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CULTURA DA VIGILÂNCIA: ENVOLVIMENTO, EXPOSIÇÃO E ÉTICA NA MODERNIDADE DIGITAL* David Lyon Está emergindo uma cultura da vigilância sem precedentes. Sua carac- terística-chave é que as pessoas participam ativamente em uma tentativa de regular sua própria vigilância e a vigilância sobre outros. Há crescente evidência de padrões de perspectivas, visões, ou mentalités sobre vigilância, junto com modos intimamente relacionados de iniciar, negociar ou resistir à vigilância. A esses eu chamo imaginários de vigilância e práticas de vigilância, respectivamente. Eles são analiticamente distinguíveis, mas não separáveis. Eles se entrecruzam. Este artigo debate as razões para focar o crescimento da cultura da vigilância enquanto envolvimento; algumas de suas características- -chave, incluindo, especificamente, exposição; e o modo como o conceito de cultura da vigilância expande debates anteriores sobre o Estado de vigilância e a sociedade de vigilância e facilita a discussão sobre ética e cidadania. A expressão cultura da vigilância já apareceu antes, mas o conceito ainda precisa ser tratado como um fenômeno amplo por si só e teorizado como um desenvolvimento distinto de outros, como se dá com Estado de vigilância e so- ciedade de vigilância. William Staples1, por exemplo, usou cultura da vigilância no título de um de seus livros, explorando o que menciona, apropriadamente, como desenvolvimentos “pós-modernos” de nossas interações cotidianas com a vigilância. Cultura da vigilância também aparece no subtítulo de Loving Big * Tradução de Heloísa Cardoso Mourão. Dados da publicação original: “Surveillance culture: engagement, exposure, and ethics in digital modernity”, International Journal of Communication, v. 11, 2017, p. 1-18. (N. E.) 1 W. G. Staples, The culture of surveillance: discipline and social control in the United States (Nova York, St Martin’s Press, 1998). Tecnopolíticas 4p.indd 151 27/11/2018 17:09:21 Para leitura dos organizadores. / Favor não compartilhar. 152 • Tecnopolíticas da vigilância Brother2, de John McGrath, um estudo que indica e discute, de forma útil, algumas das dimensões performativas da vigilância. Ou ainda os insights de Jonathan Finn, particularmente em relação à vigilância por câmeras, sobre o modo como, com a proliferação de câmeras em espaços públicos, a vigilância se tornou uma “forma de ver, uma forma de ser”3. Cada um fornece um bom trampolim para adentrar a cultura da vigilância. Tomemos um exemplo atual de como a cultura da vigilância se relaciona com alguns temas prementes que envolvem vigilância de maneira geral. O tipo de “vigilância sem suspeito”, que é executada por agências de inteligência, como a National Security Agency (NSA) [Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos], para o qual a divulgação de documentos de Edward Snowden chamou a atenção, não pode ser compreendido simplesmente nos termos de conceitos mais antigos como Estado de vigilância ou sociedade de vigilância. Agora estes devem ser complementados por um conceito que se concentre mais nos papéis ativos desempenhados pelos sujeitos da vigilância, primeiramente porque tais papéis fazem diferença nos resultados da vigilância. Proponho que a cultura da vigilância seja exatamente esse conceito e creio que focar aquilo que ocorre dentro de vários aspectos da cultura da vigilância ajude a explicar por que as reações a Snowden – e à vigilância de maneira geral – têm sido tão diversas: de ultraje e mobilização política a uma confiança reconfortante ou mesmo complacência. A cultura da vigilância já se tornava visível na virada do século XXI, especialmente após os ataques do 11 de Setembro nos Estados Unidos e o advento das mídias sociais, e tornou-se ainda mais evidente depois que Snowden copiou e divulgou documentos da NSA em 2013. Os historia- dores talvez consigam discernir os primeiros sinais da cultura da vigilância em fins do século XX, mas ela agora está presente em vasta escala e seus contornos estão ficando claros. O que se pretende dizer com essa expres- são? É o sentido – como Raymond Williams4 poderia ter dito – de que a vigilância se torna parte de todo um modo de vida. Daí meu uso da palavra 2 J. McGrath, Loving Big Brother: surveillance culture and performance space (Londres, Routledge, 2004). 3 J. Finn, “Seeing surveillantly: surveillance as social practice”, em A. Doyle; R. Lippert; D. Lyon (eds.), Eyes everywhere: the global growth of camera surveillance (Londres, Routledge, 2012), p. 78. 4 R. Williams, Culture and society: 1780-1950 (Londres, Chatto and Windus, 1958). Tecnopolíticas 4p.indd 152 27/11/2018 17:09:21 Para leitura dos organizadores. / Favor não compartilhar. Cultura da vigilância • 153 cultura. Não é mais apenas algo externo que se impõe em nossa vida. É algo que os cidadãos comuns aceitam – deliberada e conscientemente ou não –, com que negociam, a que resistem, com que se envolvem e, de maneiras novas, até iniciam e desejam. O que antes era um aspecto institucional da modernidade ou um modo tecnologicamente aperfeiçoado de disciplina ou controle social hoje está internalizado e constitui parte de reflexões diárias sobre como são as coisas e do repertório de práticas cotidianas. A divulgação de documentos de Snowden certamente trouxe alguns debates importantes à frente – questões sobre direitos digitais em relação a corporações e departamentos e agências governamentais, e sobre quem é responsável por fluxos de dados para além das fronteiras, fluxos que têm óbvias consequências para as oportunidades e liberdades5. A divulgação também serviu para revitalizar controvérsias sobre o papel da atividade política online que emergiram amplamente alguns anos atrás, após a assim chamada Primavera Árabe. Em que extensão as novas mídias foram o meio de fomentar uma mudança popular e radical e em que extensão foram ferramentas de repressão e negação a aspirações democráticas? Esses temas não podem ser considerados adequadamente sem primeiro pensarmos mais amplamente sobre cultura da vigilância. Tal cultura, por sua vez, deve ser observada em relação ao impressionante crescimento do que poderia ser justamente chamado de modernidade digital no século XX, mas especialmente no século XXI. Explorar as origens, os portadores e as conse quências da cultura da vigilância é uma forma de contextualizar mais efetiva mente o mundo pósSnowden. A seguir, demonstro que a presença de uma cultura da vigilância levanta novas questões sobre o envolvimento cotidiano com as mídias digitais, questões sobre os aspectos éticos e políticos que apon tam para possibilidades e desafios à cidadania digital. Tanto a vigilância quanto a cidadania estão agora mediadas pelo digital. Qual é o cenário para isso? Cultura da vigilância: o contexto A cultura da vigilância é um produto das condições contemporâneas da modernidade tardia ou, simplesmente, da modernidade digital. A partir 5 C. Kuner, Transborder data flow regulation and data privacy law (Oxford, Oxford University Press, 2014); V. Mosco, To the cloud: big data in a turbulent world (Londres, Routledge, 2014). Tecnopolíticas 4p.indd 153 27/11/2018 18:11:28 Para leitura dos organizadores. / Favor não compartilhar. 154 • Tecnopolíticas da vigilância do fim do século XX, especialmente, os modos de vigilância corporativos e estatais, mediados por tecnologias cada vez mais rápidas e poderosas, inclinaram-se na direção da incorporação da vida cotidiana através de in- fraestruturas de informação e de nossa crescente dependência do digital nas relações mundanas. Assim como todas as mudanças culturais se relacionam, significativamente, com as condições sociais, econômicas e políticas, a cultura da vigilância atual é formada por meio de dependência organizacional, poder político-econômico, conexões