um cavalo; o ob- jeto inanimado que passa a ter vida; o bebê que é o filhinho da outra criança; etc.) já lhe confere o tom de brincadeira. Nesses casos, diz-se que os fatos, objetos e situações estão subordinados às significações que as crian- ças lhes atribuem e compartilham. Existem, entretanto, outras brincadeiras que não são de faz-de-conta. Quando a professora, por exemplo, desliza vagarosamente uma fralda sobre o rosto da criança e esta, surpreendida com o desaparecimento e reaparecimento do rosto conhecido, arregala os olhos, fixa o olhar para a professora e depois balança os braços e pernas para, em seguida, ficar imobilizada como que esperando uma nova investida do(a) parceiro(a), afirma-se que a criança está brincando de “Cadê - Achou”. Do mesmo modo, as crianças que andam de velocípede, que jogam a bola para o parcei- ro e a recebem de volta, que tentam alcan- çar o balãode festa arremessado para cima, que se esforçam para enfiar continhas num fio ou encaixar peças numa sequência, que enrolam a língua para pronunciar palavra longa ou sequência complicada (a chamada trava-língua), que se dão as mãos e cantam músicas de refrão repetitivo e passos ou re- quebrados estereotipados, etc., todas essas atividades também são chamadas de brinca- deira! Algumas requisitam mais o exercício físico, outras a atividade mental; umas im- plicam relações sociais, outras necessitam uma maior concentração individual para o seguimento de regras; umas exploram a ima- ginação e outras, a repetição, o ritmo e a ca- dência. O que parece subjacente ao brincar é a atitude da criança em relação à atividade. É ela, por exemplo, quem transforma uma fo- lha de árvore em um barquinho para navegar em uma poça de água, transforma a pronún- cia de palavras difíceis em atos de desafio e o esforço de subir em caixotes, uma conquis- ta! Portanto, a definição de brincar implica a motivação intrínseca da criança; se ela não quer naquele momento, não adianta a pes- soa insistir, pois a “brincadeira” tornar-se-á uma tarefa aborrecida e deixa de ser brinca- deira! Se ela cria ou adere a uma proposta, aí a sequência se desdobra e flui rapidamente: muitos outros elementos são requisitados para “embelezar” a atividade, muitas ações se complexificam para torná-la mais difícil e atraente, muitos gritinhos e risos sinalizam ao parceiro o quanto aquilo é legal , amplian- do a atividade com o envolvimento de outras crianças! Como a motivação é algo interno ao indivíduo, isso explica a dificuldade de de- finir o que é brincadeira. Teóricos da Psicologia especulam sobre o papel da brincadeira no desenvolvimento in- fantil. Apontam, com frequência, o treino de 22 habilidades, pois, na brincadeira, a criança desempenha, antecipadamente, ações ne- cessárias em várias situações futuras: a brin- cadeira é vista como um simulador de experi- ências. Outros falam em um meio ou veículo de expressão de sentimentos, ou um modo de fazer esvaecer suas emoções, liberar suas tensões. A quem aponte van- tagens atuais para a criança: a brincadeira, principalmente a motora, pro- porcionaria fle- xibilidade e ver- satilidade para o enfrentamen- to de situações inesperadas como movi- mentos súbitos e complexos que, no período inicial de vida, ainda carecem de destreza e agilidade. Outra ideia relaciona o longo período de brincadei- ra na infância a um vantajoso retardamento para enfrentar situações complexas. Acredi- ta-se, neste caso, que um treino precoce em várias funções cognitivas traria prejuízo fu- turo à criança, uma vez que a estruturação do cérebro reduz a flexibilidade geral, uma característica típica e essencial da espécie humana. Apesar de não se chegar a um acordo teó- rico sobre o papel do brincar no desenvol- vimento infantil, não se tem dúvida de que brincar é preciso. A criança gosta de brincar e dedica grande par- te de seu tempo para brincar, se não for to- lhida. Brincando ela aprende; brincando ela ensina. Há várias situações observadas em que as crianças imitam umas as ou- tras em tarefas e se- quências complexas; em que instigam um fazer coletivo, desa- fiador; em que experi- mentam o outro lado, o lado do parceiro; em que explicam mesmo demonstrando, sem palavras, como proce- der para alcançar um resultado. O SURGIMENTO DA FALA Em torno de um ano e meio de idade emerge uma das conquistas mais espetaculares do ser humano que é a linguagem falada! Ao se dizer que emerge não se quer dizer que ela Em torno de um ano e meio de idade emerge uma das conquistas mais espetaculares do ser humano que é a linguagem falada! Ao se dizer que emerge não se quer dizer que ela surge do nada, como algo repentino. Desde o nascimento essa aquisição começa a ser construída. A criança é acolhida num mundo da fala e esses sons que vêm do outro já são preferidos por ela. 23 surge do nada, como algo repentino. Desde o nascimento essa aquisição começa a ser construída. A criança é acolhida num mun- do da fala e esses sons que vêm do outro já são preferidos por ela. Há quem pense ser o amadurecimento dos órgãos fonadores (la- ringe, pregas vocais, traqueia, pulmões, dia- fragma) o mais relevante para que a criança comece a falar. Entretanto, o que parece ser mais relevante para essa aquisição é o fato de que essas interações sociais possibilitam se comunicar, e também compartilhar um tópi- co de brincadeira, uma intenção de brincar; é a possibilidade de se fazer revelar, de bus- car compreender, de pensar, de imaginar, de construir algo num plano que não é o do con- creto nem do sensível, mas a eles articulado. A linguagem efetiva claramente essa aquisi- ção e é a fala, um de seus aspectos, que pode ser verbal ou gestual/visual, que concretiza, fortemente, os “encontros com o outro” – e por que não? – também os “desencontros”. Como já mencionado, as regulações emo- cionais funcionam como um modo de co- municação da criança com os parceiros, no primeiro ano e meio de vida. Surge a fala, mas ainda monossilábica, ou com o forma- to de pequenas sentenças, muitas vezes que- rendo significar muitas coisas que vão fican- do subentendidas. A expressão das emoções não desaparece; ela está sempre como linha de base, complementando o que não foi fa- lado. Ao mesmo tempo, irrompe com força e clareza a imitação do outro. Ao seu modo, a imitação também desempenha uma fun- ção comunicativa. Com os parceiros de ida- de ela é preponderante quando a fala ainda não “enreda” uma encenação, uma desco- berta, um interesse que se quer comparti- lhar. Já aos três anos, a fala assume o papel proeminente da comunicação com o outro e da constituição do pensamento. Ela própria passa a ser objeto de interesse: muitas vezes as crianças “falam por falar”, num verdadei- ro jogo de experimentações: descobrem sua sonoridade; exploram suas possibilidades, como as regras da flexão verbal (“eu fazi”, expressão nunca ouvida antes, mas criada em decorrência de regras subjacentes em uso, como “eu dormi”, “eu senti”, “eu cor- ri”, etc.); divertem-se com o travamento da língua ao pronunciar quadras de versos, ou sequências exóticas; enveredam pela fanta- sia das histórias e passam a percorrer um longo caminho da magia das palavras! PARA SABER MAIS BUSSAB, V.; PEDROSA, M. I.; & CARVALHO, A. M. A. Encontros com o outro: empatia e intersubjetividade no primeiro ano de vida. Psicologia USP, v. 18, p. 99-132, 2007. CARVALHO, A. M. A.; MAGALHÃES, C. M. C.; PONTES, F. & BICHARA, I. Brincadeira e cultu- ra: viajando pelo Brasil que brinca. (Volume I: O Brasil que brinca. Volume II: Brincadeira de todos os tempos), São Paulo: Casa do Psi- cólogo, 2003. 24 SEIDL DE MOURA, M. L. & RIBAS, A. F. P. Evi- dências sobre características de bebês recém- nascidos: um convite a reflexões teóricas. In: M. L. S. MOURA (org.), O bebê do século XXI e a psicologia em desenvolvimento [pp. 21-59] São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. 25 TEXTO 2 dEsEnvolvimEnTo da criança dE 0 a 3 anos QUAL CURRÍCULO PARA BEBÊS E CRIANÇAS BEM PEQUENAS? Maria Carmen Silveira Barbosa1 Sandra Regina Simonis Richter2 “Crianças, éramos pintor, modelador, botânico, escultor, arquiteto, caçador, explorador. E o que aconteceu com tudo isso?” (Gaston Bachelard). APRESENTAÇÃOPodemos iniciar este texto lembrando que o tema do currículo, apesar de sua centralida- de nos processos educacionais, é um assunto muito controverso (Barbosa, 2009; Silva, 2005, 2006). Quando tratamos de propostas curri- culares que abordam a educação de bebês e crianças pequenas, em ambientes coletivos e formais, esta situação se complexifica, pois o problema deixa de ser apenas o da divergência de concepções e passa a ser o do silenciamen- to diante da quase inexistência de estudos, pes- quisas e publicações que abordem diretamen- te a questão curricular na creche. Neste texto vamos problematizar a concep- ção de currículo como seleção de conheci- mentos acadêmicos, organizados a partir de áreas disciplinares, em sequência linear e centrados em objetivos previamente deter- minados. Consideramos que é preciso afir- mar, na especificidade da educação infantil, um currículo sustentado nas relações, nas interações e em práticas educativas inten- cionalmente voltadas para as experiências concretas da vida cotidiana, para a aprendi- zagem da cultura, pelo convívio no espaço da vida coletiva e para a produção de narra- tivas, individuais e coletivas, através de dife- rentes linguagens. CONHECIMENTOS, CULTURA E CURRÍCULO Geralmente quando pensamos em elabora- ção de currículo centramos nosso olhar nos 1 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 2 Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul – UCS. 26 estudos sobre o conhecimento em sua for- ma dominante, o conhecimento científico, enquanto esquecemos, ou desvalorizamos, aquilo que a cultura popular, enquanto sa- beres cotidianos, tem a dizer “sobre seu elemento cognitivo” (Burke, 2003, p. 22). Os saberes cotidianos são os conhecimentos da experiência, do corpo, da cultura, da vida. Foram eles que estabeleceram as bases para a sistematização e, posteriormente, legiti- mação dos conhecimentos científicos. Po- rém, em diversas concepções educacionais estes conhecimentos e saberes são conside- rados banais e, geralmente, não têm visibili- dade nos documentos curriculares. É preciso lembrar que as crianças pequenas e os bebês aprendem – na corporeidade de suas mentes e de suas emoções – a partir da ação do corpo no mundo, da fantasia, da intuição, da razão, da imitação, da emoção, das linguagens, das lógicas e da cultura. As crianças produzem seus conhecimen- tos instaurando significados e constituindo narrativas sobre si mesmas e o mundo. Elas aprendem não a partir de informações cien- tíficas parciais ou conhecimentos fragmen- tados, mas através de processos dinâmicos de interações com o mundo. Estas características das crianças pequenas trazem um imenso desafio aos professores pois exigem romper com a prática curricu- lar “naturalizada” de formular um currículo acadêmico e prescritivo, aplicado ao mes- mo tempo a todos. Goodson adverte que “a aliança entre prescrição e poder foi cuidado- samente alimentada para que o currículo se tornasse um artifício que reproduza as rela- ções de poder na sociedade” (2008, p. 143). Neste tipo de currículo o professor é mero executor de objetivos instrumentais traçados por uma política centralizadora. E, como afir- ma o mesmo autor, o currículo foi inventado “como um conceito para direcionar e contro- lar a autonomia do professor e sua liberdade potencial na sala de aula (idem)”. Porém, em contraste com esta visão, procu- rando ver o professor como um artífice, pen- samos que o currículo precisa ser proposto a partir dos entusiasmos de cada um, adul- tos e crianças, e profundamente ancorado aos percursos de vida. Deste modo é preciso mudar a concepção de “aprendizagem como aquisição” e acumulação para uma concep- ção de aprendizagem enquanto um “proces- so de narração”. Goodson (2008, p. 152) afir- ma que o aprendizado narrativo “é um tipo de aprendizado que ocorre durante a elabo- ração e a manutenção contínua de uma nar- rativa de vida”. É aquela aprendizagem que está vinculada ao engajamento das crianças com o mundo. Nas palavras do autor, Quando vemos o aprendizado como uma reação a eventos reais, então a questão do envolvimento pode ser presumida. Uma parte significativa da literatura so- bre aprendizado deixa de examinar essa 27 questão crucial de envolvimento e, como resultado, o aprendizado é considerado como uma tarefa formal que não se re- laciona com as necessidades e os interes- ses daquele que aprende (idem). UM CURRÍCULO PARA E COM OS BEBÊS E CRIANÇAS BEM PEQUENINAS CENTRADO EM PRÁTICAS SOCIAIS E LINGUAGENS Pensar e propor um currículo para e com as crianças peque- nas é favorecer um percurso de ingresso e per- tencimento na cultura. A for- mação de uma criança inicia com o acolhi- mento, isto é, com a sua chegada em um mundo já cons- tituído por práticas sociais e linguageiras. As crianças pequenas apreendem o mundo através dessas práticas culturais, isto é, a partir daquilo que fazem com elas e do que falam para elas: cuidados de higiene, ali- mentação, carinho, conversa, aconchego, segurança e confiança. Nessas ações, sem- pre mediadas por linguagens, as crianças complementam sua inserção cultural. Deste modo, a inclusão das crianças na co- letividade passa pela apropriação no corpo, na linguagem, no pensamento, desses mo- dos de agir, imaginar, produzir e conviver com outros. Ao ouvir uma história, prática cultural, as crianças apreendem que podem contar e recontar sobre a vida isto é, a ope- rar linguagens e narrar a vida através da linguagem verbal, da música, da pintura, da dança. As crianças pequenas iniciam seu percurso curricular na creche participando dos acon- tecimentos, produzindo perguntas e respos- tas sobre o mundo em que vivem através de diferentes linguagens. É na pré-escola que começa a tornar-se pertinente a aproxi- mação conceitual dos conhecimentos cien- tíficos. Nesta trajetó- ria, tão lúdica quanto formativa, as crianças vão narrando inven- tivamente o mundo e a si mesmas e cons- tituindo seu capital narrativo (GOODSON, 2008). A partir desta compreensão, conside- ramos que um currículo para bebês e crian- ças pequeninhas exige ser composto por sa- beres e conhecimentos de distintas ordens: - os saberes e conhecimentos oriundos das práticas corporais, culturais e sociais nas quais as crianças são introduzidas em seus con- textos de vida e que, na educação infantil, Pensar e propor um currículo para e com as crianças pequenas é favorecer um percurso de ingresso e pertencimento na cultura. 28 são identificadas principalmente através das interações sociais, das rotinas, das culturas de pares, das brincadeiras, dos cantos, dos relacionamentos entre crianças e crianças e crianças e adultos, isto é, através dos conhe- cimentos tradicionalmente realizados com os bebês e crianças pequenas na vida cotidiana; - os saberes e conhecimentos das linguagens, que são as formas simbólicas que essa cul- tura produziu e produz ao longo da história para criar, interpre- tar, expressar, narrar e comu- nicar ações e sentidos que significam a convivência; - os saberes e conhecimentos das áreas disci- plinares orga- nizadas histórica e socialmente e que são necessários à formação das crianças nos as- pectos científicos e tecnológicos, isto é, os conhecimentos científicos. Quando pequenas as crianças aprendem na escola ações muito semelhantes àquelas quevivenciam em suas famílias, porém, no estabe- lecimento educacional, essa experiência está vinculada aos desafios da vida coletiva numa cultura diversificada e também às exigências de um projeto político-pedagógico sistematiza- do. Portanto, do currículo da creche é exigido refletir e sistematizar concepções sobre as prá- ticas efetivas e afetivas realizadas intencional- mente no cotidiano da vida coletiva. As práticas sociais como alimentação; as brincadeiras; as relações sociais; a higiene e o controle corporal; os movimentos; o repouso e o descan- so; a aprendizagem das diferentes lin- guagens e das estra- tégias das culturas populares para incor- porarem as crianças no mundo envolvem conhecimentos pro- fundamente inter- disciplinares e vincu- lados às diferentes culturas locais, es- colares e familiares. Assim, o desafio dos professores está em romper com concep- ções polarizadoras entre conhecimentos do corpo (prática) e conhecimentos abstratos (teoria), entre conhecimentos cotidianos vinculados às práticas culturais (não legíti- mos) e conhecimentos acadêmicos (legíti- mos) vinculados ao pensamento científico. As práticas sociais, por dizerem respeito à vida, são ações complexas que envolvem e dinami- As práticas sociais, por dizerem respeito à vida, são ações complexas que envolvem e dinamizam o corpo todo, o pensamento e a cultura: são sensações, sentimentos, emoções, desejos, pensamentos e as linguagens. 29 zam o corpo todo, o pensamento e a cultura: são sensações, sentimentos, emoções, desejos, pensamentos e as linguagens. Durante muito tempo as linguagens permaneceram reduzidas apenas a uma área do conhecimento – a língua verbal. Porém, hoje, o termo linguagem(ns) vem sendo utilizado socialmente para deno- minar seus sistemas de signos. As linguagens surgiram tanto para elaborar materiais utilitá- rios quanto os expressivos, tanto com a finali- dade de produzir marcas e partilhar sensações quanto para registrar, documentar e comuni- car acontecimentos. As capacidades motoras e simbólicas das crianças possibilitam a inte- ração com diferentes formas de sistemas de signos, que configuram especificidades como a oralidade, a escrita, o desenho, a pintura, a dramatização, a música, o gesto, a imitação, enfim as diferentes formas de linguagem. Ao desenharem, as crianças não repro- duzem uma cópia do mundo, utilizando os princípios conceituais do desenho, mas produzem traços e configuram ima- gens que permitem compartilhar a expe- riência e, ao conversar sobre o realizado, isso favorece o deslizar do pensamento sobre o que realizaram. Nesse sentido, é o ato de desenhar que provoca o pensa- mento conceitual, e não o contrário. Na infância as linguagens são aprendidas nas ações materiais e simbólicas significativas. São as ações corporais, gestuais e verbais, que acontecem no encontro entre crianças e crian- ças ou então entre crianças e adultos, propi- ciadas através de experiências complexas que podem ser as do dia-a-dia, como correr, falar, chorar, ou aquelas que podem ser ficcionadas a partir da presença de fantoches, do teatro de sombras, de diálogos, de maquiagens e outros materiais que favoreçam o encontro entre o movimento do corpo e as linguagens para a produção de significados. As brincadeiras, as fábulas e os artefatos ensinados pelos adultos, e observados, imitados e transformados pelas crianças, tornam-se seu repertório inicial. É ao longo da educação infantil que as crianças ampliam sua gama de práticas sociais e lingua- gens profundamente relacionadas ao corpo e a seus movimentos, à observação e investigação do mundo, aos jogos de faz-de-conta, de mani- pulação e de regras, e através deles constituem as suas subjetividades. O brincar e a brincadeira emergem como uma das práticas culturais mais constantes na cre- che. Afinal, para os bebês e nas crianças peque- nas, brincar, jogar e criar estão intimamente relacionados, pois se iniciam juntos. O brincar é sempre uma experiência transformativa, que consome um espaço e um tempo e é intensa- mente real para a criança. Brincar é aprender- se brincante nas e das linguagens. Enfim, é a cultura da infância sendo produzida pelas crianças que dela participam através das nar- rativas compartilhadas. Um currículo para a educação infantil pre- cisa enfatizar algumas características que 30 estão presentes no pensamento infantil e afirmá-lo em sua potência constitutiva dos seres humanos, e não desprezá-lo como ir- racional ou não-científico. Não deve propor que as crianças abandonem a sensibilidade para construir a razão, mas justamente deve instigá-las a conviver e potencializar sua imaginação, sensibilidades, sensorialidades, percepções, ações em pensamentos, lógicas, experiências cada vez mais complexas. Nessa concepção de currículo, o professor pre- cisa possuir um amplo repertório de brincadei- ras, poesias, cantos, parlendas, jogos motores, para ensinar e nelas, através delas, propiciar o conhecimento. Os “conteúdos” a serem estu- dados serão respostas complexas às perguntas significativas e não mais fragmentos de conhe- cimentos específicos previamente determina- dos. O professor observa e vê, na ação, o co- nhecimento se configurando, e é então que ele não apenas transmite uma informação, mas provoca o pensamento a continuar pensando. Quando centramos o foco nas crianças e nas suas relações, o currículo emerge e concreti- za aprendizagens, pois as experiências peda- gógicas exigem a participação das crianças, são envolventes e constituem sentido per- meado pela vida. A elaboração de um cur- rículo para os bebês e as crianças pequenas é importante porque nos faz refletir e ava- liar nossas escolhas e nossas concepções de educação, conhecimento, infância e crian- ça, reorientando nossas opções. E essas são sempre históricas, sempre redutoras diante da imprevisibilidade que é viver no mundo. Elaborar um currículo como construção, articulação e produção cultural de conheci- mentos plurais não é apenas uma escolha entre modelos de educação, é uma decisão política acerca do futuro de uma sociedade. Afinal, a creche tem como objetivo favore- cer às crianças a compreensão do contexto em que vivem, assim como imaginar e per- ceber o mundo a partir do olhar do Outro. Esse modo de educar, considerando a arti- culação entre saberes, fazeres, pensares, sentires, define a pedagogia para as crianças pequenas e implica uma educação realiza- da através de práticas de convívio social que tenham solidez, constância e compromisso. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. BURKE, Peter. Uma história social do conheci- mento: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janei- ro: Jorge Zahar, 2003. GOODSON, Ivor. As políticas de currículo e de escolarização. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. SILVA, Tomaz T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2 ed., Belo Horizonte: Autêntica, 2005. SILVA, Tomaz T. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 31 TEXTO 3 oriEnTaçõEs curricularEs E proposTas pEdagógicas Formação de professores e apropriação de modos historicamente elaborados de pensar, sentir e agir na educação infantil Zilma de Moraes Ramos de Oliveira1 A área de Educação Infantil vive hoje uma série de debates sobre sua identidade e função so-cial dentro do sistema de ensino. Essas ques- tões são importantes para orientar a formação de professores para trabalhar com a primeira infância dentro de perfis que respondam mais adequadamente à diversidade de situações presentes quando se pensa na educação insti- tucional de crianças desde o nascimento, fato que tem sido ignorado pela literatura que trata de processos de escolarização. É recente pensar a função da Educação In- fantil, em particular a realizada em creche, como sendo eminentemente educativa. O atendimento de crianças pequenas em ins- tituições diferentes do ambiente doméstico a partir do século XX levou à organização de creches e pré-escolas que, ao longo da his- tória de luta por uma sociedade mais justa vivida em nosso país, tiveram que superar a perspectiva de pensar o cuidar como ativi- dade apenas ligada ao corpo e destinada às crianças mais pobres, e o educar apenas ex- periência de promoção intelectual reservada aos filhos dos grupos socialmente privilegia- dos. Hoje, defende-se que cuidar e educar são dimensões indissociáveis de todas as ações do professor de Educação infantil. Para esclarecer esse ponto, eu diria que o educar e o cuidar têm na Educação Infantil os seguintes objetivos: • oferecer a todas as crianças condições de se sentirem confortáveis em relação a sono, fome, sede, higiene, dor etc. • acolhê-las em seus momentos difíceis, fazê-las sentir-se seguras, orientá-las sem- pre que necessário, mas também alimen- tar sua curiosidade e expressividade. • apresentar-lhes o mundo da natureza, da sociedade e da cultura, aqui incluindo as artes e a linguagem verbal, garantindo- lhes uma experiência bem sucedida de aprendizagem de diferentes linguagens, e apoiá-las na construção de sentidos pes- soais, à medida que vão se constituindo como sujeitos e se apropriando de formas 1 Professora da Universidade de São Paulo. 32 culturais de comportamento de um modo próprio. • trabalhar na perspectiva de que as próprias crianças aprendam a se cuidar mutua- mente, busquem suas próprias perguntas e respostas sobre o mundo, e respeitem as diferenças e construam atitudes de res- peito e solida- riedade aos parceiros. • dar condições às crianças com defici- ências para par ticipar das atividades e interagir com as demais crianças, pontos fun- damentais de seu processo de aprendiza- gem e desen- volvimento. Vejo a formação do professor como um processo de apropriação de modos histori- camente elaborados de pensar, sentir e agir em situações de ensino-aprendizagem, o que inclui atribuir significados a seus com- ponentes segundo uma matriz teórico-ide- ológica. É um processo dinâmico, pleno de desafios e descobertas, que se dá ao longo da vida profissional do docente e o orienta a tomar decisões sobre as melhores formas de mediar a aprendizagem e o desenvolvimen- to dos aprendizes com os quais trabalha. Em relação a esses aprendizes, a Educação Infantil está superando concepções que viam o bebê apenas como alguém a ser pa- paricado e/ou disci- plinado, ou como um aluno em miniatura que, desde cedo, deve ser posto como mero receptor de mensa- gens dos educadores. O que as pesquisas recentes em diferen- tes áreas do conheci- mento têm apontado é que a criança é um ser ativo que, desde o nascimento, interage com parceiros diver- sos que a ajudam a significar o mundo e a si mesma, a realizar um número crescente de diferentes aprendi- zagens e a constituir-se como um ser histó- rico singular. Contudo, as pesquisas que tratam da apren- dizagem e desenvolvimento de bebês em ambientes de educação coletiva pouco têm estado presentes em muitas formações do- O que as pesquisas recentes em diferentes áreas do conhecimento têm apontado é que a criança é um ser ativo que, desde o nascimento, interage com parceiros diversos que a ajudam a significar o mundo e a si mesma, a realizar um número crescente de diferentes aprendizagens e a constituir-se como um ser histórico singular. 33 centes. Nestas, por vezes, são discutidos tó- picos do desenvolvimento dos bebês vistos de forma isolada de seus parceiros e das situ- ações propostas e no seu ambiente familiar. Com isso, o professor em formação constrói seu papel como um substituto familiar a dar atenção individual aos bebês, sem cuidar de oferecer-lhes oportunidades para interagir com companheiros de idade, aspecto funda- mental no ambiente da creche como espaço de educação coletiva. Os processos de formação na área têm assim que redefinir o que significa o papel do profes- sor da primeira infância e o que se entende por ensino na Edu- cação Infantil. Nesta o profes- sor tem que ser sensível às necessidades e desejos de crianças tão pequenas, fortalecer as relações que elas estabelecem entre si, mediar-lhes a realização de atividades signi- ficativas variadas, e atuar como um recur- so de que elas dispõem para se apropriar de formas culturais de falar, sentir e significar o mundo. Suas ações apontam certos signifi- cados e têm que interagir com as ações (e os significados) das crianças. Daí a importância de o professor centrar nelas o seu olhar e vê-las como parceiras ativas, donas de um modo próprio de significar o mundo e a si. O professor busca familiarizar a criança com práticas culturais e com significações histo- ricamente elaboradas para orientar o agir das pessoas e para compreender as situa- ções e os elementos do mundo. Para tanto ele age de uma forma indireta, pelo arran- jo do contexto de aprendizagem das crian- ças em função das atividades propostas: os espaços, os objetos, os horários, os agru- pamentos infantis, os materiais, ou de modo direto, confor- me interage com as crianças e lhes apre- senta modos de fa- zer uma determinada ação, responde ao que elas perguntam, faz- lhes perguntas para conhecer suas respos- tas, as pega no colo quando se emocionam e, por vezes, opõe-se ao que elas estabele- cem para ajudá-las a aperfeiçoar seu modo de sentir as situações. A formação do professor deve ser contínua ao longo de sua trajetória profissional e cen- trar seu foco na reflexão sobre sua prática junto às crianças, como forma de pesquisar modos mais sensíveis de cuidar delas e de educá-las. Conforme o professor busca co- O professor busca familiarizar a criança com práticas culturais e com significações historicamente elaboradas para orientar o agir das pessoas e para compreender as situações e os elementos do mundo. 34 nhecer cada uma das crianças de seu grupo, ele pode aperfeiçoar suas observações sobre elas e discutir o seu olhar sobre as situações cotidianas em momentos de formação con- tinuada na unidade de Educação Infantil. Assim, a formação inicial e continuada do professor que irá trabalhar com as crianças de zero a seis anos deverá garantir-lhe o do- mínio de competências para: • organizar condições de acolhimento, cuidado e aprendizagem das crianças; • interagir com as crianças de modo a mediar-lhes sua aprendizagem e de- senvolvimento; • pesquisar recursos e materiais ade- quados à educação e ao cuidado das crianças; • interagir com as famílias, reconhecen- do-as como parceiras no processo de aprendizagem e desenvolvimento das crianças; • refletir sobre sua prática docente co- tidiana em termos éticos,
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