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Ensaios sobre Historia Antiga

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS 
 
 
 
 
 
 
ENSAIOS SOBRE HISTÓRIA ANTIGA 
Norberto Luiz Guarinello 
 
(TESE APRESENTADA PARA O CONCURSO DE LIVRE-DOCÊNCIA NA ÁREA 
DE HISTÓRIA ANTIGA) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
2014 
 2 
Dedico a Istvan Jancó, grande amigo, in memoriam 
 
 3 
 
Prefácio 
 
 Este livro reúne, em capítulos, uma série de ensaios que sintetizam a parte 
central de minha produção desde meu doutorado, em 1993*. Todos se referem ao que 
costumamos denominar de Antiguidade Clássica, embora o próprio termo seja colocado 
em questão em diversos dos capítulos que seguem. A ideia de coloca-los juntos e em 
sequência me foi sugerida por diversos colegas que veem continuidade e coerência onde 
só percebo flashs esparsos e descontínuos. São, na verdade, o produto de mais de vinte 
anos de reflexões sobre o mundo antigo e sobre o mundo atual. Foram pensadas como 
trabalhos científicos e, ao mesmo tempo, como intervenções, como questões propostas 
aos leitores contemporâneos. 
 Não há uma tese subjacente a estes escritos, mas várias. A primeira delas, a mais 
importante, é a de que a ação humana, de cada um e de todos nós, faz a História. A 
segunda, a de que a fazemos a partir de elementos já dados, a partir da ordem social. 
Não há nada de novo nessa ideia: ela já está em Marx. A terceira, enfim, é a de que a 
ordem social se organiza por fronteiras específicas e que a transformação social é uma 
transformação dessas fronteiras. A quarta, enfim, depende de uma nova ideia de 
cotidiano: não como espaço da reprodução, mas como aquele da transformação possível 
da ordem. Todas as quatro estão, como se verá, subsumidas à noção de memória, na 
ordem do pensamento, e à de longa duração, na ordem da vida. 
 Oriundos de textos escritos em tempos diferentes e de maneiras diversas, os 
capítulos aqui reunidos, acredito, representam o que há de mais coerente na minha 
produção. A forma ensaística é intencional, pela liberdade que proporciona e que me 
agrada. O conjunto dos capítulos remete a uma tese ampla, que resumo em poucas 
 4 
palavras: o conhecimento histórico racional existe e é efetivo, ainda que seja como 
simples alternativa à ficção histórica. Mas vou além: o conhecimento histórico não é 
apenas útil. Ele é necessário. É mesmo fundamental para o presente que vivemos e para 
o futuro que mal podemos antever. É uma das alternativas essenciais ao obscurantismo 
e à ignorância. Não é mera imposição eurocêntrica. Ainda que originário de uma Europa 
expansionista, racista e imperialista, depurado de seus ‘pecados’ de origem, é o ethos, 
ou antes, o principal deles, pelo qual concebo as sociedades do futuro. 
Mas há uma tese central, mais específica, nesta sequência de ensaios, e que tanto 
tempo me custou: a de que o conhecimento histórico é um conhecimento positivo, 
construtivo, cumulativo. A de que é possível, enfim, escrever História de um modo 
científico. Ela responde a um desafio específico, que me foi posto por Nicholas Purcell 
em 2003. E é essa História que proponho, a partir da terceira parte: a História do 
Mediterrâneo Antigo na idade do ferro. A História de um processo de integração. 
Este livro se divide em três partes, como as Gálias de César. A primeira reúne 
textos teóricos, que forneceram fundamentos para as reflexões mais empíricas. A 
segunda é habitada por estudos mais específicos nos dois campos sobre os quais me 
debrucei: os estados-cidades e o Império. O terceiro é ocupado pela parte mais 
selvagem, mais ensaística: uma narrativa sobre o mediterrâneo na longa idade do ferro. 
 Como disse, estes textos foram concebidos ao longo dos últimos vinte anos. 
Muitas águas passaram a minha frente nessas décadas, as verdades nas quais eu cria se 
esvaíram e fui conduzido a observar outras ‘verdades’, a vê-las sem o peso da crença. O 
futuro é agora para mim uma incerteza, como sempre foi para todos os seres humanos. 
Não há angústia nessa constatação. Pelo contrário, é um motivo de felicidade. Nada é 
dado, nada é definido. Se hoje apresento esta tese, é porque tive o incentivo de grandes 
amigos, Antonio Penalves Rocha, Fábio Faversani, Ermelino Romeu Ferreira, Carlos 
 5 
Augusto Ribeiro Machado, Deivid Valério Gaia e muitos outros. Mas, sobretudo, de 
Solange, meu grande amor, e de meus muitos filhotes. 
* Este livro reúne textos publicados, originalmente, pela ordem, em: RBH,7,13,p. 49-62,1994; RBH, 1, 1, 
p. 113-127,2007; Politéia, 3, 1, p. 42-62; Maria Beatriz B. Florenzano & Hirata, E. (org.) Estudos sobre a 
cidade antiga. São Paulo, Edusp, 2009, p. 109-120; Pinsky, J. (org.) História da Cidadania. São Paulo, 
Contexto, 2003, p 23-29; inédito; Funari, P.P. (org.) Política e identidades no mundo antigo, São Paulo, 
Annablume, 2009, p. 147-162; inédito; Guarinello, N.L. História Antiga, Contexto, 2012. Todos com 
alterações de maior ou menor monta. 
 
 
 6 
 
SUMARIO 
 
PARTE I : TEXTOS TEÓRICOS 8 
1. MEMÓRIA COLETIVA E HISTÓRIA CIENTÍFICA 9 
2. HISTÓRIA DO COTIDIANO 26 
3. UMA MORFOLOGIA DA HISTÓRIA 53 
CONCLUSÃO 75 
 
 
PARTE II : CIDADE E IMPÉRIO 78 
1. MODELOS TEÓRICOS SOBRE A CIDADE DO MEDITERRÂNEO ANTIGO 79 
2. A CIDADANIA ANTIGA 97 
3. UNIDADE E DIVERSIDADE NO IMPÉRIO ROMANO 118 
4. IMPÉRIO ROMANO E IDENTIDADE GREGA 135 
5. O IMPÉRIO ROMANO E SUAS FRONTEIRAS 150 
 
 
PARTE III : PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO NO MEDITERRÂNEO ANTIGO 
(SÉCULOS X A.C. – V D.C) 161 
INTRODUÇÃO 162 
1. HISTÓRIA ANTIGA E MEMÓRIA SOCIAL 164 
2. A HISTÓRIA DA HISTÓRIA ANTIGA 173 
 7 
3. A HISTÓRIA ANTIGA CONTEMPORÂNEA 185 
4. O MEDITERRÂNEO: PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO 205 
5. NAVEGAÇÕES 216 
6. ESTADOS-CIDADES 234 
7. HEGEMONIAS 255 
7. O IMPERIALISMO ROMANO 283 
9. O IMPÉRIO 294 
10. NOVAS FRONTEIRAS: UM NOVO MUNDO? 317 
CONCLUSÃO 329 
 
 
 
 
 8 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Parte I : Textos teóricos 
 9 
 
1. Memória Coletiva e História Científica 
 
 
Vou falar sobre memória do ponto de vista de um historiador. Mas quero 
deixar claro que, obviamente, não considero que os historiadores detenham qualquer 
monopólio natural sobre o assunto e que apenas nós, historiadores, possuamos a 
legitimidade para falar, pensar e produzir memórias para nossa sociedade. O universo da 
memória, de sua produção e de seus usos sociais é, como disse, extremamente 
complexo. E a produção historiográfica não é senão um pequeno segmento da memória 
coletiva, um segmento que, a bem da verdade, possui uma esfera de atuação e uma 
influência social, relativamente, limitadas. 
Mas as relações entre memória e História não se restringem a uma questão de 
limites ou de esferas de abrangência. A História, como disciplina científica, constituiu-
se ao longo dos séculos, talvez desde Heródoto ou Tucídides, para institucionalizar-se, 
do modo como a conhecemos hoje, apenas no curso do século passado. Foi então que se 
tornou uma disciplina universitária e que se organizaram os arquivos públicos. Esta 
História acadêmica e científica possui uma relação particular com a memória coletiva e 
meu objetivo central, nesta conferência, será o de refletir sobre essa relação. 
Os vínculos entre memória coletiva e História científica podem, na verdade, ser 
pensados em termos opostos. Podem ser vistos, em primeiro lugar, como uma relação 
positiva, pois a História produzida por historiadores, por especialistas da história, 
enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornece símbolos, conceitos, 
instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a simesma em sua relação com o 
 10 
passado. Mas podem também ser vistos sob um ângulo negativo, porque a História 
científica se volta regularmente contra as representações produzidas pela memória 
"espontânea" da sociedade, destruindo seus suportes, atacando seus princípios, seus 
pressupostos, seus símbolos. 
Ao mesmo tempo, portanto, em que fertiliza e renova a memória social, a 
História volta-se contra ela com todo seu peso disciplinar, apontando as distorções, os 
exageros, os esquecimentos produzidos pelos interesses particulares que animam as 
memórias coletivas. Nega-lhes, assim, a posse de qualquer verdade ou legitimidade, ao 
mesmo tempo em que se afirma como o único saber positivo e verdadeiro sobre o 
passado. E essa contraposição entre História e memória não é um mero capricho de 
historiadores muito zelosos, mas um dos fundamentos mesmos do próprio discurso 
historiográfico, da instituição da História como um espaço de saber. 
Permitam-me remontar ao que considero ser o próprio texto de fundação de 
esse saber - às páginas iniciais de Tucídides, à sua Arqueologia. Aqui encontramos a 
delimitação primeira dessa cisão: "Os homens (comuns) aceitam e transmitem sem 
exame as tradições sobre os acontecimentos do passado".
1
 Mesmo os antigos produtores 
de memória, diz-nos ele, os poetas e logógrafos, preocuparam-se apenas em agradar a 
seu público, não se interessando pela verdade, pois ornavam seus relatos com o 
prestígio da fábula e o enriqueciam com fatos incomprováveis e inautênticos. Desde 
Tucídides, portanto, a História se funda, abre espaço para si, opondo-se às demais 
representações coletivas do passado. Define-se como um saber crítico, ao mesmo tempo 
modesto, porque se contenta com aquilo que pode ser comprovado, mas também 
ambicioso, na medida em que visa relatar a verdade e que se crê capaz de produzi-la. O 
discurso historiográfico se apropriou, assim, desde a muito, das funções rememorativas 
 
1
Tucídides. Guerra do Peloponeso. I, Prefácio, p.20-21. 
 11 
das memórias sociais, de sua capacidade de selecionar e de eleger um passado, para 
exercê-las como um saber, um saber que tem uma relação privilegiada com a verdade. 
Esta separação entre História e memória seguiu diferentes percursos no 
pensamento ocidental. Não pretendo percorrê-los aqui. O que importa é que, quando a 
História se tornou uma disciplina científica, no século passado, esta oposição foi um dos 
fundamentos de sua constituição como uma ciência pautada pela medida da verdade e 
capaz, como se julgava então, de apreender a verdade objetivamente. A fundação 
mesma da História como Ciência carregava em si uma condenação da memória 
espontânea da sociedade, desautorizada como ideologia, como senso comum, como 
falsa consciência, cujas verdades seriam verdades impuras, contaminadas pelos 
interesses dos agentes sociais. E a oposição entre História científica e memória coletiva 
ergue-se, até‚ hoje, como uma espécie de mito de fundação, um mito que definiu um 
saber como científico, positivo e verdadeiro, e um não saber, irracional, porque volúvel 
e interessado. Foi J. Le Goff quem o disse, recentemente: "Há duas histórias, a da 
memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é‚ essencialmente, mítica, 
deformada, anacrônica. A tarefa da História científica é corrigir essa memória falseada, 
esclarecê-la e ajudá-la a retificar seus erros".
2
 
Mas essa oposição, que parecia tão clara a historiadores que queriam descrever 
o passado “wie es eigentlich gewesen”, já não se nos apresenta com a mesma nitidez. A 
própria História se pergunta hoje se não será possível, e necessário, redefinir em outros 
termos a relação entre História científica e memória coletiva. Se não podemos, em 
suma, tentar retraçar as linhas dessa pretendida ruptura? Trata-se de uma questão 
crucial, que é preciso propor-se. Não só porque a aparente aceleração do tempo social 
 
2Le Goff, J. “História”. In: Enciclopédia Einaudi, vol. I, Memória-História, Porto: Imprensa 
Nacional, 1984, p.166. 
 12 
trouxe ao primeiro plano do debate acadêmico as questões relativas à memória e à 
preservação do passado, mas, sobretudo, porque em nosso século abalaram-se 
profundamente os alicerces sobre os quais se erguia a ideia de uma História objetiva e 
verdadeira. O próprio estatuto científico da História e sua legitimidade enquanto saber 
foram repetidamente postos em questão, deixando marcas profundas na disciplina 
histórica contemporânea. O otimismo positivista do século anterior desmantelou-se 
progressivamente, com esporádicos renascimentos, sobretudo no mundo anglo-saxão. A 
pretensão de se atingir uma representação pura e verdadeira do passado cedeu lugar à 
noção de que uma certa subjetividade, como diz P. Ricoeur, é inerente ao trabalho do 
historiador.
3
 Porque nele também se manifestam os interesses, os conflitos e as visões 
de mundo de sua época. É em função da vida, como afirmava L. Febvre, e como 
admitimos comumente hoje, que a História investiga a morte, é a partir do presente que 
interrogamos o passado.
4
 Nossa própria época nos propõe os modelos, os conceitos e os 
problemas com os quais indagamos as fontes que, para dizer ainda com Febvre, são 
criadas, inventadas, fabricadas pelo historiador, ao propor-lhes suas hipóteses e 
conjecturas.
5
 
Reconhecer que a História que produzimos é filha de seu tempo e que cada 
época ou momento produz sua própria representação do passado, significa admitir, 
igualmente, que as verdades que a História produz são relativas, provisórias, que são 
verdades de e para sua época. Mas esse reconhecimento, por sua vez, não esvazia, 
necessariamente, todo o conteúdo das verdades que, como diz A. Schaff, são parciais, se 
acumulam e sobrepõem, mas são ainda verdades.
6
 O conhecimento histórico é ainda 
verdadeiro, científico, como o era para L. Febvre ou M. Bloch. Mesmo que, como 
 
3
Ricoeur, P. Histoire et Vérité. Paris: Seuil, 1955, p.24-25. 
4Febvre, L. “Vers une autre histoire”. Revue de métaphisique et de morale, 58, 1949, p.438. 
5
Febvre, L. Combats pour l'Histoire. Paris: A. Colin, 1953, p.7. 
6
Schaff, A.. História e Verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1978, p.286. 
 13 
ciência, a História carregue as marcas de seu tempo. Mais radicais, sem dúvida, são 
aquelas correntes de pensamento que negam qualquer conteúdo verdadeiro às 
proposições da disciplina histórica, que lhe recusam o caráter de ciência. E isto não 
apenas porque a História seria uma arte, o conhecimento intuitivo de fatos e 
acontecimentos particulares, como era para B. Croce, sem a precisão e o poder 
explicativo das ciências exatas.
7
 Não! O que se coloca em jogo, hoje em dia, é a 
relatividade e a imprecisão de todo e qualquer saber, é o próprio estatuto científico que 
está em questão. 
A posição da História como ciência, a possibilidade de uma ciência da história 
são atacadas pelo que se convencionou chamar de pós-modernismo, ou pós-
estruturalismo, e que tem em J. Derrida um de seus arautos. Para essa corrente, o 
conhecimento histórico não seria mais que um mero estilo narrativo e retórico, e as 
obras dos historiadores não seriam nem mais, nem menos, verdadeiras do que as de 
ficção. Para teóricos como H. White ou Ankersmith, o discurso histórico não proporia, 
nem produziria, verdades.
8
 O passado, dizem, é algo inatingível, caótico e sem sentido. 
O esforço do historiador se reduziria à tarefa de tecer uma trama aleatória, a construir 
uma narrativa com os elementos, não apenas nos documentos, mas sobretudo nostextos 
de outros historiadores. Se tudo é texto, como diz J. Derrida, e se não existe nada fora 
do texto, então a realidade como tal, externa ao texto, não existe.
9
 A pretensão da 
História em constituir-se como saber é falsa e vã. Nossa disciplina parece correr, assim, 
o risco de dissolver-se no irracional, de perder os vínculos com a necessidade e a 
verdade. De ver apagadas as marcas de sua distinção e de sua separação com a 
 
7Croce, B. “La storia ridotta sotto il concetto generale dell'arte”. In: Primi Saggi, Bari: Laterza, 
1951, p.16-24. 
8
 White, H.. Meta-História - A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP,1992; 
Ankersmith, F.R., “Historical representation”, History and Theory, XXVII, 3, 1988, p.205-228. 
9
Derrida, J. Gramatologia, São Paulo: Perspectiva, 1973, p.194 
 14 
memória. Para esta visão, com efeito, tudo é igualmente ideologia, opinião, e os laços 
que nos ligam à realidade são traçados arbitrariamente pelo sujeito, ou antes, pelo texto 
que tudo inclui e que a tudo domina, segundo uma concepção que Perry Anderson 
definiu, com precisão, como um subjetivismo absoluto e sem sujeito, o subjetivismo do 
texto.
10
 
Uma tal visão da História é sem dúvida, inaceitável. Ela conduz à desrazão, ao 
relativismo absoluto, à equiparação de todas as verdades, à impossibilidade do diálogo e 
do confronto de ideias. É uma tese conservadora, se me permitem. Seu efeito mais 
imediato e visível é o imobilismo, a paralisia, o esvaziamento de todo conhecimento 
racional. Não é de surpreender que tal postura tenha encontrado pouca receptividade 
entre os historiadores de profissão, não apenas por seu caráter estéril, mas pela perigosa 
possibilidade que abriga de se justificarem todas as formas de dominação e todos os 
preconceitos. Ora, nós, historiadores, sentimos nossa atividade, não como uma criação 
ficcional, mas como embricada na realidade de modo distinto da literatura. 
E isso em várias dimensões. Em primeiro lugar, porque o passado que 
investigamos não é por assim dizer, um processo onírico e indeterminado, aberto a todas 
as significações, mas a condição mesma, concreta e positiva, de nossa existência 
presente. Nem é o historiador livre para criar passados, como se traçasse sua trama por 
caminhos desimpedidos, mas deve falar do passado através de documentos que são, 
também eles, bastante reais. Podemos coletá-los, consultá-los, criticá-los, analisá-los. É 
através de sua mediação, e só dela, que temos acesso às realidades passadas. Mas não é 
só isso: a História liga-se à realidade também por ser parte dela, por ser um produto 
social, produto de um lugar socialmente determinado e historicamente constituído. Um 
 
10
Anderson, P.. A Crise da crise do Marxismo - introdução a um debate contemporâneo. São 
Paulo: Brasiliense, 1984, p.62. 
 15 
lugar institucional, a partir do qual os historiadores propõem representações do passado 
que não são meros exercícios inocentes de estilo, pois interagem com a memória e com 
as representações coletivas. E por ser representação, nem por isso é menos eficaz. Se a 
História, enquanto disciplina, possui sua subjetividade, esta não é a subjetividade 
individual de cada historiador, nem aquela, sem sujeito, do texto, mas a subjetividade de 
um lugar, instituído como tal e custeado pela própria sociedade contemporânea. 
História científica e memória coletiva não se confundem, assim, como facetas 
intercambiáveis de uma mesma visão irracional do mundo, mas se constituem e se 
diferenciam pelos lugares distintos em que são produzidas. Ambas são produtos sociais 
e, como tal, ambas são marcadas pelas determinações de seu local de produção. Embora 
se voltem igualmente para o passado, memória e História fazem-no de modos distintos e 
é essa diferença mesma que funda a possibilidade de uma História científica. 
Espero que estejamos de acordo, até aqui. Nos últimos anos, no entanto, 
desenvolveu-se outra crítica a essa História científica, uma crítica que se volta, não 
contra sua posição como ciência, mas contra a função e os efeitos do conhecimento 
científico sobre a sociedade. Não se trata aqui, como para os pós-modernos, de 
mergulhar todo conhecimento nas profundezas insondáveis do irracional, mas sim de 
desmascarar a utilização política do próprio lugar onde se produz esse conhecimento. O 
que se denuncia é o uso da ciência histórica como instrumento de poder e de dominação, 
é o efeito normativo, repressivo, que a História, como meio de ação do Estado, exerce 
sobre e contra as memórias espontâneas, que brotam do seio da sociedade. 
Acompanhando a valorização crescente das tradições orais, da cultura popular, das 
memórias produzidas por grupos marginais ou dominados, autores como Ralph Samuel, 
do influente grupo inglês "History Workshop", propugnam uma desprofissionalização 
da História, defendendo a validade e a veracidade das memórias coletivas e negando, à 
 16 
prática profissional, qualquer direito ao monopólio do saber sobre o passado.
11
 Essa 
perspectiva, que se origina, certamente, de posições políticas diametralmente opostas às 
dos irracionalistas, tem encontrado um apoio crescente em nosso país. Para E. De 
Decca, por exemplo, a memória produzida pelos historiadores é uma memória sem vida, 
desencarnada, um produto da sociedade industrial, que aniquilou os antigos lugares da 
memória coletiva e espontânea: "A memória histórica, diz ele, além de destruir a 
memória coletiva, transformando-a em memória-prótese de computadores, destitui 
também a própria História de seu sentido crítico".
12
 A História, portanto, parece culpar-
se pelo sentido que impõe às representações coletivas, pela própria crítica que aplica às 
memórias espontâneas. Os efeitos dessa perspectiva podem ser observados, por 
exemplo, no belo “Lembranças de Velhos”, de Eclea Bosi, no qual a autora envergonha-
se de definir sua própria atividade como "científica", preferindo, apenas, calar-se, para 
deixar fluir as memórias dos velhos, sem impor-lhes qualquer direção, norma ou 
sentido.
13
 
A História, portanto, como conhecimento científico, seria uma forma de poder, 
e uma forma espúria, um instrumento de dominação e de legitimação das estruturas 
existentes, um modo de fazer calar as memórias espontaneamente produzidas pela 
sociedade. Trata-se de um ataque sério e influente. Um ataque ao lugar mesmo em que a 
História é produzida, à legitimidade desse lugar em proferir verdades, ditar normas, 
propor explicações e sentidos. Um ataque, em suma, à sua posição frente aos outros 
lugares de memória, não para igualá-los a todos, mas para mostrar que sob sua 
legitimidade escondem-se relações de poder e de opressão. 
 
11
 Samuel, R. D.. “Déprofissionaliser l'Histoire”, Dialectiques, 1980, p.5-17. 
12
 De Decca, E.. “Memória e Cidadania”. In: O Direito à Memória - Patrimônio Histórico e 
Cidadania, São Paulo: Depto. do Patrimônio Histórico, 1988, p.133. 
13
 Bosi, E.. Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos. 2a. ed. São Paulo: EDUSP, 1987, 
p.1-2. 
 17 
O discurso histórico, desta forma, como atividade crítica por excelência, corre 
assim o risco de se dissolver, ao voltar-se sobre si mesmo. É preciso refletir seriamente 
sobre tais posições. É preciso repensar, de modo amplo, a oposição entre História e 
memória e a própria situação da História como um dos lugares de produção da memória 
coletiva. "Lugares da memória" - a expressão tornou-se, nos últimos anos, um termo 
corrente, sobretudo a partir da obra coletiva, dirigida por P. Nora, "Les lieuxde la 
Mémoire".
14
 A própria difusão do termo demonstra que não foi apenas nossa concepção 
do que seja a História científica que se alterou, mas também o modo como a própria 
memória é entendida como uma força social. Não se trata mais, apenas, das 
determinações da memória individual, como era para H. Bergson, ou da memória 
coletiva como uma função social integradora, como para M. Halbwachs. Falar em 
lugares da memória pressupõe, precisamente, uma pluralidade de memórias distintas, 
particulares, produzidas por instituições e grupos sociais diferentes e que podem utilizá-
las como meio de ação e conflito. 
A memória coletiva, deste modo, aparece-nos hoje como uma realidade 
complexa, articulada em lugares que propõem representações distintas, que se 
defrontam. Para entendermos melhor a especificidade da memória científica e sua 
posição frente às diferentes e variadas memórias sociais, é necessário que nos 
perguntemos: afinal, o que é memória? Qual a função exercida pelos lugares que ocupa 
e que se ocupam dela? Por que a produção de memória é, enfim, tão relevante em 
termos sociais? Trata-se de uma questão difícil e, para respondê-la, permitam-me 
refletir um pouco sobre a própria espessura semântica do termo memória e de remexer 
em sua etimologia. 
 
14
Nora, P. (org.) Les lieux de la Mémoire, Paris: Gallimard, 1984. 
 18 
Memória é uma palavra que nos veio do latim, preservando, em português, os 
dois sentidos fundamentais que possuía na origem. Memória, em primeiro lugar, é algo 
que não está em lugar algum, porque ocupa e preenche todos os lugares. É um substrato, 
repositório dos produtos de nosso passado que sobrevivem no presente, condição 
mesma do tempo presente. É a trama dos vestígios, oriundos de diferentes épocas e 
condições de produção, que constitui a espessura mesma daquilo que existe, como 
cristalização e permanência daquilo que não morreu, daquilo que nos liga aos mortos na 
medida em que sobrevive no presente. Há, como observa H. Koselleck, muitas 
temporalidades, muitos passados inscritos no nosso presente,
15
 vestígios que são o 
manancial passivo de qualquer reflexão sobre o pretérito, lastro que determina a 
possibilidade de qualquer memória. É uma regra de ouro, nem sempre atendida: não se 
pode rememorar o que desapareceu por completo, sem deixar traços de si, mas apenas 
aquilo que sobrevive, concretamente, no presente. Nosso passado tem uma existência 
material, concreta, inscrito nas estruturas do presente. É apenas através desse passado-
presente que podemos refletir sobre a História. 
Mas a memória não é‚ apenas, um substrato passivo, um manancial de 
sobrevivências vestigiais. Ela é, sobretudo, e este é seu segundo e mais conhecido 
sentido, um princípio ativo, um trabalho, como a chama M. Chauí
16
. A memória é uma 
reflexão sobre o passado, um debruçar-se sobre esses vestígios presentes para selecioná-
los, agregá-los, condensá-los, destrinchando a espessura temporal do agora, para dar 
sentido, não tanto ao passado, como ao próprio presente. A memória é, assim, uma 
ação, uma ação representativa, uma parte da atividade auto-representativa que uma 
sociedade, grupo ou indivíduo produzem de si, para assumirem e defenderem sua 
 
15
Koselleck, H.. Futures Past. On the Semantics of Historical Time. Cambridge-Massachusetts: 
MIT Press, 1985, p.94. 
16
 Chauí, M.S.. Apresentação. In: Bosi, E., op. cit., p.XX. 
 19 
identidade e para orientarem sua ação individual ou coletiva. A memória é, no fundo, 
um jogo dos sentidos possíveis nos quadro, mais ou menos indefinidos, do tempo. Um 
jogo que se alterna entre duas dimensões distintas do ato de rememorar. Voltemo-nos, 
por um instante, para estas últimas. 
A memória, em primeiro lugar, como fundamento mesmo da tradição de uma 
cultura, como produto social, liga-se à reprodução da sociedade, organiza e reproduz 
constâncias, repetições. Confere um sentido de permanência e de unidade no tempo, de 
identidade a grupos específicos ou à sociedade como um todo. Podemos observar esse 
caráter unificador da memória, por exemplo (mas não só), nas atividades coletivas que 
se reproduzem ciclicamente, nas festas cívicas ou populares, nos ritos religiosos ou nos 
rituais políticos, como as eleições. Tradições inventadas, no dizer de E. Hobsbawn, 
socialmente produzidas, que reproduzem indefinidamente um mesmo ato original, posto 
fora do tempo, que se manifesta ciclicamente, como os tempos da natureza, como que 
atestando que a sociedade, e os grupos dentro dela, permaneceram os mesmos, que as 
regras que definem sua unidade, sua identidade e suas relações recíprocas não mudaram 
pela ação do tempo.
17
 A memória, nesta dimensão, recupera e reproduz o mesmo no 
tempo. Nega, assim, o caráter solvente do tempo e a produção incessante da mudança. 
Fixa os sentidos e as identidades, permitindo à sociedade, aos grupos e classes em seu 
interior, traçar suas origens, garantir e reconhecer sua permanência e sua identidade a 
despeito do tempo. 
Mas a memória não é, tão somente, uma eterna repetição do mesmo, do 
idêntico a si. Ela também é, potencialmente, uma ação reflexiva, uma inquisição 
proposta ao tempo, não buscando identidades e permanências, mas as diferenças, as 
 
17
Hobsbawn, E.. “A Invenção das Tradições”. In: Hobsbawn, E. & Ranger, E. (org.) A 
Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Zahar, 1984, p.9-17. 
 20 
transformações, a mudança. A memória pode ser, assim, a afirmação do próprio tempo, 
de sua eficácia transformadora. Um meio para reconhecermos a transitoriedade de todos 
os presentes, a permanente mudança dos momentos vividos em futuros que serão 
distintos do agora. Neste sentido, a memória é uma reflexão sobre a mudança, como 
dimensão inerente do tempo das sociedades humanas, uma tomada de consciência sobre 
a produção da diferença, uma negação do mesmo pelo reconhecimento de sua inevitável 
transformação em outro. Ela traz em si a possibilidade de vermos o presente, não como 
uma realidade fixa e imutável, como algo eterno, mas como um produto humano, como 
um momento de passagem, uma ponte através da qual o passado constrói o futuro. E é 
para o futuro que se volta, assim, essa memória ativa, afirmando o poder e a força da 
ação humana sobre sua própria história, desnaturalizando o tempo humano. 
A memória coletiva é, assim, um meio fundamental da vida social, uma das 
dimensões da ação coletiva e um veículo de poder. Poder, por exemplo, de transmitir ou 
perenizar uma memória de si, ou de propor ou impor uma dada memória à coletividade, 
poder de criar, refazer ou destruir identidades sociais, de dar sentido, corpo e eficácia 
aos atos coletivos. O ato de memória é um ato de poder e o campo da memória, o 
espaço onde atuam seus lugares, é um campo de conflitos. Como afirma J. Le Goff, "a 
memória coletiva foi um importante elemento da luta das forças sociais pelo poder. 
Tornar-se senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das 
classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. 
Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de 
manipulação da memória coletiva".
18
 
 
18
 Le Goff, J.. Memória. In: Enciclopédia Einaudi, vol. I, Memória-História, Porto: Imprensa 
Nacional, 1984, p.13. 
 21 
A memória não é, portanto, um espaço harmônico e uniforme, nem se constitui, 
sobretudo hoje, num campo homogêneo, onde reine absoluta uma memória hegemônica,uma só representação do passado, seja aquela do Estado ou dos grupos dominantes. É 
verdade que os estados-nacionais, surgidos no período moderno, usurparam para si 
muitos dos antigos lugares da memória, reformando os calendários, reorganizando as 
comemorações coletivas, propondo novos símbolos e novas tradições, que lhes 
conferiam unidade e legitimidade política. É verdade, igualmente, que esses estados-
nacionais condicionam ainda, em larga medida, a produção social de memória, 
financiando e institucionalizando o ensino e a pesquisa histórica e fornecendo, por que 
não, o quadro fundamental pelo qual são pensadas as sociedades atuais e seu passado. 
Mas também é verdadeiro que, a despeito dos esforços nesse sentido, essa centralização 
não conduziu a produção de uma memória unificada e monolítica. Pelo contrário, 
assistimos hoje a uma verdadeira proliferação de memórias particulares, de modos 
diferentes de se representar o passado, mostrando que o processo de sua reinvenção não 
é apanágio exclusivo do estado ou dos grupos que o dominam política e 
economicamente. A última década, sobretudo, conheceu uma explosão de novas 
memórias, produzidas "espontaneamente" ou não, e que tem como objeto, e por vezes 
como autores, grupos sociais antes calados, ou excluídos do discurso social, como os 
negros, as mulheres, os homossexuais, os operários, num esforço para redefinir sua 
posição frente à sociedade e para construir uma identidade no tempo que dê sentido a 
sua identidade de interesses e de ação. Essa necessidade de memórias particulares, que 
falem de um grupo para si mesmo ou para a coletividade, não é apanágio dos 
"excluídos", mas é algo sentido mesmo pelos grupos dominantes, como mostra a 
expansão das "Histórias de empresa", que une o esforço de fundamentar sua 
 22 
"publicidade" numa tradição e a busca de uma identidade e de uma orientação para a 
ação futura. 
Ora, essas memórias sociais, mais ou menos espontâneas ou particulares, não 
se encontram, necessariamente, em conflito com a História científica. Em primeiro 
lugar, porque essas chamadas "memórias espontâneas" não são, afinal, tão espontâneas 
assim. Elas se utilizam, inevitavelmente, de pressupostos, conceitos, estruturas 
cognitivas que fazem parte das representações sociais dominantes. O discurso que 
produzem não é, tampouco, uma transcrição pura de eventos passados, nem uma 
recuperação imaculada de fatos e símbolos pretéritos. Ele é produzido, em grande parte 
- suma ironia! - a partir das reflexões, dos conceitos e do trabalho dos historiadores 
profissionais.
19
 
Há, porém, outro elemento a ser considerado. O próprio lugar da disciplina 
histórica não é um espaço homogêneo, mas também um campo de conflitos. Não 
podemos mais encará-lo como uma caixa de ressonância da voz monolítica do estado-
nacional ou das classes dominantes, como o foi por muito tempo. E sim como uma 
estrutura de poder que, em parte ao menos, tem suas próprias regras, seus próprios 
dominantes e dominados, aqueles que controlam os postos universitários, que elaboram 
os currículos, que tem acesso aos meios de comunicação, e aqueles que se submetem ou 
que, pelo contrário, se voltam contra essa própria estrutura. E por ser uma estrutura de 
poder, e por absorver e expressar em si mesma os conflitos, os choques de interesse e as 
distintas visões de mundo da sociedade como um todo, a disciplina histórica se abre 
para as demandas sociais, responde a elas, produzindo, também ela, memórias distintas 
e contraditórias entre si. 
 
19
Veja-se Giddens, A.. Social Theory and Modern Sociology. Cambridge: Polity Press, 1987, 
p.4-15. 
 23 
O lugar da História, assim, define uma forma de produção de saber, um modo 
de memória, mas não o faz de modo absoluto, uno e definitivo. Porque é um lugar que 
pode ser ocupado por grupos diferentes, que pode ser usado para rememorar, celebrar, 
glorificar o passado e o presente, mas também, e sobretudo, para criticá-los, para 
defrontar-se com os vestígios do passado, demonstrando como e porque o presente foi 
produzido, de que modo as relações econômicas, culturais e políticas determinaram, no 
curso da história, que grupos, quais indivíduos conseguiram alçar-se sobre a morte e 
perpetuar uma memória de si. Mais do que tudo, é um lugar, também ele, em perpétua 
transformação, cujo controle é o espaço de uma luta, que não precisa ser suprimido, 
para ser alterado. 
A História que fazemos não é mais, assim, apenas a História do Príncipe, para 
usar a expressão de M. Certeau, nem aquela que visa apenas agradar seu público.
20
 Ela 
se inscreve, precisamente, no espaço instaurado entre ambos - o estado e o público - um 
espaço ao mesmo tempo relativamente aberto e potencialmente crítico. A tão 
mencionada fragmentação, pulverização ou esmigalhamento da História científica em 
histórias particulares - um dos argumentos prediletos dos irracionalistas para negar 
qualquer verdade à ciência histórica, nada mais é do que um sintoma, um sinal dessa 
abertura da História às realidade de sua época, às demandas que lhe são dirigidas pelos 
grupos sociais. 
Como disse no início, só existe História, reflexão histórica, a partir do presente. 
Esse vínculo, no entanto, é mais profundo do que comumente se admite. Não são apenas 
os interesses de uma época que estão em jogo. É a própria estrutura do presente, o modo 
como a realidade se impõe a nós, que municia e guia nosso olhar ao refletirmos sobre o 
passado. Se a História científica se transforma, não o faz por um simples impulso 
 
20
 Certeau, M.. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p.18-22. 
 24 
interno, mas porque o presente também se altera, e rapidamente, porque os suportes 
tradicionais da memória estão sendo destruídos numa velocidade sem precedentes, 
porque vivemos num tempo que nos parece vertiginoso e que não conseguimos mais 
explicar, inteiramente, pelas grandes sínteses de outrora. Essa insuficiência reflete-se na 
produção historiográfica, que se tornou mais monográfica, mais particularista, mais 
atenta ao detalhe que ao conjunto. Mas não devemos abandonar a busca de uma 
concepção global das sociedades humanas no tempo e sim, pelo contrário, ampliá-la.
21
 
Devemos abandonar o provincianismo de uma História “europeia", no duplo sentido de 
centrar-se na Europa e de ter-se originado dela, em prol de uma História 
verdadeiramente mundial, que produza uma visão integrada do passado, e que 
corresponda à integração das sociedades humanas no presente. Não se trata, contudo, 
apenas de incorporar novos temas, novos objetos, mas de abrir a tradição europeia, que 
deu origem à História, a outras formas de pensamento e de visão do mundo, para que ela 
não seja, como é, a universalização de uma visão particular. 
Há uma questão crucial e complexa. Talvez devamos nos conformar a sermos 
"europeus" em nossa forma de pensar, embora não o sejamos política ou 
economicamente. A História, como disciplina científica, não é simplesmente uma 
"ciência", em qualquer dos sentidos que se dê a esta palavra. É mais do que isso. Ela faz 
parte da história cultural europeia, que consideramos como a nossa própria. Ela 
participa de uma longa tradição escrita, que por quase 3.000 anos acumulou e construiu 
quadros, conceitos, sistemas para se pensar, de modo rigoroso, a sociedade humana e a 
história. Tradição que, frequentemente, voltou-se sobre si mesma, para reciclar-se e 
criticar-se. É verdade que seu controle, e o controle de sua difusão foram, durante 
muitos séculos, apanágio dos grupos dominantes. É também verdade que seu emprego21
Veja-se Burke, P.. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro”. In: Burke, P. (org.). 
A Escrita da História - novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p.35-37. 
 25 
depende de certos instrumentos fundamentais, como a alfabetização e o acesso ao 
ensino, que em nossa sociedade são desigualmente distribuídos. Mas a História, como 
parte dessa chamada "cultura erudita", como tradição escrita, não é a escrava fiel de um 
grupo exclusivo, nem o produto particular de uma só força, mas uma produção cultural 
coletiva, um quadro sofisticado para pensarmos a realidade e nos propormos a 
transformá-la. A oposição entre memória e História é, em grande parte ao menos, falsa e 
oculta outra oposição, a meu ver igualmente inexata, entre cultura erudita e cultura 
popular. Há uma tendência difusa, entre os historiadores, numa espécie de mea culpa 
tardio, de criticar o caráter normativo, formalizante e classista da cultura erudita, 
opondo-lhe uma cultura popular espontânea e vivificadora. Não me parece o melhor 
caminho para reequacionarmos esta relação. Não é possível para nós, historiadores, 
abandonarmos completamente os quadros que nos oferece a tradição. Nisto os 
irracionalistas têm certa parcela de verdade. Essa tradição, que confundem e identificam 
com a "razão" ocidental, é imperial e monopolística, pois para criticá-la temos que nos 
valer das armas que ela própria oferece. Não existe espaço conceitual fora dela. É 
preciso, portanto, saber apropriar-se dessa tradição, de sua força representacional, para 
falarmos de e para a sociedade, para produzirmos sentidos, propormos e criticarmos 
interpretações, para elaborarmos formas de representação da história para nossa 
sociedade. Para que delas se apropriem, a seu próprio modo, os diferentes grupos 
sociais, envolvidos no eterno processo de repensar seu presente e de preparar as 
condições do futuro. 
 26 
 
2. História do cotidiano 
 
É necessária aqui uma pausa mais longa, para fazer um breve e esquemático 
balanço dos desafios colocados pela história contemporânea à disciplina científica 
História
22
 e propor alguns caminhos de reflexão mais que propostas de resolução. A 
História, como gênero específico dentro da tradição literária europeia, ou enquanto 
disciplina científica, possui uma longa história que seria impossível, e mesmo inútil, 
tentar sintetizar neste espaço. Em termos bem gerais, no entanto, pode-se considerar que 
sempre exercitou um efeito tranquilizador para a eternamente instável relação das 
sociedades humanas com o tempo. A História, como trabalho de rememoração ou de 
explicação do passado, permitia prever tempos futuros, seja pela repetição, ou mesmo 
emulação do ocorrido, seja pela projeção causal de um desenvolvimento desejado e 
possível. Em outras palavras, uma certa segurança em relação ao futuro (como repetição 
ou como progresso) sempre foi um pressuposto e, ao mesmo tempo, um resultado da 
pesquisa histórica. 
As incertezas sobre o futuro, que se tornaram progressivamente mais agudas, 
em nível planetário, desde o último quartel do século XX, não poderiam assim deixar de 
projetar suas sombras sobre as maneiras como a História construiu passados, com suas 
estruturas, suas leis, suas determinações, para projetar futuros já sabidos ou, no mínimo, 
intensamente almejados e tidos como possíveis
23
. Aqueles passados tornaram-se 
 
22
 Por convenção, ao longo deste capítulo História, com H maiúsculo, representa a disciplina 
científica, enquanto história (com h minúsculo), significa o processo histórico concreto. 
23
 Entre inúmeros outros veja-se Fontana, J. História: análise do passado e projeto social. 
Bauru/SP, Edusc, 1998, passim e part. 264 e segs. Interessante a ideia de que ingressamos num 
novo “regime de historicidade” inaugurado a partir de 1989 em Hartog,, F. Tempo, História e 
Escrita da História: a Ordem do Tempo, Revista de História, 148, págs. 9-34. A valorização do 
 27 
anacrônicos e, muitas vezes, a pesquisa contemporânea parece correr o risco de 
enveredar pela nostalgia, pelo conservacionismo patrimonial, pela angustiante defesa de 
um lugar no futuro para um passado que perdeu sua eficácia social como fator de 
compreensão e mudança. Ou talvez não! Apenas não encontrou um novo lugar para a 
História num mundo que se revela cada vez muito amplo e complexo para seus antigos 
quadros de referência. As duas maneiras pelas quais a História considerava seu objeto 
de estudo, a história, sofreram mudanças drásticas. Vejamos ambas: 
1) Faz parte dos pressupostos da disciplina que a história, em seu sentido mais 
geral, existe e pode ser objeto de reflexão: a história da humanidade, noção que 
corresponde àquela da unidade do gênero humano. Um fóssil de homo sapiens sapiens 
de 150.00 anos é, por exemplo, parte dessa história, a única história, que é a história do 
homem. No entanto, e a te nossos dias, as Histórias Universais foram, via de regra, 
Histórias particulares, certos ramos privilegiados na história e cuja origem remonta à 
própria formação da disciplina a partir dos clássicos latinos e gregos . A historiografia 
europeia, numa época em que História científica na Europa, escreveu, ao longo do 
século XIX e de boa parte do XX, a História do homem como história da civilização 
cristã ocidental, como parte do processo de formação das próprias nações europeias. Daí 
a sequência, que domina currículos escolares, mesmo em países não europeus, de uma 
História antiga (dividida entre Oriente Próximo (ou próximo à Bíblia), Grécia, Roma), 
uma idade média, uma idade moderna etc essencialmente europeias: uma sequência 
simbólica, nocionalmente europeia, mesmo que não correspondendo à história de 
nenhuma parte específica do que se possa entender por Europa. Mesmo as 
 
presente, no entanto, não é necessariamente negativa, veja-se Fontana, J. La Historia después de 
fin de la Historia, Barcelona, Grijalbo, 1992, pág. 143, retomando a Benjamin sua ideia de 
“atualização” da História. Uma boa introdução às discussões contemporâneas encontra-se na 
coletânea editada por Keith Jenkins, The Postmodern history reader, Londres e Nova Iorque, 
Routledge, 1997. As discussões sobre a cientificidade da História, na esteira de um H. White, 
não nos interessarão aqui, pois estão largamente superadas. 
 28 
interpretações marxistas da história do homem tendiam fortemente para esse viés 
eurocêntrico, seja europeizando o restante do globo (numa sequência de modos de 
produção), seja definindo seu futuro comum pelo presente que analisava na Europa. 
Trata-se de um viés, uma visão arbitrária, mas que sem dúvida cumpriu bem seu papel. 
Deu sentido à história mundial enquanto o futuro desta parecia centrado na Europa, de 
onde partiam os impulsos para a integração global. E cujo futuro se propunha ou se 
tentava impor ao globo. Mas hoje é anacrônico. Hoje é possível ver o desenrolar de 
histórias paralelas somando-se cada vez mais como parte de uma história só ou, ates, em 
processo de tornar-se uma só. Por que privilegiar o fio europeu? Quais outros devemos 
privilegiar? Quais e quantos devemos integrar na narrativa? São parte do desafio 
contemporâneo à História. Uma História Universal nunca foi tão possível e necessária. 
Como construí-la? Como falar do todo e falar das partes. E quais partes? 
2) Na verdade, a História nunca se debruçou sobre a história, mas sobre 
histórias particulares, sempre estudou histórias específicas (mesmo que as considerasse 
a única), históriasde algo, de uma unidade de sentido que conferia unidade a um corpo 
de documentos e ao foco de uma narrativa. A definição desse algo é crucial para 
compreenderem-se os limites e as possibilidades da disciplina da História em diferentes 
momentos. Pode ser uma cidade, um reino, um reinado mas, desde o século XIX 
algumas unidades maiores têm predominado: um povo, uma nação, uma civilização, um 
estado-nacional. Às vezes como termos coincidentes, por vezes com maior ou menor 
abrangência que os demais, a História se reparte por objetos que não são uniformes, 
nem equivalentes, e que mudam de acordo com os interesses de quem financia, produz 
ou consome seus relatos. São as unidades de sentido, os objetos por excelência da 
História, dentro dos quais se recortam os demais objetos e que se projetam no passado, 
apropriam-se do passado como sua memória, sua tradição, sua História. Tais recortes 
 29 
nunca foram ou são inocentes. Não importa quão científicos sejam, são sempre 
produtores de memória, de lembrança ou esquecimento, são instrumentos de identidade, 
de legitimidade e de poder. Essas unidades de base tendem, por sua vez, a naturalizar-
se, a adquirir existência própria, tornam-se pressupostos que não se discutem Tais 
recortes foram e são úteis, sem dúvida, e recortar é necessário, mas não se pode 
esquecer o grau de arbitrariedade envolvido nesse processo. O processo de fabricação 
de entidades como “povo”, “raça”, “etnia”, é hoje evidente, mas a mesma artificialidade 
afeta unidades como nação, estado-nacional e civilização. Como escrever a história de 
um estado-nacional sem projetar no passado sua definição contemporânea, suas 
fronteiras, a configuração de seu povo? Que se deve privilegiar: a história do estado, a 
de um segmento de sua população, a do território contemporâneo? Não há respostas 
fáceis. E civilização, termo tão em voga em certos debates políticos contemporâneos, 
que entender por civilização? Opõe-se à barbárie, a primitivo? Engloba todos os hábitos, 
crenças, costumes de uma sociedade ou apenas aqueles mais “elevados”, a cultura 
literária e artística? E que sociedade corresponde a uma civilização? Quais os limites, 
por exemplo, da chamada “civilização ocidental? O que a define? O cristianismo? O 
industrialismo? A sociedade civil de indivíduos iguais? O mercado? O termo é tão 
ambíguo e tão carregado de valorações contraditórias como as demais unidades de que 
se vale o historiador. Foi sobre essas entidades quase naturais, quase ternas, que os 
historiadores projetaram a estrutura narrativa da História, dos fatos memoráveis a serem 
lembrados, dos processos e mudanças a serem explicados. A partir do século XIX, a 
História fixou-se, cada vez mais, na mudança, na transformação, na produção de 
sucessivos futuros para seus objetos de análise, para suas História. 
Algumas dessas entidades, na verdade, pareceram desde sempre imutáveis: o 
povoe a etnia tinham seu gênio, seu caráter próprio, motor de seus destinos e 
 30 
realizações. Outras se moviam pelo lento tempo biológico, como as civilizações que 
nasciam, cresciam e morriam. Os ramos centrais da historiografia, ao menos os mais 
influentes, procuraram agentes mais concretos e eficazes em tempos precisos. O tempo 
rápido da política e da guerra, movido pela ação de grandes líderes e generais, ou elites 
poderosas, dominou as narrativas da História por longas décadas, já bem adentrado o 
século XX (e ainda não desapareceu). A partir dos anos trinta fortaleceu-se uma 
tendência, que pouco a pouco predominaria (ao menos em certos países), a 
despersonalisar a ação transformadora e a cadenciar os ritmos de transformação, como 
forma de superar as limitações da velha história política e abrir-se para as contribuições 
da sociologia, da antropologia , da economia e do marxismo. Povos, nações, estados, 
cederam um pouco o lugar no palco da História para agentes mais amplos, trans-
nacionais, quase impessoais. Daí passam a predominar, nas narrativas de historiadores, 
as grandes estruturas sociais e econômicas, com seu próprio dinamismo e suas próprias 
determinâncias. O tempo e a forma da ação tornam-se distintos: passaram às grandes 
ações coletivas, conscientes, mas determinadas, por sua vez, pelas próprias estruturas, 
com suas leis de transformação, que passam para o primeiro plano da narrativa e 
tornam-se os grandes agentes da história, atravessando e capturando em seu curso os 
velhos objetos: escravismo, feudalismo, capitalismo etc. 
Um dos impasses da historiografia contemporânea liga-se, de modo evidente, à 
crise dessas grandes estruturas. Da política à sociedade e desta à economia o espaço da 
ação humana tornou-se cada vez mais restrito, menos eficaz. A capacidade de projetar 
um futuro e de conceber o passado como sua origem e sua causa, como a explicação de 
um projeto que se concretizaria, esvaeceram-se nas últimas décadas. Algumas 
consequências podem ser já apontadas para essa crise das grandes narrativas: em 
primeiro lugar, os objetos da História se multiplicaram, não apenas pela introdução de 
 31 
novos atores sociais, cujas histórias se tornaram relevantes (trabalhadores, imigrantes, 
mulheres, homossexuais), mas pelo recurso cada vez mais intenso ao estudo de caso, ao 
detalhe, à micro-história que se esquiva dos grandes contextos sem conseguir nega-los 
inteiramente. Em segundo lugar, a temporalidade dos objetos da história tornou-se 
progressivamente mais longa: da ação individual e pontual de grandes homens, às 
explosões coletivas à ação impessoal, cíclica, de efeito indeterminado das estruturas 
econômicas. São tendências, certamente, que não negam a coexistência de diferentes 
concepções e modos de fazer História hoje. De qualquer modo, essa tendência parece 
ter desembocado, nos últimos trinta anos, numa ênfase cada vez maior nos chamados 
estudos de história cultural. 
A História cultural não, certamente, uma especialização recente. Quer a 
consideremos originária do século XVIII, com as investigações de J. G. Herder sobre a 
Kulturgeschichte, depois significativamente desenvolvida no final do século XIX e 
inícios do XX por autores como J. Burckhardt ou John Huizinga
24
; quer a consideremos 
como uma especialização mais recente
25
 A História cultural contemporânea parece, em 
todo caso derivar, não apenas do enfraquecimento dos antigos modelos interpretativos, 
das grandes estruturas da história, mas de uma maior aproximação da História com a 
Antropologia e com a lingüística e, conseqüentemente, de uma maior consciência da 
imensa variedade e amplitude das sociedades humanas sobre a terra. Mesmo hoje, que 
se tornou a tendência aparentemente predominante, não é fácil de definir como 
perspectiva única: a não ser por uma acentuação no caráter simbólico das relações 
 
24
 Kelley, D. R. El giro cultural em la investigación histórica, in: Olabarri, I. & Caspitegui, F. J. 
La “nueva” historia cultural: la influencia Del posestructuralismo y el auge de la 
interdisciplinariedad, Madri, Editorial Complutense, 1996, p.37 e segs.. 
25
 Um “cultural turn”correspondendo ao famoso “linguistic turn”, veja-se Hunt, L. A nova 
história cultural, São Paulo, Martins Fontes, 1992 e, para uma apreciação crítica da “virada” 
como tal Cardoso, C. F. Introdução: uma opinião sobre as representações sociais, in: Cardoso, 
C. F. & Malerba, J. (org0 Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Rio de 
Janeiro, Papirus. 
 32 
humanas, mas que pode se estender da cultura popular ao mundo dos livros
26
, à cultura 
erudita até um universo amplo, vago, mal definido, compreendido sob o termo 
“mentalidades”. De modo geral, a Históriada Cultura parece retornar aos tempos 
longos, quase naturais, aos tempos imóveis, nos quais a agência humana é, não apenas 
despersonalizada, mas quase esvaziada de eficácia transformadora. Por sua vez, torna-se 
mais intimista, mais detalhada, mais atenta para o indivíduo e sua vida privada, uma 
história longe da história e que, por sua vez, pretende por vezes dar conta de todas as 
dimensões da história
27
. 
Dentre a grande diversidade de estudos que podem ser classificados como de 
História cultural, aqueles dedicados à chamada História da Vida privada, ou História do 
Cotidiano 
28
 apresentam uma característica particularmente relevante para avaliarmos 
os impasses da historiografia contemporânea. O gênero não é novo, remontando talvez à 
velha antiquística erudita que ainda competia com a História oficial em meados do 
século XIX
29
, ou mesmo à dicotomia entre Heródoto e Tucídides. Para além das 
intermináveis discussões sobre a pertinência do conceito para sociedade não europeias, 
ou mesmo sobre a existência de “cotidiano”, como instância própria e separada da vida 
 
26
 Chartier, R. La Historia hoy em dia, dudas, desafios, propuestas,in: Olabarri, I. & Caspitegui, 
F. J. La “nueva” historia cultural: la influencia Del posestructuralismo y el auge de la 
interdisciplinariedad, Madri, Editorial Complutense, 1996, p.27. 
27
 Chartier, R., op. Cit., pág. 29 criticado por Flammarion, op. cit., págs. 11-20. Cf. Castro, H. 
História Social, in: Cardoso, C.F. & Vainfas, R. (org.), Domínios da História. Rio de Janeiro, 
Campus, 1997, págs. 50-54, para quem a antiga história social desembocou, inevitavelmente, 
numa história cultural das relações sociais e do poder. 
28
 Embora não representem exatamente o mesmo objeto, os termos tem sido considerados como 
quase equivalentes pela historiografia, cf. Novais, F. A. Condições da Privacidade na Colônia 
in: Mello e Souza (org.) História da Vida privada no Brasil. Cotidiano e Vida Privada na 
América portuguesa, São Paulo, Cia. Das Letras, 1997, pág. 17; Del Priore, M. História do 
Cotidiano e da Vida privada, in: Cardoso, C.F. & Vainfas, R. Domínios da História, Rio de 
Janeiro, Campus, 1997; Vainfas, R. História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas, 
Anais do Museu Paulista, 4, 1996, págs 14-16.; Le Goff, A História do Cotidiano in: História e 
Nova História, 2
a
. ed., Lisboa, teorema, 1989, págs.73-82. Contra essas posições cf. J. Martins, 
J. S. Apontamentos sobre Vida cotidiana e História, Anais do Museu Paulista, 4, 1996, págs. 
49-58 
29
 Momigliano, A.Origines des recherches sur l’antiquité, in: Les Fondations du Savoir 
historique. Paris, Belles Lettres, 1992, págs. 61-91. 
 33 
(debates que afetam mais certos círculos sociológicos que propriamente históricos), é 
inegável que o crescente interesse pela História do cotidiano reflete um novo olhar 
sobre o indivíduo, sua ação e sua posição na história. O cotidiano aparece quase como o 
perfeito oposto da história, como o campo das estruturas perduráveis, inconscientes, 
alienantes, quase naturais, sobre as quais as ações humanas são apenas banais, 
corriqueiras e sem efeito transformador. O cotidiano como refúgio da história, na 
insignificância banal do homem corriqueiro, dominado por uma estrutura que, ao 
contrário daquelas políticas, sociais, econômicas e, mesmo, culturais, de nada seria 
dominante, de nada seria a causa eficiente. Trata-se de um limite, sem dúvida, de uma 
história sem história. Pela sua própria condição de limite, contudo, pode nos ajudar a 
pensar sobre o estatuto da história hoje. As definições que apresentamos de cotidiano 
são derivadas do senso comum, mas há uma extensa reflexão a respeito, em todas as 
ciências humanas. 
Em termos bem gerais, os estudos sobre cotidiano tendem a valorizar, como 
foco de atenção, as ações individuais frente às circunstâncias da vida, sobretudo no 
plano da intersubjetividade. Para alguns, importam menos as “estruturas do cotidiano” 
que o tipo de ação que se observa em seu interior. Assim, para sociólogos 
interacionistas como Irving Goffmann, que enfatizam a teatralização da vida social nos 
pequenos mundos do trabalhos, dos hospitais, dos manicômios, a partir da perspectiva 
das estratégias individuais
30
. Ou, numa perspectiva filosófica e claramente 
fenomenológica, no “mundo de vida cotidiana”, intersubjetivo, mas perceptível a partir 
da existência individual, que se serve de um reservatório de ‘conhecimento disponível” 
(de senso comum) que lhe permite agir sem duvidar, de modo espontâneo, trabalhando 
sobre as coisas e os demais indivíduos por atos de comunicação que podem ser 
 
30
 Goffmann, E. La presentacion de la persona em la vida cotidiana, Buenos Aires, Amorrurtu, 
1959. 
 34 
automáticos ou performáticos, na medida em que visem uma situação projetada
31
. Trata-
se sempre de pequenos mundos, dominados por tipos de ação, mais que por estruturas 
específicas. Já H. Levebvre, encara o cotidiano como um espaço de alienação, de 
repetição, de imposição brutal das estruturas da vida sobre indivíduos inconscientes e 
incapazes de reagir e alterar seu mundo. Para Levebvre
32
, como para seus seguidores, a 
“cotidianeidade”, mais do que o cotidiano, representa a derrota da ação humana eficaz 
sobre a história. Para outros, como Michel de Certeau
33
 ou Michel Maffesolli
34
 (mesmo 
que a partir de premissas absolutamente diversas) a ação cotidiana é, pelo contrário, 
reação contra a unidimensionalidade do mundo, reivindicação do espaço e do valor da 
particularidade e da individualidade numa sociedade cada vez mais massificada. Mais 
produtiva é a visão de Agnes Heller
35
 que, por sua vez, chama a atenção para o que 
considera “o mundo das objetivações”, dentro do qual se dão as ações cotidianas:a 
linguagem, o sistema de hábitos e o uso dos objetos e que representam o espaço de 
socialização dos homens, sobre o qual se acumula a cultura humana. Se é verdade que, 
para ela, essas objetivações possuem um caráter conservador e que o senso comum se 
reproduz de modo consuetudinário, através da repetição, do economismo, do 
pragmatismo, da imitação e da hiper generalização, do cotidiano também podem surgir 
ações não cotidianas, criativas, inovadoras, sobretudo no campo das artes e das ações 
que quebram a rotina da vida. Essa perspectiva aproxima-se da de Claude Javeau e de 
sua tentativa de incluir, num único sistema de pensamento, a macro e a micro-história, 
um mundo de atores nunca solitários cuja ação coletiva, consciente ou não, produz e 
 
31
 Schutz, A. Le Chercheur et le quotidien, Ch. IV: Sur lês realités multiples, paris, Méridien 
Klincksieck, 1987, págs103-129. 
32
 Levebvre, H. Critique de la vie quotidienne. I. Introduction. Paris, L Arché éditeur, 1958. 
Para uma defesa enfática, mas não muito consistente, do autor vide Martins, J. de Souza, op. cit. 
33
 Certeau, M. L’invention du cotidien.1. arts de faire. Paris, Gallimard, 1980. Particularmente 
interessante sua noção de estratégia e de resistência. 
34
 Maffesoli, M. A Conquista do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 1984. 
35
 Heller, A. Sociologia de la vida cotidiana, Barcelona, Edicions 62, 1977 (1970). 
 35 
reproduz as instâncias da vida. Nesse sentido, o próprio sentido de cotidiano, como 
instância à parte da vida, como o outro da história, parece esvanecer-se
36
. 
Os historiadores têm dedicado poucas reflexões ao tema do cotidiano e de seu 
lugar na História. A já famosa e sempre citada coleção da Editora Hachette,Essa 
“História antiquária”opunha-se em suas origens à grande História, àquela celebrativa, 
dos grandes feitos, das grandes estruturas, da guerra, da política, da luta de classes, da 
economia, em suma da História das causas eficientes da história. A História do 
cotidiano se apresentava como a História do banal, do corriqueiro, do dia a dia, da 
realidade rotineira na qual agimos de modo quase inconsciente e alienado. Um pedaço 
da vida em que nada aconteceria, a não ser o absolutamente previsível, no qual nada 
mudaria e que, no entanto, dominaria nossas vidas no que teriam de mais íntimo, 
individual, privado. Daí que tendia a ser uma História de viés antropológico, uma 
História dos hábitos e costumes de um povo: o morar, o dormir etc. Uma História de 
verbos substantivados. Sob esta visão, as esferas da vida privada eram organizadas 
numa espécie de tipologia da vida social que podia ser usada para qualquer sociedade, 
época ou lugar. Essa recompartimentação da História, quando foi empreendida, não 
deixou de ser interessante, a despeito de seu viés escapista. Representou uma 
reformulação radical do ângulo de visão do historiador comum (e da História comum) 
pela valorização da realidade “banal”, da história de todos e de cada um, por oposição à 
grande História celebrativa dos grandes homens e dos grandes feitos. Mas também, 
como já se notou
37
, tinha limites evidentes: seus procedimentos típicos da velha 
antiquária: a busca do anedótico, de dados dispersos, de instantâneos agrupados numa 
 
36
 Javeau, Cl. La société au jour le jour. Écrits sur la vie cotidienne, Bruxelas, De Boeck-
Wesmael, 1991, em particular págs. 82 e segs. 
37
 Duby, G. Prefácio, in: Veyne, P. (org.) História da Vida privada: do Império Romano ao ano 
mil., São Paulo, Cia. Das Letras, 1992, pág. 10. Le Goff, J. A História do cotidiano, op. cit., pág. 
79. 
 36 
tipologia da vida social que parecia como um figurino adaptável a qualquer época, 
sociedade ou lugar e fundada numa espécie de naturalização da sociedade e do homem, 
seu resíduo quase biológico: o dormir, o comer, o amar, o divertir-se. Uma História do 
não histórico. 
Uma das raras tentativas de se pensar o cotidiano do ponto de vista da História 
é a de F. Braudel, seguindo um caminho sugerido por Marc Bloch Não tanto aquele, 
mais conhecido, dos três tempos da história: o longo da geografia, o médio das 
estruturas e o curto dos acontecimentos; mas o Braudel historiador das “estruturas do 
cotidiano”: a demografia, os alimentos essenciais, o luxo, a técnica, as unidades 
sociais
38
. Tempos longos, estruturais, menos extensos que as determinações geográficas, 
porém mais estáveis que o universo das trocas. Tempos quase naturais dentro da 
economia das existências humanas. A ligação entre cotidiano e tempo, sem dúvida, é 
indelével, mas talvez seja possível aborda-lo de outras maneiras. Uma releitura da visão 
Braudeliana, riquíssima de sugestões, encontra-se no ensaio de F. Novais
39
, que avança 
sobre a concepção braudeliana buscando, naquelas estruturas mais gerais as condições 
concretas de sociabilidade, de ação social individual e coletiva.Em todo caso, por mais 
rica de sugestões, a definição de Braudel mantém a separação clássica entre tempo do 
cotidiano (e da vida) e tempo do acontecimento (e da história) reproduzindo, no fundo, a 
tradicional distinção entre acontecimento histórico, prenhe de significado, e vida 
comum, repetitiva e estéril. Entre tempo das mudanças e tempo da reiteração, entre 
 
38
 Para as primeiras concepções de Braudel sobre a longa duração veja-se: Braudel, F. História e 
Ciências Sociais: a longa duração in: Idem, Ensaios sobre a História, São Paulo, Perspectiva, 
1978. Fundamental é Braudel, F. Civilisation matérielle, économie et capitalisme. XV-XVIII, em 
especial o 1
o
. volume, Paris, Collins, 1967. Ver sos comentários pertinentes de Penalves, A 
Tempo histórico e civilização material,. In: Lopes, M.A. Fernand Braudel, Rio de Janeiro, 
FGV, 2003, págs. 21-34. Impossível concordar plenamente com Reis, J.C. Nouvelle histoire e 
tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e Braudel, São Paulo, Ática, 1994. 
39
 Novais, F. Condições de privacidade na Colônia,, op. cit., págs. 14-39. 
 37 
estruturas supra-dominantes e atores humanos que reproduzem injunções que não 
podem controlar. 
Na sociologia, na filosofia, mesmo nas poucas incursões historiográficas, o 
cotidiano aparece, sobretudo, como um tipo de ação, repetitivo e inconsciente, banal, ou 
como espaço de interação, de percepção fenomenológica de si e do outro. Para o 
historiador, parece ser um conceito limite. Ao mesmo tempo vincula-se ao tempo
40”e 
parece nega-lo, como repetição, como não acontecimento, como eterna permanência do 
que sabemos, quase intuitivamente, que muda. Talvez seja útil pensarmos esse limite, 
leva-lo às suas últimas conseqüências, para investigarmos alguns dos impasses da 
historiografia contemporânea. 
Pesemos o cotidiano, do ponto de vista de um historiador, portanto preocupado 
com a entre permanência e mudança, sob dois ângulos complementares. Em primeiro 
lugar, como uma dimensão propriamente temporal, tanto em termos de pura duração, 
quanto nas qualidades que esse tempo incorpora. Em segundo lugar, como tempo 
qualitativo, indagando que compõe esse tempo e como, sob esse ângulo, podemos 
entender melhor nosso objeto, a história. 
Que é tempo cotidiano? Os historiadores têm, como vimos, a tendência a 
aproximar cotidiano e longa duração, como o tempo no não acontecimento. Talvez seja 
possível superar a falsa dicotomia entre cotidiano e história se pensarmos cotidiano, não 
como um tipos específicos de ação ou como uma dimensão particular, individualizada, 
das interações humanas, mas como tempo plenamente histórico, no sentido de ser tanto 
o tempo do “acontecimento” (no sentido tradicional) quanto do “não-acontecimento”. 
Que é cotidiano? Na origem latina, quot dies é, ao mesmo tempo, um dia e todos os 
 
40
 Vainfas, R. História da vida privada: dilemas, paradigmas, escalas, op. cit. ,pág. 19: 
“cotidiano é conceito que diz respeito ao tempo, sobretudo ao tempo longo... 
 38 
dias
41
. Engloba, portanto, tanto o instantâneo como o duradouro, o incisivo e 
transformador e o repetitivo. Cotidiano tem assim dois sentidos temporais 
complementares. É o que acontece em um dado dia, portanto num tempo breve, e o que 
acontece todos os dias, portanto num tempo potencialmente longo. Ora, como se 
manifestam os grandes eventos, as grandes causas senão no dia, a cada dia, num dado 
dia? Não são eles também cotidianos? Sim, pois não existem fora do tempo e do espaço 
e a própria mudança se produz no dia a dia? “Pequenas” e “grandes” ações, o banal e o 
excepcional, a repetição e o único, a inércia e a transformação não existem em planos 
separados da existência, mas convivem, concretizam-se, no mesmo tempo comum da 
existência. 
O cotidiano, visto assim sem qualidades, como o tempo da vida, pode ser 
pensado como o espaço concreto de realização da história em todas as suas dimensões, a 
pública e a privada, a banal e a importante, a repetição e a mudança. O cotidiano não é 
uma esfera particular da vida ou da história, ou uma espécie de massa inerte, que muda 
pouco ou não muda, pois não tem em si os agentes de sua mudança: uma massa sobre a 
qual os acontecimentos existem e atuam de modo independente. Não há porque pensar a 
história como duas instâncias separadas: uma física, concreta, em que todos vivemos, e 
outra metafísica,ativa, pontual, de onde proviriam as ações que mudam, as forças da 
mudança. É verdade que acontecimentos singulares, ou antes, constelações de 
acontecimentos, de ações, podem alterar em maior ou menor profundidade aspectos de 
nossa vida, mas é o próprio cotidiano que os gera. Eles se dão no tempo e no espaço do 
dia. O acontecimento não é assim o inesperado, o imprevisto, não surge do nada, mas é 
 
41
 Sissa, G. & Detienne, M. Os deuses gregos, São Paulo, Cia. Das Letras, 1990 , pág. 17; Para 
os gregos, segundo os autores : “a humanidade é marcada, estigmatizada mesmo pela noção de 
dis, de tempo breve, de tempo instantâneo”, “Aos homens, aos mortais, toca, portanto, a 
cotidianidade, a força vital de curta duração, enquanto os deuses guardam para si o “sempre””. 
 39 
um produto do cotidiano. Não há porque separar os dois planos ou, dito de outro modo, 
talvez seja útil pensa-los conjuntamente. 
Daí que proponho ver cotidiano não como uma esfera da vida, mas como um 
tempo, como um momento, um presente que, visto em perspectiva, congrega uma 
sucessão de presentes no fluxo contínuo da vida
42
. Associar cotidiano a presente tem 
conseqüências importantes para o modo como encaramos a história. O presente que não 
é mera repetição do passado, mas um campo de restrições e possibilidades em aberto 
para projetos alternativos de futuro. O presente, entendido como o dia de hoje, é como o 
vértice de uma tríade temporal que forma, com passado e futuro, o curso da história. 
Os historiadores tendem a esquecer o dia como unidade temporal da história. 
Não por que o dia seja desinteressante e fugaz, isento de acontecimentos (historiadores 
são, aliás, zelosos em datar acontecimentos num dia!), mas por que dia é tempo presente 
e os historiadores não costumam pensar essa dimensão do tempo – o presente. Via de 
regra, mas os historiadores ignoram em suas reconstruções ou explicações do passado o 
fato de lidarem com presentes. Na verdade, interpretam o passado por meio de futuros 
empregando seu conhecimento do que aconteceu para explicar o que sucedeu, como se 
cada passado visasse a um futuro, sem que um presente fosse o ponto necessário de 
ligação entre ambos. E um ponto no qual o futuro aparece ainda em toda a sua 
indeterminação e incerteza, como sonho, como projeto ou como angústia. Invertendo as 
proposições de H. Levebvre, o cotidiano é o tempo, não da alienação, mas do desejo e 
da angústia, da esperança e do medo. É uma perspectiva em aberto, não um destino 
manifesto, um resultado previsível e previsto. Ignorando essa dimensão da história 
vivida, a História dos historiadores é ainda marcadamente teleológica, seu método pode 
ser classificado como uma teleologia retrospectiva. É preciso inverter a perspectiva para 
 
42
 Fontana, F., La Historia despues del fin de la Historia, op. cit. 
 40 
pensar a eficácia das ações sociais individuais e coletivas. Não devemos considerar essa 
ênfase no presente apenas como um resultado negativo da recente opacidade que o 
futuro nos revelou. Estudar o passado abrindo-se para as possibilidades em jogo a cada 
momento, avaliando os projetos alternativos e em conflitos, sem privilegiar o vencedor, 
ou antes, a resultante indesejada de diferentes projetos, pode revivificar nossa visão do 
passado e fazer pensar sobre nossas possibilidades de projetar futuros no presente. 
Visto por este ângulo, como curtíssima e como longa duração, o cotidiano não 
tem duração, a não ser aquela que o historiador estabelece (voltaremos a esse ponto). 
Mais que um fluxo contínuo de eventos, o cotidiano é uma ponte que liga passado e 
futuro, mas não de modo desordenado e caótico. Ao contrário, o presente só é vivível 
porque é previsível, porque é a reprodução de uma ordem ou dito por outro ângulo, o 
ato e reproduzir essa ordem (ou de não faze-lo). No cotidiano se defrontam, ordem e 
movimento, como uma só unidade, o que equivale a dizer, em termos sociológicos, 
estrutura e a ação, que são as duas faces da permanência e da modificação, do passado e 
do futuro. 
Esses pares de termos são equivalentes, ou quase. O passado aparece no 
presente, na história, sempre na forma de trabalho morto, trabalho acumulado e 
transmitido pelo dia de ontem, que acumulou e recebeu o trabalho de gerações. Na 
história humana, e talvez na biológica e mesmo na física, o tempo é o trabalho de 
transmissão do trabalho acumulado. É assim que o passado parece dominar o presente. 
O passado se apresenta no presente concretamente, como massa inerte, inercial, como 
trabalho morto com o qual cada um e todos precisa se defrontar, produzido no ontem, 
no passado, na verdade em diferentes espessuras de passado, mas que só existe aqui e 
agora, no tempo presente, como uma “armação da vida”. É passado, mas só existe no 
presente, influencia, ou mesmo, domina nossas vidas, mas só existe se for acolhido, 
 41 
aceito, reproduzido e transmitido para o futuro. A semelhança com o conceito de 
trabalho morto, como Marx o via na composição do capital, não é simples coincidência. 
No processo produtivo, o trabalho se corporifica em máquinas, mas também em 
conhecimentos, técnicas, que antecedem o processo de trabalho, mas que necessitam 
dele para ter existência concreta, para ser vivificado pelo trabalho vivo, concreto, atual, 
que o reproduz e o transforma. O paralelismo com o capital não é absurdo, é apenas a 
extensão de uma lógica que lhe é subjacente. Se aceitarmos a premissa de que toda ação 
é trabalho, é intervenção humana na sociedade e na natureza e que o mundo social é 
produzido pelos homens, e não imposto a eles por uma instância externa, metafísica, 
então a sociedade é o resultado desse trabalho, morto porque passado, ativo, porque 
domina as ações atuais, direciona-as, define suas possibilidades. O passado é, assim, a 
própria sociedade, o trabalho morto acumulado na história que cada um e todos 
precisam atualizar, reproduzir ou eventualmente modificar a cada dia segundo um 
determinado projeto de futuro, de amanhã. Mas o que se reproduz, para que se 
transforme? Como dissemos, o trabalho morto que o passado transmite não é uma 
massa caótica, mas uma ordem, que permanece e muda. Que tipo de ordem? Há várias 
respostas possíveis. Aqui, optamos por nos afastar de alguns pressupostos muito 
arraigados e arriscar um novo ângulo de visão. Uma ordem que não separe corpo e 
alma, ou matéria e pensamento, nem classifique a exist6encia social em dimensões 
estanques e quase autônomas: o econômico, o político, o social, o ideal, etc. São vícios 
de pensamento, alguns dos quais remontam aos gregos, e é difícil libertarmos-nos deles. 
A ideia de que o cotidiano é estruturado se impõe pela própria previsibilidade 
do presente. Entenda-se que o termo estrutura é empregado aqui em sentido 
propositalmente fraco e vago. Significa apenas que o trabalho morto que corporifica e 
atualiza o passado apresenta-se organizado, como totalidade sobre a qual se pode agir 
 42 
com previsibilidade. Estrutura e cognoscibilidade estão intimamente ligadas. A ação 
social, que se dá sobre o trabalho morto do passado é previsível porque cognoscível e 
cognoscível porque previsível (refazer). Não há porque separar estruturas mentais e 
materiais. 
A melhor tentativa de pensar essas estruturas é, a meu ver, a de Agnes Heller, 
que citamos acima. Mas Heller pensa, sobretudo, no cotidiano como espaço de ações 
específicas, não como tempo que unifica estrutura e ação. Proponho pensa-las de modo 
diverso, a partir de quatro ângulos incomuns, que não são complementares, nem dão 
conta da totalidade do objeto,

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