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Adriana L ia F r i szman de Lap lane Ana C laudia B. Lodi Ana Paula de Frei tas Antônio C a r l o s C a r d o s o A l v e s C a r l o s S a n c h e z C a r l o s Skl iar C e l m a d o s A n j o s Domingues Cr ist ina B. F. de /Lacerda Dulcéria Tartuçi Fernando J o s e de Almeida Ivone P a n h o c a Kathryn Marie P. Harr ison Lodenir B e c k e r Karnopp Maria Cecília Carareto Ferreira Maria Cecília Rafael de Góes Maria Cr is t ina da C u n h a Pereira Marianne R o s s i Stumpf Ottmar T e s k e Regina Maria de S o u z a Ricardo S a n d e r S a n d r a Reg ina L. de C a m p o s Sírio P o s s e n t i -85-87063-64-M tramento minorias Ana Claudia B. Lodi Kathryn Marie P. Harrison Sandra Regina L. de Campos Ottmar Teske (Organizadores) orlo r[»co para o futuro de ima criança. Multas, neste ials, ficam um, dois, trôs mos na escola e acabam leslstlndo, são expulsas dela le uma forma não confessa. >or que isso acontece? Este vro dá início a uma série de lublicações em torno da luestão "letramento das ninorias", cujo foco essencial i a pluralidade, diversidade, omunicação, bilinguismo, ue a ilustração da capa usca retratar, teúne educadores com Drmação e experiência em árias áreas, apresentando iscussões teóricas metodológicas sobre alfabetização de crianças e classes populares a importância da leitura escrita para o seu esenvolvimento, sobre inclusão dos surdos na scola regular, o papel os intérpretes de Libras a sua aprendizagem sobre políticas de inclusão as minorias no país. Jertam, sobretudo, "que problemática da Ifabetização e do letramento brange a diversidade nguística e cultural do país, recisando ser valorizada, iontribuem nesse sentido azendo diferentes significativos temas de iteresse dos educadores. letramento e minorias A n a C l a u d i a B . L o d i K a t h r y n Mar ie P. H a r r i s o n S a n d r a R e g i n a L . d e C a m p o s O t t m a r T e s k e ( O r g a n i z a d o r e s ) Editora Mediação 6a Edição Porto Alegre 2013 c noitli-nnção Editorial: Jussara Hoffmann Assistente Editorial: Luana Aquino Preparação de Originais: Tanny Chiu Pereira Revisão: Rosa Suzana Ferreira I ilitoração e Capa*: Daniel Ferreira da Silva ' agradecemos à Memento-Consultoria Pedagógica e a Kito Castanha pelo uso da arte do folder do 1" Simpósio I ducar x Humanizar da Unidade para a Diversidade", realizado em Santo André-SP em setembro de 2 0 0 2 . Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L649 Letramento e minorias/ Ana Claudia B. Lodi ... [et al.] (organizadores). - 6. ed. - Porto Alegre: Mediação, 2013. 160 p . ; 23 cm. Inc lui bibliografia. ISBN: 978-85-87063-64-9 1 . L e t r a m e n t o . 2. Surdos - Educa çã o . 3. L íngua de sinais . 4. Alfabetização. 5. Educação Especial. 6. Inclusão em educação. I . L o d i , Ana Claudia B. I I . H a r r i s o n , K a t h r y n Marie P. I I I . Campos, Sandra Regina L. de. IV. Teske, Ottmar. C D U : 376 C D U : 371.912 Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo - CRB 10/1507 Todos os direitos desta edição reservados à %) Editora Mediação Distribuidora e Livraria Ltda Av. Taquara, 386/908 Bairro Petrópolis Porto Alegre RS CEP 90460-210 Fone/Fax (51) 3330 8105 editora.mediacao@terra.com.br www.editoramediacao.com.br www.facebook.com/editoramediacao www.twit ter . com/edi toramediacao Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do Editor. © Autores , 2002 Printed i n Brazil/Impresso no Brasil S u m . i i i o Prefácio. A pergunta pelo outro da língua; a pergunta pelo mesmo da língua 5 Carlos Skliar Introdução 13 1. A escola, o fracasso escolar e a leitura 15 Carlos Sanchez 2. Sobre a natureza dos erros, especialmente os de grafia 27 Sírio Possenti 3. Letramento e surdez: um olhar sobre as particularidades dentro do contexto educacional 35 Ana Claudia B. Lodi Kathryn Marie P. Harrison Sandra Regina L. de Campos 4. Papel da língua de sinais na aquisição da escrita por estudantes surdos 47 Maria Cristina da Cunha Pereira 5. Língua de sinais e língua portuguesa: em busca de um diálogo 56 Lodenir Becker Karnopp 6. Transcrições de língua de sinais brasileira em Sign Writing 62 Marianne Rossi Stumpf 7. O surdo como contador de histórias 71 Antônio Carlos Cardoso Alves Lodenir Becker Karnopp 8. A construção da oralidade e da escrita a partir das narrativas orais dos contos de fada 76 Ivone Panhoca '.) Política publ ica do inclusão d<; minou. r . in .nonas 81 I cm. indo José do Almeida 10. Tecnologia e ensino inclusivo: uso do computador por crianças e adolescentes com deficiência visual 87 Adriana Lia Friszman de Laplane Celma dos Anjos Domingues 11. A escolarização da pessoa com deficiência mental 98 Maria Cecília Carareto Ferreira 12. O conceito de zona de desenvolvimento proximal: reflexões sobre a questão da inclusão 104 Ana Paula de Freitas 13. Alunos surdos na escola regular: as experiências de letramento e os rituais da sala de aula 110 Maria Cecília Rafael de Góes Dulcéria Tartuci 14. O intérprete educacional de língua de sinais no Ensino Fundamental: refletindo sobre limites e possibilidades 120 Cristina B. F. de Lacerda 15. Questões do intérprete da língua de sinais na universidade 129 Ricardo Sander 16. Educação de surdos e questões de norma 136 Regina Maria de Souza 17. Letramento e minorias numa perspectiva das ciências sociais 144 Ottmar Teske Prefácio: A pergunta pelo outro da língua; a pergunta pelo m e s m o da língua Carlos Skliar* I O objeto não é mais o que era ... é o objeto que nos pensa. Jean Baudrillard Letramento e minorias. Minorias e letramento. Letramento sem minorias? Minorias sem letramento? Letramento a partir das minorias? Minorias a partir do letramento? Qual letramento? Quais minorias? A pergunta pelo letramento e pelas minorias supõe, antes de tudo, uma pergunta pelas próprias palavras. Palavras que, entre outras palavras, poderão ser um convite à sinceridade ou também um abandono de olhares e posições teóricas monológicas ou, ainda, a imposição de uma cruel obscurida- de e esquecimento. Palavras que, entre muitas outras vozes e gestos, lembram outras pala- vras, outras vozes e outros gestos, e despertam testemunhos e testamentos, arquivos e monumentos, tradições e heranças. Para começar, toda palavra é, ao mesmo tempo, no mesmo tempo, o confuso resultado de um jogo tríplice (LARROSA, 2001, ao fazer referência a um poema de Roberto Juarroz): a palavra que se diz - e/ou que eu digo - , a palavra que é ouvida - e/ou que você ouve' - , e a palavra que é. As palavras são sempre as mesmas: letramento, minorias. Elas não mudam. Elas não se inquietam. Elas são sempre letramento e minorias. * Doutor em Fonologia e Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisador independente do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Tecnológicas da Argentina. Coordenador e Pesquisados da área de Educação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACS), Argentina. Autor dos livros: La educación de los sordos. Mendoza: Ediunc, 1997; Educação & exclusão (Org.). Porto Alegre: Mediação, I997; A surdez: um olhar sobre as diferenças (Org.). Porto Alegre: Mediação, 1998; Atualidade da educação bilíngue para surdos (Org.). Porto Alegre: Medi- ação, I999; Habitantes de Babel. Políticas e poéticas da diferença (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2001; Y si el otro no estuviese ahí? Notas para una pedagogia (improbable) de la diferencia. Buenos Aires - Madrid: Mino y Dávila, 2002. ' No caso dos surdos a expressão mais adequadaseria a palavra vista. Mas, em nenhum momento dos dois exemplos (palavra vista/palavra ouvida) estou fazendo referência ao registro sensorial e sim ao registro que faz o outro ouvinte e o outro surdo. 5 Editora Mediação ( ) <|IIC (ll/OIII .IS p.ll.lVI.IS 11111« .1 <• (l 1111'Mllo .1 . .Ill.l SCJMindo, C) (|(K< d l / (.1(1,1 palavra parece desmanchar-se no ar; o que d l / cm .is palavras inquieta; nunca dl /cm Icti.imtMik) c minorias, b lod.i tentativa do (.ipiurai .i eternidade do S I J M I I ficado acaba se desarticulando diante de qualquer rosto inoportuno, diante de qualquer expressividade singular, diante de cada um dos olhos que nos olham. Não há um dizer que dure, ainda que durem as palavras: o letramento que acabo de pronunciar não é o mesmo quando quem ouve/vê é o outro considerado como minoritário. E também não é a mesma palavra, pois esse outro minoritário, assim pensado, são tantos outros, são tantos rostos, tantas expressividades, que cada vez que digo letramento a palavra deixa de ser o que pensamos e o que se pensa, agora, que seja. Não há um dizer que dure, ainda que durem as palavras: a minoria que acabo de pronunciar não é a mesma quando quem ouve/vê é um outro letramento. E também não é a mesma palavra, pois um outro letramento são tantos outros letramentos, que cada vez que digo minoria, a palavra, essa palavra, deixa de ser o que pensamos e o que se pensa, agora, que seja. E ainda mais: o jogo tríplice da palavra pode requerer um quarto ele- mento para acabar de levantar a multiplicidade do seu sentido inacabável: toda palavra é também, além da que se diz e que digo/da que é ouvida e que ouves/de que é, simultaneamente, a palavra que não é. Assim, para além do que digo/ouves/e é, as palavras letramento-mino- rias, essas palavras, não são outras palavras; tantas outras palavras que, às vezes, usurpam esses lugares, e se acomodam, se fixam e fixam o outro e aos outros a uma mesma espacialidade e a uma mesma temporalidade. Então, as perguntas iniciais se transformam e poderiam bem melhor ser: o que eu digo quando digo "letramento","minorias"? O que você ouve/ vê quando se diz "letramento", "minorias"? O que é a palavra "letramento? O que é a palavra "minorias"? O que não é "letramento"? O que não são "minorias"? Nessas notas iniciais, não pretendo que as minhas palavras sejam lidas/ vistas como um prefácio deste livro, ao menos, não no sentido tradicional do termo prefácio, quer dizer, o de dar explicações sobre o seu conteúdo, sobre os seus (prováveis e improváveis) objetivos e/ou sobre os autores e autoras que nele escrevem. Mais do que fazer um prefácio, tive a necessidade de me sentir provocado e perturbado pela minha leitura dos textos; provocação e perturbação em relação à minha própria e paradoxal experiência de alguém que pretende escrever e ler sobre o que se escreve e se lê. Nessas notas iniciais, anuncio o provisório da relação entre letramento e minorias, uma relação instável, confusa, heterogênea, cujos corpos e domí- nios perpassam, necessariamente, por questões de língua, de colonialismo, do poder da normalização, do poder das identidades, do saber e do olhar das representações da alteridade e das imagens do(s) outro(s). Notas sempre iniciais e pouco duradouras, cuja pretensão é a de vol- tar a olhar bem a pergunta, uma pergunta poucas vezes feita, muitas vezes Editora Mediação h.in.ill/.ld.i nos lei I Hi'ii lo". e\< ol.ii r s , <• yyi . i lmen le obs( ui ei nl.i pela (lx.i<>> d,is p.il.ivi.is que 11<->'..ip11 lod.i ic l . i i .wi l . i / e i n del.i um.) rel.iç.io som tempoi.iliil.nlc nem espti i.ilidade, a nSo ser a temporalidade e espacialidade do mesmo, da mesmice, d.i mesmid.ide' Notas sempre fragmontári.is, que pretendem buscar em outros tex- tos a problematização do habitual e fazer do habitual o problema: é a n.i dição do letramento o que impede ao outro o seu letramento? E a alteridade do outro o que proíbe ao letramento de ser aquilo que pensamos que é! Somos, por acaso, reféns de um outro que não se submete às nossas for- mas de oferecer a língua? São eles um mistério e o letramento a forma de desvendá-lo? Notas iniciais, finalmente, cuja única ilusão é a de penetrar em outros textos aqui reunidos, reunindo-me nessa torpe e cega sensação de querer reduzir o irredutível, de pretender acabar com as encruzilhadas, de nos sub- metermos ao exercício violento de perceber com Baudrillard que, como já foi citado: "O objeto não é mais o que era... é o objeto que nos pensa." II A palavra que se diz, a palavra que digo: letramento. Talvez não haja alguma coisa que possa ser chamada de letramento e sim, letramentos, no plural, quer dizer, experiências vividas e pensadas - às vezes parecidas, às vezes semelhantes, outras vezes opostas, e outras radical- mente diferentes, duais e antagônicas - de se relacionar com um código que é instável, fugitivo, enigmático, pois ele se encontra no coração de uma(s) cultura(s) que é(são) também instável(veis), fugitiva(s) e enigmática(s). Letramentos: um caos e uma potencialidade de produções, produtos, processos, processamentos, registros, tesouros, a própria riqueza herdada de umas práticas subjetivas específicas e singulares. O que se diz do letramento: uso do escrito e do lido, usarmos a escrita e a leitura, sermos sujeitos na escrita e na leitura, sermos autores na escrita e na leitura. Mas também: deixarmos de lado a escrita e a leitura, não sermos re- féns de uma escrita e de uma leitura, não sucumbirmos às pressões "da escri- ta e da leitura". Em síntese: não se trata do ser e não ser da escrita e da leitura e sim do "estar sendo" da escrita e da leitura. Letramentos é um gerúndio, não é uma essência. Letramentos é acontecimento, não é o acontecido. Letramentos é o pensamento que aí surge, inexplicável, para viver e para pensar o letramento. 2 Mesmo, mesmice e mesmidade não são aqui sinônimos. O mesmo se relaciona com o próprio; a mesmice é um pejorativo do próprio; a mesmidade é um estado/processo do próprio no olhar para o(s) outro(s). Editora Mediação Letramentos é a letra e a literatura, Poder eitar tendo na letra e na literatura. Estar sendo pessoa e personagem tstar lendo e sendo lido. Estar escrevendo e estar sendo escrito. Letramentos é descentralizar o poder da escola e da escolarização do letramento. É não cair na armadilha da didática e da dinâmica tradicional da pedagogia e sucumbir ao próprio poder do sujeito que lê e escreve, e que está sendo escrito e lido. É o olhar do letramento a partir de um sujeito, uma(s) sociedade(s), uma(s) cultura(s). Uma duplicidade de quem olha e é olhado pelos letramentos. Mas muitos de nós, ao dizermos letramento(s), somos como aqueles leitores que não lêem e como aqueles escritores que não escrevem; assim como também, ao dizermos letramento(s), somos como aqueles leitores que não escrevem e como aqueles escritores que não lêem. Anunciamos os letramentos para os outros, mas nos refugiamos no poder da nossa língua. Falamos do letramento para os outros, mas a nossa experiência nos contradiz. E assim, letramento não é uma experiência, mas uma trajetória de sentido único e de exigência para o outro. Falamos do letramento, mas não o fazemos para nós mesmos; não nos deixamos atravessar pela(s) outra(s) língua(s): atravessamos o outro com a nossa língua. Falamos do letramento, mas negamos a experiência vivida do outro com o seu letramento. E assim impomos uma experiência única de pensar o letramento para quem não pode viver o letramento. Quantas formas outras de letramentos e quantos outros do letramento? Impossível dizê-lo; impossível pensá-lo. Mas vale, digo, ao dizer letramentos, que imaginemos que todo sujeito é capaz de ser sujeito e de pensar e utilizar a sua língua e as suas váriasmodalidades, não a partir do que lhe foi ensinado, senão a partir daquilo que foi aprendido. O aprendido como alguma coisa que é irredutível ao nosso ensinar- impondo; aprendido como o tesouro cujo segredo jamais nos será revelado; aprendido na identidade do outro e na sua intimidade. Quantas experiências vividas e pensadas de letramentos? Impossível descrevê-las; impossível teorizá-las. É melhor, digo, ao dizer letramentos, que iniciemos a nossa reflexão sobre a palavra a partir das ou- tras experiências e não da experiência didática do letramento: que todo su- jeito é capaz de ser sujeito e viver e pensar a sua língua e as suas várias modalidades de uma forma única e irrepetível. Dizer: o sujeito está sendo no letramento aquilo que o sujeito está sendo na sua vida, na(s) sua(s) cultura(s), no(s) seu(s) acontecimento(s), na(s) sua(s) identidade(s), no seu porvir. Ne- gar a esse sujeito o seu letramento seria, então, negar a ele a sua vida, as suas culturas, os seus acontecimentos, as suas identidades, o seu porvir. Concluindo, mas não encerrando: letramentos já não em relação a uma (suposta) minoria. Letramento agora em relação a uma(s) identidade(s) tanto misteriosas quanto irredutíveis. Editora Mediação I I I A palavra que digo: minorias. A (nossa?) tradição sociológica ou melhor ainda socioeducativa, nos leva a pensar na herança europeia e norte-americana desse termo .Vejamos mais de perto o que se diz, e o que eu digo, ao dizer "minoria". "Grupo minoritário" é uma expressão que se origina numa experiência especificamente europeia. Tem a sua emergência no contexto dos conflitos nacionalistas no final do século XVIII e começos do século XIX. Nesse con- texto, o termo foi utilizado para caracterizar grupos nacionais ou étnicos que iniciaram a viver uma experiência de subordinação por parte de outros gru- pos nacionais ou étnicos (YETMAN, 1999, p. 16-17). Experiência de subordinação que é vista, desde um outro lugar, como experiência de imposição. (Experiência de) subordinação e imposição. Lem- bremos bem. E lembremos bem, pois o que está em jogo nessa herança da palavra "minoria" é o sofrimento do outro, a sua experiência do sofrimento. Os Estados Unidos adotaram a palavra só depois da I Guerra Mundial, em primeiro lugar fazendo referência às minorias europeias que participa- ram das negociações para dar fim ao conflito bélico. Mas, imediatamente, o termo adquiriu um outro sentido, e se disseminou em outras direções: as minorias já não eram entendidas - e produzidas - como uma experiência de subordinação e/ou de imposição, mas de exclusão pelas maiorias. Experiência de exclusão. Lembremos bem. E lembremos bem, pois o que muda no jogo da experiência - e que está dramaticamente posto em jogo hoje - é a inclusão. Então: digamos não, já, à imposição? E à inclusão que acaba com o sofrimento? Não, já, à subordinação excludente e sim à subordinação inclusi- va? Além disso: é por acaso a experiência minoritária uma experiência que converge sempre e necessariamente para a inclusão? Continuemos, então, lembrando bem o que a palavra minoria diz. O termo "minoria" nunca se refere a uma medida numérica de um grupo. Às vezes, inclusive, alguns grupos representam quantitativamente uma maioria numa população determinada - os negros na África do Sul, por exem- plo. Não é então o quantitativo o que demarca o território do minoritário e majoritário, é sim, um certo tipo de mecanismo de poder, aquele que outorga tal condição: um mecanismo de poder que a nossa tradição tentou traduzir em termos de uma relação entre dominantes e subordinados. Será que o fato de utilizar o termo "dominante" ao invés de "maioria", e o termo "subordinado" ao invés de "minoria" resolve a questão, dá luz à palavra, nos diz o que a palavra é e o que a palavra não é? Talvez não haja nada que seja minoria e sim um processo de alterização, de "minorização" (quer dizer, de fazer com que o outro seja pensado, produ- zido e inventado como minoritário). E é isso, justamente, o que temos que voltar a olhar bem: não há minoria e sim, a invenção de um outro minoritário; Editora Mediação in il.I lliviM.,.1. i .le um . mil o 11 III* f | | | c í\ . 1 . P lll.-MIK . I c m p o , 11 ..il- II. .1 invcn çSo. Uma invenção politica, cultural, linguistica, ética c, ainda, Invenção moral "Minorizar", isto é, fazer de um outro um sujeito de uma minoria, é também o "empequenhecimento"3 do outro, a sua "diminuição"; fazer dele um "esboço" que reproduza, em miniatura, as propriedades "inerentes, natu- I I I . , embelecidas" do mesmo. Esse outro minoritário, assim inventado, é o resultado de uma opera- ção que consiste, como bem tem sido explicado por Baudrillard e Guillaume (2000), em fazer próxima uma alteridade radical, irredutível. Para esses auto- res existem, nas sociedades ocidentais, dois tipos de imagens do outro: um outro próximo, quase que semelhante, parecido, mas nem tanto, e um outro radical, distante, inacessível. A tragédia do Ocidente - e das suas instituições - pode ser explicada, então, perfeitamente, por essa operação mencionada: todo outro radical deve ser rápida e violentamente traduzido e produzido como outro próximo, como outro conhecido ou outro a conhecer. As consequências desse procedimento são bem conhecidas: em pri- meiro lugar, toda alteridade foi e é dissolvida em alteridade próxima - a ilusão e a ficção de conhecer realmente ao outro; em segundo lugar, se esta- beleceu e decretou - e se estabelece e decreta - o desaparecimento do outro radical, o que quer dizer o fato de ignorar e negar a sua própria existência. Assim o outro da diferença, o outro dual, o outro antagônico, o outro radical, só podia (e pode) ser um outro próximo e, para isso, devia (e deve) se des-vestir, des-racializar, ser despojado da sua língua, des-sexualizar-se, etc. Nesse sentido é que podemos, provisoriamente, reunir os dois senti- dos das palavras letramento e minorias e trazer à discussão aquilo que Derrida denomina como o monolinguísmo do outro, quer dizer a imposição colonial da língua e, ao mesmo tempo, a proibição da língua do outro. Diz Derrida (1997, p. 57): Toda cultura se institui pela imposição unilateral de alguma "política" da língua. A dominação, se sabe, começa pelo poder de nomear, de impor e de legitimar os apelativos (...) Essa intimação soberana pode ser aberta, legal, armada ou bem solapada, simulada trás as coartadas do humanismo "universal", e, às vezes, da hospitalidade mais generosa. Sempre segue ou precede à cultura, como sua sombra. A palavra que se diz, a palavra que digo: letramento, minorias. E possível, portanto, que todo letramento seja dito a partir de uma dissociação entre a língua e o sujeito-outro? É possível pensar, pelo contrário, que a cada sujeito outro lhe corresponde um letramento-outro? 3 "Empequenhecimento" é um neologismo que utilizo aqui, para sublinhar uma imagem visual de um outro que não somente é inventado como "minoria" mas que é também visto como alguma coisa "pequena" de tamanho. Hditora Mediação IV A palavra que ouves e se ouve. A palavra que vês e que se vê. Letramento e minorias, já não como palavras ditas e sim como palavras ouvidas e vistas, que se ouvem e que se veem. Pensar, então, em um outro às vezes próximo, mas, no geral, radical- mente outro. Não há minoria e sim sofrimento e/ou mistério, distância em relação ao "eu" que se estabelece de uma vez e para sempre como "eu nor- mal", "eu-hegemônico", "eu-mesmo". Se, desde o início, o conceito minoria serviu para afastar indivíduos e grupos pensados, percebidos e produzidos como alteridade, hoje "minorias" também pode ser dito no sentido inverso, quer dizer, no sentido de um indi- víduo ou grupo que se afasta pela própria vontade, que não se subestima nem se revela,simplesmente, se afasta. Que deseja se afastar. E se em algum momento da nossa pergunta sobre educação nos es- quecemos do outro, agora detestamos sua lembrança, maldizemos a hora de sua existência, corremos desesperados a aumentar o número de alunos nas aulas, mudamos as capas dos livros que já publicamos há muito tempo, re- uniformizamos o outro sob a sombra de novas terminologias, sem sujeitos. Voltamos a acreditar que esse tempo e esse espaço são os únicos tem- po e espaço disponíveis.Voltamos a crer que o outro é um outro maléfico e que nossa invenção não estava tão errada.Voltamos a ignorar aquela ética do rosto da qual nos fala Lévinas (1993): temos uma responsabilidade com o outro, com sua expressão, com sua irredutibilidade, com seu mistério. Volta- mos, por último, a refugiar-nos em nossa hospitalidade. Mas se o outro é outro e o letramento é um letramento outro, com isso poderiam surgir novos problemas aos quais poderiam se dedicar as próxi- mas pesquisas e estudos: não é já o que um outro escreve e/ou lê, não é já o que se ensina ou como se ensina, mas o que está sendo registrado como me- mória numa geração de sujeitos outros e a sua transmissão a outra geração. Sem querer afirmar que o registro - consciente e inconsciente - independe da sua produção e das formas em que um outro foi ensinado no seu processo de letramento, sublinho aqui a questão do olhar do outro sobre o seu próprio letramento. A palavra que esse outro diz quando ouve/vê a palavra letramento. A palavra que esse outro - não "empequenhecido", nem minimamente esboça- do - diz quando ouve/vê a palavra letramento. V E, finalmente, a palavra que não é. Letramento e minorias. Ou melhor dizendo: a experiência que não é, a experiência que falta: a experiência com as escritas e com as leituras. Não será que de tanto nos obstinarmos com a atividade, com a praxis, com a ação, negamos ao outro ter a sua própria experiência de leitura, de Editora Mediação <••.( ril.i? A c x p r i icni i.i de C M , i i •.(•(Kl,,, i.ii i ibcm. em iim.i Ir i iui .1 outra e em 1 1 1 1 1 1 < " 1 outra. A experiência e o acontecimento. Esse acontecimento que nos tira as palavras da boca, que nos impede de continuarmos pensando o que pensávamos quando a palavra já não é o que era, quando o outro já não 6 o que era, quando é a palavra e é o outro o que/ quem nos olha, o que/ quem nos pensa. Uma pedagogia do acontecimento supõe destituir a ideia da educa- ção como o apagar do outro, como sua inexistência. E também significa destituí-la de ser, simplesmente, um local de hospedagem para excluir ou para incluir ao outro. Acontecimento é, nos termos de Chiara Zamboni, alguma coisa imprevisível: Um acontecimento imprevisto é o que mais facilmente provoca o pensamento: irrompe na continuidade temporal e atrai a nossa atenção. Quebra a nossa tendência a um saber já dado. Nos obriga a começar desde o princípio. O que já tem sido pensado é insuficiente para dizer o que tem acontecido. É uma coisa que não encontra palavras para ser reconhecido. O pensamento será essas palavras. Nenhum saber já dado sobre o outro e sobre o outro letramento pode ser suficiente para compreender o que o outro está sendo no outro letramento. O estar sendo é um acontecimento da alteridade que nos impe- de as palavras habituais, aquelas primeiras palavras: letramento, minorias. Letramento e minorias. Letramento e minorias? Referências BAUDRILLARD, J. El intercambio imposible. Madr id: Cátedra, 1999. BAUDRILLARD, J.; GUILLAUME, M. Figuras de la alteridad. Madrid: Anagrama, 2000. DERRIDA, J. El monolingüismo dei otro. O la prótesis dei origen. Buenos Aires: Manantial, 1997. LARROSA, J. Da r a palavra: notas para uma dialógica da transmissão. In: LARROSAJ. ; SKLIAR.C. (Orgs.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Hor i zon te : Editora Autênt ica, 2001 . p. 281-296. LÉVINAS, E. El tiempo y el otro. Barcelona: Paidós, 1993. SKLIAR, C. Y si el otro no estuviese ah/? Notas para una pedagogia ( improbable) de la diferencia. Buenos Aires: Mino y Dávila, 2002. Y E T M A N , N . Majority and minority: the dynamics of race and ethnici ty in american life. Boston: Al lyn & Bacon, 1999. Z A M B O N I , C. II profumo delia maestra. Napol i : Liguori , 1999. Editora Mediação Introdução A origem deste livro se situa no Fórum Letramento e Minorias reali- zado, em março de 2002, na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). No entanto, a idealização e a organização desse evento remete-nos ao VI Congreso Latinoamericano de Educación Bilíngüe y Bicultural para Sordos, ocorrido em julho de 2001, em Santiago do Chile. Esse Congresso, marco de referência de educadores, profissionais de áreas afins e de pesquisadores no campo da surdez vem, historicamente, problematizando as questões que envolvem o letramento (em suas diversas acepções). Entretanto, a última edição desse Congresso se diferenciou dos anteriores, na medida em que as discussões relativas ao letramento começa- ram a apontar para uma questão que vem sendo debatida e aprofundada, já há algum tempo, por um número restrito de pesquisadores: a problemática do letramento não se restringe à situação dos surdos, mas, na verdade, reflete um contexto sociocultural geral, que envolve as políticas educacionais em desenvolvimento. Porém, não podemos nos furtar de assumir que as minorias têm sua situação agravada, dada a diversidade linguística e cultural constitutiva desses grupos sociais. Assim, organizamos o Fórum Letramento e Minorias, tendo como ob- jetivo a realização de um evento no qual pesquisadores, de diversas áreas, pudessem apresentar e discutir entre si, a situação em que vivem e as pers- pectivas que se abrem às minorias socioculturais.de maneira mais aprofundada do que é possível em um congresso. Melhor dizendo, o interesse residiu em ampliar os horizontes, aprofundar o tema, procurando compreender as cau- sas implicadas na exclusão social dos grupos minoritários, ao mesmo tempo em que linhas de atuação política para a mudança dessa situação fossem pen- sadas, respeitando-se as especificidades dos diversos grupos envolvidos. As instituições que assumiram a organização do I Fórum foram: a Uni- versidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), a Divisão de Educação e Reabi- litação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (DERDIC-PUC-SP), a Fundação de Rotarianos de São Paulo - Es- cola Especial para Crianças Surdas (FRSP-EECS) e a Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Dada a qualidade das discussões e o interesse demonstrado por muitas pessoas, os participantes do evento decidiram pela publicação deste livro. Coube a nós, os organizadores, a tarefa de torná-lo uma realidade. Analisando a totalidade do material, pudemos perceber que a ideia cen- tral - letramento e minorias - atravessa todos os textos, remetendo o leitor aos diferentes pressupostos de letramento e aos problemas enfrentados nas Editora Mediação prátlCM descnv. I I V K I . I S no interior das politicas Inclusivas. O con|unto desta obra, indica, assim, a existência de uma pluralidade <l<- i.iminhos, c os textOI aqui apresentados, oferecem ao leitor férteis reflexões de matizes diferencia- dos que partem de olhares teóricos distintos. Porém, é nas diferenças que nascem os bons diálogos, o que deveria ser uma condição permanente nas relações entre intelectuais, pesquisadores e sociedade. Dessa forma, esperamos, com este livro, poder contribuir para o aprofundamento das questões referentes ao letramento de e para minorias, sem perder a relação com a realidade na qual essa prática está inserida. Sabemos que a discussão que envolve as questões aqui apresentadas não pressupõe consenso, e estamos certos de que nenhum autoro almeja, pois isso seria empobrecedor. Este livro, consequentemente, também não pres- supõe consenso, mas sim, pretende o rigor, reivindica formas de pensar dife- renciadas, a partir de possibilidades teórico-práticas que indiquem como enfrentar algumas problemáticas. Dessa forma, gostaríamos que a este pri- meiro texto outros mais se juntassem com o passar do tempo, uma vez mais apostando nas contribuições que a diversidade (de pesquisadores, de áreas, de atuações e de bases teóricas) pode trazer para as reflexões de cada um e de todos. Aproveitamos a oportunidade para alguns agradecimentos. Inicialmen- te, ao Prof. Dr. Carlos Skliar, por sua disponibilidade em escrever o prefácio, que conduz a uma importante reflexão sobre os temas aqui abordados, ao evidenciar a polissemia dos termos centrais deste livro - letramento e mi- norias - e ao antecipar os objetivos que nós, como organizadores, tivemos com esta obra: a possibilidade de discutir as questões aqui implicadas a partir da diversidade de lugares teóricos, suscitando, assim, leituras também diver- sas. Agradecemos também, o apoio recebido de nossas instituições, que nos disponibilizaram recursos para a realização do Fórum, semente deste livro. Os organizadores Editora Mediação V A e s c o l a , o f r a c a s s o esco la r e a leitura* Carlos Sanchez 1 A má educação A educação venezuelana vem se debatendo em torno de uma série de problemas e frustrações que parecem não ter fim.Todo mundo está de acor- do em criticar a má educação que é oferecida no país, os maus professores, os maus métodos, as más instalações físicas, e, lógico, os maus resultados. Na hora de se buscar os responsáveis, as acusações intercambiam-se, entrela- çam-se e sobrepõem-se, recaindo sobre quem as lança. Mas isso parece não afetar a ninguém em especial; as mesmas coisas seguem sendo ditas há décadas. Acusadores e acusados mantêm-se como protagonistas, nenhum deles quer deixar a cena. Mas assim como as críticas não mudaram nos últimos 30,40,50 anos, também não se alteraram as "reco- mendações" para uma mudança da situação. Isso é curioso, porque a aplica- ção dessas recomendações não mostrou nenhum resultado positivo durante todo esse tempo; e mais curioso ainda, espera-se incessantemente que essas recomendações sejam cumpridas com maior rigor, quando os fatos demons- tram sua inutilidade. Como podem continuar insistindo no mesmo quando se sabe que nada mudou, e pode-se presumir que nada irá mudar por esse caminho? Essa situação nos evoca a imagem do cachorro que corre em círcu- los perseguindo seu rabo. Esclarecemos sobre o que estamos falando. Diz-se que a educação é má porque os professores não cumprem com suas obrigações, porque perderam sua vocação, porque estão sendo mal pagos, porque as crianças estão desnutri- das ou doentes, com capacidades intelectuais diminuídas, com alterações emo- cionais, com propensão sabe-se lá a quais vícios, porque os pais não se preocu- pam com seus filhos, porque os valores foram perdidos, porque não existem políticas educativas, porque as autoridades não assumem suas responsabilida- des, porque antes essas coisas não aconteciam e assim sucessivamente. *Tradução de Ana Claudia B. Lodi. ' Médico Pediatra e Psiquiatra Infantil. Mestre em Educação - especialização em escrita - pela Facultad de Humanidades, Universidad de Los Andes. Assessor da Direção Nacional de Educação Especial no período de I985 - I995. Coordenador do Programa Bilíngue para Surdos no período de I987 - 1994. Assessor do Programa de Educação para a Saúde no Amazonas - Projeto Yanomami/Educação Bilíngue - pelo Ministério de Educação da Venezuela. Coordenador da Comissão de Educação da Assembleia Regional do Estado de Mérida - Venezuela. Editora Mediação Nao vamos discutir essas afirmações, a maioria das quais necessitariam de maiores considerações. Apenas queremos apontar que elas vêm sendo formuladas há muito tempo e que não houve sucesso no que foi feito para se remediar essa situação. Pelo contrário, o dinheiro gasto (em quantidades surpreendentemente generosas) foi por água abaixo, e está irremediavel- mente perdido. Mas como poderiam não ter investido mal o dinheiro e os esforços, quando se perdeu por completo o foco do problema e apenas se tentou acertar, com os olhos vendados, a uma vasilha de barro fora do alcan- ce, talvez vazia, que provavelmente não exista... Não é nosso propósito intervir no debate interminável, sem rumo e sem destino, em torno da conhecida deterioração da educação, nem colocar mais lenha a uma fogueira na qual apenas são consumidos os mais vulneráveis, os desprivilegiados de ontem e de hoje. Para eles, o ensino escolar não só não é uma saída para sua situação de pobreza e exclusão, como, pelo contrário, constitui uma ameaça enquanto instrumento de perpetuação da desigualdade e da injustiça social. Por isso vamos nos ater a temas concretos como: a prevenção do fracasso escolar, a democratização e a melhora da qualidade da educação.Vamos assinalar quais são, a nosso entender, as ações que podem e devem ser empreendidas de imediato, na perspectiva de um projeto demo- crático e modernizador, mesmo sabendo que não há reformas sem resistênci- as, pois toda mudança é dolorosa na medida em que obriga a deixar a como- didade do conhecido para aventurar-se no terreno incerto do novo. E por isso que, quando se quer concretizar um programa de mudanças reais, os críticos mais rigorosos da situação atual, com o mesmo discurso que denuncia implacavelmente a triste realidade que nos angustia, opõem-se a essas mudanças, com a desculpa de que os valores que sustentam a educação vigente devem ser defendidos, essa educação que, na opinião de todo mundo, é um desastre. A esse respeito são eloquentes os comentários do documen- to "Aspectos Propositivos do Projeto Educativo Nacional" do Ministério de Educação, Cultura e Desportos da Venezuela. Nesse documento, fala-se do tormento que o docente inovador enfrenta, quando suas iniciativas de mu- dança fracassam frente a respostas lacônicas e lapidares, que não deixam escapatória nenhuma: "Isso não é legal"; "Quem o autorizou?"; "O supervisor não aceita"; "Isso não está no programa"; "Não está previsto no contrato"; "O diretor é quem manda"; "Viola o regulamento". E justo supor, então, que o coro de críticas reiteradas procura, apenas, calar uma má consciência, porque todo mundo sabe que, com base nessas críticas, nada mudará. Essas críticas, tão conhecidas como vazias de fundamen- to e de conteúdo, e, sobretudo, vazias de verdadeiras perspectivas de mudan- ça, cumprem com uma obrigação que as explica: defender o status quo, man- tendo os privilégios de poucos e escondendo os prejuízos de muitos. Não há mudança sem resistência e, nesse sentido, os obstáculos que vamos encon- trando podem ser indicadores de que estamos no caminho certo. Editora Mediação Democra t l zaç lo A de i iux i.iti/.içao e ,i melhora da qualidade são dois objetivos básicos do processo de mudanças na área da educação. A democratização implica: - avançar em direção à cobertura universal (grandes avanços têm sido alcançados), ao acesso de todas as crianças à Educação Básica; - facilitar a continuidade acadêmica (muito ainda necessita ser feito nesse aspecto), ao mesmo tempo em que se eleva o nível educacional de todos os venezuelanos. Mas isso não é suficiente se não for garantida a igualdade de oportuni- dades. Vejamos: de que adianta as crianças terminarem a Educação Básica se não lhes for permitido cursar estudos superiores se assim o quiserem, se não forem habilitadas a competir em condições favoráveis para obter emprego e se apenas recebem um papel que não significa que tenham adquirido os co- nhecimentos requeridos para se incorporarem plenamente ao processo de desenvolvimento do país?DEMOCRATIZAÇÃO É SINÔNIMO DE IGUALDADE DE OPOR- TUNIDADES. Duas realidades Em nosso país não existe - e nunca existiu - igualdade de oportunida- des. Longe disso, desde os tempos da Colônia coexistem, mesmo sem serem reconhecidas, dando-se as costas, negando-se mutuamente, duas educações, dois circuitos educativos: "um de excelência", para os setores privilegiados, e "outro de baixa qualidade", para os setores populares. Simon Rodrigues já denunciava essa situação: La instrucción debe ser nacional - no estar a la elección de los discípulos ni a la de sus padres - no debe darse en desorden, de prisa ni en abreviatura... Los discípulos no se han de distinguir por lo que pagan, ni por lo que sus padres valen, en fin, nada ha de haber en la ensenanza que tenga visos de farsa... Pregúntese, a nombre de los pobres si tienen derecho al saber si se les ensena y... qué quién los ensena y... como quién tiene obligación de ensenarlos si se cumple con esta obligación porque ensenar a medias no es ensenar ni las cosas han de hacerse a médio hacer sino mientras se están haciendo. Editora Mediação Os ilunoi que estudam em um ou em outro sistema silo diferentes. Geralmente, ruão se fala dessa diferença, assim como tampouco ela é levada em conta na hora de se discutir o tema. Ocultam-na porque ela não se baseia n e m nos talentos nem nas virtudes individuais, mas sim é consequência da diferença de oportunidades, é uma das tantas expressões do privilégio de uns poucos, é uma parte do custo da pobreza. E não é levada em consideração porque seria reconhecer uma intolerável situação de injustiça. "No circuito de excelência", não existe o fracasso escolar: a repetência, a desistência e o baixo rendimento apenas ocorrem em casos excepcionais, são anomalias que não têm cabimento em suas instituições. Os alunos egressos do circuito de qualidade entram em universidades de alta exigência e cursam carreiras de prestígio. Dados recentes da OPSU mostram que, enquanto mais de 90% dos bacharéis egressos do circuito de qualidade ingressam sem problemas na universidade, nas profissões de sua preferência, apenas pouco mais de 50% dos bacharéis que saem do circuito do desânimo podem fazê-lo. Como ilustração basta um exemplo: atualmente na Universidad de Los Andes, nas profissões e nas especialidades mais procu- radas, como engenharia e medicina, a grande maioria dos alunos que ingres- sam é proveniente de colégios particulares do circuito de qualidade. Os colégios que compõem esse circuito, em sua imensa maioria, são privados e caros. Dentre as várias características que explicam seus bons resul- tados, vale assinalar que essas instituições dispõem de um pessoal geralmente bem capacitado e, sobretudo, contam com um diretor que sabe mais do que seus professores, que supervisiona diretamente o trabalho educativo, e que cumpre e faz com que sejam cumpridos os projetos da instituição. "No circuito do desânimo", o fracasso escolar está presente de ma- neira persistente. A repetência, a desistência e o baixo rendimento são a norma, e constituem uma marca indelével de suas instituições. Os estudantes egressos do circuito do desânimo se veem obrigados a fre- quentar instituições universitárias de mínima exigência, com um nível de ensino que deixa muito a desejar. Esses estudantes obtêm qualificações baixas ou muito baixas, não tendo outra opção do que cursar carreiras pouco prestigiadas, que, frequente- mente, escolhem contrariando sua própria vocação. Entre essas profissões - não é segredo para ninguém, mesmo que não se comente em voz alta - estão as carrei- ras ligadas à educação, às escolas onde se formam os professores. O circuito do desânimo é composto em quase sua totalidade por escolas públicas pobres, isto é, pela maioria das escolas públicas tanto urba- nas como rurais (nesse circuito, embora existam alguns aspectos diferenci- ais, também se enquadrariam os colégios privados cujos proprietários ape- nas perseguem o lucro, oferecendo uma saída fácil para os estudantes que em instituições mais sérias fracassariam2). É no circuito do desânimo que se observa o fracasso escolar, e é esse circuito que recebe as críticas gerais 2 N.T.: Em espanhol estas instituições são conhecidas como taguaras. Editora Mediação •...In <• .1 cdu( .ic,.i<> Ni im. i pi opoi ç.K) .ill.i, os (lo( entes que I I ,lb.llb.mi nesse ' . e'.i.iliele( i m o n l o s n.io est.io bem p r e p a r a d o s , e x i b e m < Lu .is insiilic i e n e I . I S no d o m í n i o da língua escrita, frequentemente têm u m baixo nível de moti- v.ic,.io e, como se tudo isso fosse pouco, não dispõem de um diretor que •alba mais do que seus professores e que possa ou queira supervisionar diretamente o trabalho educacional. Nas escolas do circuito do desânimo, o diretor assume uma fun- ção quase exclusivamente burocrática, grande parte de seu tempo é gasto para resolver problemas "domésticos" da escola, relativos aos hollerithes, às substituições, às transferências, às faltas, aos memoran- dos, ou a cumpr i r com as exigências formais, frequentar reuniões distritais, setoriais ou de qualquer outra natureza, o que o impede de assumir a função de supervisor. Na realidade, com raras exceções, o diretor dos estabelecimentos do circuito do desânimo não aceita realizar esse trabalho, porque não está atuali- zado nas matérias técnicas, em pedagogia e em didática, já que as múltiplas oficinas e cursos que recebe, quase sem exceção, têm como objeto uma "ge- rência educacional" mal interpretada. É muito provável que os anos que passou à espera ou no desempenho do cargo que ocupa não lhe tenha permitido estudar, em caso de ter tido a intenção de fazê-lo, e porque assume que voltar às salas de aula seria degradar-se, voltar a um passado que pode ser superado graças à ascensão obtida na carreira. Alguns dados para a reflexão Um fato que não apresenta controvérsia, embora sistematicamen- te negado, é que os alunos, tanto de um como de outro circuito, são diferentes. Não se fala claramente dessa diferença, como tampouco ela é levada em conta na hora de se discutir o tema. Os alunos que ingressam no circuito de qualidade são provenientes de meios socioeconómicos privilegiados, determinando uma diferença fundamental se comparada à dos alunos provenientes dos setores populares, da população menos as- sistida. Essa diferença adquire uma dimensão que poderíamos dizer escan- dalosa no âmbito da alfabetização. Pode-se afirmar que a alfabetização inicial é um processo que trans- corre em um período de tempo não menor do que quatro anos, a partir de seu início nos primeiros anos de vida. Se dividirmos esquematicamente esse processo em três grandes etapas sucessivas, que, apenas para efeito de uma melhor compreensão, denominaremos de etapas pré-fonética, silábica e alfabética, os fatos falam por si. Basta citarmos os dados estatísticos: enquanto quase 100% das crian- ças que entram na primeira série da Educação Básica no circuito de qualida- de já se encontram alfabetizadas (etapa alfabética), entre as crianças que Editora Mediação ni)1! ( " . ' , . 1 1 1 1 li.i i > r 1111 c - 1 1 . i ' . c i i c mi ( l u u i l d do I I C . I I I I I I I I .r. .ill.il >cl i/.n l.i'. li.ni i l ic f . i in ,i 10",,, c m,iis (lo '>()",, (lo lol . i l ' .c cl li oi il i ,ii 11 c m níveis I I I K I . I I S do processo de alfabetização (pré-fonética). Essas crianças demorarão um ou dois anos para alfabetizar-se. Enquanto a alfabetização de todas as crianças de um grupo se dará no início da primeira série no circuito de qualidade, é possível afirmar que apenas na metade da terceira série todas as crianças estarão alfabetizadas no circuito do desânimo (sem considerar, obviamente, aquelas crianças que perderam um ou dois anos por repetência, ou aquelas que "deserta-i . i in" , isto é, que foram expulsas de forma encoberta pela escola). Os dados que serão expostos a seguir foram coletados em distin- tos ambientes (urbano, rural-urbano e rural) e em instituições do circui- to de qualidade e do circuito do desânimo do Estado de Merida nos anos de 2000 e 2001, a partir do projeto Serendipity. Chama a atenção a coincidência desses dados com os primeiros que coletamos com relação aos níveis de alfabetização pré-escolar e nas primeiras séries da Educação Básica em Porto Ayacucho, Estado do Ama- zonas, durante os anos de 1997 e 1998. Perfil da alfabetização Perfil do pré-esco ar - 3" trimestre Pré-fonético Silábico Alfabetizado Pré-escolar rural pobre 100% 0% 0% Pré-escolar público urbano pobre 100% 0% 0% Pré-escolar público urbano de classe média baixa 40% 50% 10% Pré-escolar privado urbano de classe média alta 0% 40% 60% Perfil da primeira série - 1° trimestre Pré-fonético Silábico Alfabetizado Escola pública rural pobre 80% 15% 5% Escola pública rural-urbana de classe média baixa 50% 40% 10% Escola pública urbana de classe média baixa 30% 60% 10% Escola privada de classe média alta 0% 15% 85% Hditora Mediação O fracasso escolar O fracasso escolar só existe no circuito do desânimo. Que fenômeno é esse que só castiga os alunos provenientes dos setores populares, os filhos do povo, e deixa imunes os alunos provenientes dos setores privilegiados? O fracasso escolar se expressa como: repetência, desistência e baixo rendimento. O que está na base do fracasso escolar? Como se explica sua distribui- ção na sociedade? Qual é o fator mais importante - se não o único - em sua determinação? É evidente que o fator causal do fracasso escolar, o fator comum que subjaz às suas três expressões, tem relação direta com a língua escrita, com a alfabetização inicial e com a compreensão da leitura. As crianças: - REPETEM porque não se alfabetizam nem em oportunidade e nem na forma prevista por seus professores; - DESISTEM após dois ou três anos de repetência, porque não termi- nam de aprender a ler e a escrever, e; - APRESENTAM BAIXO RENDIMENTO porque não compreendem o que lêem, não podem estudar, não podem refletir sobre o que lhes é ensinado. A PREVENÇÃO D O FRACASSO ESCOLAR PASSA PELA PROMO- ÇÃO DA AQUISIÇÃO E USO EFICIENTE DA LEITURA E DA ESCRITA. É importante destacar que o termo "fracasso escolar" é particular- mente apropriado para ser utilizado nesse contexto, porque se refere não ao fracasso das crianças, nem dos professores e muito menos dos pais, mas sim ao fracasso da escola, do sistema educacional que não está capacitado para alcançar os resultados esperados, de cumprir com a missão que a socie- dade, atualmente, o encarrega. O fracasso escolar tem três expressões que são: baixo rendimento, repetência e desistência. Sem a menor dúvida, o fator causal que subjaz a essas três expressões não é outro que o domínio insuficiente da língua escri- ta. Os alunos têm baixo rendimento durante toda a escolaridade (incluindo a universitária), porque não dominam a língua escrita, não entendem o que devem ler para aproveitar seus estudos. Na primeira etapa da Educação Bási- ca, as crianças repetem uma, duas, três vezes e finalmente desistem (melhor dizendo, a escola os expulsa de forma não confessa), porque não cumprem com as exigências que o professor lhes impõe com relação à língua escrita. Por outro lado, a repetência representa um golpe duríssimo às expectativas de futuro de uma criança. As crianças que repetem, estatisticamente falando, são crianças de alto risco, já que têm o dobro ou o triplo de probabilidades de não terminar sua escolaridade básica. Por que as crianças repetem? Porque seus professores pensam que elas não aprenderam o que deveriam ter aprendido no ano letivo. Mas cuidado: Editora Mediação essa aprendizagem a que fazem referência os professores diz respeito pura e exclusivamente à leitura e à escrita. Dito de forma mais clara: as crianças que ii p e i e m são aquelas que não se alfabetizaram no tempo e da forma que os professores consideram que elas deveriam fazer. Nenhuma criança repete por- que não aprendeu história, geografia, biologia e nem sequer porque não apren- deu matemática. O assunto está na leitura e na escrita e, mais precisamente, na alfabetização inicial, que é o critério para promover ou reprovar, o termômetro que decide se a criança segue adiante ou não em sua escolaridade. A educação que temos é ruim - "é uma fraude", "é um desastre", disseram as próprias autoridades ministeriais em mais de uma ocasião - por- que sua qualidade é pobre, porque há muitos repetentes e muitos desistentes. Mas quem são os repetentes e, posteriormente, quem são os desistentes? Não são filhos de médicos, de advogados ou de outros profissionais, tampouco são filhos de comerciantes que tiveram êxito, de empresários ou de proprie- tários de terras. Não, são filhos dos assalariados mais pobres, de domésticas, de camponeses ou trabalhadores desempregados. Os repetentes são proveni- entes dos setores mais vulneráveis da sociedade.Tampouco repetem as crian- ças que frequentam os colégios privados de melhor desempenho, pertencen- tes ao "circuito de qualidade", mas sim os que frequentam as escolas públicas mais pobres, as pertencentes ao "circuito do desânimo". Então, cabe reconhecer que a distribuição das crianças que se encon- tram ameaçadas pelo fracasso escolar não é homogênea, e nem fruto do azar: depende de sua condição socioeconómica. As crianças mais afetadas pelo fracasso escolar são, precisamente, as que chegam à escola com menos infor- mação, com menos conhecimentos prévios sobre a leitura e a escrita, perten- centes a meios familiares que não puderam contribuir com o êxito escolar como podem fazer aquelas de meios privilegiados, e com menos capacidade para recuperar terreno e o tempo perdido. A tudo isso, que é o primordial, agregam-se as dificuldades materiais e a cultura da pobreza que podem preva- lecer no meio social dessas crianças, e teremos a verdadeira dimensão do fracasso escolar: a da injustiça social. A alfabetização A Educação Básica, em sua primeira etapa, tem um objetivo específico (juntamente com outros mais amplos, mais ambiciosos e necessariamente me- nos precisos): ensinar as primeiras letras, quer dizer, alfabetizar seus alunos. Essa alfabetização inicial é um processo de índole cognitiva, produto da interação da criança com materiais escritos e com adultos leitores, que tem seu início nos primeiros anos de vida e que termina quando a criança "enten- de" os fundamentos de nosso sistema alfabético de escrita. Dito de outro modo, uma criança está alfabetizada quando é capaz de reconhecer as letras, de fazer a correspondência de um som para cada letra ou conjunto de letras, e vice-versa, de fazer a correspondência de uma letra Hditora Mediação ou conjunto de letras a cada som. Por exemplo uma criança alfabetizada escreve as letras M-Ã-O quando seu professor lhe dita .1 palavra "m io " e e \ i i eve i .1 as le i ras I U A quando seu p ro fessor lhe ditar a palavra " lua". D e maneira inversa, quando seu professor lhe apresenta a palavra "macaco", a criança alfabetizada pronunciará os sons /m/-/a/-/k/-/a/-/k/-/o/ e pronunciará os sons /R-/o/-/m/-/a/ quando o professor lhe apresentar a palavra "Roma", mesmo quando não sabe o significado dessa palavra. Todo indivíduo, criança ou adulto alfabetizado pode escrever pratica- mente tudo o que lhe for ditado e pronunciar tudo o que lhe for mostrado por escrito, mesmo que não compreenda o que está escrevendo ou lendo. Por exemplo, qualquer adulto poderia escrever em um ditado a palavra "cucurbitácea", mesmo que desconheça o seu significado, e igualmente pode- rá pronunciar essa palavra ou outras como "trasgo" ou "buxácea"3(palavras pouco frequentes no idioma) se lhe forem apresentadas por escrito, sem saber o que querem dizer. Isso nos permite definir claramente o que é a alfabetização e também diferenciá-la, claramente, da leitura e da escritura. Estar alfabetizado não quer dizer saber ler e escrever. Saber ler é compreender o que se lê, e saber escre- ver é saber esculpir as ideias segundo as convenções da escrita; saber escre- ver não é simplesmente pôr no papel as coisas tal como se diz falando. Em nosso país - e cada vez mais em todo o mundo - a grande maioria da população está alfabetizada. Mas nem todos - ou melhor, apenas uma mi- noria - sabe ler bem, isto é, são poucos os que entendem o que dizem os livros. Em geral, todos os que sabem ler bem estão alfabetizados, mas nem todos os que estão alfabetizados sabem ler bem. Por isso não devemos con- fundir alfabetização e leitura, que são duas coisas completamente diferentes. A sociedade deu à escola a responsabilidade de alfabetizar seus alunos (como se diz: "a escola ensina as primeiras letras"). E há quase 200 anos a escola tem cumprido essa missão, contribuindo significativamente para a alfabetização de uma grande parte da população. Mas cuidado: a escola alfabetizou, sim, muitas crianças, mas não ensinou quase ninguém a ler, porque, como já vimos, a maioria das crianças que se alfabetiza nos primeiros anos da Educação Básica chega à segunda etapa, à terceira etapa e à universidade, sem compreender ou tendo muitas dificuldades para compreender o que lê. Por isso é que não gosta de ler e prefere ver televisão ou fazer outras coisas que não tenham a ver com a leitura, porque: quem vai querer ler se não entende o que os livros dizem? Já dizia Simón Rodrigues há dois séculos: No será ciudadano el que para el ano de tantos no sepa leer y escribir - han dicho los Congresos de América. 3 N.T.: O autor utilizou a palavra boj como exemplo. Nesta tradução, buscou-se uma palavra em português de sentido próximo e também pouco frequente em nossa língua. Editora Mediação I l i i i n n i i i i c". I M M . I I I I I - < i ni i i-'.|ii'( l i i .1 l.i Ici i jMi. i . Icei l.i i". [.ni ni como hablarla C O M pureza; pero ( <| i i ( ' IciM.i cl (|i ic no entienda los libros? ide qué h.ibl.ii ,i H que no tenga ideas? No será menester ir muy lejos a buscar un ejemplo con qué responder a esta pregunta. El Tratado sobre las Luces y sobre las Virtudes Sociales, <en cuántas manos caerá que se dignen abrirlo?... Visto el título ^cuántos habrá que quieran leer el libro?... emprendida la lectura <cuántos la acabarán?... <cuántos entenderán bien lo hayan leído? ... <cuántos partidários habrá ganado la Instrucción Jeneral?... <cuántos la protegerán activamente?... y <quién la pondrá en práctica?!...?!....?! IDEAS!... IDEAS!... primero que letras. Na primeira etapa da Educação Básica, a alfabetização condiciona a aprovação escolar da criança. Segundo o "tenha aprendido ou não a ler", a criança passará para a série seguinte ou ficará retida. Com esse critério, a criança pode repetir dois ou três anos - sem que isso lhe garanta a alfabetiza- ção - ao final dos quais a escola lhe abre as portas para que não insista mais - quer dizer, os expulsa de maneira encoberta. Hoje em dia sabemos muitas coisas sobre a alfabetização, coisas funda- mentais que desconhecíamos até não muito tempo atrás. Coisas que todo professor deveria saber. A alfabetização se define como o conhecimento do princípio geral do sistema alfabético da escrita, vale dizer: as letras representam os sons da fala. A criança não torna seu esse conhecimento de um dia para o outro; ele é o resultado de um processo que começa por volta do segundo ano de vida, que tem uma duração não menor do que três ou quatro anos e que transcorre durante três grandes períodos: pré-fonético, silábico e alfabético. Esse processo é universal, um processo que todas as crianças passam, sucessivamente, pela sequência de períodos e subperíodos mencionados. No entanto, existem diferenças fundamentais na duração e no conteúdo do pro- cesso, que dependem diretamente do contato significativo que a criança te- nha com a leitura e com a escrita durante os primeiros anos de sua vida. "As crianças provenientes de ambientes 'leitores'" - equivale a dizer de lares ou meios nos quais existem pessoas que lêem e escrevem naturalmente no cotidiano, aqueles para os quais a leitura e a escrita fazem parte de suas vidas - se alfabetizam sem dificuldade, iniciam o processo antes dos dois anos de idade e o terminam rapidamente porque, antes dos seis ou sete anos de idade, já "sabem ler". Essas crianças manejam muitos conhecimentos (implícitos, inconscientes) sobre a língua escrita; o processo de alfabetização é rico em conteúdos. "As crianças provenientes de ambientes não leitores" - lares ou meios nos quais não existem usuários competentes da língua escrita, pessoas que I i l i l o r a M e d i a ç ã o i c i em, pei in . i i i cn lemcnie , á leitui ,i e ,i cs( i I I . i pai a satisfazei sua-, no< essi d.ides < i iiiiiinii ativas o nitelec mais basu as, ambientes onde a leitura não consti- tui uma prática social significativa - se alfabetizam com grandes dificuldades, ii ni iam o processo tardiamente, depois dos três anos de idade e, ao termina- rem, o fazem após vários anos de esforço; aos seis ou sete anos de idade estão cursando a primeira etapa do processo, longe de "saber ler". Quando por fim se alfabetizam, possuem conhecimentos escassos e rudimentares sobre a língua escrita; o processo de alfabetização é pobre em conteúdos. A discriminação: a diferença é sinônimo de desigualdade Essa diferença não depende da inteligência da criança, da preocupação dos pais, nem da capacidade ou do empenho dos professores. Depende do contato prévio com a língua escrita, melhor dizendo, da possibilidade que teve a criança em manter uma interação significativa com o escrito durante os primeiros anos de sua vida. Essa diferença, definidora e definitiva, injusta em todos os sentidos, deve ser considerada como um escândalo intolerável em uma educação que se quer democrática. "É definidora", já que a tomando como base define-se a avaliação esco- lar da criança - desde antes de entrar na escola básica e daí por diante como um fator determinante da repetência e da desistência escolar. O domínio insuficiente da língua escrita se faz sentir mais tarde no Ensino Médio e na universidade, nos resultados negativos no ingresso às car- reiras mais exigentes nas universidades de maior prestígio e nas oportunida- des de emprego, entre outros. "É definitiva" porque, longe de atenuar-se com o tempo, agrava-se. Desde os primeiros anos da escola básica vai-se criando uma brecha entre os que dominarão a língua escrita e aqueles que não o farão. A diferença do ponto de partida entre as crianças provenientes de meios privilegiados e de crianças provenientes de setores pobres, ou marginais, nunca diminui e muito menos se recupera, porque não se trata de um atraso temporal, mas sim de um abismo cada vez mais sem salvação. Não é pertinente entrar nessa discussão contrapondo uma "boa" educa- ção privada ou pública, cujas supostas virtudes se quer pôr em evidência, a uma suposta "má" educação, cujas deficiências se pretende sublinhar a todo o mo- mento. O que deve ser posto em discussão é o circuito do desânimo, expoente majoritário da educação venezuelana, tornando-o um circuito de qualidade. Trata-se de democratizar a educação garantindo não apenas o acesso universal, mas também a permanência e o ótimo aproveitamento da mesma, melhorando a qualidade em todos os níveis e modalidades do sistema, para tornar realidade a igualdade de oportunidades. "Na luta contra a exclusão escolar, deve-se am- pliar a cobertura. Mas ao mesmo tempo, deve-se elevara qualidade do proces- so para garantir a permanência, prosseguimento e promoção dos alunos". As- sim consta no documento "Aspectos Propositivos do Projeto Básico Nacional". Editora Mediação E, a esse respeito, nosso aporte consiste em descrever e em promo- ver a tomada de consciência sobre o papei Fundamental que assumira i língua >">< rua, o seu ens ino e aprendizagem, e ao uso da mesma no seio de uma pi anca social no contexto escolar, para prevenir o fracasso escolar e elevar a <nulidade do processo educacional em todos os seus níveis. Romper o círculo vicioso As crianças pobres chegam às escolas pobres, que oferecem uma edu- cação de má qualidade, em péssimas condições do ponto de vista de sua alfabetização. Espera-se uma escolaridade com baixo ou baixíssimo rendimento, a probabilidade de repetência é sumamente elevada para elas, e após dois ou três anos de repetência também aumenta a probabilidade de que abandonem o sistema escolar, para engrossar as filas dos excluídos da sociedade, frequen- temente estigmatizados e ressentidos. Os que seguem estudando cursarão o Ensino Médio com notas apenas suficientes e se graduarão bacharéis com médias que superam apenas a marca dos 10 pontos (mas é um luxo, dirão aqueles para os quais "as uvas estão verdes" e que não têm outro remédio senão aceitar essas qualificações, obtidas às custas de súplicas aos professores para que lhes subam essa pontuação, responsável pelas oportunidades no futuro...). Esses egressos não chegarão às universidades nem às carreiras de prestígio. Muito pelo contrário, escolherão as profissões que pode- rão competir com essas médias tão baixas, de nível universitário ou técnico supe- rior, entre as quais estão vinculadas as de docência. E aqui se fecha o círculo. Maus estudantes, professores mal preparados, que oferecerão ensino a crianças que vêm de condições desvantajosas. Como as coisas poderão, assim, ser mudadas? Devemos romper esse círculo vicioso; esse e não outro deve ser o obje- tivo imediato de um projeto revolucionário. Para isso, devemos começar por identificar na língua escrita, melhor dizendo, na aprendizagem e no ensino da língua escrita, senão o único, pelo menos o principal elemento determinante do fracasso escolar. E aproveitar, seguidamente, os novos conhecimentos que a linguística traz sobre a língua escrita, particularmente, da psicolinguística e da sociolinguística. Na verdade, hoje em dia, temos capacidade de compreender muito melhor o problema do fracasso escolar e de propor soluções alternativas verdadeiramente efetivas, na medida em que conhecemos muito mais sobre a leitura e a escrita. E necessário colocar o guizo no gato. Deve-se assinalar a língua escrita como um instrumento de discriminação e marginalização social, e guindar essa denúncia no pescoço do gato feroz, que não é outro senão o sistema educacional improdutivo e injusto. Quem coloca o guizo no gato? Ninguém mais que aqueles que sofrem na própria carne, os que tiveram que suportar, como os ratos do conto, suas ameaças e arbitrariedades. Para isso assumimos os riscos implicados em toda inovação, entre os quais o de que não é pequeno o de ser devorado pelo sistema, muito abatido, mas não desarmado... Editora Mediação Sobre a natureza d o s erros, especia lmente o s de grafia Sírio Possenti 1 Diria que acertaram quando me escolheram para a tarefa de falar aqui sobre essa questão, e logo me explico, para que não pareça petulância: como não entendo nada dos variados déficits - devidos a problemas neurológicos mais ou menos graves - , nem de etapas de aquisição da escrita, tendo lido sobre isso umas poucas páginas, creio ser a pessoa indicada para mostrar em que medida um conjunto de fatos é de natureza fundamentalmente linguística, não devendo ser, em princípio, objeto de qualquer tipo de medi cal ização. Não quero subestimar o saber dos profissionais que se dedicam a diag- nosticar e a tratar de pessoas acometidas de distúrbios da fala e/ou da escrita, mas apenas deixar claro que um conhecimento básico dos fatores que regem algumas das manifestações de uma língua, com reflexo na escrita, explicam a maior parte desses "desvios". Para ir direto ao ponto, diria que, em princípio, nunca há problema - exceto escolar e social, isto é, de prática, de pedagogia e de permanência na escola - no que se refere a: a) letras que faltam; b) letras que sobram; c) letras trocadas; d) palavras que se separam e palavras que se juntam; e) acentos demais ou de menos; f) falta de pontuação; g) excesso de pontuação; h) letras invertidas, em espelho, etc. O prestígio da grafia Nas telas dos televisores, tivemos durante algum tempo (em torno de 96/97) grande evidência do prestígio e da relevância que nossa sociedade atribui à ortografia. Numa campanha da Unicef em favor de mudanças na educação, aparecia sobre a bandeira nacional a palavra "educasão", grafada com um erro. Esse erro simbolizava o estágio problemático da nossa educação. Em seguida, apagava-se o erro e grafava-se corretamente a palavra, o que simbolizava a eliminação dos problemas. Assim, a educação é associada (não só nessa propa- ganda) ao domínio da ortografia correta. Essa concepção merece comentários. ' Mestre, Doutor e Livre-docente. Professor no Departamento de Linguística do IEL, UNICAMP/CNPq. Autor dos livros: "Discurso, estilo e subjetividade" (S. Paulo, Martins Fontes); "Por que (não) ensinar gramática na escola"(Campinas, Mercado de Letras); " O s humores da língua" (Campinas, Mercado de Letras); "Mal comportadas línguas" (Curitiba, Criar Edições); "A cor da língua" (Campinas, Mercado de Letras). 27 Editora Mediação Sempre que se discute a questão do ensino, em especial o ensino da língua, fala-se mais do que de qualquer coisa dos erros ortográficos. Penso que há para isso três razões: I. é o domínio da língua escrita (e não, p. ex., o domínio da matemáti- ca) a prova fundamental de escolaridade; 1. circula uma concepção equivocada de saber linguístico. Para uma certa ideologia, para que alguém seja considerado inteligente/sábio, é neces- sário que domine a ortografia. Como consequência, os erros ortográficos são considerados sérias deficiências. Chega-se a supor que os que os come- tem têm problemas neurológicos graves. 3. a ortografia é de fato um campo muito simples. Qualquer um pode saber ortografia, pois se trata de um saber sem sofisticação. É apenas questão de um pouco de atenção, de um pouco de prática. Além disso, um dicionário resolve qualquer dúvida, pois os problemas se reduzem a poucas alternativas e elas são relativamente simples. O domínio da ortografia é, no entanto, um saber quase irrelevante, exceto por seu valor simbólico. Mas dá prestígio. Também outros aspectos das línguas têm a ver com prestígio e não, por exemplo, com características estruturais e com funções comunicativas ou cognitivas. "Boa pronúncia" ou "boas concordâncias" produzem boas representações dos falantes. A chama- da linguagem "correta" é associada à inteligência e à capacidade de raciocínio, e a linguagem "errada", à incapacidade. Em geral, sem qualquer fundamento. Pode-se conhecer muito ou ser muito ignorante em qualquer dialeto. Nessa linha de valorização social de certos índices, a ortografia funciona como um distintivo: quem a conhece passa por sabido, quem não a conhece, por incapaz (não apenas ignorante, mas incapaz). Por isso, nas escolas, insiste-se tanto na ortografia. Parece que pouco importa que se leia ou se escreva relati- vamente pouco. O importante é que um aluno não tenha problemas ortográfi- cos. Alunos são reprovados aos milhares - quando não são até considerados doentes e remetidos aos psicólogos - com base na ortografia que praticam na fase de aprendizagem. E são cada vez mais numerosos os que são enviados a psicólogos e a fonoaudiólogos,como se fossem doentes. Enquanto isso, outros milhares são aprovados apenas pelo fato de que aprenderam a não errar em suas "redações", frequentemente meras cópias dos pseudotextos das cartilhas. Diante de erros ortográficos, deveríamos fazer como o avô de Sartre. No livro "As palavras", Sartre conta um fato de sua infância que provavelmen- te a maioria dos leitores esquece, mas que é dos que mais me chamaram a atenção. Eis o trecho: "Meu avô decidira matricular-me no Liceu Montaigne. Certa manhã, conduziu-me à casa do diretor e lhe gabou os meus méritos; meu único defeito era ser adiantado demais para a minha idade. O diretor aceitou tudo: puseram-me no terceiro ano primário e cheguei a acreditar que ia me dar com as crianças de minha idade. Mas não: após o primeiro ditado meu avô foi convocado às pressas pela diretoria; voltou enfurecido, tirou de sua pasta um Kditora Mediação m.ilditi > papel ( i «hei lo do >;ai i an< l ios, de I I I . I I K lias e |i I J H X I i > sobi <• .1 mesa era a cópia que eu entregara. Haviam-lhe chamado a atenção para a ortogra- fia lc hpen çovache ême de ten - e tein.11 am explicar-lhe que o meu lugar era no primeiro ano. Diante do lapen çovache, minha mãe caiu na gargalhada; meu avô a interrompeu com um olhar terrível. Começou por me acusar de má vontade e por me ralhar pela primeira vez em minha vida, depois decla- rou que me haviam menosprezado; na manhã seguinte, retirou-me do liceu e se indispôs com o diretor". (Para que fique mais claro ao leitor: a grafia oficial da frase francesa do ditado de Sartre é a seguinte: Le lapin souvage aime de thym - o coelho selvagem ama o tomilho). Sartre, como qualquer garoto de sua idade e escolaridade - embora já fosse bastante lido - escreveu aquela frase mais ou menos com base em sua pronúncia corrente. E seria rebaixado na escola por causa dessa incompetência ortográfica, coisa parecida com decisões que conhecemos muito bem. A mãe de Sartre achou muita graça na inovação ortográfica de seu filhinho. Nenhuma novidade também nesse fato. Mas o avô tirou Sartre da escola que o rebaixaria por não saber ortografia e o colocou em outra. Sábio avô. Gente assim faz falta. Há algum tempo, em reportagem sobre possíveis problemas decorren- tes de uma política escolar "sem reprovação", a mãe de um aluno fazia um depoimento para mostrar a gravidade da situação. O exemplo decisivo que ela fornecia era a grafia "serumano" (por "ser humano"), em uma redação de seu filho, cursando a oitava série. O caso merece pelo menos dois comentários: a) seria desejável que esse aluno já estivesse escrevendo "ser humano"; b) mas será que a mãe sabe que uma das mudanças implicadas pela reforma ortográfica que dorme no Congresso (que durma para sempre) seria a grafia "superomem" - sem hífen e sem h - no lugar da atual "super-homem"? A diferença é pouca. Do ponto de vista dos grupos de força (vocábulos fonológicos), nenhuma. Das razões dos erros Para termos razoável clareza sobre a questão, creio que bastaria ler "Erros de escolares como sintomas de tendências linguísticas no português do Rio de Janeiro", que é um texto de Mattoso Câmara escrito em 1957, analisando redações (e ditados) de alunos (62 crianças de I I a 13 anos) do antigo "exame de admissão" ao Ginásio. Os alunos são da zona sul (se fossem de outra região, diz Mattoso, os erros seriam em parte diferentes) e, com base neles, Mattoso imagina que pode detectar tendências de mudança do português coloquial culto. Mattoso constata 20 fenômenos, dos quais interessam: I. debilidade do acento tônico no interior do grupo de força. Quando prevalece a tonicidade do último vocábulo, provoca perturbações em ditados em dois sentidos: ausência de marcação da sílaba tônica e marcação de acento na sílaba átona, porque enunciada com certo vigor. Isso provoca erros como: "com esta' e outras diversões", em sua "confortável cama", "José que só a virá no Editora Mediação momento exato". Por Insistência estilística "tremenda cicurl|u" e "ali pendidos"; "/><>/ entro os inúmeros troncos" c "ele e loro";[seria bom explicitar, ou pelo menos exemplificar, o que ele chama de grupos de força, também chamados palavras fonológicas: sequências como "a escola", "bem alto", "faça assim", etc, são produzidos, do ponto de vista articulatório, com determinadas característi- cas, especialmente as ligadas a acento: assim, elementos átonos se ligam aos tôni- cos, mas mesmo dois tônicos se unem para formar uma unidade maior; que a escrita oficial os separe é efeito de uma convenção que se pode alterar]; 2. ausência de a átono aberto determina a não marcação de acento de crase - "chegamos ao destino as 10:15; assim que cheguei a fazenda"; mas, em ditados, encontra-se "firmar à mão no tronco", "José, que há vira", "que estão á brincar"; [é um lugar comum que uma das diferenças entre o português de Portugal e o do Brasil é que não acentuamos a crase (isto é, na feia), enquanto eles o fazem; daí não distinguirmos "a casa" de "à casa" - nosso único /a /tônico é a forma verbal "há"]; 3. a anulação da oposição entre e - / e entre o - u em sílaba pré-tônica [mais clara ainda se pós-tônica], em favor de [i] - [u] explica "acustumado", "sintiu-se", "traisueiro" e, por hipercorreção, por exemplo "romou" (por "rumou"); como consequência da neutralização o - u , e porque o /n/ nasala auto- maticamente a vogal seguinte, aparece "ora no ramo..." (num ramo), "enúmeros troncos" e até "em números troncos" (inúmeros troncos); [assim, deveríamos entender que são absolutamente previsíveis erros como mininu/meninu; coruja/ curuja, etc, e também, por hipercorreção, menistro, etc; verificar que tais erros só ocorrem em sílabas átonas - nunca se vê uma grafia como "voei"]; 4. a nasalização do /' - inicial (por analogia a formas com prefixo in-) leva a formas como inquilíbrio e, por ultracorreção, a enquilíbrio; 5. redução de en - a in -: insolarados, imbarcação [que é efeito da variação e -i]; 6. tendência a nasalar u e / final (sicurijum) - nasais em final de sílaba sempre são problemáticas; 7. ausência de contraste entre [ow] e [o] produz loro (louro), mas também poupa e polpa (popa) - também pela neutralização de [I] e [w]. Mais: autas árvores (altas), causa azul (calça), a cobra siuvou no ar (silvou), impusso (impulso), al longe (ao), ciovol no ar e s/7/Vou no ar (este, num enforco para manter o /...); [observe-se que não se trata simplesmente de troca de I e u, simplesmente, mas apenas em final de sílaba, rigorosamente]; 8. ditongação de vogal diante de consoante chiante: treis, mais (mas); mas (mais) perto; trasçoeiro (traiçoeiro); 9. a precariedade de / e r intervocálicos produz sua intercalação em formas como tapúlio e tapúrio (tapuio) - e até, tatúlio, por assimiliação das consoantes [observe-se: em posição a intervocálica]; 10. também aparece tabuio, o que permite falar da famosa troca de letras, especialmente em posição intervocálica. A explicação é que se confun- de a surda intervocálica com sonora - porque ambas são fracas. Assim, em ditados aparece trejo, sigue-sague, fazenta (fazenda), peganto (pegando), pentidos (pendidos), sincra (singra), um taqueles (um daqueles) - porque a consoante é forte depois de nasal (como prova honra); líditora Mediação 11. esvalmento do / final tlner» (singrar), podiam se (podiam ser) e, c o m o s o m p i c , ,i h i p e u oi i cç.io: ele esl . i / (está) olhando..., o r o s t o estarei tampada uma alegria [caso clássico de verdadeira mudança]; 12. o artificialismo de contrações pronominais como "mo" leva a uma obsessão de tal contração - daí contar-mos; [verificar relação com acento, que é o mesmo ...]; 13. a mesma falta de integração de morfemas na língua coloquial produz formas como deixa-ra, se ele passa-se (passasse), acorda-se (acordasse) [Encon- trei