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1 ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL E DESIGUALDADE DE CLASSE Marcelo Medeiros (UnB) Rubens Lacerda (UnB) INTRODUÇÃO Explicar o que determina a desigualdade nas so- ciedades e quais as consequências dessa desigualdade é uma preocupação antiga das Ciências Sociais. Na verdade, ela antecede em muitos séculos o surgimento do que hoje chamamos Sociologia e se manteve no núcleo da discipli- na até os dias de hoje. Todos os sociólogos clássicos, e a maioria dos contemporâneos mais importantes, trataram do assunto. Há vários ângulos possíveis para se abordar desi- gualdades e um deles é a divisão da sociedade em estra- tos sociais, isto é, em grupos que compartilham determi- nadas características sócio-econômicas. Essa divisão é conhecida como estratificação social, termo que é usado com pelo menos três sentidos: para referir-se aos proces- sos que criam desigualdades, aos procedimentos usados para identificar os grupos desiguais e ao campo científico que se dedida ao estudo desses processos. Os temos estratos e classes sociais são, hoje, usa- dos como sinônimos. Do ponto de vista lógico, ambos são categorias criadas com propósitos instrumentais para se analisar a desigualdade em uma sociedade. No passado o termo classe quase sempre recebia uma definição mais restrita e referia-se à posição dos indivíduos na economia enquanto o termo estrato costumava englobar outras dimensões como o status e o prestígio. Classes eram ne- cessariamente hierarquizadas, o que não ocorria com es- tratos. Como são categorias instrumentais, a terminologia usada normalmente decorria do tipo de teoria utilizada pelos analistas. Teorias mais vinculadas a uma base mar- xista em geral preferiam o uso do termo classe ao passo que as de base weberiana tendiam a usar o termo estrato. Com o crescente diálogo entre teorias marxistas e webe- rianas neste campo de estudos, estrato e classe passaram a ser usados de forma intercambiável. As pessoas são desiguais em várias dimensões – por exemplo, idade, religião, nacionalidade – e, a rigor, todas essas constituem desigualdades sociais. Em tese, seria possível classificar, e portanto estratificar, a popu- lação em qualquer uma dessas dimensões. No entanto, o campo de estudos sobre estratificação é bem mais restri- to: seu foco é a riqueza material, mais exatamente, o poder de comando sobre recursos econômicos, uma ex- pressão técnica da área que indica a capacidade de usar esses recursos para se obter vantagens e benefícios. Isso não quer dizer que os estudos sobre estratificação igno- rem as dimensões não econômicas da vida social; ao contrário, diversas pesquisas se dedicam a entender co- mo atributos como origem social, sexo, deficiência, raça, nacionalidade ou educação determinam desigualdades de riqueza ou ainda como essas desigualdades influenciam o funcionamento da sociedade. Em poucas palavras, nos estudos sobre estratificação o enfoque é nas causas e consequências das desigualdades econômicas. Ao buscar explicações para a desigualdade as teo- rias de estratificação acabam tocando alguns dos pilares centrais da organização social e questionando o que a primeira vista pode parecer trivial. É por isso que essas teorias ocupam um papel tão importante na sociologia. Por exemplo, durante muitas décadas a sociologia se con- centrou em esquemas de classe que dividiam a sociedade em capitalistas e trabalhadores. É óbvio que capitalistas são capitalistas porque são proprietários do capital, afinal essa é a própria definição de capitalista. A pergunta es- sencial para os sociólogos preocupados com essas desi- gualdades é o que há na estrutura da sociedade que per- mite que algumas pessoas acumulem e mantenham capi- tal e outras não. Uma explicação possível é que existe uma estrutura jurídica que permite a propriedade privada de empresas, terras e outros meios de produção e o uso dessa propriedade para acumular mais capital, bem como a transferência dessa propriedade dos pais aos filhos. Ocorre que essa explicação promove uma reflexão pro- funda sobre a sociedade e nos faz revisar ideias que nos parecem auto-evidentes: ter a propriedade privada da terra para nós pode parecer tão aceitável quanto era aceitável ter a propriedade de escravos no século XVIII e transmitir essa propriedade aos filhos tão natural quanto transferir o poder político por hereditariedade em uma monarquia. No campo da estratificação social há algumas noções importantes a se estudar. A primeira delas é a de distribuição social, que manifesta a idéia de que a ideia abstrata de desigualdade social pode ser analiticamente tratada como desigualdade na distribuição de algo entre alguém. A segunda é a de esquema de estratificação, que é uma teoria que determina em que estratos a população 2 deve ser dividida, como os indivíduos devem ser classifi- cados neles, como comparar os estratos e como lidar com a desigualdade dentro dos deles. A terceira é a de que as desigualdades podem ser entendidas como absolutas ou relativas. Para colocar de modo fácil de entender, desi- gualdades absolutas podem ser pensadas em termos de diferenças (R$ 100 de diferença, por exemplo) enquanto as relativas em termos de razão (10% de diferença). A quarta é a diferença entre desigualdade e mobilidade, a primeira referindo-se a à forma distribuição social, com posições mais altas e mais baixas, e a segunda como os indivíduos se movem dentro dentro dessa distribuição, subindo ou descendo posições ao longo do tempo. Estas noções são tratadas em maior detalhe adiante. Também se discute a seguir o papel que a desi- gualdade social pode ocupar nas teorias científicas. Uma pesquisa pode enfocar as causas da desigualdade social ou suas consequências. As causas são o principal objeto do campo de estudos sobre estratificação contemporâneo enquanto as consequências, em geral, são objeto das so- ciologias específicas, como a sociologia da arte, religião ou política. Entre as causas das desigualdades estão capi- tais econômicos, humanos e sociais, a estrutura de pro- dução, a relação Estado-indivíduo e discriminação. As consequências se manifestam em padrões eleitorais, con- sumo cultural, conversão religiosa, etc. DESIGUALDADES SOCIAIS DISTRIBUIÇÃO DE ALGO ENTRE ALGUÉM Importante para o estudo da desigualdade social é entender a noção de distribuição social. Toda desigual- dade social pode ser entendida como desigualdade na distribuição de algo entre alguém. Por exemplo, uma ex- pressão abreviada como “desigualdades raciais” geral- mente se refere a uma ideia mais extensa, tal como as desigualdades na distribuição dos salários (o “algo”) entre indivíduos em grupos raciais (o “alguém”); “desigualdades de classe” a uma ideia como desigualdades na distri- buição de educação (o “algo”) entre indivíduos em classes sociais (o “alguém”). No campo da estratificação quase sempre a rique- za material ou alguma coisa diretamente relacionada a ela entra na definição do “algo” ou do “alguém”. Além disso, o “alguém” nos estudos contemporâneos invariavelmente são pessoas, sejam elas reunidas em classes, em áreas geográficas, grupos raciais, religiosos ou qualquer outro critério de agregação. Em outras palavras, a unidade de análise dos estudos de estratificação são os indivíduos. Isto distingue os estudos de estratificação social de outros estudos que comparam a riqueza usando unidades de análise diferentes como, por exemplo, as comparações entre cidades ou países. ESQUEMAS DE ESTRATIFICAÇÃO O ponto de partida dos estudos de estratificação social é a classificação de indivíduos em estratos. A ex- istência de desigualdade nas sociedades é um fato. A clas- sificação dos indivíduos a partir dessas desigualdades, não. O que os pesquisadores fazem é identificar as desi- gualdadesentre indivíduos e classificá-los a partir delas. Essa identificação depende de uma teoria que estabeleça em que estratos a sociedade deve ser dividida e quais in- divíduos devem pertencer a eles. Porque depende de uma teoria a classificação é objeto de debates, motivo pelo qual diversos esquemas de classificação diferentes são usados pelas ciências sociais. OS ESQUEMAS CONTEMPORÂNEOS E SUA ORIGEM O conjunto de regras que permite classificar os indivíduos em diferentes estratos é conhecido como es- quema de estratificação. Embora a maioria dos esquema de estratificação atuais tenha origem em teorias propos- tas na segunda metade do século XIX e início do século XX, hoje nenhum dos principais esquemas em uso é um mero reflexo dessas teorias. Na pesquisa moderna domi- nam abordagens que fundem elementos de teorias mar- xistas e weberianas. Os primeiros esquemas de estratificação usados na sociologia foram derivados da economia política clássi- ca e se baseiam em uma partição de classes marxista, embora a unidades de análise em Marx sejam categorias abstratas como trabalho e capital, as quais, a rigor, não se traduzem automaticamente em posições concretas de trabalhadores e capitalistas. São esquemas em que o eixo de classificação é a capacidade de se apropriar do valor do trabalho. Essa capacidade se expressa na propriedade legal dos meios de produção, sendo os capitalistas os proprietários. Este tipo de esquema guarda relação direta com a teoria de valor marxista, a qual diz que o valor econômico dos bens e serviços é dado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzí-los. Como quem trabalha são os trabalhadores, são eles quem criam o valor das coisas; o que os capitalistas fazem é apropriar- se injustamente desse valor, ou seja, exploram os trabal- hadores. O aspecto substantivo da divisão entre trabalha- dores e capitalistas, portanto, é a separação entre explo- rados e exploradores, crucial para a teoria de justiça mar- xista. A divisão da sociedade entre trabalhadores e capi- talistas é instrumentalmente útil em economias capitalis- tas relativamente simples, mas perde muito de seu poder em economias complexas e estatizadas, onde a divisão do 3 trabalho cria não só gerentes, executivos, mas trabalha- dores por conta-própria e subempregados e o Estado, um proprietário coletivo, produz bens e serviços. Com um aumento ainda maior da complexidade, dividindo trabal- ho entre empresas, a divisão binária perdeu parte de sua utilidade instrumental porque não é capaz de lidar bem com as imensas diferenças existentes tanto dentro da classe dos trabalhadores quanto da classe dos capitalistas e os esquemas de estratificação. A estatização de várias atividades - a educação e a saúde, por exemplo – coloca em cheque a ideia de que todos os trabalhadores são di- retamente explorados por um capitalista. Uma parte das teorias neomarxistas respondeu a isso lançando mão da subdivisão das classes em frações de classe cada vez mais refinadas, baseadas em ocu- pações, ao passo que outra parte seguiu um caminho dis- tinto, usando a renda como um indicador do comando sobre recursos econômicos. A primeira é muito usada nos estudos neomarxistas sobre estrutura ocupacional ao passo que a última é a que subsidia os estudos neomarxis- tas sobre pobreza, riqueza e desigualdade. Para Weber a situação de classe econômica dos indivíduos é determinada por três dimensões: o nível de propriedade dos meios de produção, a capacidade de consumo e a qualificação profissional. A combinação des- sas três dimensões determina aproximadamente as “oportunidades de vida” dos indivíduos. É evidente que quem tem mais propriedade, capacidade de consumo e qualificação está em posição superior a quem não tem, mas Weber nunca se preocupou em determinar em de- talhe como essas três dimensões se articulam. Algumas teorias neoweberianas se dedicaram a isso, usando con- ceitos de status ou prestígio para definir o peso de cada uma das dimensões de modo a classificar pessoas nos estratos. Outras ampliaram as dimensões de modo a ref- letir melhor a noção de oportunidades de vida, incluindo o grau de segurança ou estabilidade econômica e a possi- bilidade de prosperidade para determinar a posição de classe dos indivíduos. Durante décadas os esquemas de estratificação social usaram o que se chama classificação por títulos ocupacionais. Este procedimento consiste em perguntar aos indivíduos qual é sua profissão e, a partir da resposta, classificá-los. Este foi e ainda é um procedimento muito usado para o estudo da mobilidade social entre gerações de uma mesma família, já que seria pouco realista esperar de um indivíduo que soubesse, por exemplo, a renda de sua família a uma geração atrás. Este, porém, é um pro- cedimento que enfrenta algumas dificuldades. Como clas- sificar em um título ocupacional único um professor de economia em uma universidade pública? Professor, eco- nomista ou servidor público? Por essas e outras razões a classificação por títulos ocupacionais vem lentamente sendo substituída por classificações baseadas em renda ou outras dimensões quando isso é viável. Um exemplo dessa substituição é o aumento da quantidade de estudos sobre pobreza na sociologia e a emergência dos estudos sobre riqueza. Usando linhas de pobreza e riqueza essas pesquisas estratificam a popu- lação de acordo com seu nível de renda familiar per capi- ta, ou variações dessa renda. O uso da renda tem uma série de vantagens, dentre elas a existência de um amplo instrumental analítico proveniente da estatística à dispo- sição dos sociólogos, sem deixar de mencionar também o debate com as pesquisas correlatas sendo realizadas por economistas. Para entender melhor as implicações de se optar melhor por um ou outro esquema de estratificação vale à pena analisar seus componentes em maior detalhe. COMPONENTES DE UM ESQUEMA DE ESTRATIFI- CAÇÃO A opção por um esquema de estratificação é uma decisão instrumental, isto é, ela trata a estratificação co- mo uma ferramenta para algo e, como tal, o esquema de estratificação não se justifica por si mesmo, mas pelos propósitos a que se destina. A definição de um esquema de estratificação depende de algumas decisões, entre elas i.qual é o eixo de classificação (o “algo”), ii.se os estratos são nominais, ordinais ou cardinais, iii.qual é a unidade de análise da estratificação (o “alguém”), iv.como serão defi- nidas as fronteiras entre estratos e v.como lidar com a desigualdade intra-estratos. O eixo ou eixos de classificação determinam que tipo de desigualdade será analisada: se forem ocupações profissionais, desigualdades ocupacionais. Não se trata apenas de selecionar um eixo qualquer e sim um que atenda a dois requisitos preliminares: tenha significado substantivo e seja observável empiricamente. Por exem- plo, desigualdades ocupacionais não são analisadas ape- nas para se verificar que as pessoas estão desigualmente distribuídas em categorias ocupacionais, mas porque se acredita que ocupações sejam um indicador mais geral da situação econômica das pessoas. Dimensões de difícil ob- servação, tais como “nível de inclusão social” dificilmente constituem um bom eixo de classificação. Uma vez escolhida a dimensão do eixo (ex: ocu- pação, educação, renda) cabe decidir se o esquema terá natureza nominal, ordinal ou cardinal. Um esquema no- minal é aquele que simplesmente divide categorias de modo não-hierárquico, isto é, sem determinar se alguma delas é superior ou inferior a outras. Por exemplo, uma classificação ocupacional nominal distingue entre sociólo- gos e biólogos, sem determinar qual das duas ocupações é superior. Esquemas deste tipo são usados em alguns 4 estudos sobre mobilidade social, masencontram pouco espaço nas outras áreas da estratificação, que tendem a preferir esquemas hierárquicos. Um esquema ordinal é hierárquico, determina superioridade nas posições, mas não determina o quanto uma categoria é superior a outra. Em outras palavras, de- termina uma ordem, mas não a distância entre as pessoas nessa ordem. Por exemplo, o esquema binário trabalha- dores-capitalistas reconhece que os capitalistas estão em posição superior aos trabalhadores, mas não diz quanto superior. Muitos esquemas ocupacionais hierarquizam ocupações assumindo, por exemplo, que gerentes são superiores a trabalhadores manuais. Já um esquema car- dinal não só é hierárquico e ordinal, como determina a distância entre indivíduos. Um exemplo simples de cardi- nalidade é a determinada na estratificação por renda: as rendas de R$ 2000 são duas vezes superiores às rendas de R$ 1000. A escolha da unidade de análise de um esquema de estratificação parece ser trivial, mas não é. Suponha- mos, por exemplo, um esquema bastante simples de duas categorias, trabalhadores e capitalistas. As pessoas com trabalho pago e que não possuem a propriedade dos meios de produção são trabalhadores, as que possuem os meios de produção são capitalistas. E os trabalhadores por conta-própria? E as donas-de-casa? É sempre possível criar regras para lidar com isso, como “os membros da família de uma capitalista são capitalistas”, mas como classificar as crianças de uma família em que a dona da empresa capitalista casou-se com o gerente trabalhador? Em um estudo sobre feminização da pobreza, o que fazer com os homens da família? Em uma pesquisa sobre desi- gualdades raciais de renda, como lidar com as famílias multirraciais? Como se pode notar, a decisão sobre o “al- guém” da distribuição não é tão simples como podem parecer à primeira vista. Outra decisão importante nos esquemas de estra- tificação refere-se à definição das fronteiras entre os es- tratos. Uma linha de pobreza é um exemplo de fronteira e o que essa ou outra linha deve ser capaz de definir é a partir de que ponto uma pessoa pode ser considerada pobre, excluída, oprimida ou rica, incluída, opressora. A escolha das fronteiras tem implicações para a pesquisa e também políticas. Uma linha de pobreza muito baixa leva à conclusão de que a pobreza é um fenômeno marginal na sociedade e pode ser combatida por medidas paliati- vas; uma linha muito alta leva a concluir que na mesma sociedade a pobreza é endêmica e que uma mudança rad- ical na estrutura social é necessária para se combatê-la. Finalmente, um esquema de estratificação tem que lidar com a desigualdade intra-estratos. Um estrato é um grupo e se há desigualdades gerais na sociedade não há porque não haver desigualdades também dentro desse grupo. Entre os trabalhadores, por exemplo, há os peque- nos agricultores e os altos funcionários de empresas. En- tre os professores há os da educação básica, com me- nores salários e qualificação, e os da educação superior, mais qualificados e com maiores rendimentos. Em geral, quanto maior a desigualdade dentro dos estratos, pior o esquema de estratificação, mas isto nnem sempre é ver- dade. Como os esquemas de estratificação em uso hoje em dia têm respondido a esses requisitos? Hoje dominam na sociologia duas abordagens. A primeira, de base ocu- pacional, busca usar um número grande de categorias formadas a partir de informações sobre os títulos ocupa- cionais principais das pessoas, isto é, sobre o nome de sua profissão ou cargo mais importante, no caso de duas ou mais ocupações. Por um lado tem a vantagem de classi- ficá-las em categorias relativamente estáveis no tempo, algo altamente desejável nos estudos sobre mobilidade social, e bem fundada nas teorias sociológicas neowebe- rianas mas, por outro, a desvantagem de só classificar bem trabalhadores, lidar mal com as variações intra- ocupacionais e no máximo permitir classificações ordinais. A segunda abordagem classifica indivíduos segundo seu nível de renda familiar, cujas vantagens são possibilitar a classificação de toda a população, inclusive crianças e aposentados, em um esquema cardinal, a disponibilidade de um instrumental analítico bem consolidado e uma ra- zoável adequação às teorias neomarxistas, mas com a forte desvantagem da instabilidade de longo prazo da renda das pessoas e da dificuldade em se obter infor- mações sobre os níveis de renda de gerações passadas. AS CAUSAS DA DESIGUALDADE DE CLASSE Nas ciências sociais as posições de classe são tra- tadas ora como causa, ora como efeito de outros fenômenos. Pesquisas que avaliam, por exemplo, em que medida a pobreza é um determinante da mortalidade in- fantil tratam posição de classe como causa da mortali- dade; as que avaliam o quanto o nível de vida de uma pessoa é determinado pela discriminação racial a tratam como efeito. Nesta seção nos interessa tratar a desigual- dade de classe como um efeito, isto é, buscar os determi- nantes dessa desigualdade. Como em ciência causas e efeitos são imputações de natureza teórica, teorias diversas competem entre si para explicar um fenômeno. Porque a estratificação social tem sido objeto de pesquisa há muitos anos, progressi- vamente as teorias foram se refinando na busca de expli- cações cada vez mais completas para a desigualdade de classes. Ainda há, hoje, disputas dentro do campo científi- 5 co, mas mesmo nelas existe um certo consenso de que uma explicação abrangente da desigualdade envolve, pelo menos, as seguintes dimensões: capital econômico, quali- ficação para o trabalho (capital humano), domínio de elementos da cultura que facilitam relações em um grupo (capital cultural), redes de relações sociais (capital social), estrutura de produção (demanda por trabalho determi- nada pela estrutura ocupacional), relação com o Estado (políticas sociais, tributação, etc.) e discriminação. A dis- puta entre teorias, hoje, não é sobre quais são as causas da desigualdade de classes, mas sobre o peso a atribuir a cada uma dessas causas e é por isso que os estudos quan- titativos se tornaram tão importantes na estratificação social. As primeiras tentativas de explicar a estratificação da sociedade em classes analisaram as diferenças naturais de habilidades entre indivíduos e concluíram que essas diferenças não seriam suficientes para explicar porque as sociedades são tão desiguais. A consequência lógica dessa conclusão é que a explicação da desigualdade deve ser proposta pelas ciências sociais: se não são resultado das diferenças naturais entre os indivíduos então as desigual- dades devem ter origem social. Este argumento é antigo e pode ser encontrado, por exemplo, na sociologia árabe da idade média, mas a sociologia comteporânea convencio- nou o Discurso Sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens, de Jean-Jaques Russeau, como o marco inicial dessa linha argumentativa. O movimento de deslocar a explicação da desi- gualdade da natureza para a sociedade pode parecer óbvio hoje, mas foi de suma importância há dois séculos, quando se acreditava, por exemplo, que a natureza dos negros os fazia intrinsecamente inferiores aos brancos, e mesmo há poucas décadas atrás, quando se julgava que hierarquia entre homens e mulheres no mercado de tra- balho era determinada pelas diferenças naturais entre os sexos. Este movimento foi levado aos limites, com teorias que rejeitaram completamente qualquer papel da nature- za na sociedade, em particular na separação entre natu- reza e cultura. O esforço em separar completamente natureza e sociedade perdeu muito de seu sentido original e hoje não é mais uma grande preocupação da sociologia da es- tratificação social, que tende a ver o assunto sob a ótica da interação contínua entre natureza e sociedade.Por um lado se reconhece que características corporais dos in- divíduos são socialmente determinadas – subnutrição de- corrente da pobreza ou desvantagem cognitiva causado por ausência de escolarização, por exemplo – e, por out- ro, que atributos corporais afetam como as pessoas vivem na sociedade, como mostram os estudos sobre defi- ciência. Aliás, é principalmente nos estudos sobre defi- ciência que o enfoque na interação tem ido mais além para mostrar que desigualdades naturais podem ser anu- ladas ou revertidas por meio de ajustes sociais: crianças em cadeiras de rodas experimentam uma desvantagem corporal que não precisa ser traduzida automaticamente em desvantagem social se as escolas forem ajustadas ar- quitetonicamente para elas, por exemplo. Analogamente é possível pensar em ajustes equivalentes na organização da vida social para trabalhadores e trabalhadoras de famílias com crianças, etc. O eixo teórico dos modelos de interação é a noção de que a manifestação social das desigualdades naturais é, em si, um fenômeno social. O que esses mod- elos fazem é reconhecer que os indivíduos são desiguais em atributos naturais, mas que esses atributos só se tor- nam fonte relevante de desigualdade social quando inte- ragem com uma organização social que favorece a desi- gualdade. Em outras palavras, o argumento central das explicações que adotam a ótica da interação é que desi- gualdades naturais só se tornam desigualdades sociais quando a organização social não for capaz de acomodá- las. O que importa na ótica da interação não é saber quais são os determinantes naturais da desigualdade social, mas sim o que há de específico na organização da socie- dade que permite que diferenças naturais se expressem na forma de desigualdades sociais. Sejam as classes identificadas por esquemas de estratificação baseados em ocupações ou baseados em renda, hoje as explicações sociais para as desigualdades de classe enfatizam três tipos complementares de capital: econômico, humano, cultural e social. Capital são recur- sos, materiais ou não, que permitem a obtenção de rique- zas. A origem etimológica do termo é capita, cabeça, em referência a cabeças de gado, uma riqueza que se auto- reproduz. Capital econômico refere-se tanto a ativos finan- ceiros que rendem riqueza na forma de juros, como inves- timentos e poupanças quanto a capital produtivo, como empresas ou terra. Nas teorias modernas não se trata apenas de saber se as pessoas têm ou não capital e sim quanto capital elas têm. Quanto maior a quantidade de capital de uma pessoa (ou sua família) maior a chance dessa pessoa ocupar uma posição alta na hierarquia so- cial. Analisar a quantidade de capital é algo consistente com a estrutura das teorias da sociologia clássica e seu uso atual se baseia em um refinamento ainda maior do que o obtido por essas teorias. Uma divisão baseada ape- nas na posse ou não do capital econômico está impossibi- litada de diferenciar, por exemplo, os capitalistas mais ricos dos menos ricos, algo que é importante para os es- tudos de estratificação. Os estudos mais recentes respon- 6 dem a isso estratificando a população em função de sua quantidade de capital. Todavia, mesmo depois de seu refinamento as teorias de quantidade de capital econômico se mostraram insuficientes para explicar a desigualdade na sociedade. Entre os trabalhadores que não tinham capital, por exem- plo, elas não conseguiam explicar porque alguns tinham renda maiores que outros. As teorias de qualificação pro- fissional ou capital humano surgiram para complementar a lacuna. Trabalhadores com maior qualificação (que têm mais capital humano) conseguem ocupar os postos de trabalho que oferecem maior remuneração ou conse- guem ser mais produtivos em suas atividades. A qualifi- cação profissional, portanto, é vista como um ativo pro- dutivo. Como a educação formal está diretamente asso- ciada à qualificação profissional, trabalhadores educados tendem a ter maiores salários. As versões mais novas des- sas teorias dão atenção tanto à qualificação absoluta dos trabalhadores como também a sua qualificação relativa, isto é, em comparação à qualificação com os demais tra- balhadores, quando todos competem por postos no mesmo mercado de trabalho. As teorias de capital humano, porém, não pos- suíam os instrumentos necessários para explicar porque havia desigualdade mesmo entre trabalhadores com os mesmos níveis de qualificação e, para complementá-las, surgiram as teorias de capital social e capital cultural. Capital social é uma noção não muito definida, mas que nos estudos sobre estratificação diz respeito a todas as vantagens que as pessoas têm porque ocupam posições melhores nas redes de relação social. Elas se propõem a explicar porque um advogado filho de advo- gados tem melhores oportunidades de trabalho que um advogado filho de agricultores, porque trabalhadores sin- dicalizados conseguem melhores salários que os não or- ganizados, porque membros de certas comunidades reli- giosas têm desvantagens em suas vidas profissionais ou porque as classes mais ricas insistem tanto em que seus filhos estudem em escolas de elite, mesmo quando a qua- lidade do ensino dessas escolas não é tão diferente das demais. Por sua vez, capital cultural, no estudo dos de- terminantes da estratificação de classes, refere-se um conjunto amplo de conhecimentos que, embora não se destinem à produção econômica, auferem vantagens econômicas a quem o domina. Por exemplo, dominar re- gras de etiqueta à mesa ou conhecimentos sobre escultu- ra artística pode não aumentar a produtividade de, diga- mos, um engenheiro, mas possívelmente coloca essa pes- soa em vantagem sobre pessoas com qualificação equiva- lente no momento de disputar por um cargo elevado na empresa. O capital cultural afeta a posição das pessoas na estrutura de classes quando os propicia a identificação entre os competidores por uma posição e os seleciona- dores para essa posição. Estes selecionadores não são apenas as elites que contratam as pessoas mas, também, massas que julgam que algumas pessoas possuem maior legitimidade para ocupar certas posições do que outras. Não se trata, portanto, apenas de identificação entre pares e sim da legitimação de hierarquias de classe em função de hierarquias culturais. Ainda que cubram uma parte importante dos de- terminantes da desigualdade as teorias de capital econômico, humano, social e cultural possuem lacunas. Elas não conseguem explicar bem porque um motorista na Bélgica ganha muito mais do que um motorista no Congo. Cobrindo esta lacuna estão as teorias da estrutura de produção, aquelas que entendem que parte da de- manda por trabalho, e portanto da desigualdade entre trabalhadores, é determinada pela tecnologia de pro- dução, pela estrutura econômica, pelos regimes de regu- lação do mercado de trabalho e pelas características das demais ocupações da sociedade. Algumas dessas teorias são conhecidas como teo- rias de segmentação do mercado de trabalho e tentam entender como a composição de certos segmentos do mercado de trabalho afeta desigualdades ao fazer com que as copeiras da grande empresa de computação ten- dam a ganhar mais que as copeiras da pequena firma de contabilidade, ainda que as tarefas cumpridas por ambas na copa sejam essencialmente as mesmas. Teorias deste tipo também são usadas para explicar porque fun- cionários públicos têm uma série de vantagens trabalhis- tas que seus companheiros do setor privado não têm. As teorias de discriminação surgem argumentan- do que mesmo quando os capitais individuais e a estrutu- ra produtiva são considerados há desigualdades no mer- cado de trabalho afetando sistematicamente certos gru- pos sociais como as mulheres, os negros, ou os certosim- igrantes. Essas desigualdades tem origem na discrimi- nação e resultam em dificuldades em ocupar os melhores postos de trabalho, em evoluir dentro de uma carreira profissional ou simplesmente em receber menores remu- nerações em uma mesma ocupação. Há discriminação fora do mercado de trabalho que também afeta a desi- gualdade de classes, como é o caso da discriminação nas escolas, que reduz o capital humano dos discriminados. Há certas expectativas e preferências discriminatórias na sociedade que reforçam desigualdades: conduzir veículos é profissão de homem, limpeza doméstica, de mulher, prefere-se recepcionistas brancas, mas negras podem ser faxineiras, e assim por diante. 7 Até este ponto as teorias mencionadas buscam uma explicação das desigualdades existentes no mercado de trabalho, mas não conseguem explicar bem desigual- dades de classe em outras esferas da vida das pessoas que afeta sua riqueza. Ocorre que em sociedades onde existem sistemas consolidados de proteção e seguridade social, muito da desigualdade pode ser explicado pela forma como o Estado se relaciona com os indivíduos pro- vendo bens e serviços, em particular o sistema previden- ciário e a assistência social. Além disso, o Estado não é apenas um distribuidor de recursos mas também um cole- tor de recursos por meio do sistema tributário. Uma ex- plicação abrangente da desigualdade, portanto, deve con- siderar também a relação que o Estado estabelece com os indivíduos e como isso afeta os fluxos de riqueza. Os efeitos das transferências do Estado para a população, e vice-versa, sobre a igualdade podem ser classificadas em três categorias, progressivas, regressivas e neutras. Uma tributação que recolhe mais de quem é mais rico é chamada de progressiva, pois faz a distribuição da riqueza progredir na direção da igualdade; por contra- posição, a tributação que recolhe mais dos mais pobres, regressiva e a que recolhe igualmente de todos, neutra. Como o critério é a obtenção da igualdade, com os gastos ocorre o oposto: uma transferência que beneficia os mais pobres, progressiva, e assim sucessivamente. Assim, tri- butos que incidem igualmente sobre todos, como os im- postos sobre alimentos, são neutros; tributos com alíquo- tas crescentes, como o imposto de renda, são progressi- vos; transferências que refletem contribiuições passadas, como a previdência, regressivas; transferências que visam beneficiar os que tem menos, como a assistência social, progressivas. Como se pode ver, há uma série de teorias pro- pondo dimensões a considerar quando se busca explicar a desigualdade de classes. Em termos gerais essas teorias complementam umas às outras. A disputa entre elas, hoje, não é sobre quais são as causas da desigualdade, mas sobre o peso a atribuir a cada uma dessas causas e é por isso que os estudos quantitativos se tornaram tão importantes na estratificação social. É evidente que nenhum fenômeno deve ter uma causa única, bem como um único efeito. A estratificação social não é exceção e exige uma explicação multidimen- sional. Mas a multidimensionalidade, que é um complica- dor em qualquer teoria científica, traz algumas dificul- dades para os estudos de estratificação. A mais impor- tante delas é conhecida como problema da endogenei- dade. Ele ocorre quando as causas não são devidamente separadas de seus efeitos. Se a explicação para a desi- gualdade é endógena ao esquema de estratificação, toda desigualdade observada na sociedade estará necessaria- mente relacionada a ela. É como se a causa estivesse con- tida na própria definição do efeito. Por exemplo, se as classes trabalhadores e capitalistas são definidas em função da propriedade do capital, é óbvio que a proprie- dade do capital não pode ser proposta como uma expli- cação teórica para a desigualdade entre as classes: dizer que os capitalistas são diferentes dos trabalhadores por- que possuem capital não acrescenta nada em termos científicos, é apenas uma consequência da definição da classe capitalista. Os riscos de endogneidade são maiores em es- quemas de estratificação multidimensionais e devido a esse problema muitos deles foram abandonados. Como regra geral, em um estudo empírico, para dar conta de como várias dimensões causam algo, este algo deve ser relativamente simples e claramente definido. A endoge- neidade ocorre quando uma mesma dimensão está pre- sente no lado das causas (determinantes) e dos efeitos (esquema de estratificação). Se uma dimensão entra no esquema de estratificação, deve automaticamente sair da lista de determinantes. Por exemplo, idade e educação podem ser usadas para explicar desigualdades observadas em um esquema de estratificação por renda, mas apenas idade poderia ser usada se o esquema fosse multidimen- sional, combinando renda e educação. A solução é manter a multidimensionalidade nas causas da desigualdade e evitá-la nos efeitos (no esquema de estratificação), tal como fazem os esquemas baseados em renda e ocu- pação. AS CONSEQUÊNCIAS DA DESIGUALDADE DE CLASSE O campo de estudos sobre estratificação social se concentra muito mais nas causas da desigualdade de classe do que em suas consequências. Geralmente a preocupação com as consequências da desigualdade é dos ramos específicos da sociologia ou outros campos da ciência. Saber, por exemplo, se a pobreza induz ou não comportamentos criminosos é antes um objeto da soci- ologia da violência que da estratificação social. Ainda as- sim, uma parte dos estudos de estratificação se dedica a explicar como a desigualdade se relaciona com outros fenômenos. Um exemplo são estudos relacionando desigual- dade e pobreza. A desigualdade produz pobreza? Essa foi e é uma pergunta importante, para a qual há mais de uma resposta possível. A primeira delas é que desigualdade e pobreza são apenas manifestações diferentes de outros fenômenos, logo uma não pode ser causa da outra. De fato, quando se pensa em uma distribuição de renda não parece razoável achar que quanto maior a desigualdade, maior a pobreza: se um garimpeiro pobre encontra uma Roberval Highlight Roberval Sticky Note mencionar também o exemplo da saúde. 8 mina de diamantes e se torna bilionário, a desigualdade aumenta, mas a pobreza cai. Por outro lado, se a desi- gualdade presente afeta as gerações futuras, determina quais são as oportunidades trabalho e afeta políticas públicas, a desigualdade está, de certo modo, causando pobreza. Logo, a resposta para a pergunta depende um pouco da estrutura de causalidade que se supõe por trás da relação entre desigualdade e pobreza. Mas estas são ainda preocupações internas do campo de estudos da estratificação social. Teorias muito mais ambiciosas tentaram entender como a desigualdade de classes afeta o funcionamento de esferas completa- mente distintas da vida social. Essas teorias hoje podem ser agrupadas em duas categorias, a neo-marxista e a neo-weberiana. O neo-marxismo se apóia em alguns pilares das teorias marxistas, dentre eles uma proeminência da desi- gualdade entre classes na explicação da maioria dos fenômenos sociais. Seguindo a ideia de que o conflito de classes, isto é, a disputa pelos resultados da produção econômica, é o motor da história, as teorias neo- marxistas utilizam a estratificação social para explicar vários fenômenos, desde a organização do Estado ao con- sumo de arte. Na estratificação o neo-marxismo quase sempre incorpora métodos científicos contemporâneos a suas análises – inclusive as técnicas quantitativas, trata a teoria do valor trabalho não como uma teoria científica de valor, mas como uma teoria de justiça distributiva e assume o indivíduo como sua unidade de análise. As teorias neo-weberianas atribuem às desigual- dades de classe umpapel muito menos relevante e, por isso, são usadas com muito mais frequência para explicar as causas das desigualdades que suas consequências. Elas não subestimam sua importância, mas não dão a elas primazia na explicação dos fenômenos sociais. Por exem- plo, enquanto para o neo-marxismo os conflitos de classe fazem parte do núcleo da explicação dos fenômenos políticos, para os neo-weberianos esses conflitos são uma das diversas variáveis que explicam a dinâmica política. Teorias neo-weberianas são muito preocupadas com a neutralidade de valores dos cientistas em um campo ob- viamente polêmico que é a estratificação social e, assim como as neo-marxistas, são extremamente rigorosas em termos de método e muitas lançam mão de técnicas quantitativas de análise. É difícil sintetizar em poucas palavras as dife- renças existentes em um campo de pesquisa extenso, mas colocando de modo simplificado, o que distingue a forma pela qual teorias neo-weberianas e neo-marxistas anali- sam as consequências das desigualdades de classe é que nas primeiras vários fenômenos considerados causas das desigualdade de classe, como organização política e reli- gião são, para os neo-marxistas, consequências dessa de- sigualdade. O fato é que na sociologia da estratifi- cação social contemporânea as divisões entre marxistas e weberianos, que no passado foram substantivas, hoje perderam muito de seu espaço. A maior parte das teorias atuais combina elementos das duas tradições. O uso das desigualdades de classe como expli- cação de fenômenos sociais se baseia em duas ideias implícitas. A primeira, de que os fenômenos econômicos explicam uma parte importante dos fenômenos sociais. A segunda, de que a posição das pessoas na estrutura social define como elas agem na sociedade. Ambas ideias foram criticadas nas ciências sociais. A maior parte das críticas busca apenas reduzir o peso da economia e da estrutura social na explicação das ações das pessoas, mas algumas mais radicais consideram que "as classes estão mortas", isto é, que a desigualdade de classes não é capaz de expli- car o funcionamento da sociedade. A crítica à primeira ideia é relativamente simples, mas ainda assim importante. Seu argumento é de que os fenômenos econômicos explicam apenas uma fração dos fenômenos sociais, Na explicação do que acontece em esferas não econômicas da vida – a educação, a religião, a política e a arte são sempre bons exemplos - as classes teriam seu papel, mas ele seria secundário. A segunda crítica é um pouco mais sofisticada e consiste em argu- mentar que não é a posição das pessoas na estrutura so- cial, mas a ação coletiva o que realmente explica as carac- terísticas e a dinâmica da sociedade. Para colocar em poucas palavras esta crítica, baseada na distinção entre posição e ação, não importa quem as pessoas são, mas o que elas fazem. A base desta segunda crítica é algo crucial para a teoria sociológica comtemporânea: a noção de que uma parte das ações dos indivíduos é determinada por sua posição na sociedade - filhos de ricos costumam recebem boa educação, evangélicos tendem a votar em evangéli- cos, brancos evitam casar-se com negros - mas outra parte é fruto da liberdade que as pessoas têm para agir fora de padrões. Pertencer a um grupo social - seja ele uma classe ou qualquer outro - não implica agir de modo pré-determinado dentro desse grupo, logo o que importa para a sociologia não é o grupo a que as pessoas perten- cem, mas o perfil de suas ações. Nas sub-áreas específicas da sociologia essas críti- cas foram incorporadas de diversas maneiras, em geral reduzindo a importância das classes na explicação de fenômenos. Dentro do campo dos estudos de estratifi- cação a incorporação se deu por dois caminhos básicos. Um foi a tentativa de incorporar elementos não econômi- 9 cos nos esquemas de estratificação: por exemplo, criar estratos levando também em conta atributos culturais ou simbólicos das pessoas. O outro foi o reconhecimento da diferença entre um estrato ou grupo abstrato formado a partir de uma regra de classificação - a "classe em si" - e um grupo que age como uma coletividade homogênea - a "classe para si". A opção pela incorporação de elementos não econômicos na estratificação encontra sérios problemas de endogeneidade, pois se os estratos (ou classes, pois são sinônimos) são criados levando-se em conta a cultura, é redundante, e portanto incorreto, explicar a cultura a partir da estratificação social. Por outro lado, do reconhe- cimento de que pertencer a uma classe não implica agir em conjunto com o resto da classe decorre logicamente que os esquemas de estratificação são um instrumento analítico limitado para se explicar fenômenos sociais. É talvez por esses motivos que o campo de estudos sobre estratificação social hoje se concentre muito mais em ex- plicar o que causa a desigualdade do que em tentar expli- car como a desigualdade causa outros fenômenos sociais. Desigualdades relativas, absolutas e mobilidade social De posse de um panorama geral da sociologia da estratificação social, cabe analisar em mais profundidade um elemento importante dessa sociologia, a noção de desigualdade, bem como uma noção correlata, a de mobi- lidade. Se os indivíduos não são iguais há, evidentemente, desigualdade entre eles. Porém, desigualdade é uma ideia menos óbvia do que pode parecer à primeira vista. Desi- gualdades podem ser tratadas como relativas ou absolu- tas e, a depender da opção, os resultados de uma análise podem ser radicalmente diferentes. Isso é mais fácil de se entender quando se pensa em desigualdades na distri- buição de renda entre as pessoas. Os 30% mais pobres da Suíça estão na mesma posição relativa dos 30% mais po- bres do Zaire, mas é claro que em termos absolutos eles têm renda bastante diferentes. A metade mais rica da população brasileira tem, hoje, uma renda absoluta muito maior do que tinha a metade mais rica em 1960. O que realmente importa, as desigualdades abso- lutas ou as relativas? Na verdade, ambas, e cada estudo decide conforme seus objetivos. Mas é importante ter em mente a diferença entre os tipos de desigualdade e suas implicações quando um esquema de estratificação é usa- do. Por exemplo, é fácil imaginar que os pequenos capita- listas de 1910 eram mais ricos que a elite dos trabalha- dores de 1910, mas será que os pequenos capitalistas de 1910 seriam mais ricos que elite dos trabalhadores de 2010? Uma parte dos estudos sobre estratificação, preo- cupada com a mensuração da desigualdade, geralmente combina os dois enfoques, analisando como se compor- tam os dois tipos de desigualdade, absolutas e relativas. É possível ir além e entender que a situação abso- luta dos indivíduos pode mudar sem que mude sua po- sição relativa ou ainda que a desigualdade relativa mude embora a situação absoluta permaneça a mesma. Isso ocorre porque a situação de um indivíduo ou grupo e a desigualdade entre indivíduos ou grupos são coisas distin- tas. Por exemplo, quando há um incêndio na casa de um rico a desigualdade relativa e a absoluta caem, mas a si- tuação absoluta dos pobres permanece a mesma. Ou ain- da, se a economia cresce por igual, a desigualdade relati- va permanece a mesma embora o nível de pobreza dimi- nua. O que houve durante o milagre econômico brasileiro, por sinal, foi um aumento da desigualdade ocorrendo si- multaneamente a uma redução da pobreza absoluta. O conceito de mobilidade social também é muito importante nos estudos de estratificação, em particular para se estudar a distribuição de oportunidades de uma sociedade. Entre outras coisas ele dá aos estudos de desi- gualdade uma forte dimensão temporal. Para entender isso, pense em uma sociedade hipotética de apenas duas pessoas. Uma sempreé escrava e a outra sempre é rain- ha. Ela é diferente de uma sociedade onde a cada dia as pessoas se alternam, um dia sendo escrava e no outro sendo rainha? A diferença entre as duas é a mobilidade social. O conceito de mobilidade social refere-se ao mo- vimento dentro da hierarquia social. Quanto mais livre os indivíduos forem para transitar dentro da hierarquia so- cial e quanto mais longe nessa hierarquia puderem ir, maior a mobilidade social. Em geral, quanto maior for a desigualdade social, mais importante é o estudo da mobi- lidade, afinal, em uma sociedade sem qualquer desigual- dade simplesmente não pode haver mobilidade. Mudanças nos níveis de desigualdade social e mobilidade são coisas distintas. A mobilidade diz respeito à possibilidade de um indivíduo mover-se dentro da dis- tribuição desigual, seja qual for o nível de desigualdade. É fácil imaginar uma sociedade em que o nível de desigual- dade permanece o mesmo ao longo dos anos, mas a mo- bilidade aumenta. É por este motivo que uma compa- ração completa entre sociedades ou de uma mesma so- ciedade em momentos distintos do tempo – o que na prática é o mesmo – requer uma análise da situação abso- luta e dos níveis de desigualdade e de mobilidade dos in- divíduos. VALE À PENA RELEMBRAR: O termo estratificação social é usado para referir- se à classificação dos indivíduos em estratos, aos processos que criam desigualdades sociais, e ao campo de pesquisa que estuda esses processos. 10 O foco das pesquisas sobre estratificação social é, em primeiro lugar, nas causas da desigualdades econômicas e, em segundo lugar, nas conse- quências dessa desigualdade. Estratos e classes são, hoje, sinônimos. Esquemas de estratificação são regras que dividem a popu- lação em estratos ou classes levando em conta uma distribuição social, isto é, a distribuição de algo entre alguém. Um esquema exige a defi- nição do eixo de classificação (o algo), da unidade de análise (o alguém), das fronteiras dos estratos, da hierarquia entre eles (nominais, ordinais ou cardinais), de um procedimento para lidar com a desigualdade dentro dos estratos. Um esquema de estratificação é algo muito im- portante para pesquisa. O esquema utilizado de- termina o fenômeno que está sendo obsevado, o que pode explicá-lo e o que pode explicar outros fenômenos. Na sociologia contemporânea pre- dominam estratificações por renda ou por títulos ocupacionais. Como estratificações multidimen- sionais são ameaçadas por riscos de endogenei- dade, que reduzem seu poder explicativo, muitos esquemas multidimensionais foram tentados e abandonados. Para os estudos da desigualdade social importam tanto as desigualdades absolutas quanto as rela- tivas. Desigualdade social é uma noção diferente de mobilidade social. A primeira refere-se a dife- renças entre indivíduos enquanto a última à pos- sibilidade dos indivíduos mudarem de nível ou trocarem de posição dentro da estrutura social. As causas da desigualdade são o principal objeto do campo de estudos sobre estratificação con- temporâneo. A consequências geralmente são objeto das sociologias específicas, como a soci- ologia da arte, da educação, da religião e da política. Entre as causas mais estudadas das desi- gualdades estão capitais econômicos, humanos e sociais, a estrutura de produção, a relação Esta- do-indivíduo e discriminação. Consequências da desigualdade que já foram objeto de estudo são desempenho educacional, comportamento elei- toral, consumo cultural e conversão religiosa.
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