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Arqueologia_Urbana_trajetoria_e_perspect

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pela coerção. A coesão é um conceito que pressupõe a coerção dos recalcitrantes 
(Shellef 1997; Kushner e Sterk 2005; para uma defesa revisada do conceito de coesão, 
cf. Chan, To e Chan 2006). Neste contexto, o patrimônio esteve a serviço da coesão e da 
correção, o que, no entanto, não significou falta de resistência e não conformidade. 
Desde sempre, a sociedade foi multifacetada e as pessoas reagiram à tentativa de 
imposição da harmonia, para usar outro conceito homólogo
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. Anarquistas, socialistas, 
comunistas, feministas, movimentos identitários diversos reagiram a isso desde o século 
XIX e, com maior intensidade e ressonância, desde meados do século XX. 
 O reconhecimento do caráter complexo, variado, conflitivo e mesmo 
contraditório das sociedades, em geral, foi tanto mais importante para os estudos 
urbanos. As cidades contemporâneas são o resultado de processos sociais prenhes de 
conflitos e disputas, em particular em sociedades com grande número de excluídos e 
pobres (Walton 2002). Nem exclusão nem pobreza podem ser definidas apenas como a 
ausência de possibilidade de escolha, como propugnam alguns. As definições são 
variadas e mesmo contraditórias (Hagenaars e de Vos, 1988; Laderchi 2003), mas 
sempre incluem o grau de separação entre os que têm e os que estão privados (haves 
and have nots), distância também medida pelo índice econométrico gini (Ravallion 
2001). Como ressaltava Fernando Haddad (1997:114) há algum tempo: “não há dúvida 
de que a acumulação de riqueza, de um lado, implica acumulação de pobreza, de outro”. 
Isto tudo é importante, quando consideramos as políticas urbanas, que não podem ser 
entendidas como neutras ou fora do embate de interesses (Rolnik 1999; 2006). 
 A Arqueologia Urbana mostrou-se, em geral, atenta a essas discussões, dando 
cada vez mais atenção à atuação com as comunidades locais e grupos de interesse, como 
parte daquilo que se tem denominado de Arqueologia Pública (Funari e Bezerra 2012). 
Esta atuação com as pessoas reveste-se de uma significação epistemológica, além de 
política. Política, claro, pois se trata de incluir os anseios, inquietações, interesses, 
mesmo quando contraditórios, das pessoas e isto é uma perspectiva relativa às relações 
de poder. Lembremos que Shanks e Tilley (1987), há tempos re-definiam a disciplina 
como “o estudo do poder” (Arkhé em grego significa origem, princípio, poder). Incluir 
 
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 Tal como aparece, por exemplo, nos documentos chineses atuais: 和諧社會, sociedade harmoniosa. 
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as pessoas, em geral, e os excluídos (Peace 2001), em particular, é uma decisão política. 
Além disso, contudo, trata-se de uma perspectiva epistemológica, pois o conhecimento 
que advém da interação é único e significativo para o estudioso. No caso da 
Arqueologia Urbana, isto é tanto mais verdade, quanto o arqueólogo citadino vive a um 
só tempo em meio à população e dela distante. Por um lado, ele pode viver no mesmo 
conglomerado urbano e, quiçá, conviver com as pessoas do lugar, algo nem sempre 
provável em um grande centro, como sói ser o caso. Em geral, contudo, o trabalho de 
campo está em um contexto urbano muito particular, cujas sociabilidades locais só um 
esforço de imersão antropológica permite alcançar. 
 Este tem sido o caminho mais percorrido pela disciplina mundo afora, como nos 
casos paradigmáticos do African Burial Ground (Nova Iorque), do District Six (Cidade 
do Cabo) para citar dois dos mais conhecidos e reportados (Symonds 2004) e com os 
quais temos colaborado. Trata-se, nestes e em outros casos, de estudar os excluídos do 
passado em comunhão com as comunidades atuais. É impressionante como em casos 
como esse há um imenso potencial para incluir não só os grupos diretamente afetados 
pela exclusão antiga. Nos dois casos, escravos ou negros expropriados mostraram-se 
relevantes também para outros grupos humanos que foram excluídos de outras formas, 
como no caso dos italianos, irlandeses, judeus e latinos em Nova Iorque e de judeus, 
mestiços (colored), indianos e anglos na Cidade do Cabo. 
 Ainda outros campos têm contribuído para o estudo dos grupos subordinados no 
âmbito da Arqueologia urbana, como é o caso da Arqueologia da Guerra e do Conflito e 
da Repressão e da Resistência. Nos dois casos, a constituição e a transformação do 
espaço urbano são analisadas na ótica das ações políticas nacionais e internacionais 
sobre grupos ou países que, voluntariamente ou não, apresentam-se como obstáculos 
para a concretização de interesses de grupos dominantes. 
 A reconstituição dos espaços urbanos de conflito e de resistência torna-se, sob a 
ótica desses campos de pesquisa, não somente uma forma de construir discursos 
alternativos aos oficiais, demonstrando maior complexidade dos contextos investigados, 
mas também uma forma de dar voz aos oprimidos ou perdedores, fazendo com que suas 
identidades possam ser conhecidas e reconhecidas pela sociedade. 
Nos dois casos, ambas as vertentes da Arqueologia urbana podem ser 
contempladas. Desde a análise de contextos de guerra e de repressão antigos, como no 
caso dos períodos clássicos ou do colonialismo moderno, passando por períodos mais 
recentes, como a guerra civil americana ou a Era Napoleônica, por exemplo, e 
terminando em temas afetos à atualidade, ainda recobertos de dolorosas memórias de 
sobreviventes, como contextos coloniais recentes e os relacionados às guerras 
contemporâneas (Geier; Potter, 2001; Galaty;Charles, 2004; Stein, 2005; Young, 2005; 
Scott et al, 2008; Brown; Osgood, 2009; Liebmann; Murphy, 2011; Harold; Gilly, 2012; 
Mytun; Carr, 2012; Weik, 2012; Babits; Gandulla, 2013). Destaquem-se as pesquisas 
latino-americanas (Funari, Zaranki, Salerno 2009) e brasileiras sobre o tema dos 
conflitos urbanos (Lino e Funari 2013). 
No que tange aos contextos mais recentes, a interação com os grupos 
diretamente afetados pelos eventos passa a ser crucial para o desenvolvimento das 
pesquisas em Arqueologia urbana. Nesses casos, a recuperação das memórias dos 
envolvidos passa a ser um elemento crucial para análise dos contextos materiais 
investigados e para a construção de discursos alternativos aos oficiais. Mais uma vez, o 
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dinamismo do contexto urbano permite ao campo científico construir conhecimento 
fazendo da Arqueologia um campo de pesquisa vivo e atual. 
 
A Arqueologia urbana: legados e desafios na atualidade 
A Arqueologia urbana tem legado à disciplina, ao longo dos séculos, inúmeras 
contribuições de crucial importância, desde o conhecimento de sítios icônicos, 
patrimônio da história da humanidade, como é o caso de Pompéia, já citado, como 
também tem sido responsável pelo desenvolvimento teórico-metodológico do campo. 
Já na década de 1960, mas sobretudo durante a década de 1970 do século XX, o 
desenvolvimento cada vez mais intenso de pesquisas em contexto urbano, será 
responsável por uma profunda discussão e estruturação do campo. A Arqueologia 
urbana passa a ser cada vez mais entendida não só como a Arqueologia NA cidade mas 
também como a Arqueologia DA cidade (Martins; Ribeiro, 2009/2010: 150). 
Nesse sentido, sobretudo em contexto europeu, assiste-se à constituição de 
grupos de pesquisa, em geral de financiamento estatal, que passam a estudar as diversas 
transformações do contexto urbano como parte da história da própria cidade como um 
todo, que por sua vez deveria ser encarada como um sítio único com um legado 
histórico específico. 
É durante esse período que a sistematização do campo se intensifica, 
transmitindo à disciplina importantes contributos como a matriz de Harris, que, nascida 
da investigação de Eduard Harris no sítio urbano denominado
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