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Acesso à justiça na perspectiva da Defensoria Pública 1) Introdução Inicialmente, cumpre esclarecer que o presente material foi elaborado por ocasião do Seminário 100 Regras de Brasília, realizado nos dias 20 e 21 de fevereiro de 2019, pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do DF e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). 2) O que se costuma entender por acesso à justiça? A mais conhecida referência bibliográfica sobre acesso à justiça é a obra homônima, de Mauro Cappelletti e de Bryant Garth. O livro é resultado de um projeto internacional de pesquisa, que contou com a participação de mais de 100 pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, oriundos de trinta diferentes países. Trata-se do Projeto Florença de Acesso à Justiça, que dissecou os obstáculos jurídicos, econômicos, políticos, culturais e psicológicos que tornavam inacessível ou de difícil acesso o uso do sistema judicial de resolução de conflitos. Em 1979, como produto desses estudos, foram publicados quatro volumes em seis tomos, em língua inglesa. O Projeto Florença, ao analisar a evolução do movimento mundial de acesso à justiça, construiu a amplamente conhecida metáfora das três ondas renovatórias do acesso à justiça. A primeira onda renovatória é a de garantia de assistência jurídica aos pobres. Foi nesse contexto que surgiram a isenção de custas processuais para o acesso ao Judiciário e os outros dois modelos de assistência jurídica aos pobres, além da advocacia pro bono: o modelo de particulares conveniados com o Estado e remunerados pelo Estado e o modelo de prestação direta pelo Estado, por meio, por exemplo, de funcionários assalariados contratados com essa função. Como expressão do modelo de particulares conveniados, há o modelo Judicare em que advogados dativos são pagos pelo Estado para judicialização de casos individuais e os Escritórios de Vizinhança (Programa de Serviços Jurídicos do Office of Economic Opportunity – 1965). A segunda onda renovatória consistiu no surgimento de instrumentos processuais de tutela de interesses metaindividuais, pertencentes a toda sociedade, a grupos, categorias ou classes de pessoas ou a pessoas que possuem ações tendentes à resolução de um conflito com a mesma origem fática. Nesse contexto, surgiram as ações de classe, ações coletivas ou ações civis públicas. A terceira onda renovatória se dedicou aos problemas dos custos econômicos e da morosidade dos procedimentos judiciais. Nesse contexto, foram desenvolvidas soluções que estimulavam a oralidade dos processos judiciais, a concentração dos ritos, a noção de sistema multiportas @ASDEFENSORAS de justiça e o estímulo à adoção de meios de resolução de conflitos alternativos à judicialização, como conciliações, mediações e a rbitragem. Há quem preconize o surgimento de uma quarta onda renovatória do acesso à justiça. O professor Kim Economides – professor da Universidade de Flinders (Austrália) e um dos integrantes do Projeto Florença - expõe a dimensão ética e política da administração da justiça, ao defender a reformulação do ensino jurídico e o acesso de minorias à educação em direitos e às profissões jurídicas, como forma de promoção de valores igualitários e da ideia de Direitos Humanos. Também já se aponta uma quinta onda renovatória. Ela consiste na garantia de efetividade da proteção jurídica do indivíduo em face do próprio Estado que deveria protegê-lo, por meio do acesso à Cortes e Tribunais Internacionais e da reivindicação da aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. 3. A evolução constitucional do acesso à justiça. - Constituição de 1934 (art. 113, inc. 32): previsão de assistência judiciária gratuita (isenção de taxas e custas para acessar o Judiciário). - Constituição de 1937: nada dispôs. - Constituição de 1946 (art. 141, inc. 35): previsão de assistência judiciária gratuita aos necessitados. No plano infraconstitucional, a gratuidade de acesso à justiça foi inicialmente regulamentada pela Lei 1060, de 1950. Ela previu a gratuidade das taxas e custas judiciárias e a assistência jurídica, a ser prestada pelo Estado, pelos advogados cadastrados junto a OAB ou por advogados dativos escolhidos pelas partes e nomeados pelo Juízo. Em 1954, surgiu o primeiro serviço estatal de assistência judiciária, no Estado do Rio de Janeiro (então Capital da República). A função de prover assistência judiciária passou a ser do Ministério Público, como classe inicial da carreira. - Constituição de 1967 (art. 150, inc. 32): repetiu as disposições da Constituição de 1946. @ASDEFENSORAS Em 1975, a Assistência Judiciária do RJ passou a existir como Órgão de Estado distinto do MP, embora fosse presidido pelo Procurador-Geral de Justiça. Em 1981, a Assistência Judiciária do RJ passou a ser vinculada à Secretaria de Estado de Justiça do RJ. Outros órgãos estaduais de assistência judiciária surgiram em MG, MS, PI, BA, com esse mesmo perfil. Em 1987, surgiu a Defensoria Pública-Geral do Estado do RJ vinculada ao Gabinete do Governador. O Centro de Assistência Judiciária do DF surgiu nesse mesmo ano. - Constituição de 1988: art. 5º, inc. 74: assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Art. 134: trouxe, pela primeira vez, a referência à Defensoria Pública, conceituada como uma “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados (na forma do art. 5º, inc. 74)”. - Emenda Constitucional 45 de 2004: . concurso público de provas e títulos; . inamovibilidade e vedação da advocacia extrainstitucional; . autonomia funcional, administrativa e iniciativa de proposta orçamentária para as Defensorias Públicas Estaduais. - Emenda Constitucional 74 de 2013: . autonomia funcional, administrativa e iniciativa de proposta orçamentária para as Defensorias Públicas da União e do DF. - Emenda Constitucional 80 de 2014: . instituição permanente; . orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e defesa judicial e extrajudicial, individual ou coletiva, dos necessitados; . princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional. 4) A Defensoria Pública e suas missões institucionais: @ASDEFENSORAS Art. 134 (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014): A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. O artigo 4º da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Lei Complementar 80, de 1994, modificada pela Lei Complementar 132, de 2009) atribui à Defensoria Pública as suas funções institucionais. Elas podem ser divididas em quatro categorias: Primeira categoria: função institucional de promoção dos direitos humanos: . Inciso III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; - Educar em e para os Direitos Humanos, por meio de Programas, Cursos e Palestras. - Garantir a presença dos direitos humanos na agenda governamental e promover a pauta legislativarelacionada ao tema. Segunda: funções institucionais de proteção dos direitos humanos: - Proteger os direitos humanos e blindá-los contra situações de violação. - Proteger os direitos humanos implica participar na construção e realizar o monitoramento das políticas públicas voltadas para grupos sociais em situação de vulnerabilidade. . Inciso XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado; . Inciso XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais; . Inciso XX – participar, quando tiver assento, dos conselhos federais, estaduais e municipais afetos às funções institucionais da Defensoria Pública, respeitadas as atribuições de seus ramos; Terceira: funções institucionais de defesa dos direitos humanos: - Defender os direitos humanos é reagir a uma violação. . Inciso I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus; @ASDEFENSORAS . Inciso II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; . Inciso VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor; . Inciso X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; . Inciso XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais (pessoa com deficiência), da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; - Outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado: . vítimas da pobreza e da miséria, sobretudo quando em situação de rua; . pessoas vítimas de preconceito de identidade de gênero, de orientação sexual, de raça, de etnia e de religião; . pessoas em situação de cárcere. . Inciso XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas; Quarta: funções institucionais instrumentais para o exercício das demais funções: . Inciso IV – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de órgãos ou de servidores de suas Carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições; . Inciso V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor de pessoas naturais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordinárias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capazes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus interesses; . Inciso VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos; . Inciso VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; . Inciso IX – impetrar habeas corpus, mandado de injunção, habeas data e mandado de segurança ou qualquer outra ação em defesa das funções institucionais e prerrogativas de seus órgãos de execução; @ASDEFENSORAS . Inciso XIV – acompanhar inquérito policial, inclusive com a comunicação imediata da prisão em flagrante pela autoridade policial, quando o preso não constituir advogado; . Inciso XV – patrocinar ação penal privada e a subsidiária da pública; . Inciso XVI – exercer a curadoria especial nos casos previstos em lei; . Inciso XIX – atuar nos Juizados Especiais; . Inciso XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores; . Inciso XXII – convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais. 5) Desafios e perspectivas do acesso à justiça: implementação das Regras de Brasília. As Regras são um conjunto de normas sobre o acesso à justiça de pessoas em situação vulnerável. As Regras nasceram na XIV Cúpula Judicial Interamericana, celebrada em Brasília, em março de 2008. A Cúpula Judicial Iberoamericana tem sua origem em 1990. Ela é a coluna vertebral das atividades de cooperação entre o Poder Judiciário de vinte e três países da Comunidade Iberoamericana de Nações, integrada, entre outros países, por Portugal, Espanha e os países da América do Sul e da América Central. A Cúpula aglutina em um só foro as instâncias máximas de Administração da Justiça dos sistemas judiciais iberoamericanos. Reúne em seu seio, portanto, a Presidência das Cortes Supremas e dos Conselhos das Judicaturas ou Magistraturas desses 23 países. Na Cúpula de 2008, quando surgiram as regras, também participaram a Associação Ibero-americana de Ministérios Públicos (AIAMP), a Associação Interamericana de Defensores Públicos (AIDEF), a Federação Ibero-americana de Ombudsman (FIO) e a União Ibero-americana de Colégios e Agrupamentos de Advogados (UIBA). A premissa fundamental das Regras é a de que o sistema judicial deve ser compreendido como instrumento para a defesa efetiva dos direitos das pessoas em condição de vulnerabilidade e deve contribuir para a redução das desigualdades sociais. De acordo com o seu próprio artigo 24, as Regras têm por destinatários “a) Os responsáveis pela concepção, implementação e avaliação de políticas públicas dentro do sistema judicial; b) Os Juízes, Fiscais, Defensores Públicos, Procuradores e demais servidores que laborem no sistema de Administração de Justiça em conformidade com a legislação interna de cada país; c) Os @ASDEFENSORAS Advogados e outros profissionais do Direito, assim como os Colégios e Agrupamentos de Advogados; d) As pessoas que desempenham as suas funções nas instituições de Ombudsman (Provedoria); e) Polícias e serviços penais; f) E, com carácter geral, todos os operadores do sistema judicial e quem intervém de uma ou de outra forma no seu funcionamento”. Conquanto não estejamos diante de um instrumento de aplicação compulsória e passível de sanções no caso de descumprimento, seu valor como soft law não deve ser desprezado. Para se ter uma ideia de seu alcance, como exemplo, a Corte Suprema de Justiça da Nação da Argentina já assinalou, no acórdão 05, de 2009, que as Regras constituem “una valiosa herramienta en un aspecto merecedor de particular atención en materia de acceso a la justicia”, y que, por lo tanto, “deben ser seguidas como guía en los asuntos a que se refieren” (Manual de aplicación de las 100 Reglas de Brasilia en el ámbito de la Defensa Pública. Documento elaborado por la Asociación Interamericana de Defensorías Públicas (AIDEF), p. 18). A Exposição de Motivos das Regras elucida os seus objetivos comclareza: “O sistema judicial deve configurar-se, e está a configurar-se, como um instrumento para a defesa efectiva dos direitos das pessoas em condição de vulnerabilidade. Pouca utilidade tem que o Estado reconheça formalmente um direito se o seu titular não pode aceder de forma efectiva ao sistema de justiça para obter a tutela do dito direito. Se bem que a dificuldade de garantir a eficácia dos direitos afecta com carácter geral todos os âmbitos da política pública, é ainda maior quando se trata de pessoas em condição de vulnerabilidade dado que estas encontram obstáculos maiores para o seu exercício. Por isso, dever-se-á levar a cabo uma actuação mais intensa para vencer, eliminar ou mitigar as ditas limitações. Desta forma, o próprio sistema de justiça pode contribuir de forma importante para a redução das desigualdades sociais, favorecendo a coesão social. As presentes Regras não se limitam a estabelecer bases de reflexão sobre os problemas do acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, mas também recolhem recomendações para os órgãos públicos e para os quais prestam os seus serviços no sistema judicial. Não somente se referem à promoção de políticas públicas que garantam o acesso à justiça destas pessoas, mas também ao trabalho quotidiano de todos os servidores e operadores do sistema judicial e quem intervém de uma ou de outra forma no seu funcionamento”. A Primeira Seção do Primeiro Capítulo das Regras também indica os valores que inspiraram a edição do Documento: “(1) As presentes Regras têm como objectivo garantir as condições de acesso efectivo à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade, sem discriminação alguma, englobando o conjunto de políticas, medidas, facilidades e apoios que permitam que as referidas pessoas usufruam do pleno gozo dos serviços do sistema judicial. (2) Recomenda-se a elaboração, aprovação, implementação e fortalecimento de políticas públicas que garantam o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. Os servidores e operadores do sistema de justiça outorgarão às pessoas em condição de vulnerabilidade um tratamento adequado às suas circunstâncias singulares. Assim recomenda-se dar prioridade a actuações destinadas a facilitar o acesso à justiça daquelas pessoas que se @ASDEFENSORAS encontrem em situação de maior vulnerabilidade, quer seja pela concorrência de várias causas ou pela grande incidência de uma delas.” De acordo com o jurista colombiano Federico Adreu-Guzman e o professor de Filosofia do Direito da Universidade de Buenos Aires Christian Courtis, funcionários do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “As Regras podem ser lidas no contexto de três importantes avanços em direitos humanos. A primeira consiste no reconhecimento de que o direito de respeitar as garantias do devido processo legal e o direito à proteção judicial efetiva em caso de violação de um direito fundamental, implica o direito de acesso à justiça. A segunda é a aplicação concreta do direito de acesso à justiça para a existência de obrigações positivas do Estado sobre direitos humanos, com vista a eliminar essas barreiras e obstáculos de ordem jurídica, social, econômico e cultural que dificultam ou impedem a plena exercício dos direitos humanos pelos seus titulares. A terceira é a crescente conscientização das barreiras ao acesso à justiça e o exercício de qualquer outro direito que não seja individual, mas social ou grupal. Isso significa que as dificuldades sentidas pelas pessoas em acessar a justiça e exercer seus direitos se devem, em parte, à sua pertença a grupos sociais em situação de vulnerabilidade " (Cf. Adreu-Guzman, Federico y Courtis, Christian “Comentarios sobre las 100 Reglas de Brasilia sobre Acceso a la Justicia de las Personas en Condición de Vulnerabilidad” en Defensa pública: garantía de acceso a la justicia, Buenos Aires, 2008, Ed. Ministerio Público de la Defensa, pp. 52-55, tradução livre do autor). As Regras de Brasília estão situadas num eixo transversal que perpassa as ondas renovatórias e que promove a ideia mais ampla de justiça, segundo a qual não há efetiva justiça se o Sistema de Administração de Justiça não contemplar os interesses específicos dos segmentos mais vulneráveis de nossa comunidade jurídica e política. 6) Quais as principais Regras de Brasília sobre o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade? Este documento inicia um Capítulo que, depois de concretizar a sua finalidade, define tanto os seus beneficiários como os seus destinatários: “(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, género, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. (4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o género e a privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição de vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de desenvolvimento social e económico”. O Capítulo seguinte contém uma série de regras aplicáveis àquelas pessoas em condição de vulnerabilidade que buscam acesso à justiça, como parte do processo, para a defesa @ASDEFENSORAS dos seus direitos. De modo geral, o Capítulo prevê regras para que em qualquer intervenção num ato judicial se respeite a dignidade da pessoa em condição de vulnerabilidade, outorgando-lhe um tratamento específico adequado às circunstâncias próprias da sua situação. Essas regras versam sobre informações adequadas sobre os atos a serem praticados, a serem prestadas desde o início do processo, mediante ferramentas acessíveis. As condições de comparecimento aos atos processuais devem assegurar um lugar cômodo, acessível seguro e tranquilo, a prestação de informações sobre a relevância desse comparecimento, a disponibilização de assistência jurídica e psicossocial, o uso de linguagem adequada às necessidades da pessoa em situação vulnerável e a proteção de sua imagem e privacidade. - Ao tratar da proteção das meninas, dos meninos e dos adolescentes, convém destacar as regras 5, 78 e 82. (5) Considera-se criança e adolescente todas as pessoas menores de dezoito anos de idade, salvo se tiver alcançado antes a maioria de idade em virtude da legislação nacional aplicável. Toda a criança e adolescente deve ser objecto de uma especial tutela por parte dos órgãos do sistema de justiça em consideração ao seu desenvolvimento evolutivo. (78) Nos actos judiciais em que participem menores deve ter- se em conta a sua idade e desenvolvimento integral, e em todo o caso: - Devem celebrar-se numa sala adequada. - Deverá facilitar-se a compreensão, utilizando uma linguagem simples. - Deverão evitar-se todos os formalismos desnecessários, tais como a toga, a distância física com o tribunal e outros semelhantes. (82) Em todo o caso, não deve ser permitida a captura e difusão de imagens em relação às crianças e adolescentes, pois afecta de forma decisiva o seu desenvolvimento como pessoa. - Ao cuidar da facilitação do acesso à justiça das pessoas idosas, dispõe a regra 06: 6) O envelhecimento também pode constituir uma causa de vulnerabilidade quando a pessoa adulta maior encontrar especiais dificuldades, atendendo às suas capacidades funcionais, em exercitaros seus direitos perante o sistema de justiça. - No tocante à proteção das pessoas com deficiência, é importante reproduzir o conteúdo das regras 7, 8, 37, 72 e 77: 7) Entende-se por incapacidade a deficiência física, mental ou sensorial, quer seja de natureza permanente ou temporal, que limite a capacidade de exercer uma ou mais @ASDEFENSORAS actividades essenciais da vida diária, que possa ser causada ou agravada pelo ambiente económico e social. 8) Procurar-se-á estabelecer as condições necessárias para garantir a acessibilidade ao sistema de justiça das pessoas com incapacidade, incluindo aquelas medidas conducentes a utilizar todos os serviços judiciais exigidos e dispor de todos os recursos que garantam a sua segurança, mobilidade, comodidade, compreensão, privacidade e comunicação. (37) Antecipação jurisdicional da prova. Recomenda-se a adaptação dos procedimentos para permitir a prática antecipada da prova na qual participe a pessoa em condição de vulnerabilidade, para evitar a reiteração de declarações, e inclusive a prática da prova antes do agravamento da incapacidade ou da doença. Para estes efeitos, pode ser necessária a gravação em suporte audiovisual do acto processual no qual participe a pessoa em condição de vulnerabilidade, de tal forma que possa reproduzir-se nas sucessivas instâncias judiciais. (72) Procurar-se-á adaptar a linguagem utilizada às condições da pessoa em condição de vulnerabilidade, tais como a idade, o grau de maturidade, o nível educativo, a capacidade intelectual, o grau de incapacidade ou as condições sócio-culturais. Deve procurar-se formular perguntas claras, com uma estrutura simples. (77) Facilitar-se-á a acessibilidade das pessoas com incapacidade para a celebração do acto judicial naquilo em que devam intervir, e promover-se-á em particular a redução de barreiras arquitectónicas, facilitando tanto o acesso como a permanência nos edifícios judiciais. Quanto à proteção dos povos indígenas e das minorias éticas, religiosas e linguísticas, merecem destaque as regras 09, 48, 49 e 79: As pessoas integrantes das comunidades indígenas podem encontrar-se em condição de vulnerabilidade quando exercitam os seus direitos perante o sistema de justiça estatal. Promover-se- ão as condições destinadas a possibilitar que as pessoas e os povos indígenas possam exercitar com plenitude tais direitos perante o dito sistema de justiça, sem discriminação alguma que possa ser fundada na sua origem ou identidade indígenas. Os poderes judiciais assegurarão que o tratamento que recebem por parte dos órgãos da administração de justiça estatal seja respeitoso com a sua dignidade, língua e tradições culturais. Tudo isso sem prejuízo do disposto na Regra 48 sobre as formas de resolução de conflitos próprios dos povos indígenas, propiciando a sua harmonização com o sistema de administração de justiça estatal. 11 48) Com fundamento nos instrumentos internacionais na matéria, é conveniente estimular as formas próprias de justiça na resolução de conflitos surgidos no âmbito da comunidade indígena, assim como propiciar a harmonização dos sistemas de administração de justiça estatal e indígena baseada no princípio de respeito mútuo e de conformidade com as normas internacionais de direitos humanos. 49) Além disso serão de aplicação as restantes medidas previstas nestas Regras nos casos de resolução de conflitos fora da comunidade indígena por parte do sistema de administração de justiça estatal, onde é conveniente abordar os temas relativos à peritagem cultural e ao direito a expressar-se no próprio idioma. (79) Na celebração dos actos judiciais respeitar-se-á a dignidade, os costumes e as tradições culturais das pessoas integrantes de comunidades indígenas, conforme a legislação interna de cada país. Para a proteção das vítimas de delitos são pertinentes as regras 10, 11, 12, 75 e 76: 10) Para efeitos das presentes Regras, considera-se vítima toda a pessoa física que tenha sofrido um dano ocasionado por uma infracção penal, incluída tanto a lesão física ou psíquica, como o sofrimento moral e o prejuízo económico. O termo vítima também poderá incluir, se for o caso, a família imediata ou as pessoas que estão a cargo da vítima directa. 11) Considera-se em condição de vulnerabilidade aquela vítima do delito que tenha uma relevante limitação para evitar ou mitigar os danos e prejuízos derivados da infracção penal ou do seu contacto com o sistema de justiça, ou para enfrentar os riscos de sofrer uma nova vitimização. A vulnerabilidade pode proceder das suas próprias características pessoais ou das circunstâncias da infracção penal. Destacam para estes efeitos, entre outras vítimas, as pessoas menores de idade, as vítimas de violência doméstica ou intra familiar, as vítimas de delitos sexuais, os adultos maiores, assim como os familiares de vítimas de morte violenta. 12) Estimular-se-á a adopção daquelas medidas que sejam adequadas para mitigar os efeitos negativos do delito (vitimização primária). Assim procurar-se-á que o dano sofrido pela vítima do delito não seja incrementado como consequência do seu contacto com o sistema de justiça (vitimização secundária). E procurar-se-á garantir, em todas as fases de um procedimento penal, a protecção da integridade física e psicológica das vítimas, sobretudo a favor daquelas que corram risco de intimidação, de represálias ou de vitimização reiterada ou repetida (uma mesma pessoa é vítima de mais do que uma infracção penal durante um período de tempo). Também poderá ser necessário outorgar uma protecção particular àquelas vítimas que vão prestar testemunho no processo judicial. Prestar-se-á uma especial atenção nos casos de violência 12 intra familiar, assim como nos momentos em que seja colocada em liberdade a pessoa à qual se atribui a ordem do delito. 75) Recomenda-se adoptar as medidas necessárias para garantir uma protecção eficaz dos bens jurídicos das pessoas em condição de vulnerabilidade que intervenham no processo judicial na qualidade de vítimas ou testemunhas; assim como garantir que a vítima seja ouvida nos processos penais em que estejam em jogo os seus interesses. 76) Prestar-se-á especial atenção àqueles casos em que a pessoa está submetida a um perigo de vitimização reiterada ou repetida, tais como vítimas ameaçadas nos casos de delinquência organizada, menores vítimas de abuso sexual ou maus tratos, e mulheres vítimas de violência dentro da família ou do casal. No tocante à proteção dos migrantes, refugiados e solicitantes de asilo as regras 13, 14 e 32 trazem normas importantes: 13) A deslocação de uma pessoa fora do território do Estado da sua nacionalidade pode constituir uma causa de vulnerabilidade, especialmente nos casos dos trabalhadores migratórios e seus familiares. Considera-se trabalhador migratório toda a pessoa que vá realizar, realize ou tenha realizado uma actividade remunerada num Estado do qual não seja nacional. Assim reconhecer-se-á uma protecção especial aos beneficiários do estatuto de refugiado conforme a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, assim como aos solicitantes de asilo. 14) Também podem encontrar-se em condição de vulnerabilidade os deslocados internos, entendidos como pessoas ou grupos de pessoas que se tenham visto forçados ou obrigadas a escapar ou a fugir do seu local ou do seu lugar de residência habitual, em particular como resultado ou para evitar os efeitos de um conflito armado, de situações de violência generalizada, de violações dos direitos humanos ou de catástrofesnaturais ou provocadas pelo ser humano, e que não cruzaram uma fronteira estatal internacionalmente reconhecida. 32) Garantir-se-á o uso de intérprete quando o estrangeiro que não conheça a língua ou línguas oficiais nem, se for o caso, a língua oficial própria da comunidade, tenha de ser interrogado ou prestar alguma declaração, ou quando fosse preciso dar-lhe a conhecer pessoalmente alguma resolução. As pessoas em situação de pobreza são s ignatárias das regras 15 e 16: 15) A pobreza constitui uma causa de exclusão social, tanto no plano económico como nos planos social e cultural, e pressupõe um sério obstáculo para o acesso à justiça especialmente daquelas pessoas nas quais também concorre alguma outra causa de vulnerabilidade. 13 16) Promover-se-á a cultura ou alfabetização jurídica das pessoas em situação de pobreza, assim como as condições para melhorar o seu efectivo acesso ao sistema de justiça. Às mulheres cabe a proteção estabelecida nos artigos 17, 18, 19 e 20: 17) A discriminação que a mulher sofre em determinados âmbitos pressupõe um obstáculo no acesso à justiça, que se vê agravado naqueles casos nos quais concorra alguma outra causa de vulnerabilidade. 18) Entende-se por discriminação contra a mulher toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objecto ou resultado menosprezar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente do seu estado civil, sobre a base da igualdade do homem e a mulher, dos direitos humanos e as liberdades fundamentais nas esferas política, económica, social, cultural e civil ou em qualquer outra esfera. 19) Considera-se violência contra a mulher qualquer acção ou conduta, baseada no seu género, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado, mediante o emprego da violência física ou psíquica. 20) Impulsionar-se-ão as medidas necessárias para eliminar a discriminação contra a mulher no acesso ao sistema de justiça para a tutela dos seus direitos e interesses legítimos, atingindo a igualdade efectiva de condições. Prestar-se-á uma especial atenção nos casos de violência contra a mulher, estabelecendo mecanismos eficazes destinados à protecção dos seus bens jurídicos, ao acesso aos processos judiciais e à sua tramitação ágil e oportuna. As pessoas privadas de liberdade são destinatárias das regras 22 e 23: 22) A privação da liberdade, ordenada por autoridade pública competente, pode gerar dificuldades para exercer com plenitude perante o sistema de justiça os restantes direitos dos quais é titular a pessoa privada da liberdade, especialmente quando concorre com alguma causa de vulnerabilidade enumerada nos parágrafos anteriores. 23) Para efeitos destas Regras, considera-se privação de liberdade a que foi ordenada pela autoridade pública, quer seja por motivo da investigação de um delito, pelo cumprimento de uma condenação penal, por doença mental ou por qualquer outro motivo. As pessoas LGBTI não foram destinatárias de regras especiais. No entanto, isso não impede o reconhecimento de sua situação de vulnerabilidade. Isso porque a regra 04 não é taxativa em elencar as causas de vulnerabilidade. 14 O último Capítulo contempla uma série de medidas destinadas a fomentar a eficácia destas Regras, de tal forma que possam contribuir de forma eficaz para a melhoria das condições de acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. 7) Considerações finais. As modernas concepções de democracia, república e igualdade compartilham a premissa de que os cidadãos de uma mesma comunidade devem reconhecer a si e aos outros como pessoas com a igual liberdade de levarem a vida do jeito que quiserem e de lutarem pelo alcance dos seus projetos pessoais de felicidade. As democracias contemporâneas assumem como verdadeira a premissa de que todos os seres humanos, independentemente de sua situação social, são iguais em dignidade e em valor. Por isso, sempre que não houver lesão aos direitos e liberdades dos demais integrantes da comunidade, as escolhas pessoais de um indivíduo devem ser respeitadas e a igualdade de oportunidades de escolha entre os indivíduos deve ser estimulada. Quando houver a violação dos espaços individuais de liberdade assegurados pela ordem jurídica, o funcionamento regular dessa mesma ordem jurídica pressupõe a existência de instrumentos de acionamento de um Sistema de Justiça capaz de restaurar as liberdades violadas, de compensar as vítimas dessa violação e de punir os responsáveis pela ação lesiva. As Regras de Brasília acentuam a imprescindibilidade do acesso fácil, igualitário e humanizado ao Sistema de Justiça, para a tutela dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais assegurados pela ordem jurídica a todos os indivíduos dessa comunidade, e, em especial, aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Em certa medida, as Regras de Brasília constituem um refinamento do artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assegura a toda pessoa humana o direito de acesso efetivo a jurisdições nacionais competentes para prevenir e reparar atos que violem os direitos reconhecidos pela Constituição ou pelas leis. O acesso efetivo à justiça deve reconhecer as diferenças culturais, sociais e econômicas entre as pessoas. A igualdade formal de direitos é insuficiente, se não vier acompanhada de políticas públicas e ações afirmativas destinadas a garantir que as pessoas mais vulneráveis de nossa comunidade política e jurídica usufruam, com liberdade e igualdade, dos serviços de resolução de conflitos oferecidos pelo Sistema de Justiça. Nesse contexto, as Regras de Brasília anseiam uma mudança paradigmática no saber e no fazer dos operadores do Sistema de Justiça, na direção da elaboração, da aprovação, da implementação e do fortalecimento de políticas públicas que garantam o acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade.
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