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Introdução do livro A personalidade normal e patológica - Jean Bergeret.

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A Personalidade Normal e Patológica 23
Estruturas e
Normalidade
A NOÇÃO DE “NORMALIDADE”
O emprego da noção de “normalidade” certamente apresenta incontestáveis pe-
rigos nas mãos dos que detêm a autoridade médica, política, social, cultural, econô-
mica, filosófica, moral, jurídica ou estética e, por que não, intelectual? A história
antiga ou contemporânea das comunidades, bem como das ideologias, grandes ou
pequenas, serve-nos de cruéis exemplos disso, cada qual apenas conservando em sua
memória representações muito seletivas, em função de suas opções pessoais.
Se a “normalidade” se refere a uma percentagem majoritária de comportamen-
tos ou pontos de vista, azar daqueles que ficam na minoria. Se, por outro lado, a
“normalidade” torna-se função de um ideal coletivo, muito se conhecem os riscos
corridos, mesmo pelas maiorias, desde que se encontrem reduzidas ao silêncio por
aqueles que se crêem ou se adjudicam a vocação de defender o dito ideal pela força;
entendem limitar o desenvolvimento afetivo dos outros depois de se haverem tam-
bém visto, eles mesmos, acidentalmente bloqueados e depois elaborado secundaria-
mente sutis justificações defensivas.
De fato, a “normalidade” é mais comumente encarada em relação aos outros, ao
ideal ou à regra. Buscando permanecer ou tornar-se “normal”, a criança identifica-se
com os “grandes” e o ansioso os imita. Em ambos os casos, enuncia-se a questão
manifesta: “Como fazem os outros?” e subentende-se: “Como fazem os grandes?”
Ora, o verdadeiro problema colocado pelo eventual reconhecimento de uma
“normalidade” talvez não se situe nesse nível, entre esses dois falsos aspectos objeti-
vos: os outros ou o ideal.
A potência atômica levou o mundo às catástrofes que conhecemos; nem por isso
trata-se, mesmo entre os mais pacifistas, de negar a existência do átomo. Por que,
então, experimentaríamos a necessidade de negar toda e qualquer noção de “norma-
lidade”?
Se, em vez de formular (ou temer), a todo momento, julgamentos de valor em
relação ao outros quanto a uma eventual “normalidade”, muito freqüente e desastro-
samente neste sentido, enfatizarmos em primeiro lugar a constatação de bom funcio-
namento interior que pode comportar essa noção, tendo em conta dados particulares
CAPÍTULO1
24 Jean Bergeret
a cada indivíduo (foi ele muito limitado em suas possibilidades pessoais, de modo
ocasional ou duradouro), parece-me que poderíamos encarar as coisas de modo com-
pletamente diferente do que com simples defesas projetivas ou, então, proselitismos
invasores e inquietantes.
Contudo, parece não ser fácil encontrar interlocutores que aceitem discutir um
aspecto subjetivo eminentemente nuançado e variável de “normalidade” em função
das realidades profundas de cada um.
Por um lado, a tentação sádica leva-nos logo em direção às estatísticas e ideais;
por outro, a tentação masoquista e “pauperista” desencadeia uma alergia horripilante
e imediata diante de todos os compostos da palavra “norma”1.
No primeiro caso, encontramo-nos prisioneiros de um imperialismo que se apo-
dera da noção para tentar salvar os privilégios que essa tão comumente recobriu e, no
segundo, defrontamo-nos com uma recusa do termo, em razão de todas as recorda-
ções opressivas e dolorosas que esse desperta.
Nossa posição de pesquisa complica-se ainda mais ao constatarmos que muitos
daqueles que não se encontram oficialmente engajados em uma nem outra dessas
duas posições defensivas precedentes, muitas vezes hesitam sucessivamente entre
um arroubo sádico pelo lado das normas “autoritárias” ou uma piscadela demagógica
para as suscetibilidades “contestatórias”. Tal movimento pendular de sucessivas anu-
lações corre o risco não só de emudecer essas pessoas, mas sobretudo de fazer com
que percam toda a coragem científica ou qualquer poder de investigação.
Entretanto, a noção de “normalidade” está tão ligada à vida quanto o nascimen-
to ou a morte, utilizando o potencial do primeiro buscando retardar as restrições da
segunda, na medida em que toda normalidade apenas pode coordenar as necessida-
des pulsionais com as defesas e adaptações, os dados internos hereditários e adquiri-
dos com as realidades externas, as possibilidades caracteriais e estruturais com as
necessidades relacionais.
O principal perigo atual parece bem menos ser o risco, bastante conhecido, de
usurpação da noção teórica de normalidade em benefício dos poderosos ou dos so-
nhadores, do que da denegação dos pessimistas, sutilmente a serviço do instinto de
morte, do conjunto dos elementos reguladores internos que permitem aos humanos
(sempre limitados) arranjar-se interiormente para buscar não a ilusão de onipotência
ou felicidade, mas pelo menos zonas bastante constantes de eficiência e bem-estar,
em meio às suas obrigatórias imperfeições e seus não menos obrigatórios conflitos
interiores.
Chegaríamos assim a uma opinião, em suma, bastante próxima daquela do ho-
mem da rua que estima, muito sabiamente, sem dúvida, que qualquer ser humano
encontra-se em um “estado normal”, quaisquer que sejam seus problemas pessoais
profundos, quando chega a se arranjar com isso e adaptar-se a si mesmo e aos outros,
sem paralisar-se interiormente em uma prisão narcísica, nem fazer-se rejeitar pelos
demais (prisão-hospital-asilo), apesar das inevitáveis divergências incorridas nas re-
lações com eles.
Minha atual tentativa de definição da noção de “normalidade” longe está de
satisfazer-me inteiramente, ainda que mais não fosse, pelo seu tamanho; contudo
pareceu-me difícil, até aí, reduzir o número de seus parâmetros.
Tentativa de definição:
O verdadeiro “sadio” não é simplesmente alguém que se declare como tal, nem
sobretudo um doente que se ignora, mas um sujeito que conserve em si tantas fixa-
ções conflituais como tantas outras pessoas, que não tenha encontrado em seu ca-
A Personalidade Normal e Patológica 25
minho dificuldades internas ou externas superiores a seu equipamento afetivo here-
ditário ou adquirido, às suas faculdades pessoais defensivas ou adaptativas e que se
permita um jogo suficientemente flexível de suas necessidades pulsionais, de seus
processos primário e secundário nos planos tanto pessoal quanto social, tendo em
justa conta a realidade e reservando-se o direito de comportar-se de modo aparen-
temente aberrante em circunstâncias excepcionalmente “anormais”.
Será, pois, necessário insistir na independência da noção de “normalidade” em
relação à noção de estrutura. Foi amplamente demonstrado, com efeito, pela observa-
ção cotidiana, que uma personalidade reputada como “normal” pode, a qualquer
momento de sua existência, entrar na patologia mental, inclusive na psicose, e que,
inversamente, um doente mental, mesmo psicótico, bem e precocemente tratado, con-
serva todas as chances de retornar a uma situação de “normalidade”, de forma que
atualmente não mais se ousa opor, de maneira demasiado simplista, as pessoas “nor-
mais” aos “doentes mentais”, ao se considerar a estrutura profunda. Não mais nos
deixamos ludibriar por manifestações exteriores, por mais ruidosas que sejam, cor-
respondentes ao estado (momentâneo ou prolongado) em que se encontra uma verda-
deira estrutura, e não a uma mudança real dessa estrutura em si.
Para, pelo menos em um primeiro momento, apenas nos referirmos ao que cha-
mo, em minhas hipóteses pessoais, de estruturas estáveis (ou seja, psicóticas ou neu-
róticas), parece evidente existirem tantos termos de passagem, no seio de uma linha-
gem estrutural psicótica, entre “psicose” e uma certa forma de “normalidade” adapta-
da à estruturação de tipo psicótico, quanto no seio de uma linhagem estrutural neuró-
tica, entre “neuroses” e uma certa forma de “normalidade” adaptada à estruturação
do tipo neurótico.
Um exemplo, sem dúvida, poderá ilustrar o meu propósito de modo muito mais
preciso:
OBS. Nº 1: UM CASO DE “NORMALIDADE”
Renétem 38 anos. Não conhece nenhum passado médico digno de nota.
Alto, magro, não parece muito forte fisicamente, nem muito cuidadoso com sua
pessoa, nem muito atento ao que se passa ao seu redor. René é o único filho de
um pai bastante idoso e taciturno, notário em uma cidade pequena, e de uma
mãe muito mais jovem, autoritária e bastante agressiva.
Ele cresceu principalmente entre esta mãe, sua tia (irmã da mãe) e a avó
materna, junto à qual morou durante os seus estudos secundários e no início da
universidade.
Seus estudos foram excelentes, sendo René dotado de muito bom Q.I., mas
esses se eternizaram, pois René nunca chegou a decidir-se por uma via definiti-
va nem uma carreira precisa. Rapidamente recebido na Escola Normal Superior
no ramo literário, nem por isso deixou de perseguir certificados de licença em
todos os sentidos, principalmente certificados “científicos”, pelos quais passa-
va facilmente, chegando a haver um momento de voltar-se para o lado do Direi-
to. Tendo passado no concurso da Agregação de Letras, aceitou finalmente um
posto em um grande liceu parisiense e depois, ao final de alguns anos, continu-
ando ainda a lecionar nas classes preparatórias, foi nomeado para um posto
importante na administração central.
26 Jean Bergeret
Também seguiu fazendo algumas pesquisas matemáticas e escreveu al-
guns poemas. Manifestava um grande ecletismo, mas muito poucos elementos
passionais; proporcionava-se poucas distrações, sem contudo enfastiar-se.
A maioria dos seus colegas, casados e pais de família, reputados “nor-
mais” por passarem suas noitadas em coquetéis ou espetáculos da moda, seus
domingos nas ruas dos subúrbios, terça-feira gorda em Val-d’Isère, Páscoa com
a sogra e os meses de agosto na Espanha, considerava-no um “original” simpá-
tico, mas um tanto inquietante. Com efeito, diante dele todo mundo sentia-se
mais ou menos questionado, ainda que isso não fosse muito consciente, e cada
qual rapidamente aproveitava para projetar sobre René a inquietante estranheza
que este originava no outro, no sistema ideal coletivo bastante frágil adotado
pelos membros do grupo tido como “normal” por simples razões estatísticas ou
ideais.
René conhecia desejos sexuais reais, porém mais comumente arranjava-se
de modo a colocar, entre a mulher e ele, tranqüilizadoras distâncias e apazigua-
doras dificuldades.
Após muitas hesitações, acabou finalmente casando-se com uma jovem
viúva, inteligente, ativa e simpática, mas a quem as pessoas reputadas “nor-
mais”, na época, recriminavam por não se sacrificar mais aos gostos do dia.
René teve um início conjugal difícil: a mãe não era lá muito favorável ao
casamento; o sogros, por seu turno, “apoiavam” um pouco exageradamente o
casal; enfim, René em alguns meses passou a sentir uma espécie de “bola” que
subia e descia e trancava ao nível da laringe. “O pomo de Adão”, sem dúvida,
diziam-lhe rindo aqueles dentre seus amigos que haviam lido tratados de vulga-
rização psicanalítica. A gozação parecia, com efeito, plenamente cabível, em
virtude das circunstâncias matrimoniais difíceis.
Depois o casal criou para si uma vida independente, pouco original ao que os
outros chamam de “originalidade”, mas bastante original, contudo, quando nos
referimos ao que a maioria denomina, demasiado rapidamente, de “normalidade”.
Nasceram três filhos, criados de um modo “curioso”, isto é, os vizinhos,
parentes e amigos declaravam-se enlouquecidos pelas liberdades de que goza-
vam. Estas crianças, contudo, de modo algum encontravam-se abandonadas por
seus pais e não pareciam, absolutamente, sofrer em meio às atitudes “boêmias”
desta família, que continuou a ter apenas uma habitação antiga (em um bairro
pouco estimado), um automóvel curioso (de uma marca estrangeira pouco co-
nhecida), uma casa de férias sem conforto em um lugar do interior, bonito mas
sem renome, uma situação financeira sempre apertada, apesar de um bom salá-
rio e alguns adicionais, etc.
René e sua esposa, muitas vezes, são convidados para visitar seus colegas
ou casais encontrados em viagens ou atividades culturais diversas, não porque
experimentem a necessidade de brilhar ou distrair a sociedade, mas porque so-
bretudo René, graças à sua grande cultura e ao seu espírito aberto, mostra-se
interessado nas zonas de investimento narcisistas, as mais diversas, encontradas
em seus hóspedes.
Por seu turno, René e sua esposa recebem facilmente, e sem particular
necessidade demonstrativa, as pessoas que simplesmente têm vontade de ver,
sem sentirem-se, todavia, particularmente agressivos quando devem, por neces-
sidade prática, misturar aí um superior ou um colega menos simpático, mas bem
situado.
René é “normal” ou não?
A Personalidade Normal e Patológica 27
Sem dúvida alguma, trata-se de uma estrutura edipiana com uma fixação mater-
na bastante importante, havendo fixado os investimentos afetivos entre certos limites
dificilmente transponíveis. Mas, isto posto, podemos inicialmente constatar que não
se produziu qualquer descompensação nítida e, a seguir, que não há qualquer ameaça
de descompensação a temer, pois o conjunto dos mecanismos de defesa e adaptação
parece funcionar com evidente flexibilidade e incontestável eficácia, certamente le-
vando em conta o real exterior, bem como, em primeiro lugar, as realidades internas
do sujeito, seus talentos e seus setores eventualmente ameaçados.
Considerarei, pois, o caso de René como sendo ao mesmo tempo uma estrutura
neurótica edipiana e genital (o que, certamente, não é uma doença em si, mas uma
categoria fundamental de funcionamento psíquico) e como um caso bem-adaptado
no interior deste grupo de estruturas.
PATOLOGIA E “NORMALIDADE”
No decorrer destas últimas décadas, diferentes autores debruçaram-se sobre a
dialética normalidade-patologia.
E. Minkowski (1938) chama a atenção para a subjetividade da noção de norma,
que, contudo, parece comumente ir por si só, como simples acordo entre as necessi-
dades e realidades da existência. A ênfase é colocada na relação com os outros, em-
bora a principal característica do estudo permaneça em uma ótica mais especialmen-
te fenomenológica.
E. Goldstein (1951) parte de saída em uma direção bastante perigosa, ao referir-
se às noções de “ordem” e “desordem”, preparando toda uma sucessão de juízos de
valor que sempre se torna desagradável formular ou mesmo simplesmente solicitar
no domínio da psicopatologia; com efeito, a unidade de medida corre automatica-
mente o risco de ser considerada mais uma referência às escalas do grupo de observa-
dores do que a uma escala estabelecida em função dos dados interiores do sujeito
observado.
G. Canguilhem (1966) refere-se a diversos trabalhos de anos passados: A. Comte
(1842), que se apóia no princípio de Broussais, apresenta a doença como excesso ou
falta em relação ao estado “normal”; C. Bernard (1865), para quem toda doença nada
mais é do que a expressão perturbada de uma função “normal”; Leriche (1953), para
quem não existe limiar previsível entre o fisiológico e o patológico, podendo resu-
mir-se a saúde como estado de silêncio dos órgãos; Jackson, finalmente, para quem a
doença é constituída por uma provação e um remanejamento, ligados a uma dissolu-
ção e regressão, idéias retomadas por H. Ey ao precisar a ordem de dissolução, na
doença, das funções mentais, de início a partir do que foi recentemente adquirido na
maturação ontogenética do sujeito. G. Canguilhem define a doença como redução da
margem de tolerância em relação às infidelidades do meio. “Normalidade” seria tam-
bém sinônimo de adaptação, e essa idéia comporta nuanças que permitiram a G.
Canguilhem considerar como permanecendo nos limites do “normal” certos estados
tidos por outros como patológicos, na medida em que estes estados podem exprimir
uma relação de “normatividade” com a vida particular do sujeito.
M. Klein (1952) propõe-nos, em toda evoluçãopsicogenética da criança, uma
posição persecutória primitiva, seguida de uma posição depressiva mais ou menos
edipiana. A primeira posição, sobretudo, procederia obrigatoriamente mediante me-
canismos econômicos do tipo psicótico, e toda a patologia ulterior só poderia ter em
conta fixações arcaicas a essas fases obrigatórias a todos. Embora seja oportuno não
28 Jean Bergeret
mais considerar a estrutura “normal” como tendo seguido uma evolução infantil de
todo privilegiada, da mesma forma é difícil considerar, em se tratando de neuróticos
ou de estados limítrofes, que todo o indivíduo tenha conhecido um período no qual o
seu ego teria inicialmente se constituído sobre um modo psicótico, no sentido bastan-
te preciso que continuaremos dando a esse termo, isto é, em uma economia de autên-
tica fragmentação, verdadeira organização estrutural e não somente etapa, lacuna ou
imperfeição evolutiva.
A. Freud (1968) pensou poder definir a normalidade na criança a partir da ma-
neira pela qual, aos poucos, se estabelecem os aspectos tópicos e dinâmicos da perso-
nalidade e do modo pelo qual se engajam e se resolvem os conflitos pulsionais.
C.G. Jung (1913) procurou apresentar as faces complementares dos persona-
gens míticos Prometeu (aquele que pensa antes) e Epimeteu (aquele que pensa de-
pois), ou seja, introvertido e extrovertido, reportando-se às obras de Carl Spitteler e
de W. Goethe. A “normalidade” estaria ligada à união destas duas atitudes, que C.G.
Jung compara à concepção bramânica do símbolo de união. De outra parte, o autor
compara as noções de adaptação (submeter-se ao meio), inserção (ligada unicamen-
te à noção de meio) e “normalidade”, que corresponderia a uma inserção sem fric-
ções, destinada simplesmente a preencher condições objetivamente fixadas. A pato-
logia surgiria desde que o indivíduo saísse do contexto de submissão ao meio, corres-
pondente à “inserção” reservada unicamente a este círculo. Isto parece-nos aproxi-
mar-se daquilo que descreverei adiante, a propósito do movimento de depressão ana-
lítica do estado limite, desde que ele se arrisque a deixar o círculo, constrangedor
mas assegurador, do familiar fálico.
J. Boutonier (1945) mostrou a passagem da angústia à liberdade no indivíduo
que se tornou “normal”, ao passo que a maturação afetiva, fundamento de toda “nor-
malidade” autêntica, é definida por D. Anzieu (1959) como uma atitude sem ansieda-
de diante do inconsciente, tanto no trabalho quanto no lazer, uma aptidão à enfrentar
as inevitáveis manifestações deste inconsciente em todas as circunstâncias nas quais
a vida pode colocar o indivíduo.
R. Diatkine (1967) propôs um marco de anormalidade no fato de o paciente
“não se sentir bem” ou “não ser feliz” e insiste, de outra parte, na importância dos
fatores dinâmicos e econômicos internos no decorrer do desenvolvimento da criança,
nas possibilidades de adaptação e recuperação, na tendência à limitação ou extensão
da atividade mental e nas dificuldades encontradas na elaboração dos fantasmas edi-
pianos. R. Diatkine alerta-nos contra a tão freqüente confusão entre os diagnósticos
de estrutura mental e de normalidade psicopatológica. Essa precaução parece-nos
extremamente motivada. Com efeito, um diagnóstico de estrutura psíquica estável,
no sentido em que a define ao longo de todo o presente estudo, pode ser colocado fora
de toda e qualquer referência à patologia, ao passo que o diagnóstico de “normalida-
de” implica, ao contrário, um exame do modo pelo qual o sujeito se arranja com sua
própria estrutura psíquica.
Para R. Diatkine não se encontra, no adulto, qualquer estrutura dita “normal”.
Toda situação nova para o indivíduo recoloca em questão o seu equilíbrio psíquico, e
o autor estuda sucessivamente as dificuldades que podem expressar esse sofrimento
na criança, conforme as idades e os estágios maturativos. Procura determinar o leque
de prognósticos relacionais posteriores, dispondo ao lado dos elementos prejudiciais
todas as restrições às novas atividades e operações mentais, em particular os sistemas
sistematicamente repetitivos mais ou menos irreversíveis.
C. Chiland (1966) retomou um ponto de vista paralelo, ao mostrar que as crian-
ças, cujo poder normativo é mais extenso, nem por isso estão isentas de certos sinais
A Personalidade Normal e Patológica 29
da linhagem neurótica ou fóbica. É a flexibilidade da passagem de um bom funciona-
mento situado no nível do real a um bom funcionamento situado no nível fantasmáti-
co que serviria de critério de normalidade, e não tanto um simples diagnóstico de
estrutura, e esse ponto de vista parece muito produtivo no plano de reflexão, quando
os comparamos com as conclusões a que chegaram, na patologia escolar africana,
Lehmann (1972), Le Guérinei (1970) ou Mertens de Wilmars (1968) diante de crian-
ças que, esbarrando na ambigüidade causada por dois modelos culturais muito dife-
rentes propostos pela realidade, experimentavam justamente reais dificuldades para
fazer a passagem entre uma boa integração do real e uma boa elaboração fantasmáti-
ca; os distúrbios psicopatológicos constatados vão completamente no sentido das
hipóteses de C. Chiland, que estabelece (1965):
“Nosso objetivo não é necessariamente tornar a criança conforme o que seu meio,
a família, a escola ou a sociedade esperam dela, mas sim torná-la capaz de ascen-
der, com o menor número de limitações possíveis, à sua autonomia e felicidade.”
P. Bourdier (1972), enfim, opôs o que se poderia esperar logicamente como
diferença entre as “normas” de uma mulher e de um homem, por exemplo, ou de
crianças de idades diferentes. Uma criança de quatro anos poderia comportar-se como
um “louco” e ser absolutamente “normal”, ao passo que no período de latência os
mesmos sinais desencadeariam uma inquietude muito viva no psiquiatra. De outra
parte, diante da morte da mãe, uma criança “normal” de quatro meses nem mesmo se
aperceberia, se encontrasse interposto um substituto válido, ao passo que uma crian-
ça “normal” de quinze meses ficaria bastante perturbada por não poder agredir e ao
mesmo tempo, ver a mesma mãe intacta um instante após; quanto a uma criança
“normal” de seis anos, ela se contentaria com o sofrimento incluído no trabalho de
luto.
A. Haynal (1971) mostra a dificuldade de aplicar ao domínio psíquico os habi-
tuais critérios de “normalidade”, referindo-se à adaptação, à facilidade, ao desenvol-
vimento, etc. e à importância da relatividade sociológica da noção de “normalidade”,
tanto no homem quanto nas sociedades animais, onde em maior conta se deve ter as
condições ecológicas, como a densidade territorial da coletividade em questão.
Por outro lado, comportamentos raros nem por isto são anormais. Como obser-
va J. de Ajuriaguerra (1971), a propósito de um texto de Kubie: A saúde é um estado
estatisticamente raro, mas nem por isto anormal.
Contudo, parece-me bom voltar agora um pouco para trás, para os dados freudi-
anos concernentes à noção de “normalidade”, aos quais, em nosso entender, demasia-
do raramente se dá atenção.
Neste domínio, como em tantos outros domínios relativos à psicopatologia “nor-
mal” e “patológica”, S. Freud marcou uma importante virada no modo de pensar dos
psicopatologistas. Antes e depois de seus relatos teóricos e clínicos, as concepções
mudaram radicalmente; o que certamente não quer dizer, conforme veremos, que
antes de Freud ninguém tenha escrito sobre esses assuntos, nem que S. Freud tenha
tido possibilidade e tempo para esgotar tal estudo.
Podemos reter três postulados de seus Três ensaios sobre a teoria da sexualida-
de (1905), da Formulação de dois princípios de funcionamento mental (1911) e de
suas Cinco psicanálises (1905 a 1918):
1) Toda a psicologia do adulto origina-se das dificuldades experimentadas no
nível de desenvolvimento da sexualidade infantil.
30 Jean Bergeret
2) São as pulsões recalcadas, sexuaise agressivas, que criam os sintomas.
3) O modo como é vivida a etapa organizadora da personalidade (isto é, o Édi-
po) depende essencialmente das condições do ambiente.
As delimitações trazidas por S. Freud em outros lugares, em textos menos co-
nhecidos, em nada desmentem esses três postulados: em seus Psychopathic charac-
ters on the stage (1906), mostra que no caráter não-patológico o recalque deve ser
exitoso e que este resultado faz falta no caráter patológico; mas “patológico” encon-
tra-se aqui limitado unicamente ao sentido neurótico. Em seus Alguns tipos de cará-
ter destacados pela psicanálise (1915) é ainda unicamente com referência à econo-
mia edipiana, superegóica, genital e castradora, portanto à linhagem neurótica, que
são estudadas as exceções, aqueles que falham diante do sucesso e os criminosos,
pelo sentimento de culpa. No Declínio do Édipo, S. Freud (1923c) chegará a declarar
que o que distingue o normal ou o patológico situa-se no desaparecimento ou não do
complexo de Édipo, dito de outra forma, ele recusa o estatuto de “normalidade” a
toda estruturação não-neurótica e mesmo, parece, a uma estrutura neurótica na qual o
recalque do Édipo teria ocorrido só de modo parcial. Ele exige o desaparecimento
completo do complexo. Em seus Tipos libidinais, enfim (1931a), procura “preencher
a lacuna que se supõe existir entre o normal e o patológico” pela distinção de três
tipos básicos: erótico, narcísico e obsessivo, que mais habitualmente se combinaram
em subtipos: erótico-obsessivo, erótico-narcísico e narcísico-obsessivo; o tipo teóri-
co erótico-obsessivo-narcísico representaria, ao final das contas, diz Freud, “a abso-
luta normalidade, a harmonia ideal”. Mas Freud parece deixar-se apanhar na armadi-
lha da universidade das apelações “neuróticas”, pois se as suas permanentes descri-
ções do obsessivo e do narcísico-obsessivo bem correspondem a economias de neu-
rose obsessiva e o tipo erótico a economias neuróticas histéricas, parece que Freud
mais descreve estados limítrofes do que neurose sob a cobertura do tipo erótico nar-
císico, caracteriais exitosos sob a cobertura do tipo narcísico e, finalmente, pré-psi-
cóticos sob a cobertura do tipo erótico-obsessivo (a ênfase aqui está colocada nas
defesas antipsicóticas mais do que sobre as incertezas do ego).
Neste último artigo, mais tardio em sua obra e mais arrojado na pesquisa dos
elementos dialéticos entre normalidade e patologia, S. Freud tenta ir o mais longe
possível no reconhecimento de fenômenos não-patológicos que, contudo, implicam
particulares inflexões no modo de investimento da libido em cada tipo descrito. Mas
Freud acha-se prisioneiro de sua grande descoberta: a economia genital edipiana e
neurótica. Reúne aí, por certo com alguma insatisfação, a maior parte de suas outras
descrições clínicas.
Com efeito, antes de Freud, dividiam-se habitualmente os humanos em duas
grandes categorias psíquicas: os “normais” e os doentes mentais (nos quais se dispu-
nham em bloco neuróticos e psicóticos). O grande mérito de Freud foi o de haver
mostrado, através de seus trabalhos revolucionários sobre a economia neurótica, que
não existia qualquer solução de continuidade entre certos funcionamentos mentais
tidos como “normais” e o funcionamento mental tido como “neurótico”. Existem
todos os graus e, no geral, os mecanismos permanecem os mesmos; somente a ade-
quação e a flexibilidade do jogo destes mecanismos diferem mais ou menos. Infeliz-
mente, S. Freud não se aventura muito além do mínimo neurótico. Um incontestável
estado limítrofe como o “Homem dos Lobos” (1918) é descrito como uma neurose, e
se conhece o pouco gosto que tinha pela abordagem dos psicóticos, sua hesitação nas
discussões dos dados nosológicos concernentes ao Presidente Schreber (1911c).
A Personalidade Normal e Patológica 31
Embora tenha escrito, ao final de sua vida, no Esboço da Psicanálise (1940a),
que era “impossível estabelecer cientificamente uma linha de demarcação entre es-
tados normais e anormais”, S. Freud foi por muito tempo levado a pensar, assim
como aqueles que, claramente ou não, permaneceram fixados somente às posições de
sua época, que o fosso não mais se situava entre normais de um lado e doentes (neu-
róticos ou psicóticos reunidos) do outro, mas de um lado neuróticos e normais (cor-
respondendo ao mesmos mecanismos conflituais e defensivos), do outro lado o gru-
po dos “não-normais”, englobando todo o resto; esse “resto” quer se encontrava im-
precisamente denominado de psicóticos e pré-psicóticos diversos, quer então diver-
sificado em psicoses, por certo, mas também em estados limítrofes, caracteriais, per-
versos, etc.
Meu propósito conserva a ambição de ir ainda mais longe: parte do ponto de
vista de que cabe distinguir, de um lado, as estruturas autênticas, sólidas, fixas e
definitivas (psicóticas ou neuróticas) e, de outro, as organizações intermediárias (es-
tados limítrofes), menos especificadas de maneira durável e podendo dar origem a
arranjos mais estáveis (doenças caracteriais ou perversões).
No que diz respeito ao primeiro grupo, podemos considerar que existem tantos
termos de passagem entre “normalidade” e psicose descompensada, no seio da linha-
gem estrutural psicótica fixa, quanto entre “normalidade” e neurose descompensada,
no seio da linhagem estrutural neurótica fixa. Em contrapartida, no que concerne ao
segundo grupo, definido como intermediário, de imediato veremos que não é fácil
considerar uma real “normalidade”, devido aos enormes e permanentes contra-in-
vestimentos energéticos antidepressivos postos em jogo (em virtude da precariedade
justamente da adaptação às realidades internas e externas) e à instabilidade, no final
das contas, de tais organizações não realmente estruturadas no sentido definitivo e
pleno do termo.
A noção de “normalidade” estaria, assim, reservada a um estado de adequação
funcional feliz, unicamente no seio de uma estrutura fixa, seja esta neurótica ou psi-
cótica, sendo que a patológica corresponderia a uma ruptura do equilíbrio dentro de
uma mesma linhagem estrutural.
Um exemplo clínico poderá ser útil à nossa reflexão:
OBS. Nº 2: UM CASO DE DESCOMPENSAÇÃO
Georges tem 42 anos e é diretor de um colégio. Ele sabe poucas coisas de
sua primeira infância, pois não deseja falar, e declara lembrar-se dela muito
mal. Foi órfão de mãe, depois de pai, bastante cedo, adotado por uma família
amiga de seus pais, com uma mulher autoritária, rígida e pouco afetiva.
Muito bem-educado no plano funcional, fez muito bons estudos. Revelou-
se um adolescente bastante precoce no plano intelectual, um estudante meticu-
loso, depois professor atencioso e muito racional. As quantidades de precisão,
ordem, raciocínio teórico, seu senso de autoridade, de direito, de método vale-
ram-lhe uma rápida promoção administrativa, apesar de algumas dificuldades
nas relações com seus alunos e colegas.
Casou-se aos 25 anos com uma mulher da mesma idade, também professo-
ra, igualmente autoritária e bastante rígida. Tiveram dois filhos que parecem ter
boa saúde, mas muito cedo foram colocados em um internato bastante longe
“para seu bem” aparente e racional.
32 Jean Bergeret
O casal evolui em grupos de pesquisa profissional e mesmo filosófica bas-
tante ousados (mas permanecendo especificamente burgueses), freqüentemente
ocupando suas noites, domingo e dias de folga sob pretextos de reuniões ou
estágios diversos, orientados por técnicas, posições ou idéias cuidadosamente
escolhidas para encontrarem-se sempre em oposição ao pensamento comum dos
colegas do mesmo estabelecimento.
Poder-se-á ver em Georges um exemplo de sujeito “original”, por certo,
mas de aparência normal, bem-adaptado às suas realidades internas e externas.
Os principais mecanismos de defesa até aí empregados podem ser considerados
como sendo do tipo obsessivo.
Mas eis que, no decorrer de uma sessão de dinâmicade grupo organizada
por sua Academia, Georges é o sujeito mais velho e mais graduado no grupo de
que participa. O animador, conhecido por sua ambivalência em relação à Uni-
versidade, em parte o julga capaz de defender-se e, em parte, sem dúvida, não
está muito descontente tampouco de vê-lo vacilar um tanto em suas bases. O
moderador, muito mais cáustico ainda em relação à autoridade e cuidadoso em
não desagradar aos agressivos, abstém-se de intervir. Também Georges recebe
sem especial precaução (nem preparação, bem entendido) toda a descarga agres-
siva do grupo. Sente-se prontamente presa de um mal-estar interior, não mais
sabendo muito bem quem é, onde está, o que faz. Foge dessa assistência e,
muito excitado, percorre a pequena cidade onde se desenrola a sessão acreditan-
do-se perseguido por qualquer um que use uniforme.
No momento em que se chama um médico, intervém um amigo que mora
nas redondezas; ele leva Georges consigo e o confia a um psiquiatra de seus
amigos, que coloca o paciente em repouso e o trata, inicialmente, com medica-
mentos e sedativos, encaminhando-o depois a um psicanalista.
Georges atualmente vai bem. Retomou todas as atividades profissionais, mas
suas relações sociais melhoraram e seus aspectos reivindicatórios emendaram-se.
Sem dúvida, trata-se de uma estrutura psicótica: o tratamento analítico demons-
trou-o com uma transferência fusional, uma angústia de fragmentação, importantes
negações da realidade. Essa estrutura, até então não-descompensada e que havia per-
manecido nos limites de uma incontestável “normalidade”, repentinamente “rom-
peu-se” sob o golpe de uma agressão externa demasiado forte para as defesas habitu-
ais do sujeito. Foi o que deu origem à despersonalização e ao delírio. Georges passou
do estado “normal” ao estado “patológico”, sem, contudo, mudar de estrutura pro-
funda. As defesas de modo obsessivo cederam momentaneamente diante da intensi-
dade da agressão pelo real; foi preciso negar este último, pois as anulações obsessi-
vas das representações pulsionais não mais podiam dar conta. Foi assim que Georges
ficou “doente”, sem mudar a forma estrutural do ego. E foi sempre sem variar de
estado profundo do ego, portanto de linhagem estrutural, que depois “curou-se”, gra-
ças a um tratamento que permitiu o restabelecimento de defesas melhores sem modi-
ficar, no entanto, seu modo de organização mental subjacente.
A “NORMALIDADE” PATOLÓGICA
Acabamos de ver como seria possível considerar, por um lado, uma certa “nor-
malidade” e, por outro, manifestações patológicas em função de um modo de estrutu-
ração fixa e precisa.
A Personalidade Normal e Patológica 33
Porém, isso parece complicar-se um pouco ao sermos levados a descrever, ao
contrário, personalidades ditas “pseudonormais” e que não correspondem, justa-
mente, a uma estrutura estável nem definitiva, conforme consideramos no caso das
estruturas das linhagens neuróticas ou psicóticas. No interior destas linhagens bem
definidas em sua evolução, os sujeitos defendem-se contra a descompensação me-
diante uma adaptação à sua economia própria, bem como aos seus diferentes fato-
res de originalidade, o que, conforme veremos adiante, matiza seus comportamen-
tos relacionais de elementos singulares que constituem simples “traços de caráter”.
Em contrapartida, as personalidades “pseudonormais” não se encontram tão bem
estruturadas no sentido neurótico ou psicótico; constituem-se, às vezes, de modo
bastante durável, mas sempre precário, segundo arranjos diversos nem tão origi-
nais que forçam esses sujeitos a “fazerem-se de gente normal”, muitas vezes até
mais “hipernormal” do que original, para não descompensar na depressão. Há, de
qualquer modo, uma necessidade protetora de hipomania permanente. Voltarei a
falar nisso com respeito aos estados limítrofes e neuroses de caráter em particular.
Mas o bom senso facilmente detecta, após um certo período de fraude bem-sucedi-
da e em circunstâncias sociológicas diversas, esses líderes de reduzidos meios cons-
trutivos, aos quais tantas outras pessoas narcisisticamente frustadas agarram-se por
um período mais ou menos longo de ilusão. Esses personagens lutam, com ardor,
em nome de um ideal ou interesse qualquer, mais ou menos idealizado, simples-
mente contra sua imaturidade estrutural e frustrações e contra a depressão, cujo
perigo jamais se acha de todo afastado. Chegam a ser, por vez, verdadeiros “genio-
zinhos” para sua família, bairro ou cidade, ou ainda em seu meio de vida ou de
trabalho, a tal ponto sua hipomania pode corresponder às necessidades narcisistas
do contexto social. Contudo, resistem mal a uma prova durável de confrontação
com outros ou com o real.
Terei ocasião de novamente precisar, quanto à noção de “estrutura”, que em
psicopatologia não se pode confundir os diversos modos de funcionamento mental
atendo-se apenas aos seus aspectos manifestos fenomenológicos e superficiais. Cabe
opor as verdadeiras estruturas (neuróticas ou psicóticas com ou sem status psicopa-
tológico) às simples organizações, menos sólidas e que lutam contra a depressão,
graças a artifícios caracteriais ou psicopatológicos diversos, ultrapassando o contex-
to daquilo que anteriormente definimos como correspondendo aos parâmetros de
“normalidade”, isto é, de adaptação econômica interna à realidade íntima do sujeito.
As verdadeiras estruturas não dão origem a personalidades “pseudonormais”,
mas, conforme permaneçam ou não fora de rupturas patológicas, podem alternada-
mente levar ao que, juntamente com Canguilhem (1966), definimos como estados
sucessivos de adaptação, desadaptação, readaptação, etc.
As simples organizações, em contrapartida, comportam-se de modo muito dife-
rente: em caso de trauma afetivo mais ou menos agudo, estas organizações podem,
por vezes, (mais habitualmente) mergulhar na depressão, ou evoluir para uma estru-
turação mais sólida e mais definitiva, do tipo neurótico psicótico. Mas, agora, tais
acidentes afetivos, seu estado corrente não pode ser chamado de “normal” sem restri-
ções, pois parece correspondente a uma defesa energética psíquica demasiado impor-
tante e custosa no plano dos contra-investimentos exigidos para assegurar o narcisis-
mo.
Com efeito, este gênero de organização não se beneficia nem do estatuto neuró-
tico dos conflitos entre superego e pulsões, com todos os compromissos estáveis
possíveis, nem, como na linhagem psicótica, de uma operação de clivagem do ego
também levando a uma relativa estabilidade. Em nossas organizações “limítrofes”,
34 Jean Bergeret
constatamos uma luta incessante para manter em um anaclitismo obsedante, uma
segurança narcísica que cubra os permanentes riscos depressivos. Tais exigências
narcísicas forçam o estado limítrofe, os caracteriais diversos, ou o reverso, a manter
a religião de um ideal de ego que induz a ritos comportamentais bem abaixo dos
meios libidinais e objetais realmente disponíveis no nível da realidade do ego. É o
que leva o sujeito a imitar os personagens ideais protótipos de “normalidade” no
plano seletivo e, ao mesmo tempo, a imitar os personagens que representam a percen-
tagem quantitativamente mais elevada de casos semelhantes entre si no grupo sócio-
cultural visado.
Encontramo-nos, pois, muito próximos do modo de funcionamento mental que
D. W. Winnicott (1969) designa sob as denominações de “self artificial” ou “falso
self”, descritas por ele como organizações mais exitosas das defesas contra a depres-
são. Encontramo-nos muito próximos também daquilo que, seguindo a filosofia ale-
mã do Als Ob (juntamente com E. Vaihinger), H. Deutsch (1934) definiu sob o termo
personalidade as if. Estas descrições de um caráter simili ou “como se” obtiveram
celebridade, pois correspondem a uma realidade clínica freqüente pouco assinalada
até então, mas igualmente cabe reconhecer que parte do seu sucesso provém da falta
de referência mais precisa auma organização econômica distinta da economia estri-
tante neurótica, o que não inquieta muito os espíritos analíticos defensivamente liga-
dos à ortodoxia do dogma (atribuído a S. Freud) da infalibilidade organizadora do
Édipo.
O estudo apresentado por H. Deutsch não se reveste de menor interesse no pla-
no descrito: hiperatividade relacional, apego aos objetos externos, aos pensamentos
do grupo, com dependência afetiva, sem contudo permitir um desinvestimento obje-
tal sério, grande labilidade nos conflitos exteriores, pobreza afetiva e pouca origina-
lidade, dada a mobilidade dos investimentos e seu nível superficial.
C. David (1927) descreveu formas clínicas variadas no seio de tais atitudes,
enfatizando a tendência à somatização, os elementos caracteriais, a supervalorização
da ação, o aspecto patológico inaparente do narcisismo (superego formalista, ideal de
ego sádico, necessidade de êxito a qualquer preço), a necessidade de hiperadaptação
à realidade (encorajada pela sociedade), o lado na realidade carencial da adaptação (a
um objetivo apenas), a abrasão das pulsões, o desespero subjacente e o lado artificial
das aparentes sublimações. Em resumo, C. David pensa que os dois fundamentos
principais desses “pseudonormais” são constituídos pela falha narcísica e pelo fra-
casso na distribuição entre investimentos narcísicos e objetais.
Uma observação clínica parece-me corresponder particularmente a este gênero
de descrição:
OBS. Nº 3: UM CASO DE “PSEUDONORMALIDADE”
Na ocasião em que conheci o caso de Julien, ele acabava de completar 50
anos. Filho de um artesão modesto e apagado e de uma mãe estúpida, preten-
siosa e inquietante, Julien foi criado no ódio aos ricos, medo e devoção em
relação às pessoas bem situadas, na admiração ao tio cônego “que se tornou
alguém” e ao irmão mais velho, que se casou com a filha do padeiro, de quem
era aprendiz. Como esse irmão mais velho e as duas irmãs, Julien muito cedo
é colocado “no trabalho” junto a um comerciante da região. Mesmo assim dá
um jeito, sob os conselhos de um colega de mais idade, de seguir os cursos
noturnos e conseguir um diploma de contabilidade, que lhe possibilita, por
A Personalidade Normal e Patológica 35
recomendação do pai desse colega, entrar em um banco. Como é jovem, sol-
teiro, descomprometido, idealista e agressivo e não gosta de ficar só à noite,
torna-se rapidamente o “delegado” de seus colegas para todas as tarefas para-
profissionais às quais os demais empregados não pretendem consagrar seus
momentos de lazer. Milita habilmente em um meio sindicalista, tão violento
verbalmente quanto conservador em suas opções latentes, o que lhe serve para
estabelecer relações simpáticas e asseguradoras de diversos lados e unir facil-
mente os votos de seus colegas, tanto quanto a cumplicidade tática de seus
diretores.
Incessantemente, em ação, em luta (verbal), em discurso, viagens, confe-
rências ou negociações, obtém a admiração de toda a sua família, inclusive do
irmão mais velho e o tio invejados. Chega, aos poucos, a fazer nome nos jornas
locais, ajudado além disso por alguma libações bem localizadas nos cafés situ-
ados diante das salas de redação e abertos, por isso, até bem tarde da noite.
Na medida em que se torna conselheiro disto, delegado daquilo, entra na
municipalidade, depois no conselho geral, finalmente, favorecido por uma elei-
ção que oscila entre um candidato muito marcado quanto à sua pessoa e um
adversário muito marcado quanto às suas idéias, Julien consegue colocar-se em
uma posição tranqüilizadora que lhe dá vantagem no primeiro turno e lhe asse-
gura uma confortável maioria no segundo.
Ei-lo deputado de um distrito obscuro, mas onde organiza tão bem a sua
propaganda pessoal que nenhum partido importante ousa inquietá-lo. É o “feu-
do”, Julien se diz. Compõe-se com ele, não opõe-se a ele...
Ele não pára mais em casa. A mulher que havia desposado, por acaso, no
decorrer de sua ascensão social, numa breve parada em uma das etapas (da qual
nem se lembra mais), continua a criar modestamente seus três filhos e a dividir
seu tempo entre a família, os toques do telefone (“Não, o Sr. Julien não está em
casa, ligue no sábado para a prefeitura”) e o café tomado na cozinha com os
vizinhos bajuladores.
Julien vive em Paris com sua “secretária”, viúva de um amigo seu, antigo
militante dos primeiros tempos, trazida, no rastro de Julien, de volta aos restau-
rantes luxuosos, aos teatros do Boulevard e aos vestidos da moda.
Que homem seria mais feliz que Julien? Quem será mais ”normal” e bem-
sucedido?
Ora, eis que uma mudança na direção dos ventos da política, de raízes
profundas, varre todos aqueles que não souberam engajar-se com suficiente an-
tecedência em um sentido ou outro. Julien não é reeleito, apesar de seus esfor-
ços de última hora e das tímidas promessas de seus amigos, cada vez menos
calorosos. Perde, com o mesmo golpe, a sua amante, que agora se encontra no
“secretariado” de um dos seus antigos colegas, tendo a tempo deslocado as suas
opções e sendo friamente reeleito sob a nova etiqueta da moda.
Ele tem de voltar à sua região de origem, para junto de sua eclipsada espo-
sa, retomar um emprego. Qual? As pessoas olham-no com penosa ironia. Mes-
mo seus filhos agridem-no com um desprezo que mal suporta.
Julien desmorona. Angustia-se, desgosta-se consigo mesmo, não come
mais e emagrece. O sono se altera, o pulso se acelera. Não encontra-se nele
nada de medicamente objetivável, mas mesmo assim faz-se com que se inter-
ne numa clínica, sem sucesso. A depressão aumenta. Uma noite, recebe-se a
notícia de que se suicidou em seu automóvel. As testemunhas concordam:
Julien praticamente jogou-se contra uma árvore ao voltar para casa depois da
36 Jean Bergeret
recusa de um amigo a associar-se a ele em um empreendimento comercial,
graças ao qual esperava retomar (sob a proteção desse amigo) uma nova as-
censão social.
Tudo evidencia que Julien não era um psicótico. Tampouco jamais atingiu uma
estrutura neurótica, edipiana ou genital. Permaneceu bloqueado entre estas duas li-
nhagens, em um estado bastante instável. Tinha necessidade de ocultar sua imaturi-
dade afetiva sob o disfarce de um sucesso social brilhante e incessantemente renova-
do. Dissimulava, ao mesmo tempo, seu frágil potencial genital sob agressividades
verbais compensatórias. O episódio com a amante constituía mais um aspecto exte-
rior de êxito social e de pseudo-sexualidade do que um verdadeiro investimento geni-
tal adulto.
Se não houvesse repentinamente encontrado uma inesperada ferida narcisista,
diante da qual achava-se demasiado desprotegido, Julien teria conseguido permane-
cer adaptado por um longo período de tempo. Caiu doente, quando sua decoração
narcisista cedeu e quando a pobreza de suas trocas afetivas não mais pôde ser dissi-
mulada pelos mecanismos até então empregados.
Nesse momento crucial, Julien não mais soube encontrar outros meios de mu-
dar, tampouco conseguiu, sozinho, fazer a passagem que o teria levado a uma maior
sinceridade em relação a si próprio.
Se os seus médicos, que em vão o encaminharam na busca de uma doença orgâ-
nica, tivessem descoberto o mesmo desamparo afetivo oculto por detrás de seu en-
louquecimento corporal e tivessem-no tomado ou encaminhado a uma psicoterapia,
Julien não teria tido necessidade alguma de desaparecer. Teria, sem dúvida alguma,
graças às suas grandes qualidades e energia, conseguido encontrar, por si só, cami-
nhos novos e mais estáveis de realização de suas reais necessidades afetivas, as quais
nada tinham de repreensível, nada de particularmente assustador.
Contudo, permanece a questão: por ocasião de seus sucessos, isto é, do êxito de
seus custosos contra-investimentos narcísicos e antidepressivos (e não de uma adap-
tação a uma estrutura estável), podia-se considerar Julien afastado da “normalida-
de”? O preço que pagava, noplano energético, pela necessidade de sentir-se reconhe-
cido como “normal” aos olhos de suas instâncias ideais, aos olhos do maior número
de seus semelhantes, esse preço, muito elevado no plano dos contra-investimentos,
pode ainda ser colocado nos limites de custos “normais”? A pobreza de seus investi-
mentos objetais, a precariedade do potencial adaptativo de suas defesas, bem como
as inibições tocantes às suas satisfações libidinais, permitem elas permanecer no re-
gistro do “normal”? Em algum momento de sua vida, Julien realizou uma organiza-
ção afetiva centrada em suas originalidades e necessidades próprias, em vez de con-
siderar apenas a imagem que fornecia à maioria dos demais e que dava a si próprio no
plano das exigências ideais, sufocando seus desejos e suas necessidades econômicas
profundas?
A necessidade, sentida como narcisicamente essencial, de conformar-se a um
ideal ou a uma maioria do “grupo-que-assegura2” será garantia de “normalidade”?
Nos grupos, D. Anzieu (1969) pensa ser possível determinar a inércia inerente à
natureza de cada indivíduo e seus comportamentos adaptativos, ou não, diante de
uma transformação dos hábitos, conhecimentos ou métodos até então empregados. A
ansiedade engendrada comumente opõe-se à adaptação. A auto-regulamentação in-
terna, necessária diante dos movimentos do grupo, não pode ser obtida senão graças
às capacidades adaptativas pessoais de cada um dos membros, tendo em conta atitu-
A Personalidade Normal e Patológica 37
des e motivações individuais como modo de comunicação de seu potencial de mobi-
lidade.
Na criança, C. Chiland (1971) confirma não encontrar estrutura “normal”, que
as crianças que “vão melhor” comumente têm uma estrutura profunda do tipo neuró-
tico.
Conforme lembrava C. David (1972), convém recordar-se do conselho de Henri
Michaux: “Não te precipites na adaptação, guarda sempre de reserva alguma ina-
daptação”.
Entretanto, não se pode conceber uma “normalidade” referindo-se a critérios
mais autênticos no plano das realidades íntimas e, ao mesmo tempo, a relações
mais diversificadas e menos angustiadas com a realidade externa? A “normalida-
de” não é, em suma, inquietar-se acima de tudo com o “como fazem os outros?”,
mas simplesmente buscar, ao longo de toda a existência, sem demasiada angústia
ou vergonha, o modo melhor de arranjar-se com os conflitos dos outros e os própri-
os conflitos pessoais, sem contudo alienar seu potencial criador ou suas necessida-
des íntimas.
“NORMALIDADE” E PADRONIZAÇÃO
Estamos no direito de perguntar-nos como se pode estabelecer a patogenia de
comportamentos “pseudonormais”, demasiado centrados em um ideal e uma maio-
ria.
Podemos igualmente colocar-nos uma segunda questão que, apesar das aparên-
cias, encontra-se estreitamente ligada à primeira: não teria o indivíduo, em função de
diversos fatores atuais, tendência a visar, hoje em dia, mais ao “padrão” do que ao
“normal”?
Com efeito, no momento em que o mercado comercial aos poucos substitui os
antigos produtos artesanais, às vezes excelentes e às vezes muito inconstantes, por
artigos industriais padronizados (alimentação, artigos domésticos, móveis, cons-
trução, etc.), dos quais se pode dizer que certamente seu nível está abaixo do refi-
namento, contudo, geralmente acima da mediocridade, não seria espantoso ver,
paralelamente, o ser humano sacrificar-se à mesma necessidade de segurança, con-
formidade, de polivalência mal diferenciada em sua própria utilização de si mes-
mo.
Creio que um livro recente de B. Bettelheim (1971), Les enfants du rêve (“Os
filhos do sonho”), parece perfeitamente indicado para nos fornecer elementos de
resposta a essas duas questões. Seremos igualmente convidados a uma reflexão acer-
ca das conseqüências de uma evolução que muito corre o risco de produzir-se tam-
bém entre nós e que tende a reduzir, sensivelmente, os limites inferiores e superiores
do leque de possibilidades de maturação afetiva das individualidades em um grupo
educativo padronizado.
A obra de B. Bettelheim surge como um verdadeiro estudo experimental da
gênese da “pseudonormalidade” em um meio contemporâneo natural, embora criado
em todas as suas peças a partir de dados artificiais (tanto doutrinais quanto conjuntu-
rais), certamente não se originando do puro acaso e o qual não temos a intenção de
julgar. Podemos aí discernir uma antecipação ou uma simples caricatura daquilo que
começa a ser encontrado em alguns dos nossos novos conjuntos suburbanos3.
38 Jean Bergeret
A experiência desenrola-se nos kibutzim de Israel. Trata-se de pais transplanta-
dos, mas que, em pleno gozo de sua liberdade, desejaram tentar a experiência de um
novo modo de vida. O kibutz, como organização comunitária, exerce um controle
total sobre a vida de seus membros desde o seu nascimento. Em troca, assegura-lhes
proteção e cuidados completos. A educação desenvolve-se sob uma forma comunitá-
ria absoluta, tirando dos pais toda e qualquer iniciativa, mas evitando-lhes também
qualquer erro4, toda fonte de frustração ou conflito familiar. Separados de suas mães
desde o quinto dia, desmamados aos dez meses, os filhos do kibutz atingem a adoles-
cência em um ambiente onde seus companheiros se revestem de muito maior impor-
tância para seu desenvolvimento afetivo do que qualquer adulto. Os grupos são mis-
tos: meninos e meninas vivem inteiramente juntos, tanto nos dormitórios quanto nos
banheiros, mas toda e qualquer manifestação sexual permanece completamente proi-
bida até a sua saída do kibutz, com a idade de 18 anos, início do serviço militar em
ambos os sexos.
Os testemunhos, dos quais não temos motivo algum para suspeitar, concor-
dam em constatar que tal sistema não engendra drogados nem delinqüentes e muito
poucas crianças caracteriais ou precocemente perturbadas afetivamente em grau
sério.
As conclusões de uma pesquisa efetuada em escala nacional em Israel, referente
ao nível escolar dos filhos dos kibutzim, revelam resultados de todo “médios”, com
tão poucos resultados superiores quanto fracos. B. Bettelheim (1971) pensa que a
influência igualizadora do kibutz parece haver mantido em um nível médio honorável
aqueles alunos (podemos deduzi-lo pelo alto desempenho geral) com suficiente po-
tencial para fazerem parte dos melhores. Do mesmo modo, operou um nivelamen-
to para cima dos menos dotados. Mais uma vez, mostra-se que o sistema de educação
favorece os resultados médios, dito de outra forma, o grupo.
No plano genital, o kibutz assume uma posição bastante puritana, não ao co-
mandar a sexualidade em si e por princípio, mas mostrando incessantemente ao jo-
vem que uma realização dos seus desejos de modo demasiado precoce neste plano,
por natureza, prejudica energética e afetivamente o grupo, e B. Bettelheim reconhece
que a mensagem recebida pelo jovem não deixa de ser que é “mau” ter relações
sexuais. Os filhos do kibutz conhecem uma liberdade muito maior que as outras cri-
anças de sua idade em numerosos domínios, em particular na educação do asseio,
mas B. Bettelheim estima que são submetidos a um recalque muito maior, sobretudo
no que diz respeito à sexualidade.
Cabe observar, aliás, que a vergonha (linhagem narcisista) em relação ao grupo
desempenha um papel maior, nas descrições que nos são propostas, do que a culpa
(linhagem edipiana e genital) em relação aos pais ou seus substitutos.
Um último ponto, enfim, merece ser notado, no que diz respeito ao comporta-
mento militar nos kibutzniks: B. Bettelheim pensa que “juntos, tudo conseguem sen-
tir, tudo fazer, tudo ser; deixados por sua própria conta, mostram-se muito pouco
capazes”. Durante os períodos de guerra, bateram-se de modo muito corajoso, disso
não há dúvida; entretanto, a percentagem anormalmente grande de perdas em suas
fileiras atraiu a atenção do Estado-maior israelense, que achou que lhes faltava julga-
mento e flexibilidade, capacidade de adaptaçãoàs situações imprevistas e cambian-
tes, em comparação aos seus camaradas de outras origens.
Tudo o que podemos tirar deste notável estudo permite-nos facilmente refutar
temores de patologia coletiva ou sistematicamente individual no interior do kibutz.
Mas não podemos deixar de comparar, em numerosos domínios, o funcionamento
mental do kibutznik à organização psíquica do tipo anaclítico não-descompensado,
A Personalidade Normal e Patológica 39
que descrevemos longamente no decorrer de outros capítulos do presente trabalho.
Conforme atesta B. Bettelheim, não se encontra, entre os filhos do kibutz, a elevada
percentagem de processos psicóticos mais ou menos precoces que invade nossos
consultórios e serviços hospitalares de psiquiatria infantil. Certamente, devem en-
contrar-se, entre as crianças em questão, alguns subequipamentos afetivos ou sensó-
rio-motores notáveis, mas podemos supor que mesmo nesses casos (com mais fortes
motivos ainda diante de melhores dados hereditários), a ausência dos pais, da mãe em
particular, sua posterior substituição por uma metapelet 5 neutra, competente e “pa-
drão”, não permite a constituição, em torno da jovem criança, do indispensável tripé
prévio ao estabelecimento precoce de uma estrutura psicótica: déficit pessoal + frus-
trações muito precoces + toxicidade materna importante e prolongada. Faltando au-
tomaticamente os dois últimos fatores, não nos surpreende que o pequeno kibutznik
tenha poucas chances de tornar-se psicótico.
Entretanto a situação de apoio absoluto no seio do grupo que a situa, bem mais
cedo que as outras crianças, em uma aparente “normalidade” irá, no terreno da poste-
rior evolução edipiana, jogar contra ela para mantê-la em uma relação de objeto de
modo anaclítico bastante estreito, dificultando a entrada em uma dialética triangular
genital. Foi o que constatou e descreveu B. Bettelheim (1971), e é isso que encontra-
mos em nossas organizações “limítrofes”.
A “normalidade” de tais sujeitos corresponde, no plano da organização afetiva
interna, necessidade de estabelecer incessantemente, mediante apoio no outro, um
narcisismo vivido como podendo falhar a qualquer momento se o outro subtrair-se
como sustento, se tender a tornar-se quer objeto sexual, quer um concorrente edipia-
no.
D. Anzieu (1971) mostrou o quanto a situação grupal podia acarretar uma ame-
aça de perda de identidade do sujeito. Inversamente, podemos considerar que o grupo
opera dificuldade de identificação, porém às custas da renúncia a certos aspectos
originais, bem como da solidez dos resultados de processos identificatórios individu-
ais, tais como habitualmente desenvolvem-se no sujeito capaz de aceitar a responsa-
bilidade de uma certa independência.
Parece-me que aqui se situa todo o problema econômico do “pseudonormal”:
ter evitado perturbações importantes da infância, mas não obter acesso a um estatuto
de adulto bastante sólido estruturalmente para torná-lo independente no plano de
suas necessidades libidinais e de suas relações objetais; a conseqüência tópica desta
carência econômica manifesta-se no superinvestimento de um ideal de ego pueril e a
conseqüência dinâmica, na orientação mais ou menos exclusivamente narcisista ofe-
recida aos investimentos pulsionais; por outro lado, J.-B. Pontalis (1968) acha que o
grupo poderia chegar a substituir o objeto libidinal, tornando-se ele mesmo objeto
libidinal no sentido psicanalítico do termo, o que, em nosso entender, é bem menos
inquietante para o narcisismo individual, mas lamentavelmente encoraja o sujeito a
não mais buscar autênticos objetos libidinais fora do círculo demasiado restrito do
grupo.
Não mais se favorece a originalidade e, sem respeitar a originalidade, podemos
ainda falar de “normalidade” no sentido pleno do termo?
ÉDIPO E “NORMALIDADE”
As reflexões precedentes levam-nos inevitavelmente a colocar uma questão bas-
tante embaraçosa, a qual nos arriscamos a talvez nos acharmos incapazes de respon-
40 Jean Bergeret
der sem apelar, conscientemente ou não, a juízos de valores ou opções ideais.
Se tomarmos como hipótese de trabalho o risco de definir a “normalidade” como
uma adaptação pelo menos bastante perceptível aos dados estruturais internos está-
veis e exteriores móveis, somos levados a considerar como “normais” os comporta-
mentos mais ou menos originais de todas as estruturas, neuróticas ou mesmo psicóti-
cas, não-descompensadas. Ora, se aceitarmos a “normalidade” de estruturas psicóti-
cas bem-adaptadas, guardaremos ainda a possibilidade de recusar o rótulo de “nor-
malidade” a todo esse grupo de organizações antidepressivas, anaclíticas essencial-
mente narcisistas, cuja fraude nas defesas acabamos de descrever como “pseudonor-
malidade”, “falso self”, “personalidades como se” e anaclíticas diversas, que não
consegue viver bem fora do grupo? Agora, qualquer episódio mórbido, uma organi-
zação do tipo “estado limite” seria menos “normal” do que uma estrutura psicótica?
Menos sólida, o fato parece certo para os clínicos, mas menos “normal”?
Os resultados de pesquisas das mais honestas levam a pensar que existem, a
grosso modo, nas populações de nossas cidades, um terço de estruturas neuróticas,
um terço de estruturas psicóticas e um terço de organizações mais ou menos anaclíti-
cas (cf. C. Chiland, 1971a, pp. 180-183).
Outras estimativas concordam na cifra de psicóticos, mas variam para menos na
cifra de neuróticos (em torno de 20% apenas) e para mais na cifra das organizações
intermediárias (em torno de 50%).
Seríamos, pois, levados a eliminar do campo da “normalidade” certamente
mais de um terço de nossos contemporâneos? E mais: dado que, fora mesmo de
qualquer opção sócio-política clara e deliberada, as gerações por vir conhecerão,
em função da inevitável evolução sócio-econômica “grupal”, à imagem do kibutz,
menos riscos da evolução psicótica, porém mais dificuldades no acesso a um Édipo
organizador, veremos sem dúvida aumentar, a cada ano, a percentagem de arranjos
anaclíticos em uma população média. Em conseqüência, haveria cada vez menos
pessoas “normais”?
O aspecto irônico da questão, contudo, nada recobre de leviano: em realidade, é
toda a função “normativa” da organização pelo Édipo que se encontra posta em questão
e não simplesmente, por certo, o conhecimento ou reconhecimento de uma vivência
edipiana no inconsciente, mas a estruturação da personalidade por ocasião da passa-
gem pela posição triangular com um objeto e um rival sexuais plenamente investidos
como tais e as irreversíveis conseqüências estruturais daí recorrentes.
Assim definida em seu rigor, será que a organização pelo Édipo é indispensá-
vel? Pode-se encorajar, em plena consciência e clareza, sistemas educativos, econô-
micos, sociais, até filosóficos, que certamente limitam os riscos de psicotização pre-
coce, mas tornam aleatório o acesso a um estatuto edipiano autêntico?
Será que a organização pelo Édipo se mostra necessária para viver feliz?
O dilema parece insolúvel: será que podemos contentar-nos com um “bem” para
o maior número, estabelecido a partir de um mínimo múltiplo comum situado abaixo
das possibilidades de muitos, ou será preciso, ao contrário, tender para um “melhor”,
ficando perfeitamente consciente de que (como no ditado) o “melhor” pode ser ini-
migo do “bem” e reservado a uns poucos, os únicos que saberão e poderão atingi-lo,
enquanto sacrificar-se-ão os mais modestos no plano de organização psíquica de base?
Apenas levantei a questão em termos muito pragmáticos, contudo demasiados
severos para serem propostos às pressões mal definidas das paixões públicas, e eis
que, sob uma forma aparentemente teórica, desenvolve-se agora um feroz movimen-
to de massas que corre ao assalto da fortaleza edipiana, fantasiada (tal como a ima-
gem negativamente idealizada da Bastilha, em 1789) como repleta de tesouros secre-
A Personalidade Normal e Patológica41
tos inestimáveis do Poder, inumeráveis vítimas da Injustiça e os mais ardentes defen-
sores do Capitalismo (aqui analítico).
Seria muito fácil declarar, sem trazer à demonstração, que o “antiédipo”, depois
da “antipsiquiatria”, limita-se, como novidade essencial, ao seu modo muito violento
de apresentar a hábil mistura, por um lado, de críticas justificadas já muito antigas e,
por outro, de erros científicos não menos antigos, mas trazidos agora para o plano
sócio-político, mais difícil de denunciar pelos não-especialistas.
Procurarei situar-me em outro nível e permanecer fixado ao domínio estrito
deste estudo, considerando as reflexões que sugerem, diante do conceito de “norma-
lidade”, as posições de G. Deleuze e F. Guattari (1972) em seu Anti-Édipo.
É evidente que aqueles, dentre os psicanalistas, que pretendiam ser os freudia-
nos mais fiéis há muito limitaram-se ao estudo e tratamento dos “neuróticos”. Mas
talvez também descrevessem ou tratassem sobre este vocábulo, por vezes, bem outra
coisa do que as estruturas autenticamente neuróticas? Entretanto, parece mais incô-
modo ainda pensar que a ortodoxia analítica muitas vezes considerava como único
padrão-ouro sólido de “normalidade” o “capital-edipiano” conseguido pelo sujeito.
Manipular habilmente o Édipo tornava-se, junto ao sujeito e junto ao analista, o equi-
valente a uma boa operação na bolsa de valores. Os valores sãos e seguros eram
apenas edipianos.
Entretanto, os possuidores do saber e do poder genital-edipiano não ignoravam
as dificuldades das organizações mentais mais modestas, mas sentiam-se menos ar-
mados ou menos motivados para aí levar remédio, na medida em que os “normais”
(os “recuperáveis”, em suma) para eles eram contados apenas entre os edipianos (“de
sangue” ou arrependidos).
As reações diante de tais abusos (e tal falta de prudência) não deveriam tardar:
uma primeira leva de contestadores contentou-se em tirar proveito das contribuições
sócio-culturais que facilitavam a imitação; estes foram os “novos ricos” de um pseu-
do-estatuto genital, aqueles que simplesmente vestiram-se à moda edipiana, os ana-
clíticos do “como se”... Os aristocratas do Édipo nem sempre farejaram a armadilha,
o casamento desigual. A falsa genitalização edipiana muito comumente era vivenci-
ada apenas como uma homenagem estabelecida sobre a base de uma ordem assegura-
dora e essencial a ser mantida: a primazia do Édipo não era, de modo algum, contes-
tável como critério de “normalidade”. Os depressivos, aliás, não deram maiores pro-
blemas para G. Deleuze e F. Guattari (1972) do que para os freudianos “puristas”. Os
cordeiros jamais inquietam os pastores.
Mas havia-se esquecido um segundo lote de “desviantes” em relação a essa
nova burguesia edipiana da segunda geração freudiana: as estruturas psicóticas e as
organizações perversas. As segundas, que negam ferozmente seu apego aos verda-
deiros valores edipianos, e as primeiras, que são sinceras quando declaram não sentir
a preeminência deste gênero de padrão afetivo triangular e encontra-se em perfeitas
condições de dispensar o aspecto relacional particular que os girondinos do Édipo
declaram obrigatório para ter acesso à “normalidade”.
Em uma reflexão limitada aos aspectos nuançados da noção de “normalidade”,
certamente seria perigoso deixar-se levar a uma querela ou polêmica cujos defenso-
res ficam em um domínio mais afetivo do que científico.
Atendo-me às minhas hipóteses que propõem uma concepção da “normalidade”
ligada ao bom funcionamento interno e externo desta ou daquela estrutura, ao mesmo
tempo coloco meus critérios em perfeita independência em relação às modalidades
específicas de estrutura, ou seja, não mais preciso preocupar-me, a priori, em saber
se trata de uma estrutura edipiana ou não.
42 Jean Bergeret
Entretanto, fiel à minha maneira de encarar a estrutura, não teria como conceder
o estatuto de estrutura a um modo de funcionamento mental que não fosse estabeleci-
do sobre bases suficientemente sólidas e constantes; deveria, então, assumir os riscos
de muitas críticas, por não reconhecer uma “normalidade” de funcionamento às sim-
ples organizações frágeis e estáveis do tipo anaclítico, tais como as descrevi em outra
parte, no contexto do “tronco comum ordenado” dos estados limítrofes. A existência
de uma “pseudonormalidade”, defensiva mas pouco assegurada, parece não provocar
dúvidas ao psicopatologista.
A distinção fica mais delicada quando se trata dos arranjos, quer de modo
caracterial, quer perverso, menos frágeis que o “tronco comum”. Poderá parecer
muito perigoso recusar um estatuto de “normalidade” a tais organizações mentais,
quando se deve ter em conta a pressão dos recentes movimentos de opinião que
reivindicam, sob motivos manifestos diversos, não apenas liberdades diante dos
superegos individuais ou coletivos constrangedores, mas uma “normalidade”, cujo
verdadeiro sentimento latente constituiria um testemunho de satisfação concedido
de fato ao fracasso da maturidade pulsional, bem como o reconhecimento oficial de
um êxito objetal no nível do simples objeto parcial, da pulsão parcial e da relação
de objeto parcial.
Ainda há pouco, critiquei os aristocratas do Édipo e estou seguro de, em nossos
dias, conseguir sucesso fácil em uma posição de aspecto liberal inversa à deles, con-
denando o primado do Édipo e incluindo perversos e caracteriais no lote dos “nor-
mais” possíveis. Uma tentação demagógica mais ou menos consciente de parar por aí
certamente me pouparia muitas dificuldades junto às pessoas turbulentas do momen-
to, sem denunciar ao mesmo tempo a ilusão econômica da “pseudonormalidade” sob
todas as suas formas, mesmo as mais sutis e refinadas. O contexto sócio-cultural, de
fato, muitas vezes se mostra cúmplice tanto pela satisfação voyerista quanto pela
fraqueza de expressão de um ego individual e coletivo que, no fundo, jamais é levado
em conta e, na realidade, não está absolutamente de acordo com o pauperismo afetivo
na ordem do dia, seja qual for a forma militante e racionalizada sob a qual esse
pauperismo se propõe à boa vontade de numerosos indecisos.
O paradoxo de nossa posição continua sendo, pois, o de aceitar uma possibilida-
de de “normalidade” tanto nas estruturas neuróticas quanto psicóticas não-descom-
pensadas, mas declinar a solicitação de cumplicidade, a “piscada de olho” que nos
propõem as frágeis organizações narcisistas intermediárias para serem admitidas no
mesmo contexto dos “normais” possíveis, cuja estabilidade contenta-se em imitar às
custas de ardis psicopatológicos variados, incessantemente renovados e profunda-
mente custosos e alienantes.
Segundo meu ponto de vista, uma estrutura psicótica não-descompensada6 é
muito mais verdadeira, muito mais rica em potencial de criatividade, muito menos
“alienada” em relação a si própria do que um frágil arranjo caracterial que se conten-
ta em fingir que possui tal modo de estrutura mais consistente que, ao mesmo tempo,
altera uma parte importante de sua originalidade, isto é, daquilo que deveria consti-
tuir uma base autêntica e sólida de funcionamento mental em relação às nuanças,
interesses e déficits naturais das realidades internas e externas sob seus aspectos
subjetivos, elaborativos e intersubjetivos.
Do mesmo modo, uma estrutura psicótica não-descompensada também será muito
mais “verdadeira” do que um arranjo perverso, cujo campo de criatividade, jogo
pulsional e pauta das relações objetivas encontram-se entravados pela feroz negação
defensiva e ofensiva do sexo feminino, em uma rigidez dos investimentos, não per-
A Personalidade Normal e Patológica 43
mitindo qualquer nuança, qualquer variação, qualquer riqueza de temas fantásticos
ou dos modos relacionais de pensamento e expressão.
Uma estrutura psicótica é incapaz de conhecer a flexibilidade das economias
genitais no jogo dos investimentos libidinais nesse nível, mas os investimentosnarci-
sistas complementares da estrutura psicótica, contudo, são muito mais flexíveis do
que aqueles encontrados no mesmo registro no anaclítico “limítrofe”, caracterial ou
perverso. Essa possibilidade de mutações narcísicas variadas reflete-se, por exem-
plo, nas tiradas ou criações artísticas muito peculiares aos psicóticos. Contanto que
permaneça “normal”, o psicótico, diante de um nível de investimento difícil de su-
portar, tem chance de recuperar-se em outro investimento narcisista tão brutal e total
quanto o primeiro; a economia anaclítica não dispõe de recursos tão facilmente inter-
cambiáveis.
Por outro lado, um indivíduo “normal” pode, a todo momento, tornar-se “anor-
mal” e descompensar-se, sem que por isso se deva contestar seu anterior estatuto
de “normal”; com a condição, todavia, de que não se trate de uma organização
meramente anaclítica. Da mesma forma, fora da linhagem anaclítica, todo “anor-
mal” conserva a possibilidade de voltar a ser “normal” sem que o observador tenha
de sentir-se culpável pelos sucessivos diagnósticos apenas aparentemente contra-
ditórios.
Concluindo, posso apenas renovar minha adesão à hipótese retomada por R.
Diatkine (1967), segundo a qual toda a noção de “normalidade” deve ser independen-
te da noção de estrutura. Contentar-me-ei em acrescentar uma correção, precisando
que os “ordenamentos” narcisistas dos estados intermediários não parecem capazes
de constituir uma “estrutura” e, com isso, entrar nos muitos arranjos funcionais da
“normalidade”, na medida em que seu ego não se estabeleceu mais solidamente (pa-
radoxalmente, mesmo que em um sentido psicótico, com a condição de não haver
descompensação).
Entretanto, embora seja possível reconhecer a independência da noção de “nor-
malidade” em relação à noção absoluta de “estrutura”, cabe igualmente reconhecer a
independência desta mesma noção de “normalidade” em relação a uma possível idéia
de hierarquia das estruturas no sentido maturativo, elaborativo e relacional das dife-
rentes funções do ego.
Pode-se ser “normal” sem haver atingido o nível edipiano, com a condição de
haver realizado uma verdadeira estrutura; contudo, a estrutura do tipo edipiano deve,
da mesma forma, ser disposta em um nível elaborativo superior ao da organização
estrutural psicótica.
Toda hierarquia estrutural pode apenas repousar sobre a completude das bases
narcísicas da constituição do ego, a extensão das possibilidades criadoras e relacio-
nadas, o modo principal, genital ou não, parcial ou total, de relação objetal, a integra-
ção obtida, ou não, das pulsões parciais sob o primado do genital, das pulsões agres-
sivas sob o primado do Eros.
Tais detalhes, na prática, são independentes do estatuto funcional de “norma-
lidade”, mas a partir desse fato pode-se muito bem conceber hierarquias maturati-
vas de “normalidade”: uma “normalidade psicótica” poderá parecer menos elabo-
rada, no plano relacional, do que uma “pseudonormalidade caracterial”, por exem-
plo; nem por isso o primeiro modo de funcionamento mental deixa de corresponder
a uma adequação pulsional mais conforme às necessidades reais, a um funciona-
mento suficientemente sólido, tendo em conta a autenticidade da estrutura, poden-
do o segundo exemplo corresponder a não mais do que uma simples imitação me-
44 Jean Bergeret
nos estável, mesmo que o jogo operacional exterior se mostre superficialmente
mais rico.
Contudo, abandonamos, assim, o registro particular da normalidade, tal como
havíamos tentado definir esta noção (principalmente a partir de um ponto de vista
funcional), para entrar no jogo da comparação de elementos tocantes a outros domí-
nios e não especificamente à “normalidade”.
A “normalidade” de um sujeito de tal estrutura não pode ser comparada hierar-
quicamente (ficando-se unicamente no plano, justamente, da “normalidade”) à “nor-
malidade”, forçosamente muito diferente, daquele outro sujeito, correspondente àquele
outro modo de organização mental.
Pode-se estabelecer uma hierarquia das maturações sexuais, dos níveis de ela-
boração dos processos mentais, dos graus atingidos pela força do ego, dos níveis de
constituição do superego, das possibilidades de relação ou de independência obje-
tal, etc. Não é possível colocar em paralelo dois arranjos funcionais originais que
tenham atingido suas possibilidades de “normalidade” para daí deduzir um ordena-
mento qualquer. Pode-se constatar as diferenças, não classificar segundo uma or-
dem de sucesso.
Para finalizar este capítulo, gostaria de, contudo, tranqüilizar aqueles que pos-
sam ter medo de ver, no esquema teórico e geral de minhas hipóteses, uma forma
demasiado delimitada, radical e sistemática de classificar os comportamentos huma-
nos em três categorias estanques e excludentes.
Penso que meus desenvolvimentos posteriores acerca da diferença, por exem-
plo, entre traços de caráter, caráter neurótico e patologia de caráter, estarão aptos a
precisar melhor e, sobretudo, detalhar bem meu pensamento. Com efeito, não seria
jamais o caso de classificar automaticamente, em algum “quarto-de-despejo interme-
diário”, até uma espécie de caos informe, toda e qualquer organização que apresente
alguma suspeita de aspecto dito “caracterial” e, igualmente, de negar os componen-
tes “caracteriais” obrigatórios em toda estrutura autêntica, seja ela neurótica ou psi-
cótica. Nem por isso deixam de existir numerosos déficits narcísicos secundários em
”circuito aberto”, diferentes da organização genital do funcionamento neurótico e
diferentes também dos déficits narcísicos primários precoces, em “circuito fechado”,
encontrados nas estruturas psicóticas.
É nessas organizações nas quais primam, sobretudo, a busca narcísica que tende
a dominar o objeto; o anaclitismo e a clivagem do objeto são aqueles que não podem,
em meu entender, entrar no contexto da “normalidade” autêntica.
NOTAS
1. Em latim, o termo norma corresponde, em seu sentido próprio, ao instrumento de arqui-
tetura chamado, em português, de esquadro; apenas em seu emprego secundário e figura-
do encontramos o termo utilizado mais tardiamente por Cícero, Horácio ou Plínio, o
Jovem, com o sentido de regra, modelo ou exemplo. O primeiro significado determina
somente o ângulo funcionalmente mais vantajoso para articular dois planos em uma cons-
trução e não uma posição ideal fixa da casa em relação ao solo. O edifício pode encon-
trar-se “aprumado” (isto é, em equilíbrio interno) mesmo em um solo de sério declive,
graças ao esquadro que haverá justamente retificado os perigos que a primitiva inclina-
ção do terreno poderia representar para a solidez do conjunto do edifício.
2. Seguramente, o valor subjacente permanece ligado ao registro familiar, mas a exigência
social pode muito bem destacar-se da “maioria” de um conjunto maior para assegurar-se
na “maioria” de um grupo menor, particularmente se este último grupo situa-se em posi-
A Personalidade Normal e Patológica 45
ção “anti” em relação ao conjunto. Pode-se, assim, satisfazer (ao menos em parte) ao
mesmo tempo a defesa, isto é, a necessidade de segurança no grupo escolhido (mesmo
menor), imagem da família ideal, e a tendência, isto é, vontade de agredir o grande gru-
po, imagem da família opressora.
3. Infelizmente, as coisas apresentam-se entre nós, no plano experimental, de modo muito
menos asséptico, em virtude da persistência, ao lado de novas condições, de infra-estru-
turas sócio-culturais antigas que perturbam os dados do estudo das conseqüências dos
fatores e aquisição mais recente.
4. Pelo menos o erro não pode ser imputado a posteriori (après coup) aos pais.
5. Preceptora coletiva.
6. A “descompensação” corresponde, para mim, à ruptura do equilíbrio original que pôde
se estabelecer em tal arranjo particular, no seio de uma estrutura estável de base, entre
investimentos narcísicos e objetais. Tal equilíbrio (contanto que não haja descompensa-

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