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intuições genuínas sobre a verdade das coisas. De acordo com Aquino, refreamos esse processo porque todo o nosso conhecimento advém do senso de experiência e do raciocínio discursivo. Mas temos em comum com os anjos a experiência da verdade em si mesma. Também temos a responsabilidade de criar, de originar uma compre ensão mais explícita do mundo. Esta é uma paixão dentro de nós. É por isso que gostamos da verdade. Sentimos que faz parte do processo criativo do universo descobrir alguns de seus hábitos fundamentais e suas sutis inter- conexões. RUPERT: Essa trajetória pelo conhecimento incorpóreo tem sido extre mamente profícua em toda a história do desenvolvimento da ciência. Des cartes falava sobre o intelecto científico como um tipo de mente separada do corpo, surgindo além das informações imediatistas das sensações e capaz de compreender as leis supremas da natureza. MATTHEW: Eu e outras pessoas frequentemente criticamos Descartes por ter sido o pai do dualismo no Ocidente, separando espírito e matéria. E, mesmo aqui, em nossa conversa sobre o conhecimento angélico, estamos admitindo que parte da visão de mundo cartesiana é algo sobre o qual pre cisamos atentar, ou seja, devemos perceber que a natureza de nosso espírito é capaz de ir além, do particular para o universal. Mas sempre temos de voltar para o particular porque é aí que a mora lidade se manifesta ou não. Descartes, tão especializado em nosso lado an gélico, abstrato, realmente ignora o lado corpóreo e, portanto, o coração e Sao Tomás át Aquino 87 os chakras inferiores, incluindo a afronta moral. A filosofia de Descartes se faz útil para nós na medida em. que somos parecidos com os anjos, mas é muito perigoso construir uma civilização com base em uma filosofia alicer çada sobre aquilo que temos em comum com os seres angélicos, inteligentes. Agora, estamos pagando o preço. Por causa de nossa fuga em relação à na tureza, ao corpo terrestre e aos nossos próprios corpos, vivemos uma crise ecológica em grande parte originada da ignorância que permeia nosso rela cionamento com o corpóreo. RUPERT: Sim. Descartes defendia os anjos. Acreditava ser inspirado por um deles. Colocava o intelecto humano, os anjos e Deus no reino espiritual e, nesta perspectiva, seguiu fielmente a tradição medieval. Enquanto Aquino reconhecia uma tripla divisão entre corpo, alma e espírito, Descartes adotou um dualismo ao eliminar o termo do meio, a alma. Assim, restavam apenas os corpos, concebidos como máquinas inanimadas, e o espírito. MATTHEW: Ao fazer isso, ele estava seguindo seu mentor, Santo Agosti nho, que definia o espírito como “tudo o que não é matéria”. CacCa anjo sua própria espécie É impossível haver mais de um anjo em uma mesma espécie [.. .1 o valor de uma espécie se sobrepõe ao valor de um indivíduo. Por isso, a multiplicação das espécies angélicas é bem mais va liosa do que seria qualquer número de indivíduos de uma mes ma espécie.13 MATTHEW: Aquino, seguindo Aristóteles, se refere à matéria como sen do o princípio da individuação, ou da individualidade. Uma águia, por exemplo, compartilha sua forma e suas qualidades gerais com todos os membros de sua espécie, mas seu corpo material lhe confere uma existência individual situada no tempo e no espaço. Dado que Aquino ensinou que os anjos não contêm matéria, só poderia haver um único anjo na mesma espé cie. Assim, Aquino celebra cada anjo como uma espécie ímpar, uma espécie única em si mesma. 88 A FÍSICA DOS ANJOS RUPHRT: Isso quer dizer que cada um dos inumeráveis anjos é diferente do outro; não apenas como um melro difere de outro melro, mas como um melro difere de uma gaivota. Os anjos podem assumir corpos? Alguns tem sustentado que os anjos nunca assumem corpos e que todas as aparições angélicas a respeito das quais lemos nas Escrituras eram visões proféticas, ou seja, frutos da imaginação. Mas isso contradiz o senso das Escrituras, pois o que é visto apenas na imaginação de alguém é uma experiência essen cialmente íntima, não é algo que outros possam ver ao mesmo tempo. Mas as Escrituras falam que os anjos aparecem a todas as pessoas que estiverem presentes em determinado lugar; os anjos vistos por Abraão, por exemplo, também foram vistos por seus criados, por Ló e pelos habitantes de Sodoma; e o anjo vis to por Tobias foi visto também por todos os que estavam presen tes. É óbvio que tais visões foram corpóreas, ou seja, de coisas que existiam fora da visão subjetiva. Assim, como os anjos não são corpos propriamente ditos, nem a natureza deles envolve a união com o corpo, devemos concluir que, eventualmente, eles assumem corpos. Portanto, os anjos não precisam tomar corpos por si mesmos, mas por nossa causa.14 MATTHEW: Aquino insiste que os anjos, quanto à sua própria natureza, não são corpóreos. Entretanto, acredita que os anjos assumem corpos, ou algo semelhante a um corpo, em seu trabalho, na governança do universo e, principalmente, na relação com as pessoas. RUPERT: Acho interessante que, nessa passagem, Aquino trate de algo que consideramos uma visão moderna: se as pessoas afirmam ver anjos, isso é tido como coisas de sua própria imaginação; os anjos não existem por aí, de verdade. São Tomás (k Aquino 89 MATTHEW: Sim, ele insiste que as experiências com anjos não são exclu sivamente pessoais, que nossa imaginação não é estritamente subjetiva. Ele diz que os encontros com anjos são experiências reais que podem ser inter- subjetivas; que atraem a imaginação das pessoas, e isso atravessa o dualismo subjetivo versus o objeto. Quanto à afirmação “é óbvio que tais visões foram corpóreas, ou seja, de coisas que existiam fora da visão subjetiva”, penso ser essa uma boa defi nição do corpóreo: as coisas corpóreas existem fora da visão subjetiva. A.fi losofia moderna parece ser incapaz de se livrar de seus conceitos e reconhe cer que as coisas existem, quer as conheçamos ou não. Gosto de sua declaração, extremamente direta: “os anjos não precisam tomar corpos por si mesmos, mas por nossa causa”. É o poder da generosi dade angélica que toma forma para nos ajudar, nos assistir, para se comuni car conosco e para ser reconhecido por nós. Ele parece dizer que qualquer ser que venha a nos ajudar de algum modo precisa estar encarnado. Na verdade, logo depois dessa passagem Aquino continua aludindo ao Cristo que assume um corpo humano. A encarnação parece ser um meio necessário pelo qual os seres humanos aprendem qualquer coisa, incluindo, até mesmo, o divino. RUPERT: Essa pressuposição dos corpos é importante em dois contextos: um é a aparência dos anjos da guarda. Muitos livros recentes sobre encontros com anjos da guarda envolvem a aparição desses seres sob a forma humana para ajudar as pessoas; o outro é a imagem dos anjos. Se os anjos não têm formas corpóreas, não podemos retratá-los. E existem inúmeras representa ções de anjos. Os anjos, é claro, são frequentemente retratados com asas. Por sua na tureza, de acordo com Aquino, não precisam de corpos, tampouco de asas, para se locomover. Ele diz que os anjos só assumem aparência corpórea por nossa causa, e que, presume-se, são representados com asas para ilustrar a habilidade que têm de se locomover de um lugar para outro. MATTHEW: Não me lembro de qualquer ocorrência nos escritos de Aquino sobre anjos em que ele sequer mencione as asas. Mas a imagem das asas tem um poder arquétipo, e sugere não apenas movimento como voo. Isso é essencial para a experiência mística. As asas também trazem a lem 90 A FÍSICA DOS ANJOS brança de uma águia e de outros pássaros notáveis como seres de espírito. Elas ensejam uma idéia sobre coisas que existem nas alturas, e que também têm a liberdade de lã permanecer para voar. É uma condição a qual ansia mos; voar faz parte de nossa natureza