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A doença como ruptura: reflexões sobre o fenômeno saúde/doença através da experiência de portadores/as de doenças crônicas reumáticas Juliana de Oliveira Trindade 1 Resumo: Este trabalho busca refletir sobre o fenômeno saúde-doença na experiência de portadores/as de doenças reumáticas crônicas. A pesquisa possui caráter qualitativo e está sendo realizada em Ambulatórios de Reumatologia de dois hospitais-escola de Porto Alegre/RS, o Hospital São Lucas da PUCRS e o Hospital Santa Clara do Complexo Hospitalar Santa Casa através de observação participante e de entrevistas semi estruturadas. Neste trabalho compreendo o processo de adoecimento e tratamento como um evento social traumático, apreendendo a doença para além de sua dimensão biológica. Porém, não pretendo ver a doença apenas como significação, mas sim trabalhar com o conceito de experiência como tentativa de superar algumas dicotomias (pensamento x ação, consciência x corpo, indivíduo x cultura, etc.) apontando para a importância do corpo como forma de saber e compreender o mundo e os eventos em curso. Palavras-chave: Saúde; doença; doenças crônicas; doenças reumáticas; experiência. O presente artigo baseia-se em uma pesquisa qualitativa em andamento que está sendo realizada com pacientes de Ambulatórios de Reumatologia de dois hospitais- escola de Porto Alegre/RS, o Hospital São Lucas da PUCRS e o Hospital Santa Clara do Complexo Hospitalar Santa Casa através de observação participante e de entrevistas semiestruturadas. Foram analisadas narrativas de sete pacientes, seis mulheres e um homem2 entre 33 e 78 anos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O objetivo é refletir sobre o fenômeno saúde-doença na experiência de portadores/as de doenças reumáticas crônicas através de alguns questionamentos teóricos e empíricos suscitados a partir de estudos sobre doença, enfermidade, saúde e cura. Procuro ir em direção a uma perspectiva de análise fenomenológica que busca compreender a experiência da doença com ênfase na dimensão da prática e no caráter intersubjetivo da enfermidade. Compreendo o processo de adoecimento e tratamento como um evento social traumático causador de uma ruptura biográfica na medida em que seu advento ressalta os recursos (cognitivos e materiais) utilizados pelos indivíduos para estruturar sua vida 1 Brasileira. Mestranda no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: juotrindade@gmail.com 2 As doenças reumáticas acometem 2,5 vezes mais mulheres do que homens. cotidiana fazendo com que sejam reorganizados. No entanto, não pretendo ver a doença apenas como significação, através da abordagem da relação entre as representações e as práticas, mas sim trabalhar com o conceito de experiência como tentativa de superar algumas dicotomias (pensamento x ação, consciência x corpo, indivíduo x cultura, etc.) apontando para a importância do corpo como forma de saber e compreender o mundo e os eventos em curso. Procuro explorar diversos elementos como os significados atribuídos pelos/as pacientes, dificuldades de comunicação entre os/as pacientes e os/as agentes de saúde, insatisfação com os serviços prestados, recursos de cura buscados fora do aparato biomédico, história de vida dos/as enfermos, e também os eventos consequentes do diagnóstico, como as mudanças de hábitos, reorganização financeira e familiar, remanejamento profissional, são levados em consideração para a compreensão da doença como experiência vivida. Convivendo com a doença: reumatismo e cronicidade O termo reumatismo designa em torno de 250/300 doenças diferentes que tem em comum o comprometimento do aparelho musculoesquelético, ou seja, ossos, cartilagem, estruturas periarticulares (localizadas próximas às articulações, tendões, ligamentos, etc.) e/ou de músculos e também as doenças do tecido conjuntivo, podendo atacar órgãos diversos. Apesar de as doenças reumáticas não causarem morte com frequência, diversos fatores podem evidenciar a complexidade da vivência desse processo. Em primeiro lugar, o fato de as doenças reumáticas atingirem diversas partes do corpo dos/as pacientes é um fator importante. Os sintomas de diversas doenças reumáticas envolvem dor e, consequentemente, limitação da mobilidade, restringindo as atividades diárias dos pacientes e podendo levar a invalidez, perda de autonomia e incapacidade de trabalhar e realizar as atividades cotidianas mais básicas, como tomar banho ou se vestir sem auxílio. A queixa principal entre os/as pacientes pesquisados/as refere-se a dores em diversas partes do corpo com intensidade variada, porém em muitos/as pacientes a doença atinge os órgãos, no caso da entrevistas a pele, que acrescenta o fator de ser visível, e os pulmões, que diminui ainda mais as capacidades físicas dos/as pacientes. Também podem desencadear uma série de outras enfermidades e diversas alterações hematológicas. Além disso, exigem acompanhamento clínico prolongado e os tratamentos alopáticos muitas vezes são caros e envolvem uma série de efeitos colaterais e não existe uma causa única conhecida e aceita, a estas enfermidades são atribuídas diversas e múltiplas causas, que podem ser situadas entre fatores genéticos, imunológicos, ambientais, etc. As doenças reumáticas compõem um grupo muito heterogêneo, com poucas características comuns em relação à sua forma de apresentação, à evolução clínica da doença e ao tratamento. Também são doenças muito variáveis no tempo sendo que existem períodos de crise e períodos de controle e melhora dos sintomas de forma intercalada podendo variar o tempo que permanece em cada fase. Também variam os locais e intensidade das dores. A doença crônica como experiência vivida: ruptura e reação nas narrativas de pacientes reumáticos/as Michael Bury(1982) conceitua doença crônica como um tipo particular de evento que promove uma ruptura na vida cotidiana do indivíduo. A partir de uma pesquisa com pacientes de Artrite Reumatoide na Inglaterra o autor conecta três aspectos da ruptura ao desenvolvimento da doença crônica. Primeiramente, há uma ruptura de pressuposições e comportamentos dados como certos, aqui há um problema de reconhecimento sobre o que está acontecendo, o surgimento de uma nova arena social. Uma trajetória (percebida como) fluída é interrompida pelo advento da doença e a necessidade de reorganização da vida, dos projetos e dos papéis sociais que desempenha e de se recolocar no mundo é imposta ao sujeito, ele deve procurar enfrentar e dar conta desse novo elemento. A percepção de sensações enquanto alterações faz parte de um aprendizado que envolve noções compartilhadas sobre o corpo. Assim, a percepção da doença dá-se através de alguns sinais e sensações corporais produzidas pelo mal-estar físico ou psíquico. Os indivíduos se consideram doentes a partir de indicativos de que algo impede o funcionamento normal do corpo, incapacidade de realizar as atividades cotidianas e de trabalhar: o corpo passa a não funcionar normalmente tornando-se um problema. As representações que os indivíduos possuem a respeito de doença estão diretamente relacionadas com os usos sociais do corpo em seu estado normal. Assim, essa sensação de sentir-se mal é “o primeiro passo para designar, de modo conveniente o sentido da enfermidade”, “a enfermidade está necessariamente presa a uma experiência”(Alves, 1993). Segundo Bury(1982) “There is rarely anything in the individual’s biography which provides an immediate basis for recognition of the illness as illness” (p.171)Essas sensações corporais, porém, não garantem por si mesmas a apreensão da enfermidade, é preciso que haja um processo de organização das experiências em uma totalidade dotada de sentido. O significado dessa experiência é construído a partir de processos interpretativos adquiridos na vida cotidiana através do mundo compartilhado. Dessa forma, a ideia de intersubjetividade torna-se central para compreender a experiência da doença crônica. O social é formado por processos de interação entre os indivíduos na esfera da vida cotidiana, esses modos de coexistência são, então, o campo onde é possível intervir na realidade. Dessa forma: “[...] os padrões culturais que as pessoas utilizam para interpretar um dado episódio de doença são criações sociais, ou seja, são formados a partir de processos de definição e interpretação constituídos intersubjetivamente.”. (Alves, 1993, p. 169) O corpo é conceituado como forma de saber e compreender o mundo e os eventos em curso, ou seja, como processo, como performance, como corpo vivido (ou corpo em ação), simultaneamente como objeto (algo que temos) e como sujeito (o que somos). A partir daí há uma relação dialética entre a dimensão material e a dimensão social, com uma influência mútua e simultânea entre elas. Ainda, a doença também possui essa dupla caracterização, pois é algo que acontece ao corpo, mas também pelo corpo. Em segundo lugar, ainda segundo o estudo de Bury, há rupturas mais profundas, havendo uma revisão da biografia e do autoconceito da pessoa. Ocorre a mudança biográfica de uma trajetória percebida como normal apontando para as mudanças do indivíduo nas relações sociais e na vida cotidiana. A partir desse momento, o/a paciente é levado a lidar com duas novas situações, a de incapacidade e a de incerteza. A primeira, diretamente vinculada a como o indivíduo se percebe e age no mundo. O caso mais evidente desse processo foi de um homem de 49 anos com esclerodermia sistêmica3 que entrevistei. Ele trabalhava como pedreiro, sendo o responsável pela maior parte da renda familiar e perdeu completamente a capacidade de um pulmão e parte do outro, tornando-se dependente do uso de oxigênio e do auxílio de terceiros, principalmente de sua esposa que respondeu grande parte das perguntas por mim feitas porque ele não consegue falar por muito tempo sem sentir-se cansado e com falta de ar. Passou a necessitar de acompanhamento médico constante, a cada quinze dias faz exames de controle. Como consequência, há sete anos aposentou-se precocemente por invalidez. Apesar de esse ser um caso mais grave entre os pesquisados e que envolve uma ruptura violenta e uma reorganização biográfica mais evidente, narrativas que envolvem a perda de capacidade de trabalhar, de realizar serviços domésticos e também de perda de capacidade de realizar atividades corriqueiras de cuidado pessoal, como tomar banho ou se vestir, são bastante frequentes. Uma mulher de 51 anos não precisou deixar de trabalhar devido à sua condição, mas enfrenta dificuldades diárias na execução de suas atividades. Ela é enfermeira, o que envolve, muitas vezes, ajudar os pacientes a levantar, sentar, trocar de cama, de roupa, etc., atividades que ficam prejudicadas quando ela está com dores mais agudas nos braços. A partir disso ela enfrenta uma série de questões com seus colegas de trabalho, que não compreendem o funcionamento de sua doença, que ocasiona dores de grau variado em locais variados, sazonalmente. Portanto, existem atividades que ela consegue desenvolver em um dia, mas não em outro. A necessidade do uso de Atestados Médicos para faltar ao trabalho e consequentes retaliações são também recorrentes. A doença crônica implica em restrições, perda dos papéis desempenhados e sofrimento em relação às mudanças e a perda de autonomia, a doença está ligada às capacidades do sujeito cumprir com suas responsabilidades, exprimindo- se como desvalorização social. Todos esses casos evidenciam as rupturas físicas e sociais causadas pela doença crônica. Além disso, o sentimento de perda, não só de capacidades, mas também de identidade e de relações é muito frequente. Muitas vezes há uma progressiva perda de laços sociais devido as maiores dificuldades de deslocamento: “eu caminhava assim uns 5 metros e não aguentava mais, sabe? Subir então uma rampa, uma coisinha assim de 3 Uma doença reumática crônica inflamatória do tecido conjuntivo que pode envolver alterações na pele, nos vasos sanguíneos, nos músculos e em órgãos internos. leve pra mim era um sacrifício”; impossibilidade de ficar muito tempo na mesma posição: “teve épocas assim que eu ficava um pouquinho de pé e tinha que deitar um pouco e voltava”; dificuldade para explicar a doença e falta de credibilidade, devido ao fato de a maioria não ser doenças visíveis, problemas de legitimação da mudança de comportamento: “tenho muita dor e já não tenho mais aquela estabilidade que a gente tem pra caminhar, aí eu tenho que me cuidar porque de repente eu sou capaz de cair, caminhos aos pouquinhos assim em casa, mas se eu tenho sair eu tenho que sair de carro”, etc. O caso do homem que entrevistei evidencia uma quase total perda dos laços sociais, ficando ele restrito ao lar e as relações familiares mais próximas (esposa e filhos). Uma mulher de 55 anos recorda: “Eu me lembro de que em 2013 eu fui pra praia e eu estava assim tão cansada, tão cansada e com tanta dor generalizada - generalizada era minha dor! - que eu não aproveitei, eu ficava em casa, eu ficava na cama enquanto todo mundo estava na praia, estava saindo, ou comendo fora, sei lá, eu estava na cama, sabe? Foi assim, eu estava bastante limitada, bastante limitada em função de dores.” Consequentemente, também há uma ruptura nos sistemas explanatórios usados pela pessoa, onde ela tem de reorganizar também sua forma de ser no mundo, alterando o curso de sua biografia e do seu autoconceito, que antes seguia uma trajetória considerada normal. Assim, “as rupturas biográficas são, ao mesmo tempo, rupturas de relações sociais e da habilidade de mobilizar recursos materiais”(Bury, 1982) Além disso, a incerteza passa a ser um elemento com o qual o paciente deve lidar cotidianamente. Muitos pacientes relatam que não compreendem as explicações técnicas dadas pelos médicos e, consequentemente, não sabem explicar o funcionamento de suas enfermidades. A maioria dos pacientes entrevistados, alguns deles já fazem tratamento há muitos anos, não sabe imediatamente o nome da doença com a qual foram diagnosticados, não lembram quais remédios tomam e não sabem pra quê eles servem, não sabem quais exames fazem com frequência. O discurso médico é reproduzido de forma fragmentada, pois não é totalmente compreendido e internalizado. Estes fragmentos do discurso do médico são reinterpretados e mesclados com outras representações da doença que, apesar de ter um caráter individual, são formadas a partir de categorias coletivas. Além disso, o contato com os médicos é limitado, o doente muitas vezes se perde dentro do hospital, os pacientes são mandados de um serviço a outro (exames, medicalização, consulta) sem nenhuma ou pouca explicação, o tempo de espera é grande, etc., aumentando a ansiedade do paciente(STRAUSS in Boltanski, 1989). Os indivíduos também passam a perceber que o tratamento tem limites. Existe uma gama de medicamentos utilizados para doenças reumáticas, porém, muitas vezes, a escolha do melhor medicamento é feita através de tentativas, devido aos efeitos colaterais muito invasivos e/ou falta de resposta ao medicamento. “Um remédio faz bem e o outrofaz mal, né? Esses biológicos que eu tomo que tem que parar. Eu já estou acho que no terceiro ou no quarto biológico já. Porque dá os efeitos colaterais. [...] Agora daqui a três meses eu vou voltar aqui e se esse remédio que eu estou tomando agora não estiver fazendo efeito ela tira e troca por outro, mais forte.” Outro fator é a variabilidade dos sintomas das doenças reumáticas, podendo as dores aparecer e desaparecer em locais variados, “um dia te dói muito um determinado local, outro dia está em outro, outro dia está no braço, aí depois é mais no pulso, aí de repente é mais no joelho”, e também envolvendo períodos de menor ou maior controle da doença, “Quando as dores estão assim, que eu estou em crise, são terríveis! São dores alucinantes”. Além disso, apesar do uso das medicações, as dores permanecem. Em um terceiro momento, há a reação há ruptura, envolvendo a mobilidade de recursos para o enfrentamento de uma situação alterada. Essa reconstrução faz-se pelo desenvolvimento de estratégias para lidar com a doença e pela habilidade do indivíduo em manter ou criar uma rede de suporte social que o ajude a desenvolver sua biografia. Foi possível identificar estratégias dos próprios pacientes para lidar com a dor, para reorganizar o cotidiano e para o remanejo das expectativas futuras e criação de novos planos. As mulheres entrevistadas passam a focar nas coisas que ainda conseguem fazer. Uma senhora de 78 anos afirma: “Tem que levar a vida, também não pode estar dependendo dos outros [...] a gente já se sente impossibilitada de muitas coisas que não pode fazer, mas eu levo normal porque não adianta, eu acho assim, eu penso, não adianta eu estar reclamando ou deixando de fazer o que eu ainda consigo fazer, né? [...] tem coisas que eu não consigo fazer, mas daí eu deixo, não consigo não faço”. Outra senhora, de 67 anos, dona de um atelier de costura encontrou alternativas para trabalhar: “o braço direito está bom, e o outro, do cotovelo pra baixo eu posso mexer, posso fazer força, só não posso mexer com o ombro, e não atrapalha [para costurar]”. E mais adiante “muita coisa eu faço mais pra me distrair, mais pra não pensar na dor”. Apesar de parecerem à primeira vista relatos de resignação às limitações, expressões que eram profundamente negativas em relação à doença como “foi terrível”, “foi traumatizante”, “emocionalmente falando um caminhão passou por cima de mim”, “foi um bombardeio na minha cabeça”, “emocionalmente falando é terrível” acabam dando lugar para outras que indicam um processo, como “me conformei”, “a gente se acostuma”, “não tem o que fazer”, “a gente aprende a viver com a doença”. Dessa forma, podemos identificar a doença como ruptura, mas também como processo. Também pude ter uma conversa informal com uma mulher de 47 anos que após receber o diagnóstico de Lúpus criou uma ONG para portadores de Lúpus e outras doenças reumáticas onde promove atividades e encontros destinados à melhoria de condições de vida dos pacientes reumáticos bem como divulgação de informações sobre doença, novas tecnologias e legislação. No dia em que a conheci ela estava em consulta no hospital, no final de sua consulta pediu para conversar com outra paciente que estava em atendimento no consultório ao lado, também diagnosticada com Lúpus, para lhe dar algumas informações e dicas de prevenção de sintomas, além disso, ela traz novas informações não somente para os/as pacientes, mas também para o corpo médico. Existe a ruptura trazida pela doença, que institui um “antes” e um “depois” muito bem explicitado pela fala de uma senhora de 67 anos: “Eu até me sentia muito feliz porque eu dizia eu sou uma pessoa que não tenho nada, eu não tenho pressão alta, eu comia de tudo, nada fazia mal [...] Eu [me senti] muito triste, né? Decepcionada! Ah, meu Deus, eu era tão feliz. E eu curti essa felicidade, ainda bem! Porque eu adorava ser saudável!” Porém, essa ruptura desencadeia um processo de um “antes” e um “depois” constante e móvel. Uma senhora de 78 anos afirma que “tirando as dores eu estou, me sinto super bem, perto do que eu estava, da maneira que eu vivia”, na mesma direção, uma mulher de 55 anos diz: “hoje eu estou muito bem, é o momento em que estou melhor”. Esse processo não indica somente a eficácia da medicação e do tratamento, que promovem um controle da doença, mas uma reconstrução biográfica que passa a considerar a doença na vida cotidiana e nos planos futuros. Considerações Finais Como mencionado no começo do trabalho essa pesquisa está em andamento, portanto, não trago conclusões definitivas, mas algumas considerações para a compreensão das doenças reumáticas crônicas na experiência dos pacientes. Relatos de descontinuidade no curso de suas vidas estão presentes em todas as narrativas dos/as pacientes. Porém, os/as entrevistados/as também descrevem atitudes de enfrentamento, resignificação da doença crônica e reorganização do cotidiano. De acordo com as entrevistas e observações realizadas encontrei algumas categorias centrais que possibilitam designar a doença crônica como uma experiência de ruptura: 1) as rupturas físicas e sociais; 2) a corrente expressão da doença reumática como incapacidade e incerteza; 3) a percepção de um “antes” e um “depois”. Porém, a percepção de um “antes” e um “depois” se dá de duas formas. Em primeiro ligar, as narrativas indicam a percepção de um “antes” e um “depois” da doença, que geralmente está acompanhado pelas narrativas de mudanças biográficas, no sentido de perda e incapacidade. Posteriormente, um “antes” e um “depois” no sentido da passagem do estagio inicial da doença para um momento posterior, geralmente o atual. Neste momento as mudanças mais fundamentais no cotidiano dos pacientes já foram efetuadas e ideias de aprender a lidar e conviver com a doença se fazem presentes. Portanto a doença institui esse “antes” e “depois” constante e móvel, onde sempre é possível comparar o momento presente, não somente com a ausência de enfermidade, mas com qualquer outro momento na experiência da doença crônica. Além disso, gostaria de chamar atenção para o fato de essas três aspectos destacados por Bury no desenvolvimento da doença crônica não tem, necessariamente, uma evolução linear. Cada um desses aspectos, seja o reconhecimento, a incapacidade e incerteza ou a mobilização de recursos, pode acontecer em qualquer estágio da doença. Sendo uma doença oscilante, onde existem períodos de crise e piora, ao mesmo tempo em que pode atingir partes diversas do corpo a qualquer momento e, além disso, os eventos sociais são se renovam e vão além do repertório conhecido dos sujeitos, é possível e bastante provável que o paciente tenha que enfrentar novas situações envolvendo sua doença. Assim, é possível que este ciclo de estranhamento, reorganização e reação seja sempre e a qualquer momento reativado. Em se tratando de doenças crônicas e instáveis como as doenças reumáticas, a doença só pode ser compreendida como processo e experiência vivida, pois o paciente tem de se confrontar frequentemente com novas situações e a própria vida cotidiana transforma-se em um aprendizado corporal constante devido a dores e uma série de outras dificuldades (como os efeitos colaterais da medicação, problemas de deslocamento, questões financeiras, dificuldade para executar tarefas diárias e pessoais, etc.). Esse aprendizado corporal, por sua vez, dá-se ao longo de todo o processo da doença. Da mesma forma que a doença se dá duplamente através do corpo e atinge ao corpo, o aprendizado se dá através de uma atenção sobre o corpo (sinais, sintomas, respostas,etc.), mas também através do corpo, pois é ele que percebe e apreende esses sinais. Referências Bibliográficas Alves, P. C. (1993). A experiência da enfermidade: considerações teóricas. Cadernos de Saúde Pública, 9(3), 263–271. http://doi.org/10.1590/S0102- 311X1993000300014 Boltanski, L. (1989). As classes sociais e o corpo. Biblioteca de Saúde e Sociedade, (5). Retrieved from http://bases.bireme.br/cgi- bin/wxislind.exe/iah/online/?IsisScript=iah/iah.xis&src=google&base=LILACS &lang=p&nextAction=lnk&exprSearch=398333&indexSearch=ID Bury, M. (1982). Chronic illness as biographical disruption. Sociology of Health & Illness, 4(2), 167–182. http://doi.org/10.1111/1467-9566.ep11339939
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