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Janete Schmidt de Camargo Cesar PSICANÁLISE E A PSICOPEDAGOGIA *Todos os gráficos, tabelas e esquemas são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência. Imagem da capa: © kotoffei // Shutterstock. Informamos que é de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela Lei n.º 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal. Copyright Universidade Positivo 2018 Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300 – Campo Comprido Curitiba-PR – CEP 81280-330 Presidente da Divisão de Ensino Reitor Pró-Reitor Coordenação Geral de EAD Coordenação de Metodologia e Tecnologia Autoria Parecer Técnico Supervisão Editorial Layout de Capa Prof. Paulo Arns da Cunha Prof. José Pio Martins Prof. Carlos Longo Prof. Everton Renaud Profa. Roberta Galon Silva Profa. Janete Schmidt de Camargo Cesar Profa. Denise M. A. Alvaro Bianca de Brito Nogueira Valdir de Oliveira DTCOM DIRECT TO COMPANY S/A Análise de Qualidade, Edição de Texto, Design Instrucional, Edição de Arte, Diagramação, Imagem de Capa, Design Gráfico e Revisão Textual Ícones Afirmação Contexto Biografia Conceito Esclarecimento Dica Assista Curiosidade Exemplo Sumário Apresentação ....................................................................................................................9 A autora ...........................................................................................................................10 Capítulo1 Admirável Homem Novo: perspectivas a partir do advento da psicanálise ....................11 1.1 O advento da psicanálise ...........................................................................................12 1.1.1 Psicologia e psicanálise: o contexto histórico ..........................................................................................................14 1.1.2 Freud: inspirações e aspirações ...............................................................................................................................15 1.1.3 A trajetória ..............................................................................................................................................................17 1.1.4 A interpretação dos sonhos ................................................................................................................................... 20 1.2 O sujeito psicológico a partir da psicanálise ..............................................................22 1.2.1 A descoberta do inconsciente ................................................................................................................................ 22 1.2.2 A sexualidade infantil ............................................................................................................................................ 23 1.2.3 Os instintos .............................................................................................................................................................24 1.2.4 A ansiedade ........................................................................................................................................................... 25 1.2.5 O luto e melancolia ................................................................................................................................................ 25 1.3 A metodologia da psicanálise ...................................................................................26 1.3.1 Os estudos sobre a histeria .................................................................................................................................... 27 1.3.2 As relações entre psicanálise e psicologia ............................................................................................................. 27 1.4 As contribuições da psicanálise .................................................................................28 1.4.1 A validação da metodologia psicanalítica ............................................................................................................. 29 1.4.2 As críticas à psicanálise ......................................................................................................................................... 29 Referências ......................................................................................................................31 Capítulo 2 A estrutura do aparelho psíquico ....................................................................................33 2.1 Psicanálise e personalidade .......................................................................................33 2.1.1 Os instintos ............................................................................................................................................................. 35 2.1.2 Os níveis de personalidade: id, ego e superego .................................................................................................... 36 2.1.3 Ansiedade e repressão ........................................................................................................................................... 37 2.1.4 O Complexo de Édipo ............................................................................................................................................. 38 2.2 Os estágios psicossexuais do desenvolvimento da personalidade ............................41 2.2.1 Fase anal e fase oral ................................................................................................................................................41 2.2.2 Fase fálica .............................................................................................................................................................. 42 2.2.3 Período de latência ................................................................................................................................................ 43 2.2.4 Fase genital............................................................................................................................................................ 43 2.3 Os mecanismos de defesa freudianos .......................................................................44 2.3.1 Definições .............................................................................................................................................................. 44 2.3.2 Implicações............................................................................................................................................................ 44 2.3.3 Repressão e instinto .............................................................................................................................................. 47 2.3.4 As pulsões ............................................................................................................................................................. 48 2.4 Pensamentos neofreudianos .....................................................................................49 2.4.1 A análise infantil de Anna Freud ............................................................................................................................ 49 2.4.2 A teoria de relação entre os objetos: Melanie Klein .............................................................................................. 50 2.4.3 Jacques Lacan e os sintomas da família na criança ...............................................................................................51 2.4.4 A mãe suficientemente boa de D.W. Winnicott ....................................................................................................52 Capítulo 3 A criança e a aprendizagem: contribuições da psicanálise .............................................55 3.1 Condições intrínsecas e extrínsecas da aprendizagem ..............................................56 3.1.1 O biológico ............................................................................................................................................................. 58 3.1.2 O papel do meio .................................................................................................................................................... 60 3.1.3 Os estímulos ...........................................................................................................................................................61 3.2 Condições cognitivas da aprendizagem ....................................................................62 3.2.1 A aprendizagem segundo Freud ........................................................................................................................... 63 3.2.2 Organizar, classificar e generalizar ........................................................................................................................ 64 3.3 Condições psicológicas da aprendizagem .................................................................66 3.3.1 O desejo de aprender ............................................................................................................................................. 66 3.3.2 Individualizar e diferenciar: subjetivar ................................................................................................................... 67 3.3.3 O papel do inconsciente na aprendizagem ........................................................................................................... 68 3.4 O lugar da família na aprendizagem da criança ........................................................68 3.4.1 As dinâmicas familiares e suas influências sobre o aprender ................................................................................ 68 3.4.2 Aprender por quê? Para quem? O papel do outro ................................................................................................ 69 Referências ......................................................................................................................71 Capítulo 4 Contribuições da psicanálise à psicopedagogia ..............................................................73 4.1 O enlace entre a aprendizagem e o desejo ................................................................73 4.1.1 Estrutura desejante versus estrutura cognitiva ...................................................................................................... 75 4.1.2 Emoção e aprendizagem ....................................................................................................................................... 77 4.2 Os fundamentos da psicanálise no diagnóstico psicopedagógico ............................79 4.2.1 A psicanálise na construção do “olhar” psicopedagógico ..................................................................................... 79 4.3 Os fundamentos da psicanálise na intervenção clínica e institucional ......................80 4.3.1 Os idiomas de quem aprende e de quem ensina .................................................................................................. 81 4.3.2 Os idiomas do ensinante (família e escola) ........................................................................................................... 82 4.3.3 Os fundamentos da psicanálise na psicopedagogia clínica .................................................................................. 84 4.3.4 Os fundamentos da psicanálise na psicopedagogia institucional ......................................................................... 84 4.4 Pontos para reflexão ..................................................................................................85 4.4.1 A subjetividade do processo de ensino e aprendizagem ...................................................................................... 85 4.4.2 Os conteúdos inconscientes do não aprender ....................................................................................................... 86 4.4.3 As possibilidades e os limites da psicanálise na psicopedagogia ......................................................................... 87 Referências ......................................................................................................................88 A capacidade de aprender nasce com o ser humano. Mas o que parece natural para a maioria pode, muitas vezes, se mostrar complicado para outros e isso provém, em parte, das exigências cada vez maiores da sociedade contemporânea. Um exemplo é o aprendiza- do da língua escrita, invenção humana que requer muitas habilidades intelectuais para ser compreendida e para o qual muitas pessoas apresentam dificuldades. A ciência da psicopedagogia surge neste momento, buscando compreender es- ses processos da aprendizagem humana, identificando seus desvios e as dificuldades desse não aprender. Cabe ao psicopedagogo ter uma visão abrangente do homem em suas múltiplas facetas, nas quais afeto e cognição se encontram entrelaçados. Afinal, as pessoas nascem de uma relação dual e são inseridas em um seio familiar que inter- fere no que ela é e no que ela será. A psicanálise é um campo clínico de investigação da psique humana que se preo- cupa em compreender a relação entre os desejos inconscientes e os comportamentos e sentimentos vividos pelas pessoas, os quais refletem, direta ou indiretamente, na aprendizagem. Este livro se propõe ao estudo e à discussão dos temas relacionados a aos processos inconscientes que interferem na aprendizagem. Apresentação Aos meus filhos, Renata e Matheus: sonho, desejo, realização, inspiração e orgulho. A autora A professora Janete Schmidt de Camargo Cesar é Mestre em Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e especialista em Psicopedagogia e Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUCCAMP). É Graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário Anhan- guera e Bacharel em Ciências Econômicas pela Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul (IMES). Currículo Lattes: <lattes.cnpq.br/5534028813356029> 1 Admirável Homem Novo: perspectivas a partir do advento da psicanálise A concepção que temos do homem hoje passou por muitas transformações ao longo da história e envolveu grandes áreas das ciências, como a Filosofia e a Astronomia. Mas foi a partir do século XVI, com a visão heliocêntrica de Copérnico, de que a Terra não é o centro do universo, que a ciência avançou para a era moderna. Isso revolucionou o que até então se entendia por ser humano, derrubando de vez a visão aristotélica e seu modelo geocêntrico vigente até então, que acreditava que o homem era o centro do universo e a maior criação de Deus. Descobertas como a do telescópio e a do microscópio, que propiciaram a visuali- zação de outros planetas e a descoberta da célula e da fecundação do óvulo pelo esper- matozóide, ajudaram a corroborar empiricamente a ideia do heliocentrismo. A teoria da criação, predominante até então, foi posta à prova para oportunizar o surgimento de novas ideias sobre a origem e a razão da natureza humana, como o evolucionismo. Essas descobertas da época acabaram por influenciar o filósofo francês René Descartes (1596-1650), que, mais tarde, ficaria conhecido pela frase “Penso, logo existo”, apregoando a concepção de um ser humano dividido entre consciência e matéria. A expressão bateu de frente com o que acreditavam as autoridades essen- cialmente religiosas, já que contestava a verdade vinda unicamente de Deus. A ideia dualista deseparação de mente (ou espírito) e corpo revolucionou os estudos da fisio- logia e permitiu avanços no estudo da anatomia humana. Da Idade Moderna à Contemporânea, o mundo avançou ainda mais, em uma velocidade nunca imaginada. Dentro da perspectiva das ciências humanas, a desco- berta e a comprovação científica do inconsciente, por Sigmund Freud, ganha desta- que especial por revolucionar a maneira como as doenças mentais eram pensadas e tratadas no início dos anos 1900. Cem anos depois, ela continua atual e vem sendo investigada, também, sob o olhar da ciência empírica. Em 2016, a Revista Mente e Cérebro publicou uma edição temática que comemorou os cem anos de advento da psicanálise. Batizada de Inconsciente, um estranho na sua cabeça, a edição apre- senta uma coletânea de artigos que traz provas empíricas da existência do inconsciente por meio de pesquisas atuais realizadas por neurocientistas em grandes centros de pesquisa do mundo. Psicanálise e a PsicoPedagogia 12 Sendo assim, estudaremos o percurso que a psicanálise tomou desde o seu sur- gimento até o impacto na psicologia e na importância da compreensão do sujeito em todas as suas dimensões, passando pelos principais conceitos de Freud e sua obra ini- cial A interpretação dos sonhos. 1.1 O advento da psicanálise O hábito de refletir sobre a natureza humana já nasceu com o homem. Nos mais antigos registros pré-históricos que se têm notícia, no século IV a.C., já se encontram esboços de religiosidade e conside- rações do filósofo grego Aristóteles sobre existên- cia do ser humano. Pensar sobre si mesmo, sobre as ações e comportamentos próprios, é uma caracte- rística inerente a cada uma das pessoas e a vida em sociedade colabora com novas indagações e novas respostas a todo momento. A psicanálise tem como marco inicial a publica- ção da obra A interpretação dos sonhos, do médico neurologista Sigmund Freud, em 1900. Para entender sua concepção, bem como alguns conceitos presentes nos demais trabalhos do autor, é necessário compreender a época em que os mesmos foram concebidos, bem como os acontecimentos e estudos anteriores que constituíram as referências e o pano de fundo sob o qual a psicanálise pôde se desenvolver. Naquele período, o paradigma teórico dominante era o positivismo de Auguste Comte (1798-1857), que encarava o homem por um viés sociológico e uma natureza essencialmente social. Essa epistemologia, que trazia uma forte característica filosó- fica e política, proveniente ainda do Iluminismo e das crises morais e sociais do fim da Idade Média, somadas ao início da industrialização e sofrendo as consequências da Revolução Francesa, consistia na observação dos fenômenos naturais e sociais como oposição ao racionalismo e ao idealismo predominante até então. A doutrina negava à ciência qualquer possibilidade de investigação neste sentido, pois considerava esse tipo de pesquisa inacessível e sem utilidade. Era mais válido, por exemplo, voltar-se ao estudo e descoberta das leis pelo fato delas serem mais relevantes à vida social. Partindo desses preceitos, a medicina era quase que inteiramente determinada em bases biológicas: não se cogitava a existência das doenças psicossomáticas, por exem- plo, devido ao pouco interesse que havia em psicologismos, à época relegados à filoso- fia, visto que os fenômenos psicológicos não podiam ser mensurados ou comprovados © H ar is v yt ho ul ka s // Sh ut te rs to ck Psicanálise e a PsicoPedagogia 13 quantitativamente. Neste contexto, a psiquiatria estava alocada a um ramo da neuro- logia e os neuropsiquiatras da época dispunham de recursos bastante escassos para trabalhar, como o emprego de ervas medicinais, hidroterapia, estímulos elétricos (dife- rentes da terapia de eletrochoque, instituída anos mais tarde) clinoterapia (descanso em leito), eletroconvulsoterapia (técnicas de estímulos elétricos para induzir uma convulsão a fim de restabelecer a normalidade do funcionamento cerebral) e, em casos extremos, a indução de um estado de coma mediante o emprego de insulina. Nessa época teve início também o emprego de calmantes e o uso experimen- tal da hipnose com fins terapêuticos, cujo precursor era o neurologista francês Jean Martin Charcot (1825-1893), considerado o fundador da neurologia moderna (ao lado do também neurologista francês Guillaume Duchenne), e o primeiro médico a descre- ver os sintomas da histeria. O contato pioneiro de Freud com a técnica da hipnose ocorreu por meio do médico neurologista Josef Breuer (1842-1925), que relatou-lhe o caso em que estava trabalhando. A paciente, Bertha Pappenheim, conhecida simplesmente pelo pseudô- nimo de Anna O., era uma pessoa histérica, cuja neurose era fruto de traumas sexuais ocorridos na infância, e seu tratamento foi baseado na técnica da hipnose. A história de Anna O. viria a se tornar conhecida na obra Comunicação preliminar, publicada em 1893 por Breuer e Freud. Ela trazia os resultados da metodologia aplicada na paciente e viria a se tornar o primeiro capítulo do icônico livro Estudos sobre histeria, publicado novamente pelos dois naquele ano. O interesse de Freud no assunto o fez buscar uma bolsa de estudos para estagiar com Charcot na escola Saltipiètre, em Paris, entre 1885 e 1886. Posteriormente, em 1889, ele estudou diretamente com os médicos franceses Ambroise-August Liebault (considerado o pai da hipnoterapia, um trabalho terapêutico com base na hipnose) e Hypollite Bernheim (autor de obras sobre a metodologia da hipnose), com quem aprendeu sobre a chamada psicose pós-hipnótica, comportamento que passou a se manifestar em pessoas que haviam sido submetidas à hipnose e, depois de despertas e conscientes, continuavam a obedecer as ordens absurdas que tinham recebido durante o estado hipnótico. Essas experiências levaram Freud a empregar o método do hipnotismo em suas pacientes histéricas, técnica que abandonou anos mais tarde após perceber que não promovia a cura e que os sintomas voltavam a emergir. Breuer também seguiu pelo mesmo caminho e abandonou a técnica, mas suas razões eram diferentes: o que ele vivenciou com Anna O. viria a ser descrito, na psicanálise, como transferência. Como o Psicanálise e a PsicoPedagogia 14 fenômeno ainda não era uma reação conhecida, Breuer ficou assustado e saiu do caso, passando-o para Freud, apesar de não concordar com a orientação recente do colega, cada vez mais focada na sexualidade. A transferência é um fenômeno que ocorre na relação paciente/terapeuta quando o dese- jo do paciente se apresenta atualizado e com uma repetição de modelos infantis, causando a impressão de que está apaixonado pelo analista. O que acontece, na verdade, é que ele está transferindo um sentimento de alguém significativo de sua infância para a figura do terapeuta. Assim, Freud começou a experimentar a obtenção da livre associação de pen- samentos sem a utilização da hipnose. Por meio de um método coercitivo que havia criado, ele pressionava a testa das pacientes com os dedos e as obrigava a relatar as lembranças que lhes vinham involuntariamente à mente. Acreditava, com isso, que poderia descobrir quais acontecimentos estariam sendo reprimidos a ponto de causar os sintomas histéricos. Freud insistiu nesse método até que uma paciente, de nome Elizabeth Von R., alegou que conseguiria fazer essas associações livres de forma mais eficiente sem as pressões mecânicas e psicológicas do médico. Isso fez com que Freud percebesse a existência de barreiras que impediam as pacientes histéricas de recordar seus traumas e começou a cogitar a possibilidade de haver resistências ligadas a for- ças mais profundas (inconscientes, no caso) que representavam não lembranças, mas desejos e sentimentos reprimidos ou proibidos. Foi a partir daí que a psique passou a ser entendidacomo fruto de um conflito entre forças instintivas e forças opressoras. A histeria, por sua vez, era uma doença constituída por um conjunto de reações ou quadros clínicos muito variados, que che- gou a ser confundida com a epilepsia pelo fato de escapar à esfera da consciência. Essa nova perspectiva de existência de uma dinâmica inconsciente com leis próprias e de definição de uma nova estrutura do aparelho psíquico fez Freud inaugurar a psicanálise enquanto ciência, dotada de arcabouço teórico próprio. 1.1.1 Psicologia e psicanálise: o contexto histórico A busca da cura para as doenças mentais datam do Egito Antigo, de onde eram realizadas trepanações cranianas, que consistiam em perfurações do cérebro sem a utilização de anestésicos como tentativa de sanar doenças supostamente localizadas dentro do crânio. Já na Idade Média, período marcado pela mentalidade mística e de estudos dos demônios (demonológica), há indícios de que os doentes mentais eram excluídos da sociedade por serem considerados vítimas de possessões e feitiços. Em ambos os casos, a “cura” era realizada por bruxas, xamãs ou sacerdotes, que consta- vam no topo de suas hierarquias sociais. Psicanálise e a PsicoPedagogia 15 Em meados do século XVIII, o médico e magnetizador Franz Anton Mesmer pre- gava a existência do chamado magnetismo animal, também conhecido como fluido vital, descrito por ele como uma condição específica da vibração do fluido universal (movimento de um ponto que move-se alternadamente em volta de um elemento de referência), do qual todo ser humano seria possuidor em estado latente. Mesmer afir- mava ser capaz de trazer esse magnetismo à tona por meio de uma série de movimen- tos cênicos aplicados a grupos de pessoas, utilizando este método como meio de cura para doenças. Ele magnetizava, vários corpos para restabelecer, em conjunto, o equilí- brio de cada um. Com o passar dos anos, esse método ficou conhecido como mesme- rismo, uma forma de precursão do hipnotismo. As doenças mentais só foram afastadas do campo místico e aproximadas do campo médico após a Revolução Francesa (1789-1799), quando os médicos franceses Philippe Pinel, especializado em doenças mentais, e Jean-Étienne Dominique Esquirol, especializado no estudo da loucura e educando de Pinel, promoveram uma grande reforma hospitalar que passou a tratar os doentes mentais com dignidade e sem a bru- talidade que existia até então. Foi o trabalho dos dois que possibilitou, mais tarde, o desenvolvimento dos estudos de Charcot, Duchennne, Breuer e Freud. 1.1.2 Freud: inspirações e aspirações Sigmund Freud nasceu em 1856 na região da Morávia, à época parte do Império Austro-Húngaro. Conhecido pela enorme inteligência que manifestava desde jovem, Freud recebeu ajuda financeira dos pais para estudar, apesar da origem humilde da família, que possuía poucos recursos. Freud ingressou na faculdade em 1873, então com 17 anos, mudando sua opção de graduação de Direito para Medicina na última hora. Em 1877, após uma série de experimentos sem grande destaque envolvendo o sistema reprodutório de enguias-macho, ele começou trabalhar com Ernst Brücke em ativida- des que envolviam a dissecação de cérebros humanos e permitiam a verificação de uma série de similarida- des entre a estrutura cerebral do homem e do réptil, o que comprova os estudos (na época, recentes) de Charles Darwin sobre a evolução das espécies. Mais ou menos nessa época, Freud conhece Martha Bernays, por quem se apai- xona. O casamento com ela o faz abdicar do trabalho no laboratório, devido à situa- ção financeira precária da família, e buscar emprego no Hospital Geral de Viena. © E ve re tt - A rt // S hu tt er st oc k Psicanálise e a PsicoPedagogia 16 Foi lá que Freud iniciou seus estudos e pesquisas com o alcaloide cocaína e suas pro- priedades anestésicas, até conhecer os experimentos de Charcot, com quem foi tra- balhar. Foi nesta época que ele se interessou pelo estudo da histeria em homens e a dissociação da mente proporcionada pela hipnose, cuja base já havia sido apreendida com o médico Josef Breuer, anos antes. Como vimos, Breuer compartilhou com Freud o método de tratamento com base hipnótica que estava sendo utilizado com uma paciente histérica, Anna O. A série de sessões de hipnose aplicada ia fazendo a paciente lembrar gradativamente de diver- sas ocorrências traumáticas, obtendo o alívio dos sintomas. Breuer denominou esse método de catarse, ou ab-reação, e, hoje, ele também é chamado de cura pela fala, termo utilizado pela própria Anna O. para se referir a seu tratamento. As influências combinadas de Breuer e Charcot foram fundamentais para que Freud desenvolvesse o que mais tarde seria conhecido como psicanálise. Catártico é método de psicoterapia em que o efeito terapêutico visado é uma purgação (catharsis), ou seja, uma descarga adequada dos afetos patogênicos. O tratamento permite ao sujeito evocar e até reviver os acontecimentos traumáticos a que esses afetos estão ligados, e ab-reagi-los (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998). Em 1886, Freud se casa com Martha, com quem viria a ter seis filhos. Mais ou menos nessa época, começa a publicar os primeiros artigos que culminariam na cria- ção da psicanálise. Dez anos mais tarde, ele perde o pai, fato que o faz ganhar um novo hábito: anotar e analisar seus próprios sonhos, constituindo a matéria-prima do livro A interpretação dos sonhos, considerado o marco da psicanálise enquanto ciência. Em 1905, Freud publica a obra O caso Dora, sobre uma paciente atendida anos antes, cujo tratamento aplicado fracassou. Isso levou Freud a uma profunda reflexão sobre sua técnica e sobre a existência das transferências. Em 1914, a Primeira Guerra Mundial exerceu influência significativa nas pesquisas de Freud, na medida em que o tratamento das chamadas neuroses de guerra o levaram a desenvolver os concei- tos das pulsões de morte e de vida, explanadas no clássico Além do princípio do prazer, publicado em 1920. Assista ao documentário Freud, análise de uma mente, produzido pelo The Biography Channel e pela Log On Filmes (1995), que narra a vida do neurologista e destaca a influência que a Primeira Guerra Mundial teve sobre a teoria psicanalítica. Psicanálise e a PsicoPedagogia 17 Freud morreu de câncer no palato em 1939, aos 83 anos, pouco tempo após per- der quatro das cinco irmãs para os campos de concentração nazistas. A luta de Freud contra o tumor foi longa: após passar por 33 cirurgias, ele teria solicitado a seu médico uma superdose de morfina. 1.1.3 A trajetória No início do século XX, Freud já estava consagrado como psicanalista especiali- zado no tratamento da histeria. Em 1900, com a publicação do livro A interpretação dos sonhos, sua teoria geral do comportamento evoluiu e continuou evoluindo, já que ele se colocava como sujeito de seu próprio experimento. A partir dessa etapa, é possível separar a evolução histórica da psicanálise em cinco estágios: Teoria do trauma Freud ressalta que até a década de 1880, a histeria não possuía uma definição precisa. Tratava-se apenas de uma série de sintomas extremamente difíceis de definir (ou seja, qualquer conjunto de sintomas poderia ser classificado como histeria) e era comumente associada à simulação feminina ou mesmo à possessão demoníaca. Sua causa era constantemente atribuída a algum tipo de lesão nos órgãos sexuais femini- nos, já que o fenômeno não era observado em homens. Os estudos de Charcot representam um marco no avanço do diagnóstico da doença, a partir do momento que demonstraram que, por trás das crises histéricas das pacientes, havia uma série de acontecimentos traumáticos encobertos de alguma forma. Nesse contexto, Freud desenvolve a noção de trauma como agente causador de patolo- gias. Ele atribuiu as chamadas lembrançasalucinatórias como ponto focal de um ataque histérico, já que o conteúdo dessas lembranças seria um trauma capaz de fazer o ataque eclodir ou, então, uma lembrança que, em função de seu contexto, acabou se tornando traumática. Porém, é importante ressaltar que, nessa época, embora Freud já reconhe- cesse a importância do trauma na psicogênese da histeria, ele ainda considera que é a predisposição congênita das pacientes que determina a ocorrência ou não do quadro his- térico. Aos poucos, o conceito de trauma começa a se sofisticar, sendo concebido como ausência de ab-reação de um afeto que permanece retido, ou seja, um acontecimento impactante cuja energia psíquica referente a ele não foi devidamente descarregada. De forma simplificada, o trauma consiste na ausência de resposta que propicie alívio do sujeito frente a acontecimentos danosos, de maneira que suas memórias ficam carrega- das de afeto não descarregado, e agem na psique como um verdadeiro corpo estranho. Em consequência, Freud chega à conclusão de que não apenas a histeria, mas tam- bém as demais neuroses teriam como causa imediata esse represamento de energia Psicanálise e a PsicoPedagogia 18 psíquica. Assim, em casos de neurastenia (um quadro clínico de fadiga física que tem ori- gem nervosa e manifestações clínicas, como dores de cabeça, prisão de ventre, desinte- resse sexual, entre outras) e neurose de angústia (trata-se de uma neurose que, segundo Freud, é uma neurose atual, com causas recentes, principalmente caracterizada por uma acumulação de excitação sexual que se transforma imediatamente em sintoma, sem ter mediação psíquica), os traumas seriam ocasionados pelo aprisionamento exclusivo da energia de origem sexual (denominada libido), ao passo que, nas demais neuroses trau- máticas, haveria também origem em outros acontecimentos traumáticos. Partindo do pressuposto de que o conflito da neurose seria causado pela repres- são dos eventos traumáticos, Freud concluiu que os neuróticos sofrem de reminis- cências, e que a cura para esses sintomas consistiria em lembrar o que a psique se esforçava para encobrir. Na época de Freud, esse ‘lembrar’ consistia no processo catár- tico, por meio da verbalização realizada durante o processo de livre associação. Com o passar do tempo, a descoberta da necessidade de quebrar mecanismos repressores ocasionou o surgimento de dois novos elementos: as resistências incons- cientes e o imperativo de interpretações por parte do analista. Teoria topográfica A teoria do trauma perdurou até 1897, quando Freud concluiu que ela não era sufi- ciente para elucidar os mistérios da psique humana. Ele havia percebido que os relatos das pacientes histéricas não eram fidedignos e, sim, combinados com uma série de fan- tasias inconscientes, oriundas de desejos não expressos. Esses desejos, inegavelmente presentes, mas não revelados por serem considerados proibidos, levaram o médico a propor a divisão da mente em três esferas: consciente, pré-consciente e inconsciente. A publicação de A interpretação de sonhos comprova a presença de manifestações inconscientes, disfarçadas por meio de imagens e metáforas absorvidas do cotidiano e das referências do sujeito. A teoria da interpretação de sonhos pode ser resumida pelo postulado todo sonho e sintoma tem um umbigo que o conduz ao desconhecido do incons- ciente (ZIMERMAN, 1999, p. 24). Teoria estrutural A evolução nos estudos da dinâmica da psique, somada à compreensão da dinâ- mica da censura dos sonhos pela esfera consciente, fizeram Freud compreender que a mente se estrutura por meio de uma interação contínua e sistemática entre as esferas consciente, inconsciente e a realidade externa. Assim, em 1923, o lançamento da obra O ego e o id marca o início da concepção do aparelho psíquico enquanto estrutura tri- parte, composta por id (pulsões), ego (representações e mediações) e superego (regu- lação moral), como veremos mais adiante. Psicanálise e a PsicoPedagogia 19 FORMAÇÃO DO INCONSCIENTE De acordo com Freud, o inconsciente humano é formado por três elementos que são necessários para que haja equilíbrio e regulação do comportamento do individuo: O Id instância onde se encontram os instintos e pulsões relacionados ao prazer inconsciente, como os desejos carnais, materiais e sexuais. O Ego lugar do equilíbrio do Id e do Superego. Superego parte destinada à regulação moral. Preocupa-se em manter a mente alerta aos desvios exagerados do Id. Conceituações sobre narcisismo O narcisismo não foi elaborado como teoria por Freud, mas suas conjecturas sobre o tema abriram portas para que outros estudiosos se aprofundassem na com- preensão do chamado psiquismo primitivo. De acordo com a linha de pensamento mais aceita por esses pensadores, o paradigma dominante para a psicanálise em rela- ção ao narcisismo é onde está narciso, édipo deve estar. Dissociação do ego Freud não esqueceu as dissociações mentais de pacientes histéricas que presen- ciou durante os anos que estudou com Charcot e o avanço de seu trabalho com todos os tipos de pacientes o fez concluir que essa dissociação não era restrita aos casos de neurose e, sim, aplicável à mente humana de maneira universal. Essa cisão do aparelho psíquico tem como resultado, segundo Freud, a formação de núcleos psíquicos inde- pendentes, tema abordado por ele nas obras Fetichismo (1927) e Clivagem do ego no processo de defesa (1940). Em seus últimos anos de contribuição acadêmica, Freud se aprofundou nessa temática por meio do estudo da cisão ativa, que ocorre no próprio âmago do ego, em vez de ocorrer apenas em suas instâncias psíquicas. Tais considera- ções também contribuíram para que os próximos autores avançassem na temática dos conflitos intrapsíquicos. Os autores pós-freudianos Freud criou a psicanálise praticamente sozinho, sendo responsável por pelo menos seis descobertas diferentes: O inconsciente dinâmico, motivador da postura consciente do indivíduo; A livre associação de ideias; Psicanálise e a PsicoPedagogia 20 A relevância dos sonhos enquanto agentes reveladores do inconsciente; A transferência; A sexualidade infantil consequente da cena primária e do Complexo de Édipo; As dualidades do psiquismo, apresentadas sob a forma de pulsões (de morte e de vida). Seu ostracismo acadêmico foi mantido até 1906, ano a partir do qual passou a reunir-se com pensadores brilhantes, como Carl Gustav Jung, Hans Sachs, Alfred Adler, Karl Abraham, Otto Rank, Sandor Ferenczi e Wilhelm Steckel, em colóquios que debatiam casos clínicos e aspectos mais recentes do desenvolvimento da teo- ria psicanalítica. Em 1908 foi realizado o 1º Congresso Internacional de Psicanálise, inicialmente batizado de Encontro de Médicos Freudianos, ao qual compareceram 14 pessoas. Em 1910, ano da 2ª edição do evento, os 60 médicos participantes criaram a Associação Internacional de Psicanálise (IPA), que, por sugestão do próprio Freud, teve Jung como primeiro presidente. Esses congressos psicanalíticos são realizados até hoje e reúnem cerca de dez mil psicanalistas do mundo todo a cada realização. Para agregar os colaboradores que se mantiveram fiéis ao comparecimento no congresso, foi criado um comitê, nos moldes de uma sociedade secreta, que tinha como regras a total fidelidade de seus membros e o compromisso de não questionar publicamente temas fundamentais da teoria psicanalítica sem antes haver um con- senso entre seus membros. Isso, segundo Zimerman, era uma forma de proteger o legado deixado por Freud, mantendo-se “ampliadores, transformadores e criadores, a partir das concepções originais de Freud” (ZIMERMAN, 1999, p.25). 1.1.4 A interpretação dos sonhos Antes de Freud, a inquietação humana a respeito dos sonhos estava destinada a místicos e charlatões. Até hoje, na verdade, muitas culturas ainda os enxergam comsuperstição, o que dá margem a todo tipo de especulações. O assunto só se profissiona- lizou com a publicação da obra A interpretação dos sonhos, que fez nascer a psicanálise. A concepção do conteúdo surgir pela análise dos sonhos do próprio Freud, a partir da Psicanálise e a PsicoPedagogia 21 morte de seu pai, em 1896. Ele, então, passou a anotar em um bloco os sonhos que havia tido ao longo da noite, analisando-os a partir do método da associação livre, método em que o paciente é orientado a dizer o que lhe vem à mente, sem permitir nenhuma orien- tação consciente a respeito das suas ideias. Na época, esse ato de Freud foi considerado muito corajoso pelo fato de se tratar de uma exposição de seus sentimentos. O livro, publicado logo após a aplicação do método, apresentou mais do que uma técnica de interpretação dos sonhos: construiu, na verdade, um modelo do aparelho psíquico com base psicológica e não mais baseado na neurofisiologia, o que trouxe relevância para as pesquisas da época. Segundo Freud, os sonhos limpam e organizam as informações e vivências e pre- param o “sistema” para o dia seguinte. Isso ocorre durante o sono REM (movimento rápido dos olhos), auxiliando o corpo a descansar e ajudando o sistema corporal e ner- voso a estar satisfeito e pronto para a vigília. Desta forma, os sonhos constituem-se na menina dos olhos da psicanálise, já que representam a necessidade da realização dos desejos manifestos pelo inconsciente. Para Freud, o sonho pode ser dividido em conteúdo manifesto e conteúdo latente. O primeiro se refere à forma fantasiada, imaginada e simbolizada, tal qual como ele aparece na consciência. O segundo, por sua vez, é o conteúdo do desejo inconsciente, que se manifesta por meio de símbolos que só têm significado para o sonhador. Costuma ser mais profundo e significativo e possuir um alto teor sexual. Eu gostaria que os senhores observassem, também, que a análise dos sonhos nos tem mostrado que o inconsciente faz uso de um simbolismo particular, especialmente para re- presentar complexos sexuais. Esse simbolismo varia em parte de indivíduo para indivíduo, mas em parte é determinado, de uma forma típica, e parece coincidir com o simbolismo que, conforme suspeitamos, subjaz aos nossos mitos e contos de fadas. Não parece im- possível que essas criações do espirito popular encontrem uma explicação com a ajuda dos sonhos (FREUD, 1909, p. 34-36). Todo conteúdo latente do sonho pode ser transformado em manifesto, com ima- gens reais, pensamentos e conteúdo contido dentro do sonho que a pessoa lembra ao acordar. Isso ocorre depois que ele passa por um dos cinco mecanismos específicos: a condensação, o deslocamento, a dramatização, a elaboração secundária e a simboliza- ção, sem sequência e sem exigência. Na condensação, o sonho evoca associações, acontecimentos e emoções do dia ou, então, pertencentes a diferentes épocas e circunstâncias do passado. Neste caso, uma série de associações é condensada em imagens concretas, como se várias coisas representassem uma só, como uma metáfora da linguística. Psicanálise e a PsicoPedagogia 22 Já o deslocamento ocorre quando um elemento do sonho é colocado em pri- meiro plano a fim de afastar a carga afetiva do objeto real para outro objeto, deslo- cando o foco primordial. Trata-se de um fenômeno impressionante, segundo Freud, que pode resultar na transmutação dos valores psíquicos, ou seja, numa total des- centração do foco do sonho. A dramatização, por sua vez, implica na ação do sonho propriamente dita, que consiste na capacidade do indivíduo imaginar tudo aquilo que racionalizou durante o dia, transformando esses conteúdos em imagens. É a relação de papéis ocupados pelo mesmo ator (sonhador), que, no sonho, pode agir e atuar como se fosse outra pessoa, a fim de tentar elaborar algo que lhe incomoda. No passo seguinte, a elaboração secundária é o mecanismo que elabora uma história coerente e interligada a partir de pensamentos latentes multiformes. Surge de mecanismos mais consistentes da psique e se utiliza de material consciente para dar a impressão de uma história lógica, buscando compreender e aceitar o que está reprimido no nível do desejo. Na simbolização, as imagens presentes no sonho se relacionam com outras imagens, fazendo a pessoa sonhar com algum objeto que está mascarado na forma de um símbolo cujo significado diz respeito a algo que a pessoa viveu ou desejou. 1.2 O sujeito psicológico a partir da psicanálise Até o surgimento da psicanálise, a filosofia e as demais ciências estavam preocu- padas em definir o sujeito pela razão e encontrar seu pensamento lógico. No entanto, as descobertas de Freud a respeito dos conteúdos inacessíveis ao sujeito, mas respon- sáveis por muitas das patologias que o afligiam, fizeram surgir uma nova concepção do homem: um ser complexo com uma estrutura psíquica elaborada para protegê-lo das intempéries dos relacionamentos sociais. Surge então o sujeito da psicanálise, racional e emocional, mas que existe também onde não pensa, em seu inconsciente. É o que estudaremos a partir de agora. 1.2.1 A descoberta do inconsciente Baseado na sua experiência clínica, Freud acreditava que a principal fonte das preocupações emocionais do ser humano estava nas experiências traumáticas que ocorriam na primeira infância e eram reprimidas ao longo dos anos, assumindo a forma de conteúdos inconscientes. A descoberta do inconsciente, considerada revolucionária para a época, foi pro- vavelmente a contribuição mais significativa de Freud para a ciência moderna. Ele o dividiu em três camadas (o id, o ego e o superego), dominadas por vontades primitivas que estão ocultas e se manifestam por meio dos sonhos, dos atos falhos ou das ações espontâneas do sujeito, pelo fato de não serem aprovadas pela sociedade. Psicanálise e a PsicoPedagogia 23 Segundo Freud, o inconsciente é o local onde estão guardados pensamentos e senti- mentos com os quais as pessoas não conseguem lidar. Trata-se de um processo denominado recalque, que o indivíduo experimenta pensa- mentos e sentimentos que, embora não conse- gue retirar da mente, também não consegue suportá-los pelo fato de serem muito dolorosos. Então, eles são enviados para o inconsciente em forma de recalque e virão à tona em forma de sonhos, atos falhos e etc. Em seu trabalho clínico, Freud percebeu que a maioria dos conflitos estava ligado a problemas relacionados à sexualidade na infância. Por esse motivo, ele elabora o desen- volvimento psicossexual do ser humano a partir da psicanálise, como veremos a seguir. 1.2.2 A sexualidade infantil Na época de Freud, a infância era uma descoberta recente. A especificidade da criança, suas necessidades e particularidades, se alicerçaram a partir da publicação da obra O Emílio, ou da educação, do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, em 1762, considerada um marco para a descoberta da infância. Antes disso, a criança era enten- dida como um adulto em miniatura: vestiam-se como eles e participavam das ativida- des com eles, normalmente. O desenvolvimento era considerado apenas maturacional, ou seja, quando ficassem adultos saberiam o que necessitassem saber. Em função disso, não havia nenhum cuidado com a infância. Esta obra, vista como um tratado da educação, aborda o momento que a natureza pura da infância é corrompida pelo contato inapropriado com a sociedade. Freud, sécu- los mais tarde, colabora com a ideia de Rousseau ao afirmar que a sexualidade da criança existe e não deve ser reprimida pela sociedade para que não forme adultos recalcados. Na teoria psicanalítica, a personalidade humana é formada já nos primeiros anos de vida, à medida que a criança passa a lidar com conflitos, impulsos biológicos inatos ligados ao sexo e exigências da sociedade. Segundo Freud, a criança passa por cinco estágiosdo desenvolvimento humano, chamados de desenvolvimento psicossexuais ou estágios psicossexuais, que serão aprofundados no capítulo 3. Na fase oral, que vai do nasci- mento até os 12 a 18 meses de vida, a criança tem na boca a fonte de prazer. © a gs an dr ew // S hu tt er st oc k © R ob H ai ne r / / S hu tt er st oc k Psicanálise e a PsicoPedagogia 24 Em seguida, a fase anal, que vai até os três anos, a fonte de prazer está locali- zada na retenção e na produção das fezes. A fase fálica, dos três aos seis anos, faz a criança se apegar ao genitor do sexo oposto por afeto e identificação. A zona de gratificação sexual então se localiza nos genitais, onde ocorre o apogeu do chamado Complexo de Édipo. O Complexo de Édipo serve de base aos psicanalistas para definir o tipo de estrutura da pes- soa: de acordo com a maneira como ele ocorre é possível estabelecer se a pessoa é neurótica, psicótica ou perversa. A fase de latência, por sua vez, que vai dos seis anos à puberdade, é o período marcado pela calmaria, já que está voltado às tarefas intelectuais e à idade escolar, como se a energia das crianças estivesse canalizada para o aprendizado. Por fim, a fase genital envolve o desenvolvimento sexual maduro (PAPALIA; OLDS, 2000). 1.2.3 Os instintos Os instintos são definidos como uma forma motivadora da personalidade, como energia que move a atitude do sujeito e quem tem base biológica. Basta pensar no ins- tinto de preservação que é encontrado também nos animais. Freud utilizou o termo Trieb, que significa impulso ou força propulsora para definir esse instinto. Portanto, os instintos freudianos não são biologicamente herdados: eles se constituem de fontes internas de estimulação corporal (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006). A teoria freudiana apresenta dois instintos básicos: o princípio do prazer e o princípio da realidade. O primeiro tem por objetivo evitar o desprazer para propiciar o prazer. É considerado um princípio econômico já que, ao eliminar o desprazer, estará reduzindo a fonte de excitação que causaria ansiedade. O segundo, por sua vez, fun- ciona como um regulador do primeiro, atuando em conjunto. Ele atualiza o princípio do prazer que tem natureza imediatista trazendo-o à realidade que distancia a realiza- ção imediata do desejo e buscando estabelecer um equilíbrio emocional. Eles não são oponentes porque o princípio da realidade busca promover a maturidade emocional, característica do comportamento do adulto, que é capaz de ignorar o prazer imediato que poderia ocasionar uma dor futura. 1.2.4 A ansiedade Psicanálise e a PsicoPedagogia 25 A ansiedade é decorrente das exigências feitas ao ego pelos problemas cotidianos ou pelas fontes de desprazer. Freud, por meio da autoanálise e dos estudos com outros pacientes, percebeu que o principal problema a ser enfrentado pela psique é encontrar formas de lidar com essa ansiedade. O estado ansioso pode ocorrer em qualquer situação, real ou imaginária, quando surge uma ameaça ao corpo ou à psique. As situações estressantes que causam ansie- dade incluem: A perda de um objeto desejado. A perda de um amor (rejeição ou fracasso na conquista). A perda da autoestima causada pela desaprovação do superego. A perda da identidade, que seria o medo da castração que se traduz por medo de ser ridiculari- zado publicamente. Todas essas ameaças causam ansiedade e, segundo Freud, existem duas formas de diminui-la. A primeira seria encarar o problema e resolvê-lo, superando obstácu- los. A segunda é quando a pessoa não o enfrenta, negando a situação. Isso faz surgir o recalque como consequência e como forma de proteger o ego contra a ameaça emi- nente, o que também é denominado como mecanismo de defesa do ego. 1.2.5 O luto e melancolia O luto foi abordado por Freud em seu texto denominado “Luto e Melancolia” (1974). É entendido por ele como “... reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” (FREUD, 1974, p. 275). Causa um profundo desinteresse pelo mundo externo, já que afeta o investimento libidinal, ou seja, o indi- viduo em luto profundo resiste em substituir o objeto amado, pois persiste em pensar no objeto perdido, estabelecendo uma devoção ao luto. No processo de luto há inibição de qualquer atividade que não esteja ligada ao objeto perdido, o individuo perde o interesse pelo mundo externo. Parece-lhe sem sentido que o sol nasça ou que as pessoas continuem seguindo seu ritmo normal. Após o choque da notícia, vem a negação, seguida pela revolta, depois pela barganha (em Psicanálise e a PsicoPedagogia 26 geral com Deus), para então surgir a tristeza profunda, a qual precisa ser vivida e ela- borada para que a pessoa se conforme e se adapte a uma nova realidade. Apesar de longo e dolorido, o luto é considerado um processo normal, isto é, não patológico, porque parte de uma perda real que envolve processos inconscientes, mas que são acessíveis à consciência e que apesar do intenso sofrimento causado, poderão ser superados deixando o ego livre novamente para escolher outro objeto libidinal. A Melancolia refere-se a perdas objetais de natureza do ideal das quais o indi- viduo não tem conhecimento. Não fica claro o que foi perdido, a própria pessoa não percebe o que perdeu. Diferente do luto, não tem tempo para acabar. É considerada patológica por que causa degradação ao ego que se enfurece contra si mesmo. Nas palavras de Freud: “No luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego” (FREUD, 1974, p. 278). A grande diferença entre Luto e Melancolia é a perda da autoestima. O ego se torna pobre e vazio, desprovido de valor, incapaz de qualquer realização. Persiste um desânimo profundo e o sujeito de recrimina frente a todos, acredita que merece ser punido, merece ser infeliz e teme a pobreza. Cabe destacar que a ideia de luto não diz respeito apenas à morte, mas também ao enfrentamento das perdas reais e simbólicas que nos são impingidas no decorrer da vida, os chamados ritos de passagem, como por exemplo, a passagem da infância a adolescência ou da adolescência a vida adulta; a saída da casa dos pais; mudança de cidade, de país, entre outros. 1.3 A metodologia da psicanálise Como vimos, Freud inicialmente utilizou em seus pacientes os métodos hipnóticos e catárticos aprendidos com Breuer. Porém, não estava satisfeito com os resultados que vinham surgindo e não se mostravam duradouros, já que muitos pacientes retornavam com outras queixas que ele suspeitava se originassem da mesma patologia. Aos poucos, porém, Freud percebeu que as lembranças trazidas pelos pacientes esta- vam remetidas à infância e relacionadas a temas sexuais. Isso o fez alicerçar sua teoria, cada vez mais, na hipótese de que os recalcamentos, as his- terias e os distúrbios neuróticos eram causados no desenvolvimento da sexualidade. © P ho to gr ap he e. eu // S hu tt er st oc k Psicanálise e a PsicoPedagogia 27 Hoje, a essência da psicanálise é fazer com que o paciente enxergue a si mesmo a partir da observação do analista, que busca ajudá-lo a assumir a autoria de sua vida e trazer para si as responsabilidades pelas escolhas e atos que realizou e realiza. Isso faz que com essas ações e reações passem a ser decididas e não apenas justificadas. 1.3.1 Os estudos sobre a histeria A histeria é uma doença antiga, que remonta aos tempos de Hipócrates, por volta dos anos 460 a.C. Porém, ela só passou a ser compreendida a partir dos estudos do inconsciente, de Freud. Quando publicou Estudos sobre a histeria, em 1895, em conjunto com Breuer, ele estava elaborando as primeiras ideias psicológicas liga- das ao funcionamentodo inconsciente. Na obra, ele narra os casos de quatro pacientes histéri- cas, Emmy von N. Lucy R., Katherina e Elisabeth e suas conclusões chocaram a comunidade médica, já que a histeria estava, até então, rela- cionada a condições físicas e era considerada uma doença degenerativa derivada da sífilis. A simples consideração de ser uma doença psicológica, com fortes reminiscên- cias sexuais, não foi aceita nem mesmo por Breuer que não concordava com a natu- reza puramente sexual do comportamento histérico. Este foi o início da discórdia entre Freud e Breuer, que viriam cortar relações mais adiante. Para Zimerman (1999), o estudo mais notável de Freud em relação à histeria foi O caso Dora, publicado em 1905, em que ele apresenta também os primeiros sinais do Complexo de Édipo e inaugura o conceito de transferência que será aprofundado e consolidado posteriormente pelo médico. Foi a partir daí que Freud também estabele- ceu as diferenças na etiologia da histeria e da neurose obsessiva, vinculando-as à acei- tação ou não da castração de Édipo. 1.3.2 As relações entre psicanálise e psicologia A psicologia, tal qual a conhecemos, é uma ciência nova. A profissão de psicó- logo, desvinculado da área médica ou educacional, só veio a ser instituída no Brasil na década de 1970. Cabe lembrar que a psicologia só passou a ser considerada como ciên- cia a partir do concepção de paralelismo psicofísico desenvolvido por Wilhelm Wundt (1832-1926), considerado o pai da psicologia moderna. © g io rg io m tb // S hu tt er st oc k Psicanálise e a PsicoPedagogia 28 Com esta ideia, ele libertou a psicologia da filosofia e ela passou, então, a ser reconhecida como ciência capaz de ser mensurada. A fundação do Laboratório de Psicologia Experimental, da Universidade de Leipzig, na Alemanha, em 1879, por Wundt, é considerado até hoje como o marco inicial da psicologia, embora, nesse período, ela ainda estivesse fortemente ligada à medicina e áreas afins. Dentro deste universo, a psicanálise, por sua característica de difícil mensuração, cresceu às margens da psicologia científica, com fortes críticas e acusações negativas direcionadas a Freud, chamado por muitos de excêntrico. Apesar disso, porém, muitas das ideias da psicanálise passaram a ser mencionadas em livros básicos de psicologia. Na década de 1920, conceitos como os dos mecanismos de defesa, inconsciente e aná- lise dos sonhos eram discutidos com seriedade. Entretanto, o behaviorismo ainda era a teoria aceita e largamente estudada no momento. Criado pelo psicólogo americano John Watson, o behaviorismo é uma área da psicologia, que tem o comportamento como objeto de estudo. Trata-se de uma das três principais correntes da psicologia, ao lado da psicologia da forma (Gestalt) e da psicologia analítica (psicanálise). Aos poucos, porém, a psicanálise passou a ser vista pela sociedade como uma espe- rança de cura de diversos problemas emocio- nais. Gradativamente, seus conceitos e sua terminologia passaram a ser utilizados tam- bém por psicólogos behavioristas, incluindo o próprio Watson, que os empregou na lingua- gem do condicionamento operante. Posteriormente, conceitos básicos da psicanálise, como o papel do inconsciente e da infância no desenvolvimento de problemas psicológicos, foram incorporados pelas demais áreas da psicologia. Hoje, mais de cem anos depois de Freud apresentar ao mundo a ideia do incons- ciente, os novos cientistas continuam a buscar provas científicas de sua existência, e com sucesso. 1.4 As contribuições da psicanálise É inegável a contribuição que a psicanálise trouxe para a compreensão do sujeito e para as doenças mentais. Mesmo com as atuais medicações derivadas do Prozac e as pesquisas neurológicas apoiadas em exames de alto resolução de imagem cerebral, © m ar co va rr o // Sh ut te rs to ck Psicanálise e a PsicoPedagogia 29 existe uma unanimidade dentro da comunidade médica sobre os benefícios do pro- cesso de análise que, independente da orientação do psicólogo, tem incorporado aspectos da metodologia da psicanálise. Desse modo, conclui-se que, apesar da falta de rigor científico e da fragilidade metodoló- gica, a psicanálise freudiana tornou-se uma força vital na psicologia moderna. Freud ainda é a figura mais frequentemente citada na literatura de pesquisa da psicologia, de acordo com os catálogos de citações publicados ... A Divisão de Psicanálise (Divisão 39) é a sexta maior dentre as 51 da APA (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006 p. 383). 1.4.1 A validação da metodologia psicanalítica Sabe-se da dificuldade existente em obter comprovação científica a respeito de conteúdos tão abstratos como aqueles oriundos de processos mentais. No entanto, uma pesquisa realizada em 1977, envolvendo 2.500 estudantes de áreas como a psi- cologia e psiquiatria comprovaram os conceitos de Freud sobre as características dos tipos de personalidade, como a oral e a anal; a ansiedade de castração; a presença de preocupações emocionais nos sonhos e alguns aspectos do Complexo de Édipo. Posteriormente, outras pesquisas também conseguiram comprovar a influência dos processos inconscientes nas emoções, nos pensamentos e na tomada de decisões. Hoje, neurologistas renomados têm encontrado evidências da importância do incons- ciente na vida do sujeito, bem como dos mecanismos de defesas descritos por Freud, que, diante do estresse imposto à sociedade contemporânea, tem se manifestado em várias patologias, como a síndrome do pânico. 1.4.2 As críticas à psicanálise A ausência de rigor científico e a centração da origem das patologias em aspectos puramente sexuais se constituíam na grande crítica feita à psicanálise. O fato de Freud não anotar a fala de seus pacientes e transcrevê-las a posteriori também era alvo de críticas, pois insinuava-se que ele poderia modificá-las a seu favor. Houve quem duvi- dasse de seus métodos qualificando-os como indutivos de respostas. A falta de clareza em alguns conceitos-chave de Freud foram igualmente alvo de críticas. A sua ideia da inveja do pênis pela mulher e o fato de ter amparado suas pes- quisas em sujeitos neuróticos, porém, também serviram de base para o alicerce de teorias pós-freudianas. Psicanálise e a PsicoPedagogia 30 Convém pensar, no entanto, que Freud construiu uma teoria a partir de reflexões pessoais, colocando-se como sujeito. Embora seus estudos não tenham partido do nada, essa postura foi inovadora em grande parte de seus postulados, como o papel do inconsciente e da sexualidade no desenvolvimento da personalidade humana. São inegáveis as contribuições de Freud à compreensão da subjetividade humana e ao tratamento das doenças mentais. É possível perceber que, hoje, a psicanálise permeia quase todas as áreas ligadas ao homem, da psicologia à medicina, do mar- keting à economia. Na medicina consideram-se as dimensões psicológicas da doença e nas demais áreas pesquisas são realizadas visando determinar o perfil do consumi- dor. Parece impensável, então, conceber o processo de ensino e aprendizagem sem considerar as contribuições da teoria psicanalítica. Dimensões como as do desejo e da afetividade devem ser levadas em consideração quando se pensa o homem e suas necessidades, nas quais aprender se tornou imperativo. Psicanálise e a PsicoPedagogia 31 Referências DUNKER, C. I. L. Inconsciente, o estranho que vive em nós. Revista Mente e Cérebro, Ed. Especial n. 54. São Paulo: Editora Segmento, 2016. GONZÁLEZ. R. F. L. Epistemología cualitativa y subjetividad. São Paulo: EDUC, 1997. FREUD, S. Cinco lições de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1974ª. Col. Os Pensadores/39. ______. Luto e Melancolia. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIV. Imago Editora Ltda: Rio de Janeiro, 1976. FREUD,análise de uma mente. s. l. The Biography Channel, 1995. DVD. 47 minutos. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocábulo da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998. PAPALIA, D. E.; OLDS, S. W. Desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. H. História da psicologia moderna. São Paulo: Thonson Learning Ediçoes, 2006. ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos. São Paulo: Artmed, 1999. 2 A estrutura do aparelho psíquico O psiquismo é constituído pelas características psíquicas ou mentais de um ser humano. Até a Idade Média, sua concepção estava profundamente ligada ao criador e, portanto, sua existência não estava no homem, mas em Deus. No entanto, as ideias do filósofo iluminista, físico e matemático francês, René Descartes, colocaram em che- que o pensamento vigente ao apregoar que a razão humana era a única forma de exis- tência. Nessa época, o inconsciente não era nada além de dúvidas no que diz respeito aos impulsos e instintos: não era aceitável, nem compreensível, por exemplo, que o homem fosse controlado por forças internas. A psicanálise modificou a forma como compreendemos o psiquismo. Ao surgir, a teoria freudiana revolucionou o pensamento e as ciências da mente ao proclamar a existência de um inconsciente e de uma nova estrutura do aparelho psíquico, dinami- zado por um conflito de forças que se desenrola em grande parte fora da percepção consciente do indivíduo. Para a psicanálise, o psiquismo é uma totalidade dinâmica em que cada componente tem uma função determinada e regida por diferentes prin- cípios. Este capítulo trará um panorama geral da construção da psique e da subjetivi- dade humana, a partir de Freud e seus seguidores, notadamente Anna Freud, Melanie Klein, Donald W. Winnicott e Jacques Lacan. 2.1 Psicanálise e personalidade Antes de Freud, consciência e atividades mentais eram palavras sinônimas entre si, justamente porque não se concebia ainda a existência do inconsciente. Não se considerava, por exemplo, a possibilidade de uma atividade mental ocorrer sem o indivíduo se dar conta. A partir da utilização da técnica da hipnose e, posteriormente, do estudo dos sonhos, em 1900, foi possível perceber que a maior parte da atividade mental humana acontece fora do consciente, num lugar que passou a ser chamado de inconsciente. O inconsciente é uma força capaz de influenciar os pen- samentos e as atitudes do sujeito de forma decisiva, tanto na patologia como na normalidade. Duas hipóteses são, então, colocadas como fundamentais à toda teoria psicana- lítica. A primeira, denominada determinismo psíquico, afirma que, tanto na mente como na natureza, nada ocorre por acaso: os acontecimentos estão determinados por fatos ou eventos psíquicos que os precederam. A segunda, chamada de inconsciente, © L ig ht sp ri ng // S hu tt er st oc k Psicanálise e a PsicoPedagogia 34 por sua vez, postula a existência de atividades mentais que são de certa forma, igno- radas pelo sujeito, que não está em sua atividade consciente. Isso significa que muitas das coisas que ele faz e não consegue explicar ou justificar poderiam ser compreendi- das se houvesse acesso anterior ao inconsciente. Isso não acontece devido à existência daquilo que Freud chamou de mecanis- mos de defesa. Trata-se de algo localizado na estrutura do aparelho psíquico, que, a grosso modo, é regido pelo princípio do prazer e ligado, diretamente, às necessida- des biológicas e sexuais. O ser humano, em contato com a sociedade, precisa contro- lar suas pulsões primárias que o diferencia dos animais irracionais: suas necessidades e desejos encontram barreira nas regras impostas pela sociedade, em especial pelas instituições religiosas. Há, portanto, um duelo permanente entre o desejo interno e o dever de seguir essas regras sociais, já que o desejo aparece como uma energia psí- quica (libido) que impele o organismo de buscar a gratificação. O desejo interno pre- pondera na forma do que Freud denominou Atos Falhos, que se constituem nos erros na linguagem, na memória e no comportamento que representam formações de com- promisso entre o inconsciente e o consciente, como trocar uma palavra por outra pare- cida, esquecer o nome de alguém, tropeçar em um momento constrangedor. São falhas que na verdade são intencionais, mas é uma intenção do inconsciente. Pulsões primárias, segundo Freud, consiste em forças internas e inconscientes que direcionam o comportamento do indivíduo. O comportamento gerado pelas pulsões diferencia-se daquele gerado por decisões. A partir dessas descobertas, Freud apresentou um modelo de aparelho psíquico a partir de três pontos de vista: o econômico, o tópico e o dinâmico. O econômico parte do princípio de que existe uma quantidade de energia (libido) que serve de alimento para os processos psíquicos. O tópico considera que o aparelho psíquico é constituído por sistemas que se diferenciam pelo funcionamento (o id, o ego e o superego), tornando- -o um lugar psíquico. E, por fim, o dinâmico estabelece a existência de forças internas como se fossem pulsões que entram constantemente em conflito e estão sempre ati- vas, de forma permanente. São essas pulsões que dinamizam o processo vital e constituem a personalidade do sujeito dentro da estrutura psíquica. Para a psicanálise, essa estrutura psíquica está dividida em id, ego e superego, que se mantêm sempre em conflito a fim de controlar o que Freud chama de instintos primários. Psicanálise e a PsicoPedagogia 35 2.1.1 Os instintos A psicanálise freudiana trata os instintos como a força propulsora e o incentivo biológico da energia mental do ser humano, processo ao qual Freud denominou de Trieb. No vocabulário alemão, Trieb se diferencia do termo Instinkt, que diz respeito ao instinto inato do animal. Para Freud, os instintos não devem ser considerados predis- posições inatas, mas, sim, fontes internas de motivação. Assim, a função principal do instinto é justamente eliminar essa fonte a fim de satisfazer uma necessidade por meio de algum comportamento, como comer, beber ou se relacionar sexualmente. O ins- tinto é, portanto, cíclico, assim como as necessidades básicas. Freud classificou os instintos em dois grupos principais: instinto de vida (Eros) e instinto de morte (Tanatos), também conhecidos como pulsões, termo introduzido nas traduções francesas para caracterizar o significado de Trieb. A pulsão de vida é representada pelas ligações amorosas que os indivíduos estabelecem com o mundo, com as outras pessoas e com si mesmo, enquanto a de morte se manifesta pela agres- sividade que poderá estar voltada para si mesmo e para o outro. Embora pareçam con- cepções opostas, as duas pulsões estão interligadas e uma não existe sem a outra: onde há pulsão de vida também há pulsão de morte, e vice-versa. Freud apresentou os dois tipos de pulsões principais em duas obras. A pulsão de vida (Eros) foi tratada em Além do princípio do prazer, enquanto a pulsão de morte (Tanatos) recebeu aborda- gem em O mal-estar da civilização. Assim, na medida em que a criança (sujeito em formação) vai tomando contato com o afeto dos pais (seus cuidadores), por exemplo, os ins- tintos dela vão sendo moldados e humanizados: os instintos básicos de sobrevivência vão sendo substituídos pelas pulsões de vida e de morte e, assim, deixam de ser apenas necessidade e saciação para se tornarem vontade e satisfação. Como pode-se perceber, a teoria das pulsões de Freud se mantém sempre dua- lista. De um lado há as pulsões sexuais e, de outro, as pulsões do ego ou de autocon- servação. Assim, a partir do desenvolvimento da psique, o indivíduo passa de homem instintual a homem pulsional e de ser necessitante para ser desejante. © M on ke y B us in es s Im ag es // Shu tt er st oc k. Psicanálise e a PsicoPedagogia 36 2.1.2 Os níveis de personalidade: id, ego e superego Logo que descobriu a existência do inconsciente, Freud dividiu a personali- dade em duas instâncias: uma inconsciente e outra consciente, que representava uma pequena e quase insignificante parcela da estrutura psíquica. Seus estudos pos- teriores, porém, o levaram a modificá-la, ampliá-la e dividi-la em id, ego e superego, instâncias com características específicas que se encontram em constantes lutas interiores. O id representa a energia primitiva, a libido, a necessidade e o desejo puro e primi- tivo. É regido pelo princípio do prazer, de onde busca o alívio das tensões a fim de evitar a dor ou amenizá-la. O id é irracional, imoral, ilógico e completamente inconsciente. Já o ego funciona como mediador, uma parte da mente que se conecta com o mundo exterior a fim de intermediar suas relações com o id. É regido pelo princípio da realidade e faz o equilíbrio das demandas do id, buscando um objeto apropriado para satisfazer a necessidade e reduzir a tensão do sujeito. O ego não existe sem o id. Na verdade, ele existe em função do id, tentando satisfazer suas vontades ou exigências. O superego, por sua vez, representa o aspecto moral da personalidade. É cons- truído a partir da dissolução do Complexo de Édipo, quando internaliza as proibições, os limites e a autoridade, e terá sua intensidade definida pela forma como a criança vive essa fase. O superego tem o papel de equilibrar e controlar os impulsos do id, levando o ego a se comportar de maneira moral e dentro das regras de condutas sociais, mesmo que arbitrárias, e inibindo-o por meio do complexo de culpa. Ele também busca levar o indivíduo à perfeição e à luz dos ideais sociais. Em seus últimos escritos, Freud definiu o superego como uma estrutura que abrange três funções: de auto-observação, de cons- ciência moral e de ideal. Imagine, por exemplo, um indivíduo faminto que sai em busca de comida. Para descarregar a tensão induzida pela fome, a estrutura psíquica irá estabelecer uma espécie de ligação adequada entre as demandas do id e a realidade proporcionada pelo ego. Neste sentido, o ego informa ao id que existem formas adequadas de saciar a fome, socialmente aceitas, refreando as demandas de busca de prazer do id até encon- trar o objeto apropriado para satisfazer a necessidade e reduzir a tensão. Freud comparava a interação entre o ego e o id com um cavaleiro montando um cavalo que fornece energia para levá-lo pela trilha. Porém, a força do animal depende da con- dução das rédeas, senão acaba derrotando o ego racional. A figura a seguir mostra a dinâ- mica das três estruturas da personalidade, © m is ha be nd er / / S hu tt er st oc k. Psicanálise e a PsicoPedagogia 37 representando uma “disputa” entre a vontade primitiva e a perfeição moral: superego e id apresentam uma expressão sisuda, enquanto o ego está mais leve e feliz. O superego, por sua vez, desenvolve-se desde o nascimento, na medida em que a criança vai assimilando as regras de comportamento ensinadas pelos pais ou responsáveis por meio de recompensas e punições. Em suma, o superego representa a moralidade e está sempre em busca da perfeição, o que o coloca em constante conflito com o id. Para Freud ele atua como o defensor constante na busca pela perfeição, ao contrá- rio do ego que tenta adiar a satisfação do id para momentos e lugares mais adequados. O superego, ao contrário, tenta inibir a completa satisfação do id. Entretanto, se o ego é pressionado demais, o resultado é a condição definida por Freud como ansiedade. 2.1.3 Ansiedade e repressão A ansiedade, na teoria psicanalítica, é a expressão sintomática de um conflito emo- cional interno que ocorre quando certas experiências, sentimentos e impulsos muito perturbadores são suprimidos da consciência. Como vimos, ela aparece quando o ego se sente pressionado. Segundo Freud, a criança vive a ansiedade já no nascimento: por ser este um momento muito traumático, ocorre o recalque primário que também é respon- sável pela separação entre consciência e inconsciência. A isso, Freud deu o nome de ansiedade tóxica ou realística, sentimento puramente orgânico para o bebê, já que não se pode supor que haja qualquer manifestação psíquica do organismo: ele se choca com o meio, assim que entra em contato com ele, perdendo o contato com o corpo materno. Posteriormente, com o desenvolvimento da fala e a constituição do ego durante o segundo ano de vida, as manifestações da ansiedade desenca- deiam-se pela forma como a criança interpreta o seu entorno. Elas vêm acompanhadas de reações físicas, como suor e transpiração e palpitações, que ativam o sistema nervoso simpático (inte- grante do sistema nervoso autônomo, junto com o sistema nervoso parassimpático). A esse tipo de ansiedade, Freud deu o nome de ansie- dade neurótica e a definiu como causadora de sintomas, como o recalque, por exemplo. Ela é a responsável, em especial, pelo chamado recalque primário, mecanismo que faz o sujeito guardar no inconsciente as representações ligadas a uma pulsão de forma não deliberada. Freud definiu três tipos de ansiedade: a objetiva que se fundamenta em perigos reais; a neurótica que se estabelece em função do reconhecimento de perigos reais causados por demandas do id e a moral que surge do medo da consciência quando há violação de algum valor moral socialmente estabelecido. O medo, neste caso, está em ser descoberto. © M ar ia S by to va / / S hu tt er st oc k. Psicanálise e a PsicoPedagogia 38 A partir daí fala-se em uma neurose de angústia e em uma neurose de defesa, que constituem processos de recalcamento ou repressão. A de angústia se diferencia das demais neuroses porque não passa por mediação psíquica, ou seja, não ocorre a elaboração de conflitos entre as instâncias psíquicas do id, ego e superego. É caracte- rizada pela acumulação de uma excitação sexual que se transforma diretamente em sintoma. É denominada também neurose atual pelo fato de não estar localizada em conflitos infantis, mas em situações atuais, como virgindade, formas de contracepção e falta de prazer, por exemplo. Já as neuroses de defesa se manifestam a partir do mecanismo de defesa do recalque, que é a manutenção do conteúdo traumático como material inconsciente. As pessoas recalcam conteúdos com os quais o ego não conse- gue lidar, levando-os para o inconsciente. Freud divide a neurose em três partes: a histérica, a obsessiva e a fóbica, que se manifestam de acordo com a fase de desenvolvimento do psiquismo (a fase oral- -histérica, a anal-obsessiva e a fálica-fóbica). Todos os indivíduos passam por elas, mas alguns fixam em uma só, formando sintomas e provocando doenças. Em suma, as defesas servem ao propósito de manter afastados os perigos, tarefa para a qual costu- mam ser bem-sucedidos. Um dos principais mecanismos de defesa do ego, a repressão, consiste nas ope- rações colocadas em jogo pelo ego para assegurar sua própria segurança. Quando um indivíduo é confrontado diariamente por conflitos emocionais e/ou ameaças internas ou externas que causam desconforto ao ego, por exemplo, a repressão atua impedindo que essas ideias ou sentimentos que estão no inconsciente cheguem à consciência. Uma fase muito importante no desenvolvimento do psiquismo é a fálica, que pro- move a elaboração do Complexo de Édipo, responsável pelo delineamento das estruturas psíquicas do sujeito. 2.1.4 O Complexo de Édipo O Complexo de Édipo é um conceito desenvolvido por Freud com base no mito do Édipo-Rei. Conforme a mitologia, Laio, rei de Tebas, consultou o oráculo para saber se deveria gerar um filho e foi alertado de que, se acontecesse, a criança viria a matá-lo para que
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