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isso pode nos manter quando o amor humano nos desapontar. São Tomás dz Aquino 101 Vários anjos podem estar simultaneamente no mesmo tngar? Duas almas não existem no mesmo corpo e, pela mesma razão, dois anjos não existem num mesmo lugar. Dois anjos não po dem estar simultaneamente no mesmo lugar porque é impossí vel que algo dependa total e imediatamente de duas causas [...] Assim, enquanto seu poder for aplicado em um lugar definido, contendo-o completamente, podemos concluir que apenas um anjo pode estar nesse lugar em um determinado momento.27 MATTHEW: É abordando essa questão que Aquino mais se aproxima da tão repetida caricatura da angelologia escolástica, a qual temos traçado e sobre a qual comentado que seus teóricos despenderam anos discutindo a respeito de quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. RUPERT: Como surgiu essa caricatura? MATTHEW: Nunca, ao longo de minha vasta experiência com literatura e teologia medievais, vi essa questão ser levantada, muito menos discutida. Acredito que os historiadores racionalistas e os filósofos dos últimos séculos achavam necessário reprimir a Idade Média. Na verdade, muitas pessoas são levadas a crer que a Idade Média foi uma época totalmente sombria, mas é difícil acreditar nisso quando se visita a Catedral de Chartres ou as várias outras grandes catedrais daquela época. Obviamente, os homens do me 102 A FÍSICA DOS ANJOS dievo entendiam muito de engenharia, sem falar em vitrais e cosmologia, e sabiam relacionar a religião ao cosmo e ao espírito. RUPERT: Aquino está dizendo neste trecho que, assim como não é pos sível ter duas almas contendo um mesmo corpo, não é possível ter dois anjos trabalhando no mesmo sistema. É da natureza da alma ser o princípio uni ficador do corpo, e, por isso, haver duas almas operando no mesmo corpo seria negar a qualidade unificadora, a menos que elas se alternassem. MATTHEW: Como o dr. Jekyll e o sr. Hyde? RUPERT: Sim. Mesmo nos casos mais extremos de múltiplas personali dades, mesmo às dezenas, elas se sucedem, mas não agem ao mesmo tempo. Tal como em uma televisão: você pode assistir a vários canais, um após ou tro, mas não pode assistir a todos ao mesmo tempo. Essa analogia apoia a suposição de Aquino de que não pode haver dois anjos agindo no mesmo lugar simultaneamente. Mas, por outro lado, se usarmos a metáfora dos campos para os anjos, notaremos que pode haver dois campos operando ao mesmo tempo. Por exemplo, o campo eletromag nético age sobre mim; posso ver e ser visto. Ao mesmo tempo, o campo gravitacional age sobre o meu corpo e, por meio dele, me segura ao meu assento para que eu não flutue no ar. Quando um anjo da guarda age sobre uma pessoa, esta pessoa também se encontra no planeta Terra, e um anjo da Terra abrange e atua sobre todo o ambiente dentro do qual essa pessoa e seu anjo da guarda estão agindo. Assim, o sistema de Aquino permitiria que dois anjos trabalhassem no mesmo lugar simultaneamente se fossem entidades de tamanhos e abrangências diferentes. Como os anjos se movem Um anjo entra em contato com um determinado lugar pura e simplesmente por meio de seu poder. Portanto, sua movimenta ção de lugar em lugar pode não ser mais que uma sucessão de distintos contatos de poder; e digo sucessão porque, como vi mos, um anjo não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. E esses contatos não precisam ser necessariamente con- São Tomás de. Aquino 103 tínuos [...] O movimento angélico também pode ser contínuo; mas pode, de outra forma, se estabelecer como uma transferên cia instantânea de poder de um lugar como um todo para outro lugar como um todo; e, nesse caso, o movimento do anjo será descontínuo.28 Já vimos que o movimento local de um anjo pode ser contínuo ou descontínuo. Quando contínuo, implica neces sariamente a passagem por um local intermediário.29 Se o movi mento de um anjo for descontínuo, ele não atravessará todos os lugares intermediários entre o seu ponto inicial e o final. Esse tipo de movimento - do extremo de um determinado espaço a outro, imediatamente — é possível para um anjo, mas não para um corpo; pois um corpo é medido e contido pelo lugar e, as sim, deve obedecer às leis do lugar em seus movimentos. O mes mo não acontece com um anjo: longe de estar subordinado ao lugar e contido por ele, sua substância o domina e o contém. Um anjo pode se aplicar a um determinado lugar como bem entender, passando por outros lugares ou não.30 RUPERT: Suponho que uma maneira pela qual um anjo poderia se mo ver continuamente é agindo sobre algo que esteja em movimento. Por exem plo, se a pessoa sobre a qual o anjo da guarda irá agir está se deslocando, o movimento do anjo será contínuo, tal como o movimento da pessoa é con tínuo; e a ação se estenderá de um lugar a outro, e atravessará os lugares que se encontram entre os dois extremos. Mais interessante é a idéia de movimento descontínuo, na qual um anjo salta do lugar no qual estava agindo para outro sem precisar atravessar os outros lugares que os separam. Na teoria quântica, entre uma ação e outra, uma entidade como um fóton ou um elétron existe como uma “função de onda”, e essa função se espalha pelo espaço como uma distribuição de probabilidade. Não é possível dizer exatamente onde ela está. Ela só é localizada quando age. A totalidade da onda de probabilidade dispersa incide em um determinado ponto. A esse fenômeno dã-se o nome de “colapso da função de onda”. 104 A FÍSICA DOS ANJOS Um dos paradoxos da teoria quântica diz que, se fótons passarem, in dividualmente, um por vez, por um aparelho com duas fendas, teremos padrões de interferência em um filme fotográfico como se os fótons viajas sem como ondas através das duas aberturas, ainda que apenas uma partícu la as atravessasse por vez. Essas ondas, então, entram em colapso enquanto o fóton age sobre um determinado ponto prateado no filme fotográfico. É interessante notar que, na teoria quântica, a função da onda é repre sentada matematicamente por uma fórmula multidimensional; não atua em um espaço tridimensional comum. Quando transita entre os dois pontos onde age, a onda se encontra em uma espécie de espaço imaginário que existe como realidade matemática, mas não como realidade física. As entidades quânticas, como os fótons, são descontínuas em sua ação. Quando um fóton deixa o sol, provoca ali uma quantidade de ação; quando atinge algum ponto da Terra e o ilumina, produz outra ação. Mas, entre esses dois extremos, o fóton só pode ser representado por uma função de onda dispersa pelo espaço. Assim que essa partícula age, é possível localizá-la, mas isso não significa que estava previamente situada naquele lugar; mostra apenas que, por meio dessa ação, ela entra em colapso ou se condensa ali. Sua ten dência para agir em um lugar ou outro pode ser prevista apenas em termos de probabilidade. O fóton carrega certa dose de indeterminismo ou liberdade. Por isso, os assuntos com os quais Aquino lida aqui em relação ao mo vimento dos anjos são similares às idéias estudadas pela teoria quântica acer ca do movimento dos fótons e de outras partículas quânticas. MATTHEW: Isso o surpreende tanto quanto a m im ? Digo, estou analisan do desde o ponto de vista da história da teologia, e acho simplesmente in crível que o pensamento de Aquino, no século xill, abordasse as mesmas questões que ocupam hoje os físicos quânticos: continuidade, descontinui- dade, ação localizada e aquilo que acontece entre tudo isso. Você ficou sur preso ao se deparar com essas preocupações em um pensador medieval? RUPERT: Fiquei admirado. Parte dõ meu interesse nas idéias de Aquino sobre os anjos foi despertada ao notar esses paralelos que, em minha opi nião, surgem porque nosso autor está lidando com a mesma questão: como algo não-material