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FUNDAMENTOS DE QUÍMICA ORGÂNICA E INORGÂNICA Felipe Lange Coelho Acidez e basicidade de compostos orgânicos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir ácidos e bases orgânicas. Identificar sistemas biológicos ácidos e reações envolvidas. Exemplificar sistemas básicos e reações envolvidas. Introdução Uma das primeiras definições de acidez e basicidade foi proposta por Arrhenius, em 1884, e dizia que ácido é toda espécie que produz íons hidrogênio (H+) em água, ao passo que base é toda espécie que for- nece íons hidroxila (OH-) em solução aquosa. Essa definição sucedeu um período em que a distinção entre ácidos e bases era realizada pela interpretação do seu gosto, em que os ácidos eram descritos como azedos e as bases lembravam o sabão (SHRIVER; ATKINS, 2008). Embora o conceito de Arrhenius seja historicamente relevante, visto que se baseou em concepções científicas, outros conceitos mais abrangentes surgiram décadas mais tarde e são atualmente empregados em discussões cien- tíficas de acidez e basicidade. Neste capítulo, você vai, inicialmente, estudar os conceitos de acidez e basicidade propostos por Bronsted-Lowry e por Lewis e verá como esses conceitos são aplicados na atribuição de características ácidas e básicas em compostos orgânicos. Adicionalmente, as forças ácida e básica serão estudadas, uma vez que um ácido ou base fraco ou forte pode exercer um papel diferente em processos químicos e biológicos. Em seguida serão abordados algumas reações e processos biológicos governados por ácidos e bases, contextualizando a importância de estudar esse assunto. Acidez e basicidade na química orgânica As definições de acidez e basicidade que serão abordadas nesse capítulo foram propostas por Bronsted-Lowry e Lewis no mesmo ano (1923). Enquanto a primeira foca na transferência de próton (íon hidrogênio), a segunda baseia-se na interação de íon ou moléculas doadoras e aceptoras de pares eletrônicos. Inicialmente, o conceito proposto por Bronsted-Lowry foi mais aceito, sendo que as ideias de Lewis ganharam força, a partir da década de 30, racionalizando algumas reações que não eram explicadas pelo outro conceito. Antes de iniciar a descrição do conceito proposto por Bronsted-Lowry, vale ressaltar que o nome próton será utilizado com sinônimo do íon hidrogênio (H+), visto que, quando o hidrogênio perde o elétron da camada de valência, resta somente o núcleo, que, no caso do hidrogênio, é um próton. Sendo assim, um ácido de Bronsted-Lowry é uma espécie que doa um próton, ao passo que uma base é uma espécie que recebe um próton. Considere o exemplo do vinagre, que é uma solução diluída de ácido acético. A dissolução do ácido acético em água, ilustrada pela Figura 1, resulta na doação de um próton do ácido acético para a água, gerando um íon hidrônio e um íon carboxilato. Nesse caso, a água atua como base, visto que é a espécie aceptora do próton (McMURRY, 2011). Figura 1. Dissolução ácido acético em água. Como a reação ácido-base é um equilíbrio, tanto a reação direta quanto a inversa ocorrem. Dessa forma, o íon carboxilato, formado após a doação do próton, é denominado de base conjugada e o íon hidrônio, de ácido conjugado. Pensando na reação inversa, o íon hidrônio (ácido conjugado) irá doar o próton e o íon carboxilato (base conjugada) irá recebê-lo, o que faz com que essa conjugação de ácido e base conjugada seja adequada. Acidez e basicidade de compostos orgânicos2 A dissolução de fenol em água, ilustrada na Figura 2, sofre o mesmo processo discutido para a dissolução do ácido acético. O fenol (ácido) doa um próton e forma o íon fenolato (base conjugada), ao passo que a água (base) recebe o próton e forma o íon hidrônio (ácido conjugado) (McMURRY, 2011). Com isso, já foram apresentadas duas classes de compostos orgânicos que têm características ácidas, os álcoois e os ácidos carboxílicos. Agora, observe a segunda reação ácido-base apresentada na Figura 2. A reação ocorre entre um íon amida (–NH 2 ) e água, sendo que a transferência protônica ocorre da água para a amida. Assim, a amida (base) recebe o próton para formar a amônia (ácido conjugado). Esse segundo exemplo foi abordado para exemplificar o caráter anfótero da água, que pode atuar tanto como ácido quanto como base, dependendo das circunstâncias. Figura 2. Caráter anfótero da água. Se tanto o fenol quanto o ácido acético são ácidos de Bronsted-Lowry, se misturarmos os dois compostos, qual deles será o doado do íon hidrogênio (H+)? A resposta está na força de cada ácido. Os ácidos, tanto orgânicos quanto inorgâ- nicos, diferem entre si na habilidade de doar H+, ao passo que, em determinados casos, a dissociação do ácido na sua base conjugada é completa e em outros casos é parcial. São os exemplos do ácido clorídrico (HCl) e do ácido acético. A dissociação do HCl é completa, o que o torna um ácido forte, enquanto que a dissociação do ácido acético é parcial, sendo este um ácido fraco (CAREY, 2011). 3Acidez e basicidade de compostos orgânicos A força do ácido pode ser quantificada utilizando a constante de equilíbrio referente à reação de dissociação do ácido. Relembre a determinação de constantes de equilíbrio vista no curso de química geral e que será importante para a discussão da força ácida ou básica. Considere a reação genérica de dissociação de um ácido, ilustrada a seguir. A constante de equilíbrio para essa reação pode ser expressa como: Onde [H 3 O+], [A-], [HA] e [H 2 O] são as concentrações molares das respectivas espécies. Como as medidas de acidez são realizadas em sistemas diluídos, a concentração de água permanece constante durante a dissociação e é igual a 55,6 mol/L. Assim, podemos reescrever a constante de equilíbrio e determinar uma nova constante, denominada constante de acidez (K a ), que é a constante de equilíbrio de dissociação multiplicada pela concentração molar da água. No caso de ácidos fortes, a reação de dissociação é deslocada para a direita, fazendo com que as concentrações de H 3 O+ e A- sejam maiores que a de HA, portanto, o valor da constante é alto. Em contrapartida, para ácidos fracos, a dissociação é parcial e, geralmente, os valores de H 3 O+ e A- são inferiores em relação a HA. O valor de K a para ácidos fracos é menor. Resumindo em números, a constante de acidez de ácidos fortes é em torno de 102-1010, enquanto que a de ácidos fraco é de 10-4-10-10. Normalmente, a força de um ácido é expressa em termos do pK a ao invés dos valores de K a . A equação para calcular o pK a está descrita a seguir. Preste atenção, pois quanto maior o valor de K a , menor é o valor do pK a . Desse modo, um ácido forte tem pK a pequeno, enquanto um ácido forte tem pK a grande. O quadro a seguir mostra alguns valores de pK a para diversas classes de compostos orgânicos, bem como inorgânicos, em que é possível comparar as forças dos ácidos de acordo com os respectivos valores. Ligação X-H pKa Ligação X-H pKa 56 19 (Continua) Acidez e basicidade de compostos orgânicos4 Ligação X-H pKa Ligação X-H pKa 50 16 43 14 40 10 36 10 24 9 21 5 HCl -8 Fonte: Modificado de Carey (2011, p. 67). Com base nos conceitos de força dos ácidos e nos valores de pKa, você pode responder à pergunta referente à dissociação do fenol e do ácido acético, quando misturados. O pKa do ácido acético é 4,7 e do fenol é 9,6, portanto, a maior acidez do ácido acético faz com que ele seja a espécie doadora de próton. Seguindo a definição de Bronsted-Lowry, os ácidos orgânicos podem ser agrupados em dois tipos. O primeiro já foi apresentado e se refere aos compostos que apresentam o hidrogênio ácido ligado a um átomo de oxigênio,como nos álcoois e ácidos carboxílicos. O segundo caso refere-se aos compostos que apresentam hidrogênio ligado a carbono em posição vizinha a uma carbonila, como em cetonas. A Figura 3 ilustra a dissociação da acetona, em que o hidrogênio ácido está destacado (CLAYDEN; GREEVES; WARREN, 2001). (Continuação) 5Acidez e basicidade de compostos orgânicos A acidez desses hidrogênios em compostos carbonílicos se deve ao fato de a base conjugada formada ser estabilizada pela movimentação eletrônica em que a carga negativa passa do carbono ao oxigênio. A localização da carga negativa em um átomo mais eletronegativo confere maior estabilidade ao produto formado. Apesar de o quadro anterior ilustrar alguns valores de pKa para compostos que contém o grupo carbonila, a Figura 3 apresenta os valores médios de pKa para algumas classes de compostos carbonílicos. Figura 3. Acidez de compostos carbonílicos. As bases orgânicas são caracterizadas pela presença de um átomo com pares de elétrons não ligantes que podem se ligar ao íon hidrogênio. A classe mais comum de compostos orgânicos que apresenta essa característica é a das aminas. A Figura 4 apresenta a ordem de basicidade entre aminas primárias, secundárias e terciárias. De um modo geral, as aminas secundárias são as mais básicas, seguido pelas primárias e terciárias. As aminas terciárias têm menor basicidade porque os substituintes ligados ao nitrogênio dificultam a interação do par de elétrons não ligante com o próton. Assim, como o par de elétrons está menos disponível para receber o próton, a basicidade diminui. Na química orgânica, as aminas, como a trietilamina (um líquido incolor), Acidez e basicidade de compostos orgânicos6 recebem destaque sendo empregadas em diversas reações com a função de solvente e base da reação (McMURRY, 2011). Figura 4. Distinção da basicidade das aminas primárias, secundárias e terciárias. Da mesma maneira que as aminas são básicas em razão do par de elétrons não ligante do nitrogênio, os compostos contendo oxigênio também podem ser básicos. Cabe lembrar o caso entre o metanol e o ácido acético, em que a espécie aceptora do próton foi o oxigênio do álcool. O mesmo ocorreria com a acetona, protonando o oxigênio do grupo carbonila. Resumindo, os compostos oxigenados podem ser básicos na presença de outras espécies que têm maior força ácida. Mesmo que as definições de Bronsted-Lowry sejam bastante úteis para atribuir as características ácidas e básicas de compostos orgânicos, as definições de Lewis são mais abrangentes, sendo que englobam as definições anteriores e não se restringe a reações ou compostos nos quais existe a transferência de próton de uma espécie para a outra. Segundo Lewis, um ácido é uma espécie que aceita um par de elétrons, ao passo que uma base é espécie que doa um par de elétrons. Em outras palavras, um ácido de Lewis é uma espécie que tem um orbital vazio que irá interagir com o orbital preenchido de outra espécie, a base (Figura 5). Figura 5. Ilustração de ácido e base de Lewis. Fonte: Adaptada de McMurry (2011). A B — AB + Orbital preenchido Base de Lewis Ácido de Lewis Orbital vazio 7Acidez e basicidade de compostos orgânicos Pense em como a definição de Lewis explica o fato de o íon H+ ser ácido e uma amina ser básica, visto que a amônia (NH 3 ) é protonada na presença de H+ formando o amônio (NH 4 +). O H+ apresenta o orbital 1s vazio e o amônio apresenta um dos orbitais hibridizados sp3 preenchido. Dessa forma, a interação entre os orbitais forma a nova ligação. A definição de Lewis também explica a interação entre o trifluoreto de boro e a trimetilamina. A reação está ilustrada na Figura 6 e ocorre de forma que o orbital preenchido da amina interage com o orbital vazio do boro, levando à formação de um aduto. Para não haver confusão entre as duas definições, considera-se que um ácido de Bronsted-Lowry é formado por um ácido de Lewis H+ e uma base de Lewis A-, sendo que é considerado que um ácido de Bronsted tem a acidez de um ácido de Lewis em vez de dizer que um ácido de Bronsted é um ácido de Lewis. Em contrapartida, toda base de Bronsted é uma base Lewis (SHRIVER; ATKINS, 2008). Nesse sentido, considera-se também que compostos oxigenados podem atuar como base de Lewis, uma vez que têm orbitais preenchidos. Os cátions metálicos também são considerados ácidos de Lewis, como Mg+2 e Fe+2, e também podem interagir com bases de Lewis orgânicas. É o que ocorre na hemoglobina e na clorofila, que serão discutidas na próxima seção. Por mais que a discussão da acidez e da basicidade dos compostos orgânicos seja, geralmente, mais embasada nos conceitos de Bronsted-Lowry, as definições de Lewis são muito importantes para a compreensão de diversos sistemas biológicos e serão exploradas a seguir. Acidez e basicidade em sistemas biológicos Se a importância das enzimas é bem consolidada no funcionamento dos or- ganismos vivos, a acidez e a basicidade, no meio biológico, seguem o mesmo caminho. Diversas enzimas dependem da acidez do meio para desempenharem o seu papel. Para isso, as células secretam ácidos e bases para ajustar o pH ideal de funcionamento dessas enzimas. Por exemplo, o processo digestivo no estômago ocorre em meio ácido, sendo que essas são as condições para ocorrer a digestão. A pepsina, uma enzima que fragmenta as proteínas, depende desse meio ácido para o seu perfeito funcionamento. Por outro lado, quando o ácido do estômago entra no intestino fino, ele precisa ser rapidamente neutralizado, visto que as enzimas que atuam no intestino necessitam de meio básico para funcionarem. Nesse caso, o pâncreas secreta bases fortes para a neutralização efetiva do pH. Acidez e basicidade de compostos orgânicos8 Da mesma forma, a presença de compostos ácidos e básicos é bastante presente na natureza. Dentre os ácidos, a classe dos ácidos carboxílicos recebe destaque, em que se pode contextualizar com o ácido acético, prin- cipal componente do vinagre, o ácido butanoico, responsável pelo odor de ranço à manteiga, o ácido caproico, responsável pelo cheiro característico das cabras e também de meias sujas, os ácidos cólicos, presentes na bile humana, e os ácidos alifáticos de cadeia longa, que são as gorduras e os lipídeos (McMURRY, 2011) As bases orgânicas compreendem um número grande de compostos contendo nitrogênio na sua estrutura. Esses compostos pertencem à classe das aminas. Historicamente, as primeiras bases utilizadas na química or- gânica eram extraídas de plantas e conhecidas como álcali vegetal, hoje denominadas alcaloides. A estrutura variada dos alcaloides, desde compostos mais simples até a estrutura mais complexa, confere ampla funcionalidade a eles. A metilamina (CH 3 NH 2 ), análoga da amônia, em que um hidrogênio é substituído por uma metila, é responsável pelo odor de peixe podre. Daí surge a explicação do porquê o suco de limão (ácido) atenua o cheiro do peixe. Ocorre uma reação ácido-base que transforma a metilamina em um sal orgânico (McMURRY, 2011). Alcaloides mais complexos estão difundidos na natureza e têm proprie- dades biológicas interessantes. Algumas dessas bases naturais são agentes farmacêuticos como a atropina e a papaverina, agentes antiespasmódicos. Da mesma forma que são remédios, também podem ser venenos, como é o caso da coniina, presente no chá de cicuta, que causou a morte de Sócrates na Grécia antiga. Diversos anestésicos e estimulantes do sistema nervoso central (SNC) são exemplos de alcaloides. Dentre os mais conhecidos estão a cocaína, a morfina, a nicotina e a cafeína. A Figura 6 apresenta a estrutura da reserpina, bem como da coniina, da nicotina e da cafeína. Os alcaloides são insolúveis em água na forma neutra, porém, em meio ácido, os nitrogênios são protonados (mesmocomportamento de uma base de Bronsted-Lowry) e, na forma de amônio, os compostos passam a ser hidrossolúveis (NELSON; COX, 2014). 9Acidez e basicidade de compostos orgânicos Figura 6. Estruturas de alcaloides. Fonte: Adaptada de Molekuul_be/Shutterstock.com. Reserpina Nicotina Coniina Cafeína Na seção anterior, foi abordado que cátions metálicos são ácidos de Lewis. Nos casos da clorofila, presente nas plantas, e da hemoglobina, proteína res- ponsável pelo transporte do oxigênio do pulmão para os tecidos, há a formação de um sistema ácido-base de Lewis em que, respectivamente, o magnésio (II) e o ferro (II) são ácidos, enquanto as porfirinas, macrociclos nitrogenados ilustrados na Figura 7, são as bases de Lewis do sistema. Figura 7. Sistemas ácido-base de Lewis. À esquerda está a estrutura da clorofila e, à direita, a da hemoglobina. Fonte: Adaptada de Chromatos/Shutterstock.com; Raimundo79/Shutterstock.com; e Molekuul_be/ Shutterstock.com. Clorof ila A Clorof ila B Acidez e basicidade de compostos orgânicos10 O transporte de oxigênio pela hemoglobina envolve outra reação ácido- -base. O oxigênio se liga (a expressão correta é se coordena) ao ferro, em que o O 2 é a base de Lewis e o Fe+2 continua sendo o ácido de Lewis. Veja que o ferro (II) é o ácido de Lewis tanto para a porfirina quanto para o oxigênio. Para o transporte de CO 2 , a coordenação não ocorre com o metal, mas com as cadeias da proteína (SHRIVER; ATKINS, 2008). O DNA também pode apresentar interações ácido-base como na hemo- globina. Em resumo, as reações ácido-base estão presentes na química dos seres vivos, em que são levadas em consideração desde o planejamento da solubilidade de um fármaco até o modo de extração de um produto natural de uma planta de interesse. CAREY, F. A. Química orgânica. 7. ed. Porto Alegre: Penso, 2011. v. 1. CLAYDEN, J.; GREEVES, N.; WARREN, S. Organic Chemistry. Oxford: Oxford University Press, 2001. McMURRY, J. Química orgânica. 7. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2011. NELSON, D. L.; COX, M. M. Princípios de bioquímica de Lehninger. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. SHRIVER, D. F.; ATKINS, P. W. Química inorgânica. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2008. Leitura recomendada CAMPBELL, M. K.; FARRELL, S. O. Bioquímica. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2001. 11Acidez e basicidade de compostos orgânicos Conteúdo: