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Ovário-histerectomia laparoscópica em uma gata com fetos mumificados – relato de caso Laparoscopic ovaryhysterectomy in a female cat with mumified fetus – case report F. Schiochet1*, C. A. C. Beck1, V. Pinto2, R. Stedile1, E. Contesini1, M. M. Alievi1, P. H. Yamazaki1, D. F. Jurinitz1, S. B. L. Bernardes1 1Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil 2Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Luterana do Brasil CASO CLÍNICO R E V I S T A P O R T U G U E S A CIÊNCIAS VETERINÁRIAS DE Resumo: A ovário-histerecotmia é o tratamento usual para muitas afecções ováricas e uterinas, entre elas: piómetra, torção uterina, ruptura uterina, prolapso uterino e quistos ováricos. A mumificação é o resultado da morte fetal na última metade da gestação com reabsorção fetal incompleta, sendo os agentes virais os principais causadores de aborto nos felinos. A videocirurgia por minimizar o trauma cirúrgico oferece vanta- gens importantes e vêm crescendo na medicina veterinária. O caso relatado é de um felino, fêmea, sem raça determinada, de 3,8 kg e de idade desconhecida. O aumento de volume uterino foi evidenciado durante a visualização da cavidade abdominal por meio de uma videolaparoscopia. Nenhuma complicação foi observada durante o procedimento cirúrgico, bem como durante o pós-operatório, concluindo-se que a técnica foi segura e efetiva. Palavras-chave: ovário-histerectomia, laparoscopia, gata, fetos mumificados. Summary: The ovaryhysterectomy is the usual treatment to many ovarian and uterine diseases, among them pyometra, uterine torsion, uterine prolapse and ovarian cysts. The mummi- fication is the result of fetus death in the last half of pregnancy with incomplete fetus resorption, the virus agents are the main cause of abortion in felines. Because it minimizes the surgical trauma, the video surgery offers important advantages and is increasing in the veterinarian medicine. The case reported is from a female feline, non-determined breed, 3.8 kg and unknown age. The increase uterine volume was evidenced during the visualization of the abdominal cavity through a video laparoscopy. No complication was observed during the surgical procedure, as after the surgery, it was concluded that the technique was safe and effective. Keywords: ovariohysterectomy, laparoscopic, cat, mumified fetus. Introdução Na cirurgia veterinária, tanto a ovário-salpingo- -histerectomia (OSH) como a ovariectomia são procedimentos cirúrgicos comumente utilizados na esterilização eletiva de cadelas e gatas com o objetivo de impedir a reprodução ou tratar várias afecções do trato reprodutivo (Malm et al., 2004), entre elas: quistos ováricos, piómetra, torção uterina e prolapso uterino (Stone et al., 1998). A mumificação é o resultado da morte fetal na última metade da gestação com reabsorção fetal incompleta (Wallace e Davidson, 1997). O aborto pode resultar de alterações fetais, maternos ou placentários. Na gata, os agentes virais (como na leucemia felina, peritonite infecciosa felina e rinotraqueíte felina) são os mais importantes e a reabsorção fetal pode ocorrer sem qualquer sinal clínico ou corrimento vaginal (Grooters, 1998). As abordagens minimamente invasivas não estão surgindo para substituir totalmente a cirurgia convencional, mas, sim, para incorporar-se ao arsenal cirúrgico moderno (Pinotti e Nasi, 1994) e vêm ganhando espaço importante na cirurgia veterinária devido às suas vantagens relacionadas ao reduzido trauma cirúrgico, destacando-se: possibilidade de realizar a intervenção terapêutica durante o diagnóstico, menor volume de sangramento durante a cirúrgia, magnificação das imagens (Beck et al., 2003), melhor aspecto estético (Campos, 2004), melhor preservação da função imunológica (Cohen et al., 2003), entre outras. A primeira utilização da laparoscopia terapêutica foi descrita em duas cadelas com piómetra, sendo a secção dos ligamentos e vasos ovarianos realizada por laparoscopia e o restante do procedimento realizado por cirurgia convencional através da ampliação da incisão pré-púbica existente. Não ocorreram complica- ções durante o pós-operatório em qualquer dos animais 361 *Correspondência: fabianaschiochet@yahoo.com.br Tel: +55 51 96661910, +55 51 33086095 RPCV (2007) 102 (563-564) 361-364Schiochet F et al. (Minami et al., 1997). Desde então, outros relatos foram descritos e os autores consideraram que a técnica de videolaparoscopia ou videolaparoscopia assistida em cães com piómetra pode ser empregadas com segurança e eficiência (Brun et al., 2004b; Brun et al., 2004c; Brun et al., 2006; Uchoa et al., 2004). O presente relato tem como objetivo descrever o acesso laparoscópico para o procedimento de OSH em uma gata com fetos mumificados. Descrição do caso O caso relatado é de um felino, fêmea, sem raça determinada, 3,8 kg de peso e com idade desconhecida, proveniente de uma associação de proteção dos animais. A gata não apresentava sinais clínicos como alteração de temperatura, corrimento vaginal ou anorexia. O procedimento cirúrgico foi realizado no Hospital de Clínicas Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em caráter experimental, sendo o aumento de volume uterino, com presença de fetos mumificados, evidenciado durante a cirurgia. O protocolo anestésico constou de medicação pré-anestésica com acepromazina (0,2 mg/kg) e meperidina (5 mg/kg). Na indução anestésica foi utilizado midazolam (0,5 mg/kg) e propofol (4 mg/kg). A manutenção foi mantida com isofluorano vaporizado em oxigênio a 100% com fluxo de 200 ml/kg. Cerca de trinta minutos antes de iniciar a cirurgia foi administrado ampicilina sódica (20 mg/kg) profilaticamente e a fluidoterapia foi mantida com solução de ringer lactato (10 mg/kg/hs). Com a tricotomia na região ventral já realizada, posi- cionou-se o animal em decúbito dorsal sendo realizada a anti-sepsia de rotina com álcool-álcool iodado- -álcool. A cirurgia iniciou com uma incisão abrangendo pele, subcutâneo e linha alba (técnica aberta) cerca de 4 cm cranial à cicatriz umbilical e com aproximada- mente 1 cm de extensão. Neste sítio foi inserido o primeiro trocarter de 10 mm de diâmetro (Ø) sob visão direta. Após, conectou-se a ele a mangueira do insuflador e a cavidade abdominal foi insuflada com dióxido de carbono (CO2) até atingir a pressão de 10 mmHg, sendo esta mantida durante todo o procedi- mento. Sob visão direta, com a ótica no primeiro trocarter, outros dois trocarteres (10 e 5 mm de Ø) foram colocados, respectivamente à direita e à esquer- da do primeiro, mantendo-se disposição triangular entre eles (Figura 1). Nestes dois trocarteres foram introduzidas as pinças de trabalho para a realização do procedimento cirúrgico. Com o auxílio de uma pinça de apreensão e uma de Kelly foi possível apreender e sustentar o corpo uterino, fixando-o à parede abdominal ventral, cerca de 2,5 cm à direita da linha alba, através da passagem de um ponto de reparo transcutâneo, com fio monofilamento de náilon 2-0 (Figura 2A), a fim de evitar a colocação de um quarto trocarter. Figura 1 - Localização dos três trocartes para OSH laparoscópica destacando a distribuição triangular Após a dissecção dos vasos uterinos, em conjunto com o corpo uterino, foram realizadas duas ligaduras cranialmente à cérvix, com uma distância de aproxi- madamente 1,5 cm entre elas (Figura 2B). As ligaduras foram realizadas com a utilização de um porta-agulhas endoscópico e um contra-porta-agulhas, utilizando-se um segmento de aproximadamente 11 cm de fio ácido poliglicólico 3-0. Na seqüência o corpo uterino foi seccionado com os seus respectivos vasos numa distância média entre as duas ligaduras 362 Figura 2 - Passagem da agulha para fixação do corpo uterino (A). Confecção da primeira ligadura nos vasos e corpo uterino (B).Secção do corpo e vasos uterinos (C) RPCV (2007) 102 (563-564) 361-364Schiochet F et al. (Figura 2C). Houve presença de discreta hemorragia sendo o coto uterino cauterizado com o auxílio de uma pinça de eletrocautério bipolar. Na seqüência, o complexo artério-venoso ovariano (CAVO) do lado esquerdo foi dissecado, sendo reali- zada a fixação do ovário através de um ponto de reparo transcutâneo entre o ligamento suspensório e os vasos ovarianos, utilizando-se fio monofilamento de náilon 2-0 (Figura 3A). O objetivo de suspender o ovário foi tornar possível a realização das ligaduras, onde é indispensável o uso de ambas as mãos do cirurgião. Com o ovário fixado, foram realizadas duas ligaduras com ácido poliglicólico 3-0 cranialmente ao ovário, com uma distância de aproximadamente 1,5 cm entre elas (Figura 3B). Posteriormente, com uma tesoura de Metzenbaum os vasos do CAVO foram seccionados a uma distância média entre as ligaduras (Figura 3C), bem como o ligamento suspensório e as estruturas adjacentes presentes do lado esquerdo. O mesmo procedimento de fixação, ligadura e secção dos vasos ovarianos foram realizados no lado contra- -lateral. A cirurgia teve seqüência com a remoção dos pontos de reparo transcutâneos, promovendo-se a retirada em bloco do útero e ovários da cavidade. Devido ao aumento de volume uterino, a remoção dos ovários e do útero foi em conjunto com a extremidade do segundo trocarter (Figura 4A). Ao seccionar o útero externamente, observou-se a presença dos fetos mumificados (Figura 4B). Ao final do procedimento a cavidade foi inspe- cionada, desinsuflada e os trocarteres removidos. A parede abdominal foi suturada com fio ácido poliglicólico 3-0 padrão Sultan e a pele com pontos isolados simples com monofilamento de náilon 3-0. No pós-operatório foi administrado amoxacilina triidratada (20 mg/kg) por dez dias e cetoprofeno (2 mg/kg) por três dias. Discussão A cirurgia minimamente invasiva por apresentar vantagens vêm despertando crescente interesse, havendo necessidade da realização de estudos para o estabelecimento de novas técnicas com aplicabilidade clínica (Brun e Beck, 1998). No caso relatado, o aces- so videolaparoscópico permitiu-nos adequada visuali- zação do útero, ovários e suas estruturas. Alguns autores recomendam a técnica aberta para a colocação do primeiro trocarter e o valor de pressão do pneumoperitoneu de 12-14 mmHg (Freeman e Hendrickson, 1998). No presente estudo, optou-se pela técnica aberta por ser considerada mais segura, acrescida da característica anatômica dos gatos que apresentam a parede abdominal delgada e a cavidade abdominal pequena, o que favorece a possibilidade de lesão iatrogênica quando se utiliza a técnica fechada. A pressão de CO2 utilizada para o estabelecimento e manutenção do pneumoperitoneu foi de 10 mmHg e permitiu excelente visualização da cavidade e espaço suficiente para a manipulação do instrumental cirúrgi- co, além de minimizar os efeitos cardiovasculares (Zorron et al., 2004) e as alterações respiratórias decorrentes do aumento da pressão intra-abdominal (Normando et al., 2004). A manobra de fixação do corpo uterino e ovários na parede abdominal mostraram-se efetivas, evitando a colocação de um quarto trocarter. Este procedimento baseou-se em um estudo de ovário-histerectomia laparoscópica com uso de três portais em cães realiza- do por Brun et al. (2004a). As técnicas normalmente utilizadas para oclusão dos vasos ovarianos são: eletrocautério bipolar, clipes de titânio, ligadura com fio de sutura e grampeador vascular e os vaso e corpo uterino podem ser ligados através de endoloop ou ligadura extracorpórea (Freeman e Hendrickson, 1998). No presente estudo foi utilizado ligadura com o fio ácido poliglicólico 3-0 e o mesmo mostrou-se adequado tanto pela facilidade de manipulação quanto pela resistência na realização da ligadura, proporcionando uma excelente oclusão dos vasos ovarianos, entretanto, nos vasos uterinos, provavelmente devido ao aumento uterino, a 363 Figura 3 - Fixação do ovário trancutaneamente (A). Imagem laparoscópica da confecção da 2ª ligadura nos vasos ovarianos (CAVO) (B). Secção dos vasos ovarianos entre as ligaduras (C) Figura 4 - Remoção em conjunto dos ovários e do útero na extremidade do 2° trocarte (A). Visualização dos fetos mumificados no interior do útero removido da cavidade abdominal (B) RPCV (2007) 102 (563-564) 361-364Schiochet F et al. ligadura em massa mostrou-se instável, havendo necessidade de cauterização. O felino do caso relatado apresentou uma recuperação rápida não apresentando sinais de dor ou desconforto no pós-operatório. De acordo com os resultados obtidos, pode-se concluir que o acesso laparoscópico descrito mostrou-se efetivo para a OSH terapêutica em útero com fetos mumificados. Bibliografia Beck CAC, Pippi NL, Brun MV, Leme MC, Contesini EA, Stedile R (2003). Criptoquidectomia em coelhos: modelo experimental para tratamento laparoscópico. Ciência Rural, 33: 331-337. Brun MV, Barcellos HHA, Oliveira RP, Rocha RP, Gonçalves HR, Guizzo Jr N, Colussi FR, Duarte LF (2004a). Ovário-histerectomia laparoscópica com três portais em cães. Braz J Vet Anim Sci, 41, Supl.: 153-154 Brun MV e Beck CAC (1998). 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