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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS JOÃO BATISTA CESARIO PSICOPEDAGOGIA E INCLUSÃO SOCIAL: INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA COM CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RISCO PUC-CAMPINAS 2007 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS JOÃO BATISTA CESARIO PSICOPEDAGOGIA E INCLUSÃO SOCIAL: INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA COM CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE RISCO PUC-CAMPINAS 2007 Monografia de conclusão de curso apresentada à Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Educação e Psicopedagogia, sob orientação da professora Dra. Maria Regina Peres. AGRADECIMENTOS A Deus, pelos dons que me concedeu generosa e gratuitamente. Ao grupo de professores(as) dedicados(as ) e generosos(as) do Curso de Especialização em Educação e Psicopedagogia da PUC-Campinas Às colegas da turma pelos ricos momentos de partilha, questionamento e construção coletiva do conhecimento e pelo testemunho de amor à educação que todas me deram ao longo desse ano. Aos companheiros Reginaldo Wagner Romão e Sérgio da Silva Sobral, auxiliares de biblioteca, pela alegria, amizade e prontidão pra ajudar na localização da bibliografia necessária. A psicopedagoga Lucimar Almeida Delman Lains, responsável pela instituição onde fiz estágio, pela solidariedade e o respeito pelo nosso trabalho. À Profª. Drª. Maria Regina Peres, Coordenadora do Curso de Especialização em Educação e Psicopedagogia da PUC-Campinas, que orientou este trabalho, pela integridade, respeito, dedicação à docência e amor pela psicopedagogia. “Já podaram seus momentos,desviaram seu destino Seu sorriso de menino, quantas vezes se escondeu Mas renova-se a esperança, nova aurora, cada dia E há que se cuidar do broto / Pra que a vida nos dê flor e fruto. / Coração de estudante / Há que se cuidar da vida / Há que se cuidar do mundo Pra que a vida nos dê flor e fruto.! ‘Coração de estudante’, Milton Nascimento “Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam” Paulo Freire, Pedagogia da autonomia, p. 54 “Ontem um menino que brincava me falou que hoje é semente do amanhã. Para não ter medo que este tempo vai passar Não se desespere não, nem pare de sonhar Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar! Fé na vida Fé no homem, fé no que virá! nós podemos tudo,Nós podemos mais Vamos lá fazer o que será” ‘ Semente do Amanhã’, Gonzaguinha Sumário APRESENTAÇÃO................................................................................................ 07 1 – EDUCAÇÃO: ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS 1.1 – Educação na antiguidade....................................................................... 10 1.1.1 – Educação na Grécia: Paidéia.............................................................. 11 1.1.2 – Educação em Roma: Humanitas......................................................... 16 1.1.3 – Influência Greco-Romana na história da educação............................. 19 1.2 – A educação no Brasil.............................................................................. 21 1.2.1 – A educação no período colonial brasileiro: Sistema Jesuítico de ensino................................................................ 24 1.2.2 – A educação brasileira no século XIX: formação das elites para a política e dos pobres para o trabalho............................... 29 1.2.3 – A educação brasileira no século XX: o desafio da universalização do ensino..................................................................... 39 1.2.4 – Indicadores de alfabetismo no Brasil.................................................... 47 2 – A PSICOPEDAGOGIA COMO PRÁTICA LIBERTADORA.............................. 57 2.1 – A origens da psicopedagogia.................................................................. 62 2.2 – A psicopedagogia no Brasil................................................................... 65 2.3 – Método e campos de atuação da prática psicopedagógica................... 68 2.4 – A psicopedagogia institucional................................................................ 70 2.5 – Impasses e desafios para a regulamentação da psicopedagogia como profissão....................................................................................... 74 3 – PSICOPEDAGOGIA E PERSPECTIVAS DE INCLUSÃO............................... 78 3.1 – Educação não-formal: algumas experiências......................................... 81 4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................. 85 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 89 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA............................................................................ 99 CESARIO, João Batista. Psicopedagogia e Inclusão Social: Intervenção psicopedagógica com crianças em situação de risco. Monografia (Especialização em Educação e Psicopedagogia) Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, 2007, 101 pp. RESUMO No triste cenário da realidade educacional brasileira, marcado por problemas e limites de origens diversas, este trabalho se propõe investigar como a psicopedagogia, especialidade da área da educação, voltada para os processos de aprendizagem e suas dificuldades, pode ser um efetivo instrumento de inclusão, devolvendo a crianças, adolescentes, jovens e adultos, a auto-estima, a alegria e o gosto pelo aprender. A metodologia utilizada é a abordagem qualitativa enfocando a pesquisa bibliográfica. Percorrendo a historia da educação no Brasil e no mundo tentamos demonstrar como a exclusão sempre esteve presente no ensino, deixando de lado um número significativo de pessoas, privadas do conhecimento e do saber. O ensino de qualidade sempre foi privilegio de alguns, patrimônio de uma classe social, em detrimento da maioria da população. Investigando as origens, o método e a natureza da psicopedagogia, buscamos apresentá-la como instrumento válido, atual, urgente e necessário para superação do fracasso escolar, forma contemporânea de manter a lógica da exclusão, disfarçada sob o discurso da universalização do ensino e da educação para todos. Palavras-chave: fracasso escolar, educação não-formal, historia da educação, história da psicopedagogia. justiça social. 7 APRESENTAÇÃO A formação em filosofia me possibilitou uma aproximação amorosa com a educação. Além das disciplinas que à época nos preparavam para o ensino de filosofia no segundo grau – didática, filosofia da educação, estrutura e funcionamento do ensino, entre outras – tive a oportunidade de realizar estágio durante um ano, acompanhando as aulas de filosofia,numa escola da cidade. Algum tempo depois de concluída a graduação fui lecionar numa escola estadual da periferia de Campinas, na condição de professor eventual. O choque foi inevitável. A escola que encontrei não se parecia nem de longe com aquela que conhecia, tampouco a prática educacional desenvolvida naquela instituição se parecia com a que eu aprendera a buscar na filosofia. Fracasso escolar, violência, falta de professores, carência de recursos pedagógicos eram alguns dos elementos que compunham a moldura daquele equipamento publico, destinado á educação de um grande número de crianças e adolescentes naquela região periférica da cidade. Salas abafadas, vidraças e carteiras quebradas completavam a configuração de um ambiente completamente inadequado para o ensino. Ao mesmo tempo aquela era a única escola pública que atendia toda a demanda por vagas de um bairro enorme e distante vários quilômetros do centro da cidade. 8 Foram aulas de história, geografia, língua portuguesa, língua inglesa e até de matemática e física as que me foram oferecidas. Na condição de professor eventual minha função era substituir os professores ausentes em suas disciplinas. Essa experiência me provocou uma profunda inquietação pedagógica, bem como, uma indignação ética com relação aos rumos da educação no Brasil. Precisei abandonar o magistério algum tempo depois, mas não abandonei o desejo de estudar a educação e tentar construir saídas. Encontrei na psicopedagogia o instrumento válido e urgente para o resgate de muitas crianças, adolescentes e jovens condenados à exclusão pelo fracasso escolar, em situações muito parecidas com a que vivenciei naquela escola e, infelizmente, ainda muito presentes. Inicialmente, percorrendo a trajetória da educação, tentarei revisitar alguns aspectos da antiguidade clássica, bem como da historia do Brasil identificando nesse percurso uma longa historia de exclusão, que tem segregado sistematicamente uma parcela considerável da população, apartada dos bens culturais, acessíveis apenas pela via da educação. Em seguida buscarei investigar as origens, o método e a abrangência da psicopedagogia como ciência dedicada à investigação do processo de aprendizagem e que propõe caminhos e alternativas concretos para as dificuldades que acompanham esse processo. 9 Por fim, buscarei apontar o ambiente da educação não-formal como um território propício para iniciar o árduo caminho da inclusão, através de um trabalho preventivo e cauteloso, de atenção e acompanhamento das crianças nos ricos momentos de sua experiência pré-escolarização formal, dotando-as já nessa fase inicial, de alguns instrumentos que serão válidos para toda a vida no âmbito da educação. Enfim, essa pesquisa aguçou-me o desejo de continuar investigando a historia da educação, especialmente na realidade brasileira, bem como me possibilitou uma maior apropriação das categorias e conceitos específicos da área da psicopedagogia, além de me propiciar o contato com teóricos da educação e suas valiosas produções, o que apenas aumentou minhas inquietações com relação à realidade do ensino e da formação das crianças, adolescentes e jovens especialmente. Essa pesquisa é uma tentativa de buscar caminhos que, sabemos, não existem prontos, mas devem construídos por cada geração. Oxalá sirva também de provocação a suscitar outras tentativas, ampliando os horizontes da discussão e lançando novas perspectivas, apenas ensejadas nesse trabalho ou ainda aludidas de forma parcial e insuficiente. Aqueles (as) que amam a educação e fazem da arte do ensino o seu labor cotidiano hão de encontrar relevância e pertinência nessa tentativa. 10 1 – EDUCAÇÃO: ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS 1.1 – Educação na antiguidade O Egito é reconhecido unanimemente como o berço comum da cultura e da civilização humanas. Os registros mais antigos no campo da educação, da instrução e do ensino são do Egito e remontam ao período arcaico (século XXVII a.C). São ensinamentos que “contêm preceitos morais e comportamentais rigorosamente harmonizados com as estruturas e as conveniências sociais [...] em forma de conselhos dirigidos do pai para o filho e do mestre escriba para o discípulo” (MANACORDA, 2002, p.11). Egito, Mesopotâmia, Babilônia, Pérsia, Índia, China e outros povos antigos são chamados de civilizações fluviais por se terem organizado às margens de grandes rios que as alimentavam. Apesar das grandes diferenças entre essas civilizações há alguns traços comuns, como governos despóticos e teocráticos em que o poder absoluto do rei era exercido com base em sua suposta origem divina; a administração burocrática do Estado controlava a produção agrícola, arrecadava impostos, dirigia a construção de grandes templos, palácios e túmulos; suas economias eram organizadas segundo o ‘modo de produção asiático’1 calcado na agricultura, no qual os trabalhadores viviam em regime de servidão, ligados à terra e submetidos ao poder do rei, imperador ou faraó (ARANHA, 1996, p. 32). 1 Modo de produção é a maneira pela qual uma sociedade produz e distribui seus bens e serviços. O modo de produção se constitui no centro organizador da vida de uma sociedade, congregando as forças produtivas e as relações de produção. 11 A invenção da escrita é outro traço comum dessas civilizações, fato que não se dissocia do aparecimento do Estado, pois a manutenção da máquina estatal supõe uma classe especial de funcionários capazes de exercer funções administrativas e legais cujo registro é imprescindível (ARANHA, Id.). Os sinais utilizados para a escrita representavam, inicialmente, figuras e não sons. Eram assim os hieróglifos2 egípcios e a escrita cuneiforme3 da Mesopotâmia. Atribui-se aos fenícios a criação ou aperfeiçoamento do alfabeto por volta do ano 1500 a.C, assimilado posteriormente pelos gregos (séc. VIII a. C) que o transmitiram aos romanos. Nessas civilizações antigas não havia propostas propriamente pedagógicas, mas a preocupação com a educação estava presente nos livros sagrados “que ofereciam regras ideais de conduta e orientação para o enquadramento das pessoas nos rígidos sistemas religiosos e morais” (ARANHA, 1996, p.33). 1.1.1 – Educação na Grécia: Paidéia A civilização grega se desenvolveu posteriormente ao apogeu das grandes civilizações orientais, tendo alcançado o seu ponto mais alto no período clássico (séculos V e IV a.C). “A esplêndida produção nas artes, literatura e 2 Termo que significa ‘escrita sagrada’ 3 Inscrições em forma de cunha 12 filosofia [dessa época] delineia definitivamente o que virá a ser a herança cultural do mundo ocidental” (ARANHA, 1996, p. 40). Se até o século VI a.C. predominava na Grécia uma concepção mítica do mundo, em que se atribuía ao sobrenatural grande influência sobre as ações humanas, no período clássico ocorreu a passagem para o pensamento racional e filosófico. Alguns autores chegam a falar de “milagre grego” para caracterizar esse salto qualitativo na cultura e civilização gregas (CAMBI, 1999, p. 71-74); outros preferem creditar esse avanço significativo a um processo que se desenvolveu lentamente no passado mítico, de tal forma que A virada cultural grega se realizou “em direção da laicização, da racionalização e da universalização” (CAMBI, 1999, Id.). A reflexão filosófica – radical, rigorosa e deconjunto4 – superou, sem eliminar, o universo mítico- religioso para “explicitar os fundamentos do pensar e do agir” humanos (ARANHA, 4 “A filosofia é radical porque sua reflexão busca as raízes da questão: do latim radix, radicis, raiz, e, no sentido derivado, fundamento, base [...] A filosofia é rigorosa porque [...] para justificar suas afirmações com argumentos, usa de uma linguagem rigorosa que define os conceitos, evitando a ambigüidade típica das expressões cotidianas [...] A reflexão filosófica é de conjunto por ser globalizante, ao examinar os problemas na perspectiva do todo, relacionando os seus diversos aspectos” (ARANHA, 2006, p. 21) [...] o surgimento da filosofia na Grécia não é, na verdade, um salto realizado por um povo privilegiado, mas a culminância de um processo que se fez ao longo de milênios e para o qual concorreram as novidades introduzidas na época arcaica [séc. VIII a VI a.C] São elas: a escrita, a moeda, a lei e a pólis, e o aparecimento do filósofo. Essas transformações foram responsáveis por uma nova visão que o homem passa a ter do mundo e de si próprio (ARANHA, Id, p. 42). 13 2006, p. 21), no ambiente da pólis5, a cidade-estado grega, em cujo centro, estava a ágora (praça pública), lugar do debate que “engendra a política” (ARANHA, 1996, p. 42). A filosofia é filha da cidade (pólis) e o homem livre era cidadão da pólis. À educação competia formar o cidadão para a vida na pólis. Nessa tarefa destacavam-se os sofistas6, mestres itinerantes que, no período clássico da cultura grega, ensinavam “a arte da persuasão, do convencimento, do discurso, que serão bem aproveitados na praça pública, sede da assembléia democrática” (ARANHA, Id. p. 43). Aos sofistas se atribui “a sistematização do ensino por terem formado um currículo de estudos” (ARANHA, Id.) composto pelas sete artes liberais: gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, astronomia e música. Criadores da educação intelectual os sofistas desenvolveram uma reflexão notadamente antropológica e interessada, sobretudo, nos assuntos de moral e política, com “uma atenção quase exclusiva para o homem e seus problemas, como também para suas técnicas, a partir do discurso” (CAMBI, 1999, 5 A pólis ou cidade-estado se desenvolveu a partir do séc VIII a.C.como uma comunidade limitada, independente e autônoma, cujos membros lhe deviam lealdade total. Segundo LUZURIAGA (1990, p. 39) “a pólis é o lugar da educação cívica e espiritual. Aí se adquirem a consciência cívica, o espírito democrático, a liberdade política própria da vida ateniense”. 6 Sofista vem de sophos (grego) e significa sábio ou professor de sabedoria. Em razão das divergências e críticas de Sócrates (c.469-399 a.C) e Platão (428-347 a.C) aos sofistas permaneceu na história uma imagem negativa e caricatural de seu trabalho. Sofista “pejorativamente passou a significar homem que emprega sofismas, ou seja, alguém que usa de raciocínios capciosos, má fé, com intenção de enganar [...] Recentemente tem sido atenuada essa avaliação depreciativa, tentando-se redimensionar a verdadeira importância da sofística” (ARANHA, 1996, p. 43). 14 p. 85). Ao exigirem remuneração por seu trabalho os sofistas valorizavam o papel e a figura do professor (educador) dando consistência profissional a essa função. Nesse período surgiu a noção de Paidéia, inicialmente relacionada à educação das crianças7, mas que se ampliou posteriormente para designar todo o processo de formação integral do cidadão, abrangendo cultura, tradição, literatura, civilização e educação a um só tempo. A Paidéia referia-se àquele ideal de “formação de uma humanidade superior, nutrida de cultura e de civilização, que atribui ao homem, sobretudo, uma identidade cultural e histórica” (CAMBI, 1999, p. 87). “Com o tempo o sentido [do conceito] se amplia para designar toda teoria sobre educação. São os gregos que, ao discutir os fins da Paidéia, esboçam as primeiras linhas conscientes da ação pedagógica”8 (ARANHA, 1996, p. 41). A educação na Grécia, de modo geral, foi constantemente centrada na formação humana integral, do corpo (preparo físico) e do espírito (domínio da razão no debate intelectual). A noção de Paidéia sintetizava aquilo que a cultura grega chamou “com pleno efeito de educação, dando à palavra o sentido de formação harmônica do homem para a vida na pólis, através do desenvolvimento de todo o corpo e de toda a consciência” (BRANDÃO, 1981, p. 38). 7 Os vocábulos gregos pais, paidós significam criança. 8 “A palavra pedagogo [paidagogós, literalmente aquele que conduz a criança] designava na Grécia antiga, o escravo que conduzia a criança à escola. Essa denominação concreta (pedagogo/pedagogia) assumiu posteriormente conotações abstratas para indicar as teorias sobre a educação. Ao longo do tempo o conceito de pedagogia sofreu variações, do mesmo modo que os princípios e os fins da educação nem sempre permaneceram os mesmos” (ARANHA, 2006, p. 34) 15 Para os gregos, cuja sociedade estava ancorada na instituição escravista9, a educação era para os homens livres, aos quais se ensinava a teoria, “que é o saber do nobre para compreender e comandar, não para fazer, curar ou construir” (BRANDÃO, 1981, p. 42). Os pobres da Grécia (escravos e outros trabalhadores manuais) “expulsos do direito de saber que existe na Paidéia” (BRANDÃO, p. 39) aprendiam desde muito cedo seus ofícios nas oficinas, na lavoura e no pastoreio. Aos adolescentes livres a educação não era um direito, mas uma obrigação, verdadeiro dever que a pólis lhes impunha, porque o exercício da educação Segundo BRANDÃO (1981, p. 46-47) a educação grega – humanista e ética – visava sempre àquilo que o homem poderia vir a ser (cidadão político 9 No período clássico (séc. IV– a.C) “a escravidão aumentou consideravelmente em toda a Grécia [...], em Atenas, p. ex., todo cidadão tinha pelo menos um ou dois escravos para ajudá-lo nas tarefas domésticas [...]. À medida que a democracia se consolidava, o ideal de cidadão desvinculado dos trabalhos manuais [...] tomava corpo. A escravidão era indispensável para a manutenção deste ideal [...] A noção de democracia caminha de mãos dadas com a de escravidão, e a noção de cidadão, com a de escravo” (FLORENZANO, 1982, p. 46-47). [...] modela não um homem abstrato [...], mas o cidadão maduro para o serviço à comunidade, projeto do político. A ‘obra de arte’ da Paidéia é a pessoa plenamente madura – como cidadão, como militar, como político – posta a serviço dos interesses da cidade-comunidade. Assim, o ideal da educação é reproduzir uma ordem social idealmente concebida como perfeita e necessária, através da transmissão, de geração a geração, das crenças, valores e habilidades que tornavam um homem tão mais perfeito quanto mais preparado para viver a cidade a que servia. E nada poderia haver de mais precioso, a um homem livre e educado, do que o próprio saber e a identidade de sábio que ele atribui ao homem. (BRANDÃO, p. 44) 16 perfeito a serviço da pólis) e, nesse sentido, “os gregos ensinam o que hoje esquecemos”, por exemplo, que “a educação do homem existe por toda parte” como “resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os seus participantes. É o exercício de viver e conviver que educa”. 1.1.2 – Educação em Roma: Humanitas Se na pólis grega o ideal da educação, perseguido na abrangência do conceito dePaidéia, era a formação do cidadão perfeito, um verdadeiro herói da pólis, em Roma o modelo ideal da educação era o ancestral da família, depois o da comunidade (BRANDÃO, 1981, p. 50). A educação romana objetivava não tanto a formação intelectual, antes almejava a formação moral do homem virtuoso, cidadão, político. A educação da criança em Roma era uma tarefa eminentemente doméstica, na qual a mulher (mãe) “era valorizada como mater famílias, portanto, reconhecida como sujeito educativo” (CAMBI, 1999, p. 106), que participava ativamente da formação dos filhos. A finalidade expressa do processo educativo romano é a formação dos filhos para serem úteis à Pátria. Portanto, devem ser instruídos no que concerne aos costumes do Estado e das instituições dos antepassados [...] Devem aprender aquelas artes que são as mais necessárias para o Estado. É nisto que consiste a maior sabedoria e a máxima virtude. O ideal romano é pratico, pois orienta- se para a lei e a ordem, o dever ao Estado, às tradições ancestrais e à dignidade auto-suficiente (GILES,1987, p. 31). 17 De fato “a mãe romana foi educatrix [educadora] de seus filhos no sentido mais amplo da palavra” (CAMBI, Id.), cuidando de todos os aspectos do crescimento físico e moral das crianças, tanto na dimensão material quanto espiritual. A elas competia cuidar da criação, nutrição, instrução, sustento, etc. Enquanto as meninas eram educadas para desempenhar o papel de esposa e mãe, conforme “o ideal romano da mulher [...] fiel e operosa” (CAMBI, p. 107), os meninos ao completarem sete anos passavam a ser educados pelo pai, que devia, então, “formar sua consciência segundo os preceitos das crenças e valores da classe e da sociedade” (BRANDÃO, p. 50). Nessa idade os meninos acompanhavam o pai em festas e eventos importantes da sociedade, ouviam histórias gloriosas do passado e decoravam a Lei das Doze Tábuas10. Aprendiam a ler, escrever, contar e manejar as armas. Aos quinze anos o pai os levava ao foro, a praça central da cidade, local do comércio e das questões públicas para aprender o civismo11. Aos dezesseis anos os meninos eram introduzidos nas funções militares ou políticas (ARANHA, 1996, p. 64-65). 10 Primeiro código escrito do direito romano, gravado em tábuas de bronze entre 451 e 450 a.C. 11 “O pai amoldava o filho, sendo o objetivo moral e não intelectual, prático e não literário, pois, enfim, trata-se de formar uma sociedade de soldados e aristocratas” (GILES, 1987, p. 33). [Em Roma] a mulher, a mãe ocupou, no lar, posição mais elevada que na Grécia, principalmente na educação dos filhos. Estes, com efeito, estavam a seu cuidado na primeira infância; e quando não os podiam atender pessoalmente, confiavam-nos a uma matrona parenta que vigiava estritamente a vida das crianças (LUZURIAGA, 1990, p. 59) 18 O pai ou pater famílias, numa compreensão de família que “não era nuclear como a nossa, composta por mãe, pai e filhos, mas extensa, incluindo os filhos casados, escravos e clientes [era] proprietário, juiz e chefe religioso” (ARANHA, 1996, p. 64) ao mesmo tempo. O poder do pater famílias incluía também a educação, o que o tornava, na verdade, o primeiro educador de toda a família, Em Roma, por muito tempo, a família exerceu a função educativa, dispensando a educação pública e coletiva; contudo, na época da República (509- 27 a.C), a implementação do comércio, o enriquecimento de alguns cidadãos e a expansão imperialista romana propiciaram a emergência de grande complexidade na vida da sociedade, exigindo nova concepção da educação e novo modo de educar(ARANHA,1996, p. 65). Aos poucos foram criadas as escolas elementares, por volta do século IV a.C., para ensinar a escrever, ler e contar até os 12 anos. Nos séculos III e II a.C. surgiram as escolas dos gramáticos, responsáveis por uma espécie de ensino secundário, nas quais os adolescentes de 12 a 16 anos estudavam os [...] cuja autoritas [autoridade], destinada a formar o futuro cidadão, é colocada no centro da vida familiar e por ele exercida com dureza, abarcando cada aspecto da vida do filho (desde a moral até os estudos, as letras, a vida social) (CAMBI, p. 106). A antiga Lei das Doze Tábuas [...] permite, entre outras coisas, que o pai mate os filhos anormais, prenda, flagele, condene aos trabalhos agrícolas forçados, venda ou mate filhos rebeldes, mesmo quando, já adultos, ocupam cargos públicos (MANACORDA, p. 74). 19 clássicos gregos, além de geografia, geometria, aritmética e astronomia. No século I a.C. surgiu a escola superior, voltada para um saber aristocrático, destinada a uma elite juvenil que ocuparia postos de destaque na sociedade, nas assembléias e tribunais (ARANHA, id.). No âmbito da educação a noção de humanitas, em Roma, correspondia à Paidéia na Grécia. Era o empenho educativo realizado visando tornar o homem profundamente homem, virtuoso, “como ser moral, político e literário” (ARANHA, p. 62). Humanitas não era educação nacional e local, antes “tratava-se [...] de ensino de tipo universal, humanístico [...] baseado em cultura alheia superior, a servir de inspiração” (LUZURIAGA, 1990, p. 62). Humanitas era a “cultura geral que transcende os interesses locais e nacionais” (GADOTTI, 2002, p. 42) ensinada aos adolescentes, sobretudo, no período secundário da formação ou na escola dos gramáticos. 1.1.3 – Influência Greco-Romana na História da Educação A cultura ocidental contemporânea tem suas raízes na antiguidade clássica, na cultura greco-romana. Com razão LUZURIAGA (1990, p.33) afirma que “principia, com a Grécia, nova era da história da humanidade, a era de nossa cultura ocidental [...], pois dela derivam, em grande parte, nossa educação e nossa pedagogia”. 20 No século III a.C., após dominar totalmente a península Itálica, Roma partiu para a conquista de outros territórios. Após vencer Cartago nas Guerras Púnicas os romanos dominaram o Mar Mediterrâneo e o transformaram “num imenso lago, o mare nostrum12, onde os navios circulavam com segurança, levando cargas preciosas de um lugar para outro do Império” (LORENZANO, 1982, p. 87). Em seguida Roma dominou a Grécia, o Egito, a Macedônia, a Gália, a Germânia, a Trácia, a Síria e a Palestina que, subjugadas militarmente, passaram a pagar pesados impostos ao império, além de fornecer numerosos escravos aos romanos. A Grécia, no entanto, vencida militarmente no campo de batalha venceu o imbatível império romano no campo da cultura, conquistando-lhe a mente, impondo-lhe costumes e valores e influenciando, através da educação, todos os setores da vida romana, de forma tal que “a conquista da Grécia leva, inexoravelmente, à helenização de Roma” (GILES,1987, p. 33). Não se sabe se com alegria ou tristeza Horácio (65 a.C – 8 a.C), o grande poeta latino, registrou em seus versos que “a Grécia vencida conquistou, por sua vez, o rude vencedor, e levou a civilização ao bárbaro Latium” (GILES, 1987, p. 61). A compreensão atual de educação, de pedagogia, dos métodos de ensino-aprendizagem deve muito à herança da antiguidade clássica (Grécia e Roma). A linguagem, as metodologias e os ambientes educacionais contemporâneos guardam marcas profundas desse patrimônio herdado. 12 Tradução literal: “o nosso mar” 21 Por exemplo, “a idéia ocidental de educação com base na difusão do saber deve muito aos sofistas” gregos (REALE & ANTISSERI,1990, p. 75); a concepção de educação integral, contemplando todas as dimensões da vida, vem da Paidéia grega; a organização sistemática do ensino em níveis distintos (elementar, intermediário e superior) é herança romana (GILES, 1987, p. 35-37; GADOTTI, 2002, p. 42-44). Para BOSSA (2002, p. 19) “vivemos em um país em que a distribuição do conhecimento, como fonte de poder social, é feita privilegiando alguns e discriminando outros” e nisso se pode identificar mais um traço marcante da história da educação herdado da antiguidade clássica. Na Grécia somente os cidadãos livres, minoria da arquitetura social, tinham acesso à educação. Em Roma eram os patrícios, cidadãos romanos por direito de nascimento, os que desfrutavam os privilégios da educação clássica. Enfim, a história da educação é também uma história de exclusão, que se repete de tempos em tempos em novos contextos e com novos agentes históricos. 1. 2 – A Educação no Brasil Para se compreender os atuais impasses e dificuldades da educação brasileira é necessário reler a história do Brasil nos cinco séculos de seu percurso, destacando nela a trajetória da educação, com seus limites, condicionamentos e 22 possibilidades. Segundo MORAIS (1989, p. 91) a “história de nossa educação é a história de um malogro, [...] de uma vasta precariedade [...] conseqüência imediata das situações políticas e econômicas que tivemos e temos”. É certo que “os modelos de educação sempre seguiram os interesses e objetivos de cada sociedade, considerados os valores culturais de cada período histórico” (MARTINS, 2007). Na Grécia antiga, por exemplo, a educação almejava a formação do cidadão para a pólis; em Roma se buscava a construção do sujeito moral, o ideal do cidadão romano, identificado totalmente com os objetivos do império; em Esparta, sociedade beligerante, a educação visava preparar soldados para a guerra. No Brasil – conquistado militarmente, sob o véu de ‘descobrimento’, para servir aos interesses expansionistas da Coroa Portuguesa – não houve, desde o início, real interesse e empenho pela educação, pois se tratava de explorar maximamente a colônia em benefício da estabilidade econômica da metrópole (Portugal). E boa parte do que se fez em termos educativos no período colonial foi para ajudar nesse projeto. Para o Brasil não foram enviados empreendedores interessados em construir uma nação13, desenvolver-lhe as potencialidades e engrendrar-lhe uma cultura própria, mas exploradores ávidos por riquezas, especialmente ouro, prata, 13 Segundo MOURA (2000, p. 31) “o português trouxe consigo a noção de trabalho como algo desonroso. [...] Uma ética do trabalho, ao modo dos protestantes, inexistiu entre os habitantes da Península Ibérica. Foram antes sonhadores quixotescos de feitos heróicos que lhes trouxessem honraria, sem que precisassem erguer um machado”. 23 diamantes e outras14. Está claro que “o objetivo dos colonizadores era o lucro, e a função da população colonial era propiciar tais lucros às camadas dominantes metropolitanas” (RIBEIRO, 1988, p. 21). Não tendo encontrado o eldorado15 de imediato, os colonizadores lançaram-se à extração das matas costeiras de pau-brasil que logo se esgotaram. Em seguida a empresa colonial, movida pelo capitalismo-mercantil, foi obrigada a “empreender a colonização em termos de povoamento e cultivo da terra” (RIBEIRO, p. 21), tendo encontrado sua fortuna na indústria açucareira movida pela mão-de-obra escravizada. 14 Na famosa Carta de Pero Vaz de Caminha – documento inaugural da história do Brasil – em 1500, o autor confessa claramente a intencionalidade que presidiu o “achamento” do Brasil pelo Reino de Portugal. Segundo ele o Capitão-mor da expedição, desde os primeiros contatos com os nativos tratou logo de demandar pelas riquezas da terra: “Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. [...] [Ali encontrou um velho índio que] falava enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender nem ele a nós quantas cousas lhe demandávamos acerca d’ouro que nós desejávamos saber se na terra havia” (CAMINHA, 2003, p.105). 15 Eldorado foi o sonho que alimentou as seguidas expedições dos conquistadores portugueses e espanhóis pelo interior desconhecido do continente americano, buscando um lugar mitológico onde haveria muito ouro. Na América espanhola esta busca foi acompanhada de violentas guerras de extermínio que dizimaram populações e culturas inteiras logo nos primeiros anos de colonização. No Brasil o ciclo da mineração, nos séculos XVII e XVIII produziu o mesmo horror e violência. Os bandeirantes – responsáveis pela expansão territorial do Brasil – somente nas três primeiras décadas do séc. XVII mataram ou escravizaram cerca de 500 mil índios, nas seguidas expedições ou bandeiras que realizaram pelos sertões. Além de conquistadores de território para o Brasil os bandeirantes foram grandes criminosos, celebrados na história nacional como heróis. (BUENO, 1997, p. 41.65-72). 24 1.2.1 – A educação no Período Colonial Brasileiro: Sistema Jesuítico de ensino Para MORAIS (1989, p. 91) “a estrutura social do Brasil – da colonização até hoje – se tem caracterizado pela alternância de diferentes submissões”. Assim é que no Regimento de 17.12.1548 – documento de Dom João III (1502-1557) que apontava algumas diretrizes básicas de Portugal em relação ao Brasil recém-descoberto – uma das determinações se referia “à conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e pela instrução” (RIBEIRO, p. 19). Pois que a religião e a educação serviriam de instrumentos de submissão dos nativos aos propósitos da empresa colonizadora. Nesse período, infelizmente, “catequese e colonialismo andaram sempre juntos” (BUENO, 1997, p. 33). Naquele momento os jesuítas eram os únicos educadores disponíveis na colônia e empreenderam grande esforço para dar conta da tarefa da instrução dos indígenas, como determinavam os Regimentos, e ainda educar os filhos dos colonos. Pe. Manoel da Nóbrega (1517-1570), expoente do grupo de jesuítas enviados ao Brasil, concebeu o primeiro plano educacional brasileiro que propunha “Recolhimentos, nos quais se educassem os mamelucos, os órfãos e os filhos dos principais (caciques) da terra [além] dos filhos dos colonos brancos dos povoados [...] em regime de externato” (MATTOS, 1958, p. 84-85 apud RIBEIRO, 1988, p. 23). 25 O plano de Nóbrega propunha estudos elementares, como o aprendizado do português e da doutrina cristã, além de leitura, escrita, canto orfeônico e música instrumental. Em seguida havia o aprendizado profissional e agrícola de um lado e de gramática latina e envio para a Europa de outro. Não demorou e o plano educacional de Nóbrega já enfrentava sérias crises e resistências na própria Companhia de Jesus, sobretudo, quando esta organizou as Constituições internas e definiu a sua Ratio Studiorum16 que, de inspiração européia, contemplava cursos de humanidades, filosofia, teologia e posterior implementação dos estudos na Europa. Se de início, no projeto de instrução dos jesuítas, não havia “de modo explícito, a intenção de fazer com que o ensino profissional atendesse à população indígena e o outro [intelectual] à população branca exclusivamente” (RIBEIRO, p.23), não tardou muito para que os colégios jesuíticos se configurassem como “o instrumento de formação da elite colonial” (RIBEIRO, p. 25). Enquanto os descendentes dos colonizadoreseram ‘instruídos’ e preparados para o trabalho intelectual, os indígenas, por sua vez, eram apenas ‘catequizados’ e talhados para o trabalho profissional. 16 “Conjunto de normas criado para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos. [...] Tinha por finalidade ordenar as atividades, funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuíticas [...] O objetivo maior da educação jesuítica segundo a própria Companhia não era o de inovar, mas sim de cumprir as palavras de Cristo: ‘Docete omnes gentes, ensinai, instruí, mostrai a todos a verdade’. Esse foi um dos motivos pelos quais os jesuítas desempenharam na Europa, e também no chamado Novo Mundo, o papel de educadores, unido à veia missionária da Ordem” (TOLEDO, 2006). 26 Como na antiguidade clássica aqui também se nutriu grande desprezo pelo trabalho manual, freqüentemente identificado como atividade de escravos, que eram a maioria da população na época, formada por indígenas e negros africanos e seus descentes. Segundo MOURA (2000, p. 33) “na psicologia ibérica, formadora de nossa própria, nos tempos da colonização há que se levar em conta que o ócio sempre contou mais que o negócio”. O privilegiamento do trabalho intelectual em detrimento do manual afastava os alunos dos assuntos e problemas relativos à realidade imediata, distinguia-os da maioria da população que era escrava e iletrada e alimentava a idéia de que o mundo civilizado estava ‘lá fora’ e servia de modelo. Os letrados acabavam por rejeitar não apenas esta maioria, e exercer sobre ela uma eficiente dominação, como também a própria realidade colonial, contribuindo para a manutenção deste traço de dominação externa e não para sua superação (RIBEIRO, p. 28). A obra de catequese, [...] objetivo principal da presença da Companhia de Jesus no Brasil, acabou gradativamente cedendo lugar, em importância, à educação da elite [...] A educação dada pelos jesuítas [foi] transformada em educação de classe, com as características que tão bem distinguiam a aristocracia rural brasileira, que atravessou todo o período colonial e imperial e atingiu o período republicano [...] Esse tipo de educação veio a transformar- se no símbolo da própria classe, distintivo desta, fim, portanto, almejado por todo aquele que procurava adquirir status [...] Símbolo de classe, esse tipo de educação livresca, acadêmica e aristocrática foi fator coadjuvante na construção das estruturas de poder na Colônia [...] A classe dirigente, aos poucos, foi tomando consciência do poder dessa educação na formação de seus representantes políticos junto ao poder público. Os primeiros representantes da Colônia junto às Cortes foram os filhos dos senhores de engenho educados no sistema jesuítico (ROMANELLI, 1991, p. 35-36). 27 Enquanto os propósitos da educação jesuítica correspondiam plenamente aos objetivos da empresa colonial os jesuítas gozaram de grande prestígio junto à Coroa Portuguesa e obtiveram largos benefícios, sobretudo através do chamado Padrão de Redízima, instituído a partir de 1564, que era a maneira como a Coroa subsidiava o trabalho da Companhia de Jesus: “10% de toda arrecadação dos dízimos reais (impostos), em todas as capitanias da colônia e seus povoados, ficavam para sempre vinculados à manutenção e sustento dos colégios jesuíticos” (RIBEIRO, p. 29). No século XVIII, sob influência do espírito iluminista17, o Marquês de Pombal18, poderoso ministro do monarca Dom José I (1750-1777), empreendeu grande esforço de renovação de Portugal que se encontrava em decadência, visando recuperar a economia, melhorar a eficiência administrativa e modernizar a cultura portuguesa. Entre outras medidas que “buscavam transformar Portugal numa metrópole capitalista” (RIBEIRO, p. 35) estava a ampliação da exploração da Colônia (Brasil) aumentando a arrecadação. “A política colonial portuguesa tinha como objetivo a conquista do capital necessário para sua passagem da etapa mercantil para a industrial” (SECO & AMARAL, 2006), o que nunca conseguiu. 17 Iluminismo foi o movimento filosófico surgido na França, no século XVII que defendia o predomínio da razão sobre os valores religiosos que, até então, norteavam a vida da sociedade medieval. Definindo-se como eminentemente críticos e racionalistas os pensadores iluministas depreciavam o passado e as tradições, seu compromisso era como o futuro e a ciência para eles era a juíza suprema de todos os valores (LARA, 1986, p. 69-70). 18 Sebastião de Carvalho e Melo 28 A Companhia de Jesus foi atingida diretamente pelas reformas pombalinas, pois “era detentora de um poder econômico que deveria ser devolvido ao governo [e] educava o cristão a serviço da ordem religiosa e não dos interesses do país” (RIBEIRO, p. 34), segundo as razões de estado invocadas por Pombal à época do conflito com os jesuístas. Ora, na administração pombalina houve “uma tentativa de atribuir à Companhia de Jesus todos os males da educação, na metrópole e na colônia, motivo pelo qual os jesuítas [foram] responsabilizados pela decadência cultural e educacional imperante na sociedade portuguesa” (MACIEL & SHIGUNOV, 2006, p.469). Em 1759 foram expulsos de Portugal e do Brasil, seus bens foram confiscados e seus colégios extintos. Em substituição ao modelo de educação dos jesuítas Pombal instituiu “as aulas régias ou avulsas de latim, grego, filosofia e retórica, [...] e criou a figura do ‘diretor geral dos estudos’ para nomear e fiscalizar a ação dos professores” (SECO & AMARAL, 2006). Na prática isso significou o surgimento de uma organização de ensino público propriamente dito, “não mais aquele financiado pelo Estado, mas que formava o indivíduo para a Igreja, e sim o financiado pelo e para o Estado” (RIBEIRO, p. 34), que formava o sujeito para o serviço do Estado. A reforma pombalina foi desastrosa para a educação brasileira, pois “destruiu uma organização educacional já consolidada e com resultados, ainda que discutíveis e contestáveis, e não implementou uma reforma que garantisse um novo sistema educacional” (MACIEL & SHIGUNOV, 2006, p. 475). 29 O que permaneceu, porém, como característica fundamental da educação em todo o período colonial no Brasil – antes, durante e depois de Pombal – foi a exclusão sistemática do acesso ao ensino de grande contingente da população formado por negros escravos, indígenas, homens livres e pobres e outros, permanecendo a educação reservada à uma elite que fez dela ornamento e signo de seu status. AZEVEDO (1963, p. 31 apud RIBEIRO, p. 36), analisando a cultura brasileira concluiu que, no período colonial, 1.2.2 – A educação Brasileira no século XIX: Formação das elites para a política e dos pobres para o trabalho Ao se aproximar a data em que se completarão duzentos anos da vinda da família real portuguesa para o Brasil se desenvolve intenso debate entre historiadores brasileiros e portugueses acerca da importância e significado desse evento para a história do Brasil e de Portugal. Diversas obras têm sido publicadas [...] já não era somente pela propriedade da terra e pelo número de escravos que se media a importância ou se avaliava a situação social dos colonos: os graus de bacharel e os de mestre em artes (dados pelos colégios) passaram a exercer o papel de escada ou de ascensor, na hierarquia social da Colônia, onde se constituiu uma pequena aristocracia de letrados, futuros teólogos, padres-mestres,juízes e magistrados 30 apresentando leituras e releituras daquele período, bem como apontando suas repercussões e conseqüências até os dias de hoje19. Com efeito, no início do século XIX Portugal era pressionado, política e economicamente, por dois poderosos inimigos que disputavam a hegemonia na Europa. A Coroa portuguesa se equilibrava diplomaticamente em meio ao conflito entre a França de Napoleão e a Inglaterra, único país com força suficiente naquele momento para opor resistência à maquina de guerra francesa. Em 1806 Napoleão Bonaparte decretou o Bloqueio Continental proibindo qualquer país europeu de comerciar com a Inglaterra. O objetivo dessa medida era isolar os ingleses e reservar o mercado europeu para os produtos franceses. No final de 1807 a Corte Portuguesa – acuada pelos ingleses e na iminência da invasão de seu território pelos franceses – fugiu para o Brasil, colônia que até então fora apenas e tão somente grande fornecedora de riquezas, especialmente minerais, para o tesouro da Coroa20. Segundo GOMES (2007) o deslocamento da família real para o Brasil significou, de fato, o nascimento do Brasil como país, pois sem a presença da corte portuguesa o inevitável processo de independência da colônia teria se 19 A este propósito conferir as obras de CARVALHO (2007), GOMES (2007), LIMA (2006), MAXWELL (2001). 20 Segundo FERNANDES (2002) “em 1800 Portugal já está sem força, pois acabara o dinheiro que vinha do Brasil, cujo apogeu foi entre 1750 e 1760, quando se estima que veio uma fortuna, de 2,5 milhões de toneladas de ouro e 1,5 milhões de quilates de diamantes, que ajudou a reconstruir Lisboa destruída pelo terremoto [em 1755] ao tempo de D. José I e do Marquês de Pombal [1750- 1777]”. 31 pulverizado, fracionando o território brasileiro em pequenas repúblicas como ocorreu com a América espanhola. Desse modo, a independência brasileira se iniciou efetivamente com a vinda da família real, pois, “ao instalar no Brasil a sede da monarquia, e ao tomar medidas de grande impacto político e econômico [...] D. João aboliu efetivamente o regime colonial” (COTRIM, s.d.). À chegada da família real no Brasil, em 07 de março de 1808, seguiram-se diversas medidas emancipatórias e de modernização da colônia. Dom João VI, o príncipe-regente, através de sucessivos decretos autorizou a abertura dos portos brasileiros para as nações amigas, concedeu alvará de liberdade industrial que permitia a abertura da tecelagem e manufatura de metais e alimentos, fundou o Banco do Brasil, criou a Imprensa Régia e a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação; elevou o Brasil a Reino Unido com Portugal e Algarves, mandou construir o primeiro teatro brasileiro, instituiu o Museu Real e a Biblioteca Nacional com um acervo 60 mil volumes trazidos de Portugal. Além disso, Dom João VI mandou vir da França um grupo de peritos que ficou conhecido na história como ‘missão francesa’, composto de pintores, escultores, gravadores e arquitetos , cuja ‘missão civilizatória’ no Brasil “daria à cidade [do Rio de Janeiro] um verniz de civilização” (BUENO, 1997, p. 92). Para tanto a equipe foi “incumbida de difundir, na vida primitiva da colônia, o gosto ao mesmo tempo pela arte e pela indústria” (MORAIS, 1989,p. 95). Enfim, a Corte 32 Portuguesa refugiada no Brasil, decididamente, “não queria viver na realidade estagnada e medievalesca que antes nos impusera” (MORAIS, Id)21. No campo educacional “são criados cursos, por ser preciso o preparo de pessoal mais diversificado” (RIBEIRO,1988,p.40) e especializado para os serviços do governo; contudo, “a enfase recaiu na criação de escolas de nível superior, descuidando-se dos demais níveis” (ARANHA, 2006, p. 126). A criação desses cursos superiores tinha “o propósito exclusivo de proporcionar educação para uma elite aristocrática e nobre de que se compunha a corte” (ROMANELLI, 1991, p. 38), prolongando a tradição de educação aristocrática do Brasil colônia. 21 Durante o período colonial “iniciativas importantes foram abortadas pela Coroa. [Por exemplo],o estabelecimento da primeira gráfica na cidade [do Rio de Janeiro] do empresário de Lisboa Antonio Isidoro da Fonseca, que chegou a publicar material para uso no comércio e obras de cunho literário e acadêmico, durou pouco, pois em 10 de maio de 1747 foi promulgada a ordem régia proibindo gráficas e publicação de ‘livro e papel avulso’ no Brasil. Igual destino tiveram as fábricas de tecidos, de linhas e galões finos, até com fios de ouro e prata, por meio do alvará de Dona Maria I de 5 de janeiro de 1785, mandando fechar todas as fábricas no Brasil. Na cidade do Rio de Janeiro foram fechadas 16 fábricas e seus teares enviados para Lisboa. Só foi permitida a permanência da industria naval por interesse da coroa na fabricação e nos consertos das embarcações reais” (CAVALCANTI, 2007). Fatos como esses provocaram um irreparável atraso no desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil, cujas conseqüências perduram até os dias atuais. É em razão da defesa militar que são criadas, em 1808, a Academia Real de Marinha e, em 1810, a Academia Real Militar [...] a fim de que atendesse à formação de oficiais e engenheiros civis e militares. Em 1808 é criado o curso de cirurgia (Bahia), que se instalou no Hospital Militar, e os cursos de cirurgia e anatomia, no Rio. No ano seguinte, nesta mesma cidade, organiza-se o de medicina. Todos esses visam atender à formação de médicos e cirurgiões para o Exército e a Marinha (RIBEIRO, 1988, p.40). 33 A proclamação da independência do Brasil em 1822 colocou a educação em evidência, ou ao menos a necessidade dela. Com o retorno da família real e toda a Corte para Portugal havia necessidade de formar quadros para o incipiente governo imperial. “A conquista da autonomia política, ou seja, o surgimento da nação brasileira, impunha exigências à organização educacional” (RIBEIRO, p. 45), no sentido da constituição de uma rede escolar articulada, com métodos, conteúdos e objetivos claramente delineados e “capaz de receber todos em idade escolar, distribuídos nos seus diferentes graus” (Ibd.). Bem por isso, em 1823, os membros da Assembléia Constituinte encarregada de elaborar uma Constituição para o Império “aludem à necessidade de se colocar em discussão o ensino no Brasil” (MORAIS, 1989, p. 98), e cultivam a idéia de um sistema nacional de educação em duplo aspecto: “graduação das escolas e distribuição racional por todo o território nacional” (RIBEIRO, p. 44). Segundo BUENO (1997, p.117) o perfil ideológico da maioria dos membros da Assembléia Constituinte de 1823 pode ser classificado como “liberal democrata”, pois queriam “instituir [no Brasil] uma monarquia constituinte que respeitasse os direitos individuais”. Dom Pedro I, no entanto, “queria poder de veto e controle total sobre o Legislativo”. As seguidas desavenças entre o imperador e os constituintes redundaram na destituição da Assembléia. Em 12 de novembro de 1823 Dom Pedro I “mandou o exército invadir o plenário, muitos deputados foram presos e exilados”. 34 Em 1824 Dom Pedro I outorgou, de forma autocrática, a nova Constituição do Império que permaneceria praticamente inalterada até a proclamação da república no final do século XIX. No texto publicado pelo imperador desapareceu a noção de sistema nacional de educação. O artigo 179 da Constituição se referia à educação da seguinte forma: Para além doque estabelecia a lei, na prática “o novo império continuava uma velha sociedade escravocrata [na qual] não muita gente se encontrava em condição de estudar” (MORAIS, 1989, p.99). Aos escravos era proibida a educação; as mulheres – salvo raríssimas exceções – também não estudavam; os homens brancos e pobres não tinham acesso à educação formal: “restava, para um atendimento escolar, a elite branca e livre” (IDEM). MARCHESE (2006, p. 118) informa que “a população colonial brasileira no início do século XIX guardava as seguintes proporções: 28% de brancos, 27,8% de negros e mulatos livres, 38,5% de negros e mulatos escravizados, 5,7% de índios”. Esses números dão a dimensão da enorme parcela da população brasileira que naquele período não era alcançada pela educação. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império [entre outras maneiras pela] instrução primária gratuita a todos os cidadãos [...] [e] pela criação de Colégios e Universidades, onde serão ensinados os elementos das ciências, belas artes e artes (ALMEIDA & BARRETO, 1967, p. 192 apud RIBEIRO, 1988, p. 44). 35 O século XIX se iniciou marcado pela revolução industrial na Europa, sobretudo na Inglaterra, pela disseminação das idéias liberais e pelo processo de emancipação política das colônias da América. Aos poucos, o capitalismo inglês foi impondo suas regras para a economia mundial e forçando mudanças que favorecessem seu desenvolvimento. O Brasil, contudo, alheio à revolução industrial intensificou nesse período a exploração da mão-de-obra escravizada, investindo pesadamente no modelo agrário-comercial-exportador, ancorado, sobretudo, na cultura cafeeira22. Ora, o regime escravocrata que sustentava a economia das colônias era “um entrave ao crescimento dos mercados e à modernização dos métodos de produção” (MOURA, 2000, p. 35); bem por isso, a Inglaterra se empenhou tanto na defesa da abolição da escravatura e combateu com sua poderosa armada o tráfico negreiro. A lei Bill Aberdeen, de 8 de agosto de 1845, dava aos ingleses “pleno direito de apreender, julgar e punir toda embarcação negreira do país [Brasil] capturada em todos os mares pelos navios britânicos”(IDEM, p. 36). A pressão externa da Inglaterra aliada aos anseios abolicionistas de diversos grupos no Brasil introduziu definitivamente na agenda nacional a questão da abolição da escravatura, como condição para o avanço e a viabilidade do Brasil como nação independente e soberana no cenário político-econômico internacional. 22 “No período de quarenta anos compreendido entre a vinda da família real para o Brasil (1808) e o fim definitivo do tráfico [negreiro], em 1850, foram introduzidos mais de 1,4 milhão de cativos no Império, ou seja, cerca de 40% de todos os africanos desembarcados como escravos em três séculos da história do Brasil” (MARCHESE, 2006, p.121-122). 36 Depois de seguidas tentativas e vários tratados internacionais simplesmente ignorados ou burlados, a lei Eusébio de Queiroz, de 4 de setembro de 1850, encerrou definitivamente o tráfico humano para o Brasil (BUENO, 1997, p. 147). A essa lei seguiram-se outras23 que, protegendo os interesses econômicos dos senhores e da elite agrária e conservadora da época, visavam protelar a abolição total da escravatura – que só ocorreria em 1888 – através de medidas paliativas que retardassem o mais possível o inevitável desfecho. A esta altura a cultura do café fazia a fortuna da elite dirigente e era necessário garantir a oferta de braços para a lavoura. Em substituição à mão-de- obra escravizada a elite econômica foi buscar nos imigrantes estrangeiros a força de trabalho necessária para garantir a continuidade de seu projeto e, ao mesmo tempo, começou a se interessar pela educação como “possibilidade de capacitar” os trabalhadores para os seus interesses na época (HOBSBAWM, 1979, p. 135 apud MOURA, p. 39), pois acreditava que, “educados os lavradores, haverá de sobra terras e braços” (LANNA, 1989, p. 63 apud TEIXEIRA, 2006,p. 13). 23 Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 “segundo a qual seria livre qualquer filho de escrava nascido no Brasil” (BUENO, 1997, p. 151); Lei dos Sexagenários de 28 de setembro de 1884 que “concedia liberdade aos cativos maiores de 60 anos e estabelecia normas para a libertação gradual de todos os escravos, mediante indenização” (IDEM), a ser paga pelo Estado aos antigos senhores de escravos. A idéia de ‘educação para o trabalho’, amplamente discutida nesses anos por senhores de terras e escravos, dirigentes políticos e pessoas de algum modo vinculadas ao mundo cafeeiro de então, foi um dos pilares do compromisso estabelecido, procurando reajustar noções de trabalho existentes às exigências do tempo, de modo que quando não fosse mais possível manter os escravos assenzalados, os ritmos intensos de trabalho nas emergentes lavouras cafeeiras paulistas se mantivessem (MOURA, 2000, p. 37). 37 Do ponto de vista da elite tratava-se, nesse momento, de implementar uma ética do trabalho que mantivesse “a gente do povo [...] em lides exaustivas e intermináveis [...] até como uma maneira de conter o risco potencial de criminalidade e anarquia” (MOURA, p. 34) que, se supunha, os desocupados representavam, além de canalizar toda sua força de trabalho para os interesses da oligarquia agrária brasileira. Aos ex-escravos libertos somavam-se os imigrantes estrangeiros e os pobres em geral na categoria dos que deveriam ser educados para o trabalho. Enquanto isso, aos filhos dos barões de café, ricos proprietários de terras e escravos, se reservava a formação superior, sobretudo no bacharelado em direito, mas também na medicina, farmácia, engenharia civil ou militar e na carreira eclesiástica. “Como bacharéis em direito, facilmente chagariam à posse dos altos cargos políticos do país, os quais suas famílias, em boa parte, já dominavam” (IDEM, p. 42). Noutra via, “a educação voltada para a grande maioria da população brasileira, priorizava os interesses da lavoura”, pois, “tratava-se de formar ‘braços’ ou ‘operários’, não seres sociais” (IDEM, p. 43); por isso houve grande insistência na criação de fazendas-escola para recolher crianças e adolescentes órfãos, ingênuos24, libertos, filhos de imigrantes e outros. Na busca de formar trabalhadores pela educação “as crianças desvalidas, muitas vezes, descendentes 24 Filhos de escravas nascidos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871. 38 da escravidão, eram o alvo principal, pois poderiam ser educadas desde cedo para atender às novas expectativas de trabalho” (TEIXEIRA, 2006, p. 22). Dessa maneira, à época da proclamação da República em 1889, a educação popular estava abandonada, resumindo-se à algumas escolas primárias e de formação profissional25, enquanto o ensino médio era como que um propedêutico para o acesso aos níveis superiores, reservado às elites. O século XIX, sem dúvida, foi um divisor de águas na história brasileira, pois em menos de cem anos ocorreram fatos cuja abrangência histórica superou de longe tudo que aconteceu nos primeiros três séculos do período colonial. O êxodo da família real para o Brasil nos primeiros anos desse século como que desencadeou uma série inigualável de eventos transformadores, como a aberturados portos, a independência política, a primeira constituição, o surgimento do país como nação autônoma, a abolição da escravatura, a 25 ROMANELLI (1991, p. 40) informa que no ano de 1888 havia 250 mil alunos nas escolas primárias para uma população de aproximadamente 14 milhões de brasileiros. Nessa sociedade, de economia baseada no latifúndio e [até há pouco] na escravidão, e à qual, por isso, não interessava a educação popular,era para os ginásios e as escolas superiores que afluíam os rapazes do tempo com possibilidades de fazer os estudos [...] Esse contraste entre a quase ausência de educação popular e o desenvolvimento de formação de elites tinha de forçosamente estabelecer, como estabeleceu, uma enorme desigualdade entre a cultura da classe dirigida,de nível extremamente baixo, e a da classe dirigente, elevando sobre uma grande massa de analfabetos [...] uma pequena elite em que figuravam homens de cultura requintada (AZEVEDO, 1963, p. 572-574 apud ARANHA, 2002, p. 158). 39 proclamação da República, em que pese os limites e contradições presentes no contexto e circunstâncias que envolveram cada um desses fatos. A educação, contudo, permaneceu orientada pela mesma lógica de submissão desde o início da história colonial, prolongando-se inalterada essa lógica durante todo o século XIX, mesmo em face das grandes mudanças ocorridas. Como afirma MORAIS (1989, p. 91), houve apenas “alternância de diferentes submissões”, que mantiveram sempre uma elite com acesso restrito aos melhores bens educacionais, em detrimento da maioria da população, distanciada do ensino, ora escravizada, ora liberta, mas totalmente consumida pelo trabalho alienado para sustentar o projeto da elite. 1.2.3. – A educação brasileira no século XX: O desafio da universalização do ensino No início do século XX o Brasil vivia os primeiros anos da experiência republicana. Com o fim da monarquia em 1889 se iniciou o período da chamada Primeira Republica26, no qual a nova organização política brasileira se firmava com uma nova constituição, aprovada em 1891, e a criação de um governo representativo, federal e presidencial. A Revolução Federalista de 1893 no sul do país e a Revolta de Canudos no sertão baiano – duas guerras civis – ajudaram a 26 Também denominado de República Velha, República Oligárquica, República dos Coronéis e República do Café 40 sacudir este período histórico e a revelar as incongruências e contradições do novo regime político que se instalara no Brasil. A cultura do café, sobretudo nas regiões sul e sudeste do país, deu continuidade ao modelo agrário-exportador da economia brasileira, herdado da época do império. No entanto, um “traço evolutivo predominante [desse período] foi a lenta urbanização em função da passagem do regime escravocrata para o regime assalariado, conservando-se as elites agrárias no poder” (MONLEVADE, 2001, p. 36). Nessa época desenvolvia-se também uma incipiente industrialização. A Constituição de 1891 manteve a descentralização da educação primária estabelecida desde 1834 pelo Ato Adicional à Constituição do Império, que atribuíra às províncias a responsabilidade pelo ensino primário e secundário. “Essa descentralização conservava a precariedade do ensino primário nas diversas regiões do país, uma vez que a maioria delas era incapaz de arcar com essas despesas” (LOPES, 2006, p. 2). Se, de um lado, havia o anseio pela universalização da educação popular, próprio do espírito positivista da republica, de outro o modelo agro- Todos os velhos descaminhos da política e da economia brasileiras se materializaram plenamente nos dez primeiros anos da república. Escândalos financeiros, arrocho salarial, clientelismo, aumento dos impostos, regime oligárquico, coronelismo, repressão aos movimentos populares, desvio de verbas, impunidade, fraude eleitoral, fechamento do Congresso, estado de sítio, crimes políticos, confronto entre governos civis e governos militares [...] O Brasil ingressou no século XX da maneira mais turbulenta possível (BUENO, 1997, p. 161) 41 exportador da economia prescindia da universalização da alfabetização, pois “não interessava aos políticos a escolarização da população [...] eram exatamente os mais letrados que perturbavam a ordem” (MONLEVADE, Idem). Ora, a Primeira Republica “foi um período marcado por uma rica legislação educacional” (LOPES, 2006, p.1) que, na prática, não resultou na democratização do ensino; antes, ajudou a implementar o ensino superior, “prioridade das classes dirigentes” (Idem, p. 3), em detrimento da escola primária que “manteve-se, durante as primeiras décadas da República, nos mesmos moldes da velha escola de primeiras letras” (Idem, p. 2) da época imperial. A ampliação do ensino primário esbarrava na falta de professores e permaneceu apenas no anseio, enquanto aumentava a demanda pelo ensino secundário e superior. Entre 1891 e 1910 foram criadas 27 escolas superiores, saltando o número de estudantes do nível superior de aproximadamente 2.300 em 1880 para cerca de 20 mil no final da Primeira República, em 1930. Cresceu também nesse período o número “de escolas comunitárias, principalmente confessionais, primárias e secundárias, nas cidades maiores do interior do país” (MONLEVADE, 2001, p. 37) que visavam suprir a deficiência de escolarização pública. O abandono da escola elementar desde o período imperial, aliado à educação aristocrática voltada às elites, em prejuízo da grande maioria da população excluída do ensino, redundou em índices elevados de analfabetismo no 42 início do século XX. Em 1890 a taxa de analfabetismo da população brasileira chegava a 67,2% e trinta anos depois, em 1920, ainda era de 60,1% (ARANHA, 1996, p. 155). “Mais da metade da população de quinze anos e mais em 1920 havia sido totalmente excluída da escola” (RIBEIRO, 1988, p. 74). A história da educação no Brasil evoluiu sempre “através de rupturas marcantes” (BELLO,2001) nos diversos períodos que a constituem. Isso se confirmou particularmente na chamada Revolução de 193027 que marcou o encerramento da Primeira República. Nos anos anteriores a 1930 as oligarquias agrárias foram declinando paulatinamente em importância e poder “devido à existência de novas forças sociais, em decorrência das modificações na estrutura econômica”28 (RIBEIRO, p. 86). Ocorreu que o modo de produção agrário- exportador vigente desde a época da Colônia foi substituído pelo modelo urbano- industrial capitalista29 na perspectiva desenvolvimentista. 27 Getulio Vargas tomou o poder através de um golpe de estado em 31 de outubro daquele ano e colocou fim a uma série de conflitos que se arrastaram por alguns anos através da implantação de um regime ditatorial de governo (BUENO, 1997, p. 217) 28 A crise da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929 atingiu a economia mundial, em razão da interdependência do sistema capitalista, provocando crise em diversos países, inclusive no Brasil cuja economia estava quase toda ancorada na produção e exportação de café. 29 Em 1907 existiam no Brasil 3258 industrias empregando cerca de 150 mil operários, em 1920 havia mais de 13 mil empreendimentos industriais ocupando cerca de 276 mil operários (RIBEIRO, 1988, p. 86). A Revolução de 1930 foi o marco referencial para a entrada do Brasil no mundo capitalista de produção. A acumulação de capital, do período anterior, permitiu com que o Brasil pudesse investirno mercado interno e na produção industrial. A nova realidade brasileira passou a exigir uma mão-de-obra especializada e para tal era preciso investir na educação (BELLO, 2001). 43 Ao “novo modo de produção [...] correspondia uma nova sociedade, urbana e letrada” (MONLEVADE, 2001, p. 41), que exigia a ampliação do ensino, sobretudo, nas regiões mais industrializadas, buscando-se também a erradicação do analfabetismo através de políticas públicas e campanhas de escolarização. Ao movimento de 1930, que marcou o início da Segunda República, seguiram-se diversos fatos importantes e decisivos para a história da educação brasileira. Nesse mesmo ano foi criado o Ministério da Educação e Saúde; no ano seguinte o governo provisório publicou diversos decretos visando organizar o ensino secundário e as universidades brasileiras que ainda não existiam; em 1932 surgiu o Manifesto dos Pioneiros30 da Educação Nova; em 1934, a nova constituição afirmou a educação como direito de todos, responsabilidade da família e do Estado (BELLO, 2001). Nos quarenta anos que se seguiram ao movimento de 1930 foi se constituindo uma tentativa de Sistema Nacional de Educação Federal no Brasil através de diversas iniciativas em diferentes níveis de governo. 30 Texto elaborado por Fernando de Azevedo e assinado por 26 intelectuais, entre os quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto e Cecília Meirelles que “consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. [...] O documento se tornou o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país. Além de constatar a desorganização do aparelho escolar, propunha que o Estado organizasse um plano geral de educação e defendia a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita” (BOMENY) para todos. 44 Nesse período, contudo – apesar dos limites e contradições sempre presentes – se viabilizou uma das promessas da República no tocante à universalização da educação, pois, “nos princípios republicanos a instrução foi um dos pilares para o progresso e a cidadania, como parte de um projeto civilizatório” (ANDREOTTI, 2006, p. 2). A partir de 1930 cresceu exponencialmente o número de matrículas, forçando a fundação de inúmeras escolas e a multiplicação de turnos, inclusive noturnos, o que acarretou perda de qualidade no ensino. Para atender a crescente demanda “não se construíram mais escolas e sim salas de aula” (MONLEVADE, p. 43), espaços precários e “cada vez menos equipados para o ensino” (Ibid.). Desde 1930 até os dias de hoje o Brasil já teve cinco novas Constituições (1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), elaboradas e aprovadas por sucessivos governos que se alternaram entre períodos de regimes de força ditatorial (1930-1945 e 1964-1985) e períodos de normalidade democrática com eleições livres e diretas, além da realização de referendos e plebiscitos para consulta popular. A União aumentou seus investimentos em educação superior [...] os governos estaduais ampliaram explosivamente as vagas nas escolas primárias e nos ginásios; e os municípios [...] começaram a assumir a educação infantil e a alfabetização de adultos, além de abrir escolas primárias e secundárias onde faltava a presença estadual ou onde sobravam recursos de transferências de impostos, gerados pelo crescimento das indústrias e pela circulação do comércio (MONLEVADE, 2001, p. 42). 45 Nesse período a educação brasileira foi alvo de inúmeros projetos, reformas e leis de diretrizes e bases que procuraram responder às contradições inerentes à sociedade de classes, ampliando o acesso ao ensino e buscando garantir cidadania a todos os extratos sociais. Com efeito, adentrando o século XXI, a democratização do ensino é um fato, Ao mesmo tempo em que se ampliou a acesso ao ensino, as escolas públicas – tomadas pela presença hegemônica das classes populares – contraditoriamente, foram sofrendo um seguido processo de desqualificação “pelo aligeiramento do ensino e das exigências de aprendizagem” (MONLEVADE, 2001, p. 46) De outro lado grandes contingentes de alunos matriculados nas séries iniciais do processo de ensino nas escolas públicas não conseguiam dar seguimento aos estudos. Reprovados ou evadidos da escola por razões diversas esses alunos deram origem ao analfabeto funcional, “alguém que assina o nome, se familiariza com letras e números, pega o ‘sabor’ da cultura letrada, mas não o hábito de ler e muito menos o saber científico” (Ibid.). E até mesmo muitos daqueles que cumpriram todo o processo educacional oferecido, se submetidos a [...] a paisagem humana das salas de aula evoluiu das comportadas crianças das elites e classes médias para a população tipicamente brasileira, pobre, mestiça, com dificuldades de comprar caderno, lápis, e uniforme (MONLEVADE, 2001, p. 46). As elites e as classes médias passaram a freqüentar colégios privados caros e de boa qualidade, passaporte quase certo para o ensino superior em cursos de prestígio das universidades públicas federais e estaduais gratuitas. (IDEM, p. 47). 46 uma avaliação simples, se conclui que não aprenderam o que as escolas se propuseram a ensinar. A constatação triste que se pode fazer é que, no início do século XXI, algumas características da sociedade colonial e imperial ainda persistem na realidade brasileira: uma elite usufrui os melhores bens educacionais e ocupa os melhores postos sociais, como resultado de um processo histórico de privilegiamento que lhe tem favorecido secularmente, inclusive na educação de qualidade que recebe31. Enquanto isso, às classes populares se apresenta uma oferta educacional desqualificada e excludente, privada de recursos e perspectivas, com professores descontentes e mal remunerados32, subsidiada através de políticas públicas de assistência social, tais como distribuição de merendas, uniformes e atendimentos de saúde. 31 A pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE com base nos dados da PNAD-2006, publicada em setembro de 2007, informa que os 20% mais ricos da população brasileira ocupam 54,3% das vagas no ensino superior publico e 64,2% dos lugares na rede particular de ensino superior, caracterizando a universidade do século XXI como um espaço privilegiado dos mais ricos. Esse quadro repete o que tem acontecido desde o início na história da educação brasileira (LAGE & SOARES, 2007). 32 TÓFOLI (2007) reporta que no Estado de São Paulo os professores da rede pública, em início de carreira, recebem salário 39% menor do que os do Estado do Acre, em igual situação. Quando se considera que o custo de vida do Acre é menor que o de São Paulo esta diferença chega a 60%. As crianças e os jovens estão na escola, permanecem nela e recebem seus diplomas, mas não sabem o que deveriam saber ao deixar a escola. Descobriu-se que a escola não ensina, que os alunos não aprendem, que os professores não sabem, que nossos índices de desempenho estão entre os piores do mundo. O que mudou na educação nacional durante todo o século 20? ‘Nada’ pode ser a resposta. Apenas a contabilidade, o registro burocrático é diferente. Passamos da expulsão pura e simples para a evasão, desta
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