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CENTRO UNIVERSITÁRIO – CATÓLICA DE SANTA CATARINA CURSO DE DIREITO PESQUISA EM CIÊNCIA JURÍDICA - TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO IAGO LUÍS CESCONETTO ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DOS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS SOB A VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 JARAGUÁ DO SUL 2017 IAGO LUÍS CESCONETTO ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DOS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS SOB A VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, do Centro Universitário – Católica de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel. Orientador: Prof. Raphael Rocha Lopes JARAGUÁ DO SUL 2017 IAGO LUÍS CESCONETTO ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DOS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS SOB A VIGÊNCIA DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, do Centro Universitário – Católica de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel. Orientador: Prof. Raphael Rocha Lopes COMISSÃO EXAMINADORA Prof. Me. Luiza Landerdhal Christmann Centro Universitário – Católica de Santa Catarina Prof. Raphael Rocha Lopes Centro Universitário – Católica de Santa Catarina Prof. Centro Universitário – Católica de Santa Catarina Jaraguá do Sul, __ de ________ de 2017. Aos meus pais, fontes inesgotáveis de afeto e compreensão. À minha namorada, protagonista em minha inspiração e felicidade. AGRADECIMENTOS Agradeço à professora Luíza, sempre prestativa nos auxílios e preocupada com o bom andamento do trabalho. Ao meu orientador, professor Raphael, que foi muito solícito durante todo o processo de orientação. Aos professores que me ministraram as disciplinas atinentes ao Direito Empresarial, que transmitiram os estímulos necessários para surgir o interesse na pesquisa do tema do trabalho. À minha ex-supervisora de estágio, Christiane, por me ensinar os primeiros passos na vida jurídica profissional, sempre com muita eloquência e amor pelo que faz. Aos meus atuais supervisores de estágio, Kesley e Daniel, por mostrar todos os méritos e dificuldades do exercício da advocacia sempre de forma muito pedagógica e dinâmica. “Cada um é o que é, conforme o quis, e – salvo nos casos em que aparecem males irreparáveis – será aquilo que se proponha ser, mas pela única via possível: o conhecimento.” Carlos Bernardo González Pecotche, 2012 RESUMO O presente trabalho teve como objetivo geral investigatório analisar os critérios de aplicação da teoria ultra vires societatis nas sociedades empresárias sob a vigência do Código Civil de 2002, junto ao acervo jurisprudencial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça, bem como quanto à aplicação do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, tendo em vista a incompatibilidade da segurança jurídica negocial dos sócios em face do intenso fluxo de mercado e da proteção ao terceiro de boa-fé. Diante de tal problemática, estabeleceu-se como hipótese os referidos tribunais mitigarem a aplicação da teoria ultra vires societatis, considerando a proteção ao negócio jurídico concretizado com terceiro de boa-fé e da dinamicidade das relações comerciais que permeiam o sistema econômico, conforme entendimento traçado no Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, bem como supõe-se também que as citadas Cortes Jurisdicionais constituem hipótese contra legem de mitigação considerando a percepção de benefício pela sociedade empresária no negócio jurídico discutido judicialmente. Em relação ao marco teórico foram utilizados os seguintes: GONÇAVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil; REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial; VON ADAMEK, Marcelo Vieira; AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, Erasmo Valladão. Vinculação da sociedade: análise crítica do art. 1.015 do Código Civil; e BRASIL, Conselho da Justiça Federal. 3. Jornada de Direito Civil. Enunciado 219. In: JORNADA DE DIREITO CIVIL, 3., 2005, Brasília, DF. III Jornada de Direito Civil. Utilizou-se do método indutivo, da pesquisa qualitativa, do método de procedimento monográfico e das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. O primeiro capítulo destinou-se ao conceito jurídico de administrador, representação da sociedade, teoria da aparência no Código Civil de 2002 e o conceito, histórico, inserção no ordenamento jurídico e relação com o terceiro de boa-fé da teoria ultra vires. O segundo capítulo tratou do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil e das ressalvas de aplicação da teoria ultra vires. O terceiro capítulo visou o cumprimento do objetivo geral da pesquisa. Como resultado da pesquisa, restou refutada a hipótese nos três tribunais estudados, considerando a baixa quantidade de julgados para se formar um juízo majoritário acerca do tema do presente trabalho. Palavras-chave: Teoria ultra vires. Objeto social. Administrador. Representação. Código Civil. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8 2 A TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO .................................................................................................. 11 2.1 O INSTITUTO JURÍDICO DO ADMINISTRADOR .......................................... 11 2.2 O INSTITUTO JURÍDICO DA REPRESENTAÇÃO ......................................... 13 2.3 A TEORIA DA APARÊNCIA NO CÓDIGO CIVIL ............................................ 17 2.4 A TEORIA ULTRA VIRES ............................................................................... 20 2.4.1 Histórico e conceito ...................................................................................... 20 2.4.2 A teoria ultra vires dentro da ordem jurídica brasileira e a relação com o terceiro de boa-fé .......................................................................................... 22 3 O ENUNCIADO 219 DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL ................................................................................ 27 3.1 A NÃO PRODUÇÃO DE EFEITO DOS ATOS ULTRA VIRES APENAS EM RELAÇÃO À SOCIEDADE ............................................................................. 28 3.2 A RATIFICAÇÃO DO ATO PELO ÓRGÃO DELIBERATIVO DA SOCIEDADE CASO NÃO HAJA EMBARGO ....................................................................... 32 3.3 OS PODERES IMPLÍCITOS DO ADMINISTRADOR ...................................... 37 3.4 A NÃO APLICAÇÃO DO ART. 1.015 DO CÓDIGO CIVILÀS SOCIEDADES POR AÇÕES .................................................................................................. 39 4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DOS CRITÉRIOS DE APLICAÇÃO DA TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NAS SOCIEDADES EMPRESÁRIAS ............................................................................................. 42 5.1 POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA ... 42 5.2 POSICIONAMENTO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL ........................................................................................................................ 47 5.3 POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ..................... 52 5 CONSIDERAÇÕES ......................................................................................... 57 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 61 8 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho teve por objetivo geral investigatório analisar o acervo jurisprudencial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça acerca dos critérios de aplicação da teoria ultra vires societatis nas sociedades empresárias sob a vigência do Código Civil de 2002, bem como da aplicação do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. A motivação da pesquisa consistiu no fato de que, desde a publicação do Código Civil de 2002, consistentes são as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da inserção do Parágrafo único do art. 1.015 no texto legal, tendo em vista a mitigação da teoria ultra vires nos sistemas jurídicos estrangeiros, em especial o americano e o inglês, bem como à possível sobreposição da formalidade contratual perante a celeridade dos atos e negócios que permeiam a economia brasileira, burocratizando as relações comerciais e gerando insegurança jurídica ao terceiro de boa-fé que participa de tais relações; pela vertente diversa, a teoria possivelmente garante segurança jurídica aos próprios sócios, pois evitaria que a sociedade fosse prejudicada por atos de excesso de poder de seus sócios administradores ou estranhos a seu objeto social. Deste modo, diante das divergências acerca da aplicabilidade da teoria ultra vires societatis inserida no Código Civil de 2002, tendo em vista a incompatibilidade da segurança jurídica negocial dos sócios em face do intenso fluxo de mercado e da proteção ao terceiro de boa-fé, bem como a publicação do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, indaga-se qual a posição jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul frente a essa divergência e quanto à aplicação do citado Enunciado no que tange às sociedades empresárias regidas pelo Código Civil de 2002. Diante do cenário em questão, deparou-se, a priori, com a hipótese de os referidos tribunais mitigarem a aplicação da teoria ultra vires societatis, considerando a proteção ao negócio jurídico concretizado com o terceiro de boa-fé e da dinamicidade das relações comerciais que permeiam o sistema econômico, conforme entendimento traçado no Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Outrossim, sugeriu-se também que as citadas Cortes 9 Jurisdicionais constituem hipótese contra legem de mitigação considerando a percepção de vantagem financeira pela sociedade empresária no negócio jurídico discutido judicialmente. No que tange ao marco teórico do presente trabalho, foram utilizadas doutrinas e artigos científicos concernentes ao Direito Empresarial, quais sejam: GONÇAVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010; REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010; VON ADAMEK, Marcelo Vieira; AZEVEDO E NOVAES FRANÇA, Erasmo Valladão. Vinculação da sociedade: análise crítica do art. 1.015 do Código Civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 146, p. 30-45, 2007; bem como BRASIL, Conselho da Justiça Federal. 3. Jornada de Direito Civil. Enunciado 219. In: JORNADA DE DIREITO CIVIL, 3., 2005, Brasília, DF. III Jornada de Direito Civil. O objetivo institucional desta pesquisa consistiu na produção de monografia para a obtenção do título de bacharel em direito na instituição Centro Universitário – Católica de Santa Catarina em Jaraguá do Sul. Os objetivos específicos da pesquisa foram os de tratar da teoria ultra vires societatis, apresentando seu conceito dentro do Código Civil de 2002, suas hipóteses de cabimento e a sua relação com o terceiro de boa-fé; analisar as mudanças trazidas pelo art. 1.015, Parágrafo único do Código Civil no que tange a oposição dos atos do administrador a terceiros, comparado ao período imediatamente anterior à vigência do referido dispositivo legal, bem como verificar se o mesmo foi de encontro ou ao encontro do entendimento da época; analisar as ressalvas à aplicação da Teoria Ultra Vires Societatis trazidas pelo Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal; e por fim verificar se as decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tomam como fundamento as disposições do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, implícita ou explicitamente, nos casos de atos ultra vires em sociedades empresárias. A metodologia utilizada consistiu-se no método indutivo, na medida em que melhor atendeu as necessidades que a análise impõe, haja vista que necessariamente se verificaram as decisões judiciais individualmente para que, ao 10 fim, se constituísse um entendimento por parte de cada um dos três tribunais selecionados. O lapso temporal de pesquisa dos julgados foi desde o dia 11 de janeiro de 2003, data do início da vigência do Código Civil de 2002, até a data que se realizou a busca. No que toca à análise de dados, utilizou-se da pesquisa qualitativa consistente na análise de texto, conteúdo e estudo de casos e decisões, bem como no debruçamento sobre o Código Civil e demais legislações correlatas e à doutrina especializada. O método de procedimento utilizado foi o monográfico. Por fim, referente às técnicas de pesquisa, utilizou-se da pesquisa bibliográfica e documental. Os capítulos do trabalho foram delimitados da seguinte forma. Primeiramente, foi conceituado o instituto jurídico do administrador, bem como da representação genérica e da representação no âmbito do contrato social. Em seguida dissertou-se acerca da teoria da aparência dentro do Código Civil e sua relação com o princípio da boa-fé. Após, passou-se a apresentar o conceito da teoria ultra vires bem como seu histórico, sua inserção no Código Civil de 2002 e a relação com o terceiro de boa-fé. No segundo capítulo foi tratado acerca do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, bem como suas ressalvas de aplicação da teoria ultra vires no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, no terceiro e último capitulo realizou-se a pesquisa jurisprudencial junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Superior Tribunal de Justiça, a fim de verificar os critérios de aplicação da teoria ultra vires bem com a aplicação do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. 11 2 A TEORIA ULTRA VIRES SOCIETATIS NO ORDENAMENTO JURÍDICOBRASILEIRO Antes de adentrar ao campo da teoria ultra vires e de como a mesma se comporta dentro da ordem jurídica pátria, cumpre abordar de forma sintética acerca de dois institutos jurídicos intrínsecos ao tema abordado: os do administrador da sociedade empresária e da representação da sociedade empresária por aquele. Após tais apontamentos, oportuno se torna dissertar acerca da teoria da aparência dentro do Código Civil Brasileiro, por possuir conteúdo que confronta com a teoria ultra vires. 2.1 O INSTITUTO JURÍDICO DO ADMINISTRADOR O Código Civil não traz um dispositivo que explana o conceito jurídico de administrador dentro da sociedade. Todavia, o art. 1.011, §2º do referido diploma legal (BRASIL, 2002) expõe que: “Aplicam-se à atividade dos administradores, no que couber, as disposições concernentes ao mandato”. Desse modo, cumpre remeter-se ao conceito legal do instituto jurídico do mandato, trazido pelo art. 653 (BRASIL, 2002): “Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. [...]”. Ao firmar o elo do conceito trazido pelo dispositivo legal supra com o universo jurídico da sociedade e de sua representação, pode-se afirmar que o administrador é a pessoa que recebe poderes da sociedade para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A sociedade, como pessoa de existência exclusivamente legal, necessita de pessoas naturais para atuar impulsionada por seus direitos e obrigações. Nesse sentido, indispensável se torna a criação de duas áreas distintas de atuação, sendo a de deliberação colegiada, como formadora da vontade; e a de execução das vontades pré-estabelecidas, por meio da figura do administrador (GONÇALVES NETO, 2010). Nas palavras de Gonçalves Neto (2010, p. 209): 12 Administrador é a pessoa que executa a vontade da sociedade; é quem se apresenta pela sociedade nas relações jurídicas que ela mantém com terceiros. É o órgão da sociedade que exterioriza suas ações no mundo real. Em análise do entendimento do autor, compreende-se que o administrador é o sujeito que exerce ativamente a vontade da sociedade, regulando e gerindo as atividades que envolvam relação com terceiros. Para fins de conceituação, oportuno citar que a sociedade empresária explora uma empresa (COELHO, 2012). A empresa, na forma do art. 966 do Código Civil, constitui-se em atividade econômica organizada, ou seja, ações que geram movimentação financeira de forma sistematizada (BRASIL, 2002). Tal atividade econômica deve ser previamente estipulada em contrato social, constituindo o objeto social da sociedade, ou seja, a que fim se destina. Deste modo, os administradores realizam atos a fim de cumprir com a atividade econômica da pessoa jurídica, dentro dos poderes que lhe foram atribuídos no contrato social, sempre perseguindo o referido objeto social. Em que pese o legislador civilista não tenha positivado um conceito fechado da figura do administrador dentro da sociedade no Código Civil, dá-se considerável atenção a este órgão da pessoa jurídica, tendo em vista haver seção específica para sua figura no subtítulo que trata das sociedades personificadas. Dentre as regras, cita-se o art. 1.011, caput (BRASIL, 2002), que expressa a necessidade de o administrador agir com cuidado e diligência em suas funções, como se o negócio seu fosse. Como analisa Gonçalves Neto (2010), a interpretação do dispositivo legal supra mencionado deve levar em conta que o exercício da administração de uma sociedade empresária demanda a assunção de riscos, de acordo com a atividade que lhe é objeto social. Caso seja aplicada literalmente, pode levar ao tolhimento da discricionariedade dos atos do administrador, o que vai de encontro à natureza de sua função, propriamente dinâmica e constituída de decisões rápidas. O administrador ainda pode ser sócio da sociedade ou não sócio, sendo este último nomeado em ato separado, que não no contrato social, como funciona com o primeiro. Segundo Ramos (2017), a diferença entre tais figuras reside no fato de que os poderes do administrador que é sócio são irrevogáveis, exceto por decisão judicial que reconheça a existência de justa causa para sua revogação, enquanto 13 que o administrador não sócio pode ter seus poderes revogados a qualquer tempo mediante a vontade dos sócios. Tais disposições encontram guarida no art. 1.019 do Código Civil. Compreendido o conceito atribuído ao administrador de sociedades, passa-se agora ao instituto da representação. 2.2 O INSTITUTO JURÍDICO DA REPRESENTAÇÃO A representação, segundo Pontes de Miranda (apud MAIA JÚNIOR, 2004, p. 23): É o ato de manifestar vontade, ou de manifestar ou comunicar conhecimento, ou sentimento, ou de receber a manifestação ou comunicação, por outrem (representado), que passa a ser o figurante e em cuja esfera jurídica entram os efeitos do ato jurídico, que se produz. (grifo do autor) Na análise do autor, a representação consiste em transmitir uma expressão de manifestação física oriunda de um indivíduo, ora representado, este que recebe os efeitos do ato jurídico, por consequência. Nas palavras de Maia Júnior (2004), a concepção da representação dentro da teoria dos contratos se enquadra com mais eficácia na definição que traz a noção de substituição da manifestação da vontade, esta sendo um requisito indispensável à celebração do negócio jurídico. Assim, opera-se a vontade por outra pessoa, que “faz as vezes” do representado, agindo e direcionando o efeitos jurídicos diretamente à esfera jurídica deste. Ainda no raciocínio de Maia Júnior (2004), via de regra, a manifestação de vontade em um negócio jurídico se dá pelas próprias partes, em uma pura e simples apresentação, e não por meio da representação, que consequentemente é exceção nesse sistema. O direito romano utilizava-se do princípio alteri stipulari nemo potest, ou seja, ninguém pode obrigar ou tornar credor pessoa diversa outorgando em nome próprio. Todavia, com a natural evolução das relações jurídicas e comerciais, constatou-se a ineficiência de aplicação do referido princípio, por inviabilizar as atividades dos interessados em contratar, o que fatalmente limitava a possibilidade da circulação de riqueza produzida. (MAIA JÚNIOR, 2004). 14 Deste modo, tendo sido admitida a intervenção de terceiros estranhos aos interesses materiais envolvidos nos negócios jurídicos, no intuito de desonerar as partes contratantes, desenvolveu-se a chamada cooperação jurídica, como meio para a expansão das atividades jurídicas dos sujeitos de direito. Nesse contexto, a representação se apresenta como espécie de cooperação jurídica. (MAIA JÚNIOR, 2004). Pelo fato de a sociedade empresária ser uma ficção jurídica, ela não se expressa e tampouco transmite pensamentos ou desejos. Deste modo, a representação da sociedade torna-se crucial para que esta venha a cumprir com o fim a qual foi criada. O art. 47 do Código Civil (BRASIL, 2002) estipula que: “Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo”. Deste modo, é através do administrador que a sociedade exerce sua personalidade jurídica perante terceiros. No entanto, a lei estabelece a possibilidade de os sócios agirem como administradores no silêncio do contrato social, conforme se verifica no art. 1.013, caput. Igualmente nada impede de ser designado contratualmente sócio como administrador, tendo em vista não haver vedação legal para tal caso. Neste ponto, conforme raciocina Gonçalves Neto (2010), não existe razão para distinguir as figuras do administrador-sócio, administrador-executivo e administrador-empregado, considerando que a função de administraçãonão se encontra vinculada exclusivamente à figura do sócio ou com a função ocupada pelo empregado antes da nomeação para tal cargo. Assim, tem-se a representação como o método jurídico para dar voz à sociedade pelo administrador, a fim de que a mesma possa contrair direitos e obrigações. Essa representação pode ser feita pelos sócios administradores ou por administrador não sócio, ambos devidamente previstos no contrato social. (COELHO, 2012). Todavia, a representação da sociedade difere das demais formas de representação presentes no ordenamento civil, tais como o contrato de representação comercial, o de mandato, entre outros. Nesse ínterim, cumpre citar algumas teorias que através dos tempos foram utilizadas para explicar a relação do administrador com a sociedade. 15 Conforme disserta Rubens Requião (2010), a primeira teoria utilizada foi a “teoria do mandato”, em que vislumbra o gerente ou administrador como um mandatário da sociedade, deste modo não responde pelos atos que pratica em nome desta, desde que no limites de seus poderes. Acrescenta-se a compreensão de Gonçalves Neto (2010), que afirma que ocorreria na teoria uma espécie de representação voluntária, por ser o administrador nomeado ou escolhido pela sociedade para dar vida à sua vontade. Todavia, tal teoria não se torna mais aceita por certos autores, pois, como afirma Requião (2010), na vida real os administradores podem expressar sua vontade pessoal durante os atos realizados pela sociedade, o que inevitavelmente diverge com os preceitos dessa teoria. Outrossim, Gonçalves Neto (2010) sustenta que a teoria não explica o modo com que o mandatário receberia o mandato da sociedade sem que esta tivesse alguém para exteriorizar essa vontade. Em síntese, a sociedade deveria, por meio de outro alguém, exteriorizar o ato de contratação do mandatário, o que apenas transferiria o problema teórico para aquele. A fim de suplantar tal questão, sustentou-se a tese de que haveria em realidade uma representação legal, em que a pessoa natural representaria a sociedade mediante prerrogativa conferida por lei, como ocorre no caso de tutores e curadores. Todavia, a teoria ainda não seria suficiente para explicar como a pessoa jurídica seria responsabilizada em decorrência dos atos exercidos fora do poder atribuído ao seu representante, tendo em vista que aquela responderia indiscriminadamente. (GONÇALVES NETO, 2010). Atualmente, a teoria majoritariamente aceita pelos autores é a teoria organicista, a qual difere da concepção da representação. Criada na Alemanha, aduz que não haveria vínculo jurídico entre os sujeitos e os órgãos que os mesmos ocupam, tendo em vista que estes apenas se constituem em presença real por meio das pessoas. Em suma, a pessoa jurídica opera por meio de seus órgãos. (GONÇALVES NETO, 2010). Sustenta Requião (2010) que o gerente, administrador ou diretor são órgãos da sociedade comercial, de modo que incorre em correta identificação entre pessoa jurídica e pessoa física. “O órgão executa a vontade da pessoa jurídica, assim como o braço, a mão, a boca executam a da pessoa natural”. (REQUIÃO, 2010, p. 512). Do mesmo modo, Pontes de Miranda (2000) explana que quando o órgão da pessoa jurídica pratica um ato, a fim de entrar no mundo jurídico como sendo dela 16 mesmo, há na verdade presentação, tendo em vista que o ato do órgão não é(são) da(s) pessoa(s) que o compõe(m), mas sim da própria pessoa jurídica, pois o órgão é seu. Nessa vertente, nas palavras de Maia Júnior (2004), a interpretação do termo “representação” inserto no art. 47 já citado acima não se dá pela via do instituto da cooperação jurídica. Em realidade, se trata da regulação sobre como a pessoa jurídica se fará presente nos atos que pratica, considerando sua inexistência no mundo dos fatos. Prossegue o autor: O órgão da pessoa jurídica declara a vontade desta, e não a vontade própria, pois não age por si; não é considerado ente autônomo e independente da pessoa jurídica. A pessoa jurídica atua por intermédio de seus órgãos, trata-se, com efeito, de presentação, e não de representação. A atuação dos administradores, nos limites dos poderes e atribuições previstos pelo estatuto da pessoa jurídica, não configura atuação ou conduta de terceiro, mas consubstancia a própria manifestação da pessoa jurídica, que se revela pelo modo previamente estabelecido em seus atos constitutivos. (MAIA JÚNIOR, 2004, p. 60-61) Deste modo, a conclusão da análise do jurista é que, em verdade, a pessoa jurídica, que necessita da pessoa natural para realizar atos em decorrência de sua própria natureza, não é representada pelo seu órgão administrador, mas sim presentada, de modo que o ator que a promove não age com independência em decorrência de ser uma pessoa com personalidade jurídica própria, mas sim atua por ser parte do todo institucional, dentro da função que exerce nos parâmetros previstos no estatuto que a rege, sendo a sociedade empresária, no contrato social. Como suporte aos fundamentos acima, na análise de Coelho (2015), a pessoa jurídica não transfere as suas decisões a um outorgado, mas sim depende completamente do administrador para que as vontades sejam manifestadas, fazendo-a presente no mundo real. Deste modo, o termo presentação ao tratar das prerrogativas externas do administrador sócio ou não sócio é o mais adequado. O autor prossegue com indagações a respeito de dois pontos importantes a serem considerados sobre o objeto social e às condições previstas no contrato social (COELHO, 2015, p. 481, grifo do autor): A primeira diz respeito ao objeto social da limitada: se o administrador pratica, em nome da sociedade, negócio jurídico estranho ao seu objeto, ela está validamente vinculada? A segunda se liga às condições, previstas no 17 contrato social, para a representação: se o administrador atua, individualmente, como representante da sociedade, na celebração de negócio jurídico, para o qual o contrato social exige a assinatura de dois membros da diretoria, está ela obrigada a cumprir as obrigações decorrentes do ato? Nesse ínterim que se inicia a abordagem acerca da teoria que é objeto da pesquisa jurisprudencial realizada no presente trabalho, qual seja a teoria ultra vires. 2.3 A TEORIA DA APARÊNCIA NO CÓDIGO CIVIL A teoria da aparência, conforme ensina Juliane Smith (2009), traduz-se no princípio jurídico que alicerceia as relações empresariais, apesar de não se encontrar expressa no Código Civil de 2002, porém com alguns dispositivos que a fundamentam de forma implícita. Segundo o pesquisador, a teoria confere segurança jurídica aos negócios empresariais, pois põe óbice em possíveis imbróglios causados pelas exaustivas exigências de verificação das informações passadas por ambas as partes durante as tratativas das relações. Smith (2009) ainda expõe que essa segurança se efetiva através da valorização do terceiro de boa-fé, que uma vez confiando nas informações recebidas bem como na aparência legítima do sujeito com quem está tratando, não deve ser levado ao prejuízo em detrimento dessa pessoa, caso faça crer obter a legitimidade que não possui. Em uma concepção geral, nas palavras de Carlos Orlandi Chagas (2010), o fenômeno da aparência de direito, objeto da teoria em questão, é produto da celeridade dos negócios jurídicos na atualidade, bem como da grande complexidade dos mesmos, o que por inúmeras vezes impede procedimentos e diligências a fim de auferir a autenticidade das perspectivas exteriorizadas nas relações comerciais. Trata-se de uma necessidade jurídico-econômico-social, tendo em vista que tutela uma situação de aparência e mitiga-se a realidade objetiva, visando proteger a dinâmica das relações e resguardar a ordem jurídica. Como manifestaVicente Paulo Francisco Rao (apud CHAGAS, 2010, p. 98), o fenômeno da aparência somente se caracteriza e produz efeitos quando são observados os seguintes requisitos objetivos e subjetivos: 18 São seus requisitos essenciais objetivos: a) – uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fôra uma segura situação de direito; b) – situação de fato que assim possa ser considerada, segundo a ordem geral e normal das coisas; c) – e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fôra titular legítimo, ou de direito como se realmente existisse. São seus requisitos subjetivos essenciais: a) – a incidência em êrro de quem, de boa-fé, a mencionada situação de fato como situação de direito considera; b) – a escusabilidade dêsse êrro apreciada segundo a situação pessoal de quem nêle incorreu. Como se vê não é apenas a boa-fé que caracteriza a proteção dispensada à aparência de direito. Não é, tampouco, o êrro escusável, tão sòmente. São êsses dois requisitos subjetivos inseparàvelmente conjugados com os requisitos objetivos referidos acima – requisitos sem os quais ou sem algum dos quais a aparência não produz os efeitos que pelo ordenamento lhe são atribuídos. O fundamento da aparência assim caracterizada vem a ser, pois, a necessidade, de ordem social, de se conferir segurança às operações jurídicas, amparando-se, ao mesmo tempo, os interêsses legítimos dos que corretamente procedem. Essa proteção se realiza de modo peculiar porque, repetimos, enquanto nos simples casos de êrro [...] a vontade de quem nêle incide é protegida por via indireta mediante a possibilidade de anulação do ato, na aparência de direito a vontade de quem erra (supondo que o direito existe, ou que o titular ostensivo seja o titular verdadeiro) prevalece, como se realidade jurídica houvesse, e não apenas aparência. Nos têrmos expostos, portanto, a aparência de direito produz os mesmos efeitos da realidade de direito, salvo particulares restrições legais. E quando se afirma que tais efeitos são produzidos em prejuízo do titular verdadeiro, a afirmação deve ser entendida em têrmos: - o titular verdadeiro possui, normalmente, meios legais para obstar que outrem disponha de seu direito sem estar, para tanto, legitimado: mas, se por qualquer circunstância não usou ou não pôde usar dêsses meios, cumpre-lhe, é certo, respeitar a situação de quem corretamente negociou à vista e consideração da aparência de direito, mas sempre lhe resta a faculdade de reclamar do titular aparente e não legitimado, que semelhante situação causou, a reparação das perdas e danos. O autor explana primeiramente, em consistente raciocínio, que os requisitos objetivos e subjetivos são cumulativos, ou seja, todos devem estar presentes para que a situação de aparência de direito se configure. Aborda os pressupostos objetivos como sendo relativos ao viés da relação entre sujeitos a que se analisa, sendo então a latente expressão de juridicidade e segurança na situação de fato, de modo que possa ser assim compreendida e que o mesmo seja concluído em relação à pessoa que diz legítima; e os pressupostos subjetivos em relação ao erro incorrido a quem de boa-fé se envolveu no negócio e se tal erro pode ser perdoável. Em tempo, no que toca ao instituto do erro nos negócios jurídicos, em que pese o entendimento do autor ser anterior à publicação do Código Civil atual, nada impede de citar o conceito trazido pelo referido diploma acerca de tal figura jurídica presente no art. 138, como sendo: “quando as declarações de vontade emanarem 19 de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”. (BRASIL, 2002). Dando seguimento, Rao (apud CHAGAS, 2010) ensina que o que diferencia o erro puro e simples no negócio jurídico, que geraria a possibilidade de tornar o ato anulável, é que na aparência o erro é convertido em direito real, como se de verdade fosse. Privilegia-se a intenção do negociante de boa-fé em detrimento de uma realidade jurídica que pode ser diversa do que foi manifestado pela outra pessoa negociante. Dentro da seara empresarial, mais precisamente no interim da presentação da pessoa jurídica dentro dos negócios empresariais, Orlando Gomes (apud CHAGAS, 2010), argumenta que a teoria da aparência se manifesta em quatro situações em que a boa-fé do terceiro deve ser tutelada, sendo elas na extinção do mandato do administrador, o qual continua ainda assim a administrá-la; na inexistência de ato formal que tenha investido o administrador no ofício que exerce junto ao órgão da pessoa jurídica; na declaração de nulidade do ato de investidura do administrador; ou na situação em que o administrador regularmente investido extrapola seus poderes de atuação. Veja-se que não há a previsão do autor da hipótese de o administrador agir para além do objeto social da pessoa jurídica. Cumpre asseverar que tal situação, nas palavras de Gonçalves Neto (2010), diferencia-se de quando o administrador age além dos próprios poderes; naquela, houve o abuso de poder pelo representante, já nesta o que houve foi o excesso de poder. Neste ponto, Vitor Frederico Kumpel (apud SMITH, 2009) sustenta que é imprescindível que seja efetivado o registro do poder de representação da pessoa jurídica dentro de seu ato constitutivo, pois tal feito resguarda os interesses dos terceiros que negociam com ela, pois declara sua capacidade aquisitiva e obrigacional. Deste modo, o terceiro negociante deve consultar tais atos a fim de conhecer suas finalidades e limites, não podendo alegar boa-fé se não realizou tal diligência. Verifica-se que entre os diversos juristas, há inúmeros entendimentos acerca da teoria da aparência e sua relação com o terceiro envolvido no negócio empresarial. De qualquer sorte, adentra-se agora ao campo da teoria ultra vires. 20 2.4 A TEORIA ULTRA VIRES 2.4.1 Histórico e conceito A teoria dos atos ultra vires, conforme disserta Coelho (2015), foi gerada no direito britânico, como uma tentativa de resposta ao dilema acerca da vinculação da sociedade aos atos praticados em seu nome, porém estranhos ao objeto social. Segundo o autor, as cortes inglesas iniciaram a formular a ultra vires doctrine em meados do século XIX, no intuito de evitar que ocorressem desvios de finalidade na administração de sociedades por ações, a fim de resguardar os interesses dos investidores. Ainda no país inglês, a partir do ano de 1856, a personalização jurídica das sociedades e seus consequentes aspectos relativos à limitação da responsabilidade dos acionistas passou a depender de mero registro na repartição pública competente, e não mais de outorga do poder real. Deste modo, os atos concernentes à atividade econômica delimitada no objeto social eram regidos pelo respectivo registro, ou seja, de acordo com a própria personalidade jurídica da companhia e a delimitação da responsabilidade de seus acionistas. (COELHO, 2015). Deste modo, as cortes Britânicas, desassossegadas com o risco de que ocorressem expansões não devidas dos efeitos do registro para os atos estranhos ao objeto social, iniciaram um movimento rígido para os casos que lhe viessem a julgamento. (COELHO, 2015). Conforme cita Fernández Gates (2012), o caso que se tornou referência e emblema acerca da teoria ultra vires e de sua inflexibilidade no direito anglo-saxão foi o caso Ashbury Ry & Iron C. V. Riche, do ano de 1875. Segundo o pesquisador, a primeira sociedade citada detinha como objeto social registrado a venda e locação de máquinas para construção de ferrovias. A companhia havia conseguido uma concessão na Bélgica para a construção e operação de uma linha ferroviária e, para isso, tratou de contratar uma terceirasociedade para erguer tal empreendimento. Em contrapartida, a sociedade Ashbury assumiria o financiamento da obra. Ocorre que, logo após o início dos trabalhos, a companhia inadimpliu o financiamento, o que, consequentemente, levou à revogação da concessão no país belga, tanto para ela como para a sociedade que efetivamente construía a ferrovia. 21 Devido a tais fatos, Ashbury foi demandada em uma ação judicial pela contratada, na qual a corte britânica chamada de The House of Lords analisou e concluiu que, em que pese o inadimplemento contratual, a sociedade não era responsável pelos danos em face da sociedade contratada, tendo em vista que aquela não possuía em seu objeto social registrado a operação de linhas ferroviárias, o que inevitavelmente levou o pleito de indenização pela quebra de contrato à improcedência. (FERNANDEZ GATES, 2012). Conforme analisa Coelho (2015), o rigor com que foi formulada a teoria ultra vires em seu início, apesar de gerar segurança jurídica aos acionistas, acarretou diversos prejuízos para as sociedades inglesas, tendo em vista que todos que fossem contratar com as mesmas apenas o fariam se o negócio estivesse incluso no objeto social de forma irrefutável. Não bastasse, até meados de 1948, o objeto social era inalterável pela sociedade, motivo pelo qual era deveras comum que as sociedades elencassem na respectiva disposição contratual uma série de atividades econômicas, a fim de garantir sua capacidade para os negócios. Com o chegar do século XX, a teoria iniciou um processo de mitigação. O ato jurídico que antes era nulo passou a ser entendido como sem efeito em relação à pessoa jurídica, todavia o terceiro poderia pleitear o cumprimento da obrigação em face do diretor da sociedade, de forma pessoal. O autor prossegue anotando que, com a entrada do Reino Unido na Comunidade Econômica Europeia, as adequações com o direito fizeram com que, no fim da década de 80, a teoria ultra vires fosse extinta por completo do sistema jurídico anglo-saxão. (COELHO, 2015). A teoria ultra vires societatis – expressão oriunda do latim que em tradução livre significa além da sociedade – importa no raciocínio de que, uma vez o administrador da sociedade ter realizado um ato fora do objeto social desta, conclui- se que a mesma não atuou. Conforme ensina Gonçalves Neto (2010): “[...] a capacidade de obrigar-se da pessoa jurídica só existe enquanto ela atua em busca dos fins para os quais foi constituída”. Os atos Ultra Vires podem ser definidos como atos abusivos, pois são tanto os realizados pelo sócio administrador ou administrador fora de suas competências previamente estabelecidas, como os que não se destinam à finalidade da sociedade. De acordo com a teoria, uma vez que o ato realizado se encontra em desconformidade com o fim pelo qual a sociedade foi constituída, conclui-se que a 22 mesma não atuou, recaindo a responsabilidade sob o sócio administrador ou administrador que praticou o ato. (GONÇALVES NETO, 2010). Trata-se de uma forma de nulidade dos atos praticados em nome da sociedade, mas estranhos ao objeto social que a constitui (COELHO, 2015). Portanto, a hipótese de aplicação da teoria é quando o indivíduo que torna presente a sociedade realiza ato jurídico que transcende o objeto social, tornado nulo seus efeitos em relação à pessoa jurídica. Tomado o contato com o trajeto histórico e o conceito que permeia a teoria, passa-se às considerações acerca da relação da teoria ultra vires com o terceiro de boa fé dentro das relações jurídicas e de como o sistema jurídico brasileiro a abarca. 2.4.2 A teoria ultra vires dentro da ordem jurídica brasileira e a relação com o terceiro de boa-fé No entendimento de Coelho (2015), anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro não havia adotado a teoria ultra vires, vez que os problemas relacionados à extrapolação dos limites do objeto social habitualmente eram examinados à luz da teoria da aparência, já explicado anteriormente. Deste modo, visava-se a proteção aos terceiros de boa-fé que contratam com sociedades. Realizando um resgate dos entendimentos da época, Nelson Abrão (2000) afirma que a corrente doutrinária majoritária era pela negação de validade da cláusula restritiva dos poderes da gerência, em relação aos terceiros de boa-fé, por sua incompatibilidade com as características do direito comercial. Seria, na opinião do autor, demasiada exigência no meio do comércio massivo o terceiro que contrata com a sociedade solicitar a exibição do contrato social para verificar os poderes do gerente. Conclui ainda que a cláusula restritiva não era eliminada do ato constitutivo da sociedade por tais motivos, mas apenas não surte efeito em relação a terceiros. De todo modo, salienta o jurista que era possível exigir do administrador o valor do dano que ocasionou ao agir com excesso de poderes, mediante ação de regresso. Outrossim, Smith (2009) afirma que antes do vigor do Código Civil de 2002 a ordem jurídica nacional utilizava-se da teoria da aparência para decidir os litígios em 23 virtude da extrapolação do objeto social da sociedade, que apontava a responsabilidade à sociedade pelos atos praticados em seu nome. Requião (2010), por sua vez, anota que havia opiniões discrepantes acerca da validade da cláusula limitativa dos poderes do gerente. Em nível de direito comparado, o já revogado Código Comercial Italiano admitia a validade da referida cláusula em seu art. 2.298, conteúdo que foi mantido pela legislação posterior, que expressava que o administrador pode realizar todos os atos do objeto social, de acordo com as limitações constantes no próprio ato constitutivo ou na procuração comercial, sendo que as mesmas não poderiam ser opostas ao terceiro de boa-fé se não houvesse o cumprimento da publicidade. Em contrapartida, na França, com a reforma das sociedades de 1966, foi instituído que o gerente pode praticar todos os atos de interesse da sociedade, de modo que nas relações com terceiros os gerentes obrigam a sociedade em atos compatíveis com o objeto social da mesma. Recorda-se ainda que no Código de Obrigações da Suíça e no Código Comercial germânico, a cláusula limitativa não é de nenhuma forma válida. (REQUIÃO, 2010). Na Argentina, com a Lei das Sociedades, os gerentes obrigam a sociedade por todos os atos e negócios que firmem, uma vez que não sejam claramente estranhos ao objeto social da pessoa jurídica. (ABRÃO, 2000). Requião (2010) recorda que no ordenamento jurídico-civil brasileiro os tribunais pátrios não haviam pacificado tal temática, pois em diversos momentos se dava validade à cláusula e ora, se negava. Gonçalves Neto (2010) lembra que o já revogado Código Comercial, em seu art. 316, previa que o uso da firma social, desde que o administrador a utilizasse em negócios de acordo com o objeto social, surtia efeitos perante a sociedade em qualquer hipótese, ainda que em benefício dela própria ou de terceiro. Todavia, o fim do caput do dispositivo previa uma exceção nos casos de a transação ser estranha aos negócios previstos no contrato social. O autor ainda cita outros dispositivos legais, como o art. 14 do Decreto 3.709/19, que regulava as sociedades de responsabilidade limitada, o qual explanava que as sociedades responderiam pelos compromissos assumidos pelos gerentes, ainda que sem o uso da firma social, se forem contraídos em seu proveito, dentro dos poderes da gerência. 24 Todas as normativas acerca do assunto eram interpretadas pela doutrina e jurisprudência no sentido de atribuir a teoria da aparência e a proteção do terceiro de boa-fé, vez que: “entre a tutela dos sócios, que escolhem mal o administrador e a dos terceiros que com a sociedade contratam, é preferível privilegiara destes últimos”. (GONÇALVES NETO, 2010, p. 222). O jurista prossegue informando que, no início, apenas os atos dos administradores que fossem contrários ou sinistros ao objeto social não vinculavam a sociedade ao cumprimento. Após um tempo, os tribunais pátrios desistiram de tal distinção visando sempre a proteção ao terceiro de boa-fé. Com o advento do Código Civil de 2002, houve a inclusão do Parágrafo único do art. 1.015, o qual explana o seguinte (BRASIL, 2002): Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir. Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II - provando-se que era conhecida do terceiro; III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Segundo Smith (2009), o inciso III do dispositivo acima citado adotou de forma expressa a teoria ultra vires, afastando a teoria da aparência como princípio basilar dos atos praticados pelos administradores em nome da sociedade. Desta maneira, os atos que evidentemente são estranhos ao objeto social da pessoa jurídica são oponíveis perante terceiros, gerando assim uma espécie de presunção da má-fé em relação ao terceiro de boa-fé que confiou tratar-se de ato legítimo da sociedade, quando na realidade foi excesso de poder por parte do administrador. No entendimento de Coelho (2015), a partir da vigência do Código Civil de 2002, o direito brasileiro passou a contemplar um dispositivo expressamente inspirado na ultra vires doctrine, de acordo com o qual a prática de ato evidentemente estranho aos negócios da sociedade pode ser oponível ao credor de boa-fé, considerando o excesso de poderes do administrador. Na visão do jurista, no Brasil, assim como ocorre no direito argentino, ocorreu uma adesão parcial à doutrina dos atos ultra vires, sendo que a sociedade limitada que possui como diploma de regência supletiva o disposto sobre as sociedades 25 simples não vincula seu nome em operações claramente estranhas ao seu objeto social. Na visão de Gonçalves Neto (2010), o dispositivo acima citado traz o abuso de poder e o excesso de poder com tratamentos iguais no que tange aos atos do administrador, sendo que o primeiro não se relaciona com o objeto da sociedade em si, mas sim com as limitações do administrador previstas no contrato social, não se tratando, então, de atos ultra vires. Sérgio Campinho (2008) analisa alguns aspectos práticos quanto à aplicação do referido dispositivo, como quando o contrato social exige a assinatura de dois administradores para que a sociedade se veja obrigada e, violando tal disposição, o administrador realiza de forma isolada a assinatura de uma nota promissória em favor de outra pessoa, ou realiza um contrato de leasing, poderá a sociedade opor o excesso de poder exercido em face do terceiro a fim de que se veja livre do ônus, bastando comprovar a limitação de poderes prevista na cláusula do ato constitutivo. Como o autor cita (CAMPINHO, 2008, p. 113): A excludente legal impõe que todos os que venham a contratar com uma sociedade tenham o cuidado e a preocupação de verificar o seu ato constitutivo registrado ou, no caso de administrador nomeado em instrumento apartado, o respectivo ato averbado à margem da inscrição da sociedade. O Código Civil atual utilizou-se de inspiração na lei italiana de 1942 no momento da inserção da citada exceção legal. A normativa vai de encontro à realidade massiva dos negócios empresariais, pois excede o valor do registro formal em detrimento dos sujeitos que contratam com a sociedade. (GONÇALVES NETO, 2010). O autor tece críticas à adoção do legislador civilista pela positivação de tais exceções: Como já observei ao discorrer sobre o assunto, o legislador de 2002, nesse particular, “obrou na contramão da evolução doutrinária, generalizando o tratamento do tema em detrimento dos terceiros de boa-fé, quer no que diz respeito aos atos ultra vires, quer no tocante aos praticados com excesso de poder, não distinguindo as sociedades empresárias das demais pessoas jurídicas, públicas ou privadas. Os atos dos administradores, a contrario sensu do disposto no seu art. 47, só obrigam a pessoa jurídica se praticados nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo. Em matéria societária, excetuando-se as sociedades por ações (arts. 1.088 e 1.090), todo pacto ajustado entre os sócios, constante do contrato social, é 26 oponível a terceiros (art. 997, parágrafo único). Assim, se a sociedade atua fora do seu objeto, perfeitamente delimitado no estatuto, o terceiro não terá como vinculá-la ao negócio (art. 1.015, parágrafo único, III); se houver, em cláusula do contrato social devidamente arquivado no registro próprio, exigência de duas assinaturas para a validade de um aval e só uma for lançada, reputa-se não prestada essa garantia pela sociedade (art. 1.015, parágrafo único, I). Trata-se, obviamente, de um surpreendente retrocesso” (Lições de direito societário, v. 1, n. 8, p.26). (GONÇALVES NETO, 2010, p. 222, grifo do autor). Segundo o autor, a legislação vai de encontro à evolução jurisprudencial e doutrinária sobre o tema, já que privilegia o prisma burocrático do registro contratual em detrimento das massivas negociações da sociedade. Não bastante, houve inovação legislativa que foi completamente de encontro ao entendimento que havia se consolidado sobre a proteção dos interesses do terceiro de boa-fé que fosse negociar ou realizar atos com a sociedade empresária. As hipóteses do art. 1.015, Parágrafo único impedem que o terceiro prejudicado pela aparência de direito associe o negócio ou o ato jurídico à sociedade com quem contrata. Deste modo, cumpre ao empresário que irá contratar com a sociedade realizar as devidas diligências junto ao registro, a fim de verificar as últimas alterações averbadas junto ao contrato social, o que representa real óbice ao fechamento dos negócios, bem como onerosas despesas que podem chegar até mesmo à metade do valor da transação. (SMITH, 2009) Requião (2010) compreende que se torna demasiada exigência, no âmbito comercial, onde ocorrem operações em massa, o que consequentemente não converge com a formalidade, o fato de o terceiro contratante solicitar a todo o momento a exibição do contrato social para que se verifiquem os poderes do gerente. Como se conclui, são inúmeras críticas ao dispositivo legal que, conforme entendimento majoritário, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro a teoria dos atos ultra vires. Nesse ínterim, no objetivo de esmiuçar o tema e trazer mais elementos para discussão, houve a edição do Enunciado 219 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, cujo teor será analisado no próximo capítulo. 27 3 O ENUNCIADO 219 DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL Antes de adentrar ao conteúdo do referido enunciado, cumpre apresentar a entidade da qual se oriunda tal elemento interpretativo. Conforme traz o art. 105, Parágrafo único, II da Constituição Federal, o Conselho da Justiça Federal é um órgão central que realiza a supervisão administrativa e orçamentária das atividades sistêmicas da Justiça Federal, sendo que suas decisões possuem caráter vinculante perante todas as unidades de primeiro e segundo graus da Justiça Federal. (BRASIL, 1988) Integram a estrutura do Conselho a Corregedoria-Geral da Justiça Federal, o Centro de Estudos Judiciários e a TurmaNacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais. A sua formação colegiada se dá pelo presidente e vice- presidente do Superior Tribunal de Justiça, além de três ministros do referido tribunal e pelos presidentes dos cinco tribunais regionais federais do país. (CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL, acesso em 2017) Conforme se extrai da apresentação do memorial da III Jornada de Direito Civil, o Centro de Estudos Judiciários possui, em sua programação, a cada dois anos, a realização do encontro nacional de juristas estudantes de Direito Civil, com a finalidade de discutir as disposições normativas presentes no Código Civil. O método utilizado consiste no recolhimento de proposições articuladas pelos participantes, com a devida justificativa, para sua submissão à discussão e votação nas comissões temáticas, quais sejam: Parte Geral, e Direito das Coisas, Direitos das Obrigações e Responsabilidade Civil, Direito de Empresa e Direito de Família e Sucessões. (BRASIL, 2005) Os enunciados produzidos constituem-se em indicativo interpretativo do Código Civil, sendo todos vinculados a um artigo do referido diploma legal, e significam o entendimento majoritário da comissão respectiva. Importante frisar que os enunciados não expressam o entendimento do Superior Tribunal de Justiça. (BRASIL, 2005) Deste modo, em 2004 foi realizada Terceira Jornada de Direito Civil, na qual foram aprovados 133 novos enunciados de números 138 a 271, considerando que a numeração não se reinicia a cada Jornada. Dentre estes, se encontra o Enunciado 28 nº 219, referente ao art. 1.015 do Código Civil, objeto do presente trabalho, que expõe o seguinte (BRASIL, 2005): Art. 1.015: Está positivada a teoria ultra vires no Direito brasileiro, com as seguintes ressalvas: (a) o ato ultra vires não produz efeito apenas em relação à sociedade; (b) sem embargo, a sociedade poderá, por meio de seu órgão deliberativo, ratificá-lo; (c) o Código Civil amenizou o rigor da teoria ultra vires, admitindo os poderes implícitos dos administradores para realizar negócios acessórios ou conexos ao objeto social, os quais não constituem operações evidentemente estranhas aos negócios da sociedade; (d) não se aplica o art. 1.015 às sociedades por ações, em virtude da existência de regra especial de responsabilidade dos administradores (art. 158, II, Lei n. 6.404/76). Em detida análise de seu teor, é possível extrair uma conclusão hermenêutica, a de que a teoria ultra vires se encontra positivada no ordenamento jurídico brasileiro, e quatro salvaguardas de aplicação da referida teoria. Passa-se, agora, à análise das ressalvas interpretativas expressas no enunciado com base nos autores de direito empresarial e correlatos. 3.1 A NÃO PRODUÇÃO DE EFEITO DOS ATOS ULTRA VIRES APENAS EM RELAÇÃO À SOCIEDADE Como já se explanou, o Enunciado 219 estabeleceu o entendimento doutrinário de que os atos além das forças da sociedade não produzem efeitos apenas em relação a esta. Segundo a justificativa trazida pelo próprio Conselho, o terceiro que de boa-fé transacionou com a sociedade por meio de seu administrador sem saber que este não detinha os poderes para tanto pode perfeitamente exigir o cumprimento da obrigação pelo administrador, bem como responsabilizá-lo civilmente nos moldes da legislação em vigor. Ainda que o ato não seja convalidado pela própria sociedade, o mesmo possui eficácia tanto em relação ao terceiro quanto ao administrador. (BRASIL, 2005) Neste ínterim, cumpre apresentar, mesmo que de forma sintética, acerca da responsabilidade do administrador da sociedade. Antes do atual Código Civil, anota Rui Stoco (2014) que o Decreto 3.708/19, que regulava as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, dispunha da regra de seu art. 10 que dizia que os sócios-gerentes ou que dão o nome à firma 29 não responderiam de forma pessoal pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, todavia responderiam perante a esta e a terceiros de forma solidária e ilimitada pelos atos cometidos por excesso de mandato e com violação do contrato ou da lei. O Código Civil de 2002 inovou na criação de um Livro específico acerca do Direito de Empresa, o que não ocorria no Código Civil ora revogado, disciplinando assim acerca do empresário e das sociedades personificadas e, consequentemente, do administrador das mesmas. Com o advento de tal diploma, as questões relativas a tais matérias passaram a obedecer a estas regras gerais e a eventuais normas especiais de outras legislações, quando não estejam em conflito com aquelas. (STOCO, 2014) Desta maneira, conforme prossegue o autor, o enfoque dado à responsabilidade do administrador não mudou em relação à disposição anterior que normatizava as sociedades limitadas, de modo que normatizou tantos as sociedades simples como as empresárias, reafirmando a responsabilidade de tal figura com supedâneo na culpa, sendo esta seu pressuposto de validade. Assim, conforme traz Ramos (2017), no caso de o administrador agir com culpa no desempenho de suas funções, sendo a culpa aqui tratada como lato sensu, ele responderá tanto perante o terceiro prejudicado como perante a sociedade pela qual atua, conforme traz o art. 1.016 do Código Civil: “Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”. (BRASIL, 2002). Vê-se, portando, que se trata de responsabilidade subjetiva, sendo necessária a auferição do requisito subjetivo da culpa do administrador, a ser analisado em cada caso. Conforme exprime Rui Stocco (2014), o sócio, gerente ou administrador da sociedade apenas pode ser responsabilizado civilmente mediante a comprovação de sua culpa, na forma disposta no art. 186 do Código Civil. Denota-se, portanto, que se obedece aos requisitos objetivos e subjetivos da responsabilidade civil extracontratual para a configuração da responsabilidade do administrador. Conforme enfatiza Waldírio Bugarelli (apud STOCO, 2014), a responsabilidade dos administradores, cuja base se extrai do vínculo orgânico com a sociedade, decorre também de atos que violam a lei, o estatuto ou mesmo irregulares de gestão, e não se situam na esfera da responsabilidade contratual, 30 mas sim na responsabilidade extracontratual ou aquiliana. O autor prossegue explicando que, mesmo que a relação não seja mais baseada na teoria do mandato, como era no regime do Código Comercial e do regulamento da sociedade limitada, mas sim na teoria do órgão, a responsabilidade se aproxima do regime comum do direito civil, considerando sua natureza e os preceitos presentes no art. 186 do Código Civil. Abordado o atinente à responsabilidade do administrador, conclui-se pela importância de tal estudo uma vez que se trata de uma consequência legal de um eventual pleito judicial promovido pelo terceiro prejudicado em um negócio jurídico formalizado com uma sociedade atuando em ultra vires. O outro ponto colhido da justificativa do enunciado é a importância atribuída, ainda que de forma implícita, à teoria da aparência dentro da função exercida pelo administrador, bem como da boa-fé do terceiro envolvido no ato. Explica-se. O Enunciado tratou de mitigar os efeitos dos atos ultra vires, limitando-os exclusivamente à sociedade. Dessa maneira, os efeitos permanecem tanto em relação ao terceiro quanto ao administrador que, fazendo presente a pessoa jurídica, concretizou o ato. A interpretação possui outros adeptos. Smith (2009) vai ao encontro de tal compreensão e disserta que, tendo em vista a recepção da teoria ultra vires pelo Código Civil em seu art. 1.015, Parágrafo único, III, os atos que evidentemente extrapolem o objeto social da sociedade poderão ser opostos contra terceiros, estes que não podem alegar o desconhecimentode não se tratar de ato da sociedade. Deste modo, o dispositivo estaria ordenando uma espécie de presunção de má-fé por parte do terceiro que de boa-fé acreditou tratar-se de ato legítimo da pessoa jurídica, o que na realidade era excesso de seu administrador. De todo modo, a obrigação é imputável somente ao representante da sociedade. Todavia, o autor (SMITH, 2009) prossegue dizendo que, caso a Teoria da Aparência fosse realmente aplicada na situação em apreço, primeiro deveria a sociedade cumprir com suas obrigações, para depois então pleitear em face de seu administrador que agiu em dissonância com seus poderes previamente constituídos. Não é o que se entende da leitura do Enunciado 219, tendo em vista que o terceiro de boa-fé voltar-se-á contra o indivíduo que se fez parecer representante para exigir o cumprimento da obrigação, e não contra a sociedade que, por aparência, participou do ato. Trata-se de uma proteção relativa à segurança jurídica do terceiro 31 de boa-fé, tendo em vista que, como já relatado no histórico da teoria ultra vires, houve o tempo em que o ato além das forças da sociedade era simplesmente nulo, não surtindo nenhum efeito no mundo jurídico, incluindo o terceiro e o representante da sociedade. Smith (2009) anota ainda que, em que pese a presença da teoria ultra vires no ordenamento jurídico brasileiro, frequentemente os julgadores têm se utilizado da Teoria da Aparência no que atine aos vários tipos de negócios aparentes, com o intuito de tutelar a segurança do público nas relações empresariais, resguardar o terceiro de boa-fé, que se encontra desobrigado de consultar, a toda operação mercantil, o ato constitutivo da empresa a fim de verificar os poderes do administrador com quem se trata a fim de firmar o pacto jurídico. Conclui que a aplicação do art. 1.015, Parágrafo único, III do Código Civil deverá ser aplicada somente na ocorrência de negócios avantajados, nos quais o terceiro não pode alegar a confiança na mera aparência do representante, tendo em vista que o valor tratado suplanta largamente o valor despendido nas diligências necessárias para consultar o contrato social da sociedade. São consonantes ao entendimento do Enunciado 219 do Conselho da Justiça Federal também Von Adamek e França (2007), ao afirmarem que o alcance do art. 1.015, Parágrafo único, III, do Código Civil é limitado, pois prevê a ineficácia somente perante a sociedade de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Com efeito, o ato ultra vires não será declarado nulo, mas sim ineficaz perante a sociedade, exclusivamente. Os autores (VON ADAMEK; FRANÇA, 2007) trazem o raciocínio de que a doutrina tradicional defende que o objeto social traz limites à capacidade jurídica da sociedade, deste modo a invalidade do ato praticado seria a sanção cabível quando não a fosse respeitada. Todavia, com o fito de evitar prejuízos demasiados aos terceiros de boa-fé e de evitar a impunidade do próprio representante que atuou indevidamente, o legislador civilista levou a tratar os atos ultra vires como ineficazes apenas em relação a própria sociedade, na tentativa de tutelar tanto os interesses dos sócios quanto do terceiro negociador. Destarte, é possível visualizar que a primeira ressalva trazida pelo Enunciado 219 do Conselho da Justiça Federal ressalta a importância em vincular o ato ultra vires como sendo ineficaz apenas em relação à sociedade, surtindo efeitos tanto em relação ao administrador quanto ao terceiro de boa-fé. 32 3.2 A RATIFICAÇÃO DO ATO PELO ÓRGÃO DELIBERATIVO DA SOCIEDADE CASO NÃO HAJA EMBARGO O Enunciado 219 traz a possibilidade de retificação do ato ultra vires por meio do órgão deliberativo da sociedade, caso o mesmo não possua embargo. Conforme se extrai da justificativa dada na III Jornada de Direito Civil pelo Conselho da Justiça Federal, tendo em vista que a matéria acerca da capacidade jurídica da sociedade é de interesse tanto da própria como dos sócios, sendo eminentemente privado, existe a possibilidade de ratificação, sendo que o órgão deliberativo da pessoa jurídica poderá atribuir validade e eficácia ao ato ultra vires a ela mesma. (BRASIL, 2005) A fim de esclarecer essa importante possibilidade por parte da sociedade, cumpre trazer alguns elementos acerca da estrutura deliberativa das sociedades empresárias. Segundo Ramos (2017), cabe primordialmente ao administrador da sociedade praticar os atos oportunos à gestão dos negócios da mesma, de acordo com o previsto em seu contrato social. Todavia, quando se trata de assuntos negociais mais importantes, como, por exemplo, uma fusão da sociedade com outra, a decisão deixa de ser individual do administrador e passa ao conjunto dos sócios, pois exige deliberação social. A priori, as matérias que dependem de deliberação dos sócios devem estar previstas no contrato social. Todavia, há casos específicos em que a própria lei civil assim estipula, como no exemplo acima tratado, que se encontra presente no art. 1.114 do Código Civil, ao tratar da transformação da sociedade. (RAMOS, 2017) Ramos (2017) traz ainda que, tanto na forma convencionada como na forma legal as deliberações são tomadas de acordo com a maioria dos votos, contados segundo o valor do voto de cada um, na forma exposta no art. 1.010 do Código Civil (BRASIL, 2002): “Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um”. A maioria a que se refere a norma acima é absoluta, conforme expõe o §1º do mesmo dispositivo legal (BRASIL, 2002): ”Para formação da maioria absoluta são necessários votos correspondentes a mais de metade do capital”. Como já dito, a maioria não se vincula ao voto do sócio nominal, mas sim ao valor de suas cotas. 33 Deste modo, é possível que, em uma situação hipotética de haver cinco sócios que compõem uma determinada sociedade, os votos de apenas dois satisfaçam a aprovação de determinada deliberação. Para isso, basta que os valores das cotas desses sócios superem a metade do capital social da sociedade. (RAMOS, 2017) De toda sorte, o número de sócios que votam será útil na situação em que houver empate na votação de acordo com o valor das cotas. Prevalecerá a decisão que obteve a maioria de aceitação por parte dos sócios. Caso o empate ainda permaneça, a matéria deve ser levada ao crivo do Poder Judiciário a fim de que seja decidida pelo juiz. Tudo isso se encontra presente no §2º do art. 1.010 do Código Civil. (RAMOS, 2017) Requião (2010) afirma que o direito de participar das deliberações da sociedade decorre dos status de sócios da mesma. Une-se ao direito de voto, este que pode ser tangível de acordo com o regime jurídico atribuído à sociedade. Como já explicado, o direito de participação nas deliberações é medido de acordo com a parcela do capital que o sócio detém, estabelecendo assim o princípio da maioria do capital social. Como no caso das sociedades limitadas, regime jurídico este notadamente mais utilizado na constituição de sociedade no ordenamento jurídico brasileiro, a deliberação depende dos critérios estabelecidos a partir do art. 1.072 do Código Civil, que varia conforme o número de sócios, a previsão no contrato social e a matéria que se debate. (REQUIÃO, 2010) As deliberações que se associam ao funcionamento cotidiano da sociedade não dependem necessariamente de uma forma. Tais decisões podem ser tomadas mediante o apelo informal, considerando a celeridade habitual em meio aos negócios mercantis e empresariais, que não se compatibilizam com quaisquer procedimentos formais de decisão. (REQUIÃO, 2010) O autor prossegue com exemplos: A política de vendas, o controle de custos administrativos, a contrataçãoou demissão de empregados ou de assessores ou prestadores de serviços, o aproveitamento de oportunidade de negócios, novos investimentos com aproveitamento do capital ou suas reservas, podem ser decididos de modo o mais informal, com os sócios orientando-se pelo objeto social encravado no contrato social e pela affectio societatis, boa-fé e confiança mútuas. Outras questões, entretanto, deverão ser objeto de conclaves formais dos sócios. (REQUIÃO, 2010, p. 584) 34 Como demonstrado, várias são as situações em que a formalidade nas deliberações é dispensável, todavia em outras situações são necessários alguns procedimentos intrínsecos à validade da decisão a ser tomadas pelos sócios. Ainda em se tratando de sociedade limitada, o Código Civil estabelece três técnicas para o procedimento de deliberação dos sócios, presentes no art. 1.073, caput e §3º: a assembleia, a reunião e o instrumento deliberatório. (REQUIÃO, 2010) Gonçalves Neto (2010) anota que a distinção entre a assembleia e a reunião é deveras pequena, estando presente, basicamente, nas formalidades relativas à convocação e instalação das mesmas. De toda sorte, inexistindo previsão contratual a respeito da reunião, esta se orienta conforme o regramento existente da assembleia. A assembleia se trata da congregação dos sócios, convocada por meios formais, pelo administrador da sociedade; pelo sócio na falta deste ou pelos sócios com mais de 20% do capital social; ou pelo conselho fiscal, com o objetivo de discutir e decidir sobre assuntos fundamentais, na forma da lei ou do contrato social. (REQUIÃO, 2010). Sempre que a sociedade possuir mais de dez sócios, deverá deliberar por meio de assembleia, todavia pode ser dispensada caso todos os sócios optem por decidir de modo escrito acerca da matéria que seria tratada na assembleia. (REQUIÃO, 2010) As situações que dependem de deliberação dos sócios, além das previstas no contrato social, são as presentes nos incisos do art. 1.071 do Código Civil, quais sejam (BRASIL, 2002): I - a aprovação das contas da administração; II - a designação dos administradores, quando feita em ato separado; III - a destituição dos administradores; IV - o modo de sua remuneração, quando não estabelecido no contrato; V - a modificação do contrato social; VI - a incorporação, a fusão e a dissolução da sociedade, ou a cessação do estado de liquidação; VII - a nomeação e destituição dos liquidantes e o julgamento das suas contas; VIII - o pedido de concordata. Deste modo, uma vez cumpridos todos os requisitos necessários desde a convocação até o quórum mínimo de instalação, que no caso da sociedade limitada é estipulado legalmente como sendo três quartos do capital em sua primeira 35 convocação, e de votação, que varia conforme a matéria tratada, as decisões deliberadas pelos sócios vinculam a sociedade (REQUIÃO, 2010) A reunião dos sócios é outra forma de discussão e deliberação dos negócios atinentes à sociedade limitada, sempre que esta dispuser de menos que dez sócios em seu quadro social. Esta forma deve ser prevista no contrato social, no qual deve igualmente estabelecer os requisitos e ritos pertinentes para esta congregação, a fim de que garantam os efeitos tanto em face da sociedade como em face de terceiros. Requião (2010) ainda ressalta a importância da regulamentação da reunião dentro do contrato social, tendo em vista a possibilidade de afastar regras onerosas dispostas no Código Civil para a assembleia, considerando que estas são utilizadas de forma subsidiária em caso de inexistência de convenção acerca das regras para a reunião. Por fim, o autor (REQUIÃO, 2010) traz a forma do instrumento deliberatório, sendo esta a mais tradicional e célere na resolução dos negócios sociais que dependam de alguma forma de instrumentos escritos. Com efeito, tanto a assembleia como a reunião são mormente utilizadas quando há notórias divergências entre os sócios, de modo que, ausente tal motivação, a utilização da faculdade presente no art. 1.072, §3º do Código Civil é o caminho mais simples para se deliberar. Em relação aos efeitos das deliberações, Gonçalves Neto (2010) disserta que, uma vez tomadas regularmente, vinculam todos os sócios, bem como os administradores ao seu cumprimento, quando se tratar de matérias que se refiram à execução do objeto social. No que toca ao tema do presente trabalho, qual seja a geração de efeitos externos à sociedade, Gonçalves Neto (2010) afirma que a deliberação pode igualmente vincular a sociedade em relação a terceiros e vice-versa. Como por exemplo, no caso em que se é necessária a autorização pelos administradores para a concretização de um negócio jurídico, seja por previsão contratual ou decorrente da natureza do próprio negócio. Dentro das deliberações sociais é que se encontra a opção oferecida pelo Enunciado 219 do Conselho da Justiça Federal para que se convalidem os atos realizados individualmente pelo administrador que vão além das forças da sociedade. Conforme levantam Von Adamek e França (2007), de modo geral, a doutrina empresarial brasileira compreende que a ratificação dos atos ultra vires 36 seria viável a nível teórico. As divergências giram em torno do quórum necessário para a convalidação, se seria o correspondente ao da unanimidade do capital social dos sócios ou o da maioria necessária para a alteração do objeto social, presente no art. 1.076, I, do Código Civil, considerando que não basta a maioria simples, pois logicamente não possuiria o poder de modificar o objeto social e, deste modo, impor aos demais sócios seu anelo. Os autores ainda relatam que os argumentos que vão contra a ratificação pela maioria suficiente para alteração do contrato social, por conseguinte do objeto social, levantam que: em relação às sociedades anônimas, os poderes outorgados ao órgão colegiado dos sócios são determinados pelo próprio objeto, e a lei estabeleceu critérios especiais para o câmbio do objeto social, sendo um quórum diferenciado. Deste modo, a convalidação de atos que extravasam o objeto social constituiria alteração social posterior, o que incorreria em efeito fraudulento ao direito de recesso outorgado ao acionista dissidente, que não poderia exercê-lo. Para fins de esclarecimento do tema, expõe-se o conceito de direito de recesso segundo Bulgarelli (2000, grifo do autor): Trata-se do direito de o acionista, em certos casos, retirar-se da sociedade, pagando esta o valor das ações que ele possua, através da operação denominada reembolso (art. 45). Como visto, consiste no direito essencial outorgado ao acionista de voluntariamente se retirar da companhia, com a contraprestação por parte desta garantida. O autor (BULGARELLI, 2000) prossegue relatando que o direito apenas poderá ser invocado mediante as hipóteses previstas na lei ou estatuto. O art. 136 c/c o art. 137 da Lei das Sociedades por Ações prevê os casos em que o acionista poderá exercer sua prerrogativa de retirada, em um rol exemplificativo, visto que também há disposições em legislações esparsas. Nesse ínterim, inclui-se a mudança do objeto da companhia como hipótese de exercício do direito de recesso. Como visto, a alteração do objeto social por mera convalidação do ato ultra vires por maioria simples poderia inevitavelmente impedir o acionista minoritário de se retirar da companhia. Há ainda a questão que atine à responsabilidade civil do administrador que votou contra o interesse da sociedade, presente no art. 1.010, §3º do Código Civil, 37 que deve ser levada em consideração quando se buscar ratificar o ato ultra vires. (VON ADAMEK; FRANÇA, 2007) Como se denota, em que pese o conteúdo do Enunciado 219 ter aberto a possibilidade de ratificação do ato que excedeu a capacidade da sociedade,
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