Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 5 Copyright © Eduardo de Campos Garcia Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma e por qualquer meio mecânico ou eletrônico, inclusive através de foto- cópias e de gravações, sem a expressa permissão do autor. Todo o conteúdo desta obra é de inteira responsabilidade do autor. Editora Schoba Rua Melvin Jones, 223 - Vila Roma - Salto - São Paulo - Brasil CEP 13321-441 Fone/Fax: +55 (11) 4029.0326 | 4021.9545 E-mail: atendimento@editoraschoba.com.br www.editoraschoba.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ G198q Garcia, Eduardo de Campos, 1974- O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras / Eduardo de Campos Garcia. - Salto, SP: Schoba, 2012. 92p. : 21 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-8013-124-6 1. Língua de sinais - Educação - Brasil. 2. Língua brasileira de sinais - Educação - Brasil. 3. Surdos - Educação - Brasil. 4. Escolas. 5. Prática de ensino. I. Título. 12-0872. CDD: 419 CDU: 81’221.24 13.02.12 17.02.12 033200 Obs.: O nome do autor deve ser citado CAMPOS-GARCIA, Eduardo de. Conforme Lattes. Prefácio Toda construção acadêmica consciente possui um cará- ter paradoxal. As reflexões do autor convergidas em questiona- mentos que partem de suas reminiscências e fundamentam-se a partir da apropriação teórica constituem-se em campo, por excelência, onde se estabelecem as condições propícias para o desvendamento daquilo que, à primeira vista, passa por desper- cebido à nossa ordinariedade. É justamente esse desvendamento que Eduardo de Campos Garcia propõe aos pedagogos, neste livro que ora apresento ao leitor. O caráter paradoxal do livro O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras está forjado em questões históricas. Questões estas que versam sobre a apropriação do saber jurídico e do saber clínico por uma instituição de grande importância no desenvol- vimento da autonomia humana: a escola. Aliás, ao fazer presen- te esta obra ao leitor, Eduardo de Campos Garcia tenciona, de maneira contundente, a matriz constituinte da diferenciação entre o surdo e o ouvinte. Matriz esta secularmente e paulatina- mente instaurada em nossa sociedade que, ainda hoje, ignora o universo daqueles que não se “encaixam” na cultura dominante. 6 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 7 A tensão envolvida em O que todo pedagogo precisa saber sobre Libras é plástica. É polimorfa. Sua plasticidade transforma a pesquisa, o trabalho docente, a memória e a convivência do autor no universo surdo em um tecido orgânico que deve ser tocado. Sentido. Compreendido por aqueles que fazem a esco- la: alunos, professores, diretores, agentes, enfim, todas as pessoas que direta ou indiretamente buscam construir uma sociedade mais justa para todos. Cabe esclarecer que, utilizando-me das palavras do autor, as “imposições ouvintistas não são frutos apenas de um senso comum, mas frutos de documentos oficiais que as registraram como verdadeiras, dando a elas poderes legais de ação e susten- tando-as na história”. É justamente em decorrência disso que o leitor deve se desvincular dos paradigmas que sustentam suas ações para avançar no entendimento de que todos os envolvidos com a educação estão, na verdade, enredados por uma relação íntima com o reconhecimento das potencialidades de cada ser humano, seja ele surdo, seja ele ouvinte. Como ainda são poucos os trabalhos que versam sobre o universo cultural dos surdos e a respectiva dicotomia com o universo cultural ouvinte, informo-lhe que você tem em mãos uma obra de grande valia. O esforço do autor em oferecer a sín- tese de estudos desenvolvidos há anos fornece, ao leitor, o enten- dimento das questões que envolvem a cultura surda e a cultura ouvinte de maneira privilegiada: rompendo com preconceitos e evocando os desafios da escola na educação de surdos e ouvintes em nosso país. Por isso mesmo, ao ler esta obra, o leitor deve senti-la a partir de suas próprias práticas pedagógicas. Deve re- fletir sobre as dimensões que aqui são apresentadas para, a partir desse ponto, perceber as possibilidades que emergem na escola de promover a igualdade, a cidadania e, principalmente, de des- mistificar os mitos que hodiernamente envolvem a cultura surda e as ações escolares. Estou certo de que, enquanto estiver lendo O que todo pe- dagogo precisa saber sobre Libras, o leitor estará em boa compa- nhia. Boa leitura! São Paulo, 13 de janeiro de 2012 Prof. Dr. Leandro Petarnella1 1 Doutor em Educação pela Universidade de Sorocaba e professor da Universi- dade Nove de Julho-SP. O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 9 Introdução A ideia deste trabalho teve início por meio de minhas re- miniscências de quando atuei como professor de Língua Portu- guesa e Literatura, com alunos surdos e ouvintes matriculados em salas regulares em escolas públicas. Naquele tempo, observava o quanto as experiências visu- ais eram importantes para os surdos e quanta ansiedade e vonta- de de aprender eles manifestavam; porém, essa vontade se desfi- gurava em meio a uma cultura estritamente ouvintista, presente num ambiente escolar castrador. Embora os alunos surdos estudassem em salas regulares, estudavam em salas de recursos em período adverso, cuja forma- ção dos docentes era especificamente pautada em uma concep- ção clínica. Salvas algumas exceções. O trabalho na sala de recursos, pautado em uma con- cepção clínica, não priorizava a língua brasileira de sinais, mas procurava mecanizar a oralização nos indivíduos surdos que ali estavam. Esse processo, muitas vezes, contribuiu para que se de- senvolvesse na escola uma medicalização na surdez, restringindo a educação a uma análise clínica e deficiente. Deficiente, porque, 10 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 11 ao priorizar e reduzir o ensino à oralização, muito se perdeu do potencial linguístico e das habilidades dos surdos, prejudican- do-os em seu processo de ensino-aprendizagem. O que me incomodava era o fato de perceber que havia em relação aos surdos uma limitação, não orgânica, mas imposta pela própria sociedade e pelas instituições de ensino. Essas li- mitações eram as de não poder expandir seus espaços para que germinasse a cultura surda nos ambientes sociais. Ainda trabalhando em escolas estaduais, após as aulas me encontrava com alguns ex-alunos e amigos surdos, em uma praça chamada “Do Carmo”, no centro de Mogi das Cruzes. Sentado nos bancos dessa praça, comecei a aprender os primeiros sinais em Libras e a compreender quanta angústia se tinha dentro da- quele universo de silêncio; não era uma angústia pelo silêncio, mas sim por não serem ouvidos em sua singularidade linguística. Por esse motivo, comecei a ler a respeito do processo de ensino e aprendizagem dos indivíduos surdos, sobre a escola para surdos e sobre a cultura surda. Hoje, lecionando no ensino superior, deparo-me com alunos surdos nos diversos cursos de graduação, e acredito e me felicito em dizer: é um começo, para que possamos, num futuro, ter Narcisos-espelhos-homens-surdos não mais como indivídu- os observados pelo outro, mas observadores e construtores de sua identidade. Se me perguntarem o porquê dessa inquietação em rela- ção à causa surda, digo simplesmente que, ao longo de minha vida, quando ainda criança e na adolescência, recebi da escola diversos diagnósticos, tomei alguns medicamentos e fui repro- vado por vários anos. Dos rótulos que recebi, alguns hoje me fazem rir: hiperativo, doidinho, lelé da cabeça; por isso me com- padeço de todos aqueles que, de uma certa forma, ouviram essas mesmas palavras sendo proferidas da boca de um “educador”.Enfim, valeu a pena! Pois viver é ter marcas e deixá-las de alguma forma durante o espaço e o tempo de nossa existência essencialmente finita, como entendia Nietzsche, demasiada hu- mana! Por acreditar que valeu a pena, agradeço a toda equipe da disciplina Fundamentos e Práticas de Libras da Universidade Nove de Julho, amigos que contribuem constantemente para meu crescimento acadêmico e pessoal. Prof. Ms. Eduardo de Campos Garcia2 2 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbite- riana Mackenzie UPM-SP e professor do Departamento de Educação da Univer- sidade Nove de Julho UNINOVE-SP. 13 Todo pedagogo deve saber que a Libras é... A Libras é a língua de sinais brasileira e, como toda língua natu- ral humana, terá sua singularidade em nível de desenvolvimento mental, de maturação3 e de regras sociais. Sendo a Libras reconhecida pelos linguistas como uma língua natural humana, podemos afirmar que esse reconheci- mento se deu devido à Língua Brasileira de Sinais se desenvol- ver por meio dos mesmos processos que qualquer outra língua humana. Isso ocorre porque os processos de desenvolvimento mental, maturação e apreensão das regras sociais são inerentes à linguagem humana e a todas as línguas4 humanas, independen- 3 Maturação: crescimento acompanhado de mudanças na capacidade funcional; está altamente correlacionada com a idade; aptidão da criança (Cf. Gregor, 1991, p. 51). 4 “Os seres humanos podem utilizar uma língua de acordo com a modalidade de percepção e produção desta: modalidade oral-auditiva (português, francês, 14 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 15 temente da modalidade na qual ela se desenvolve, seja ela visuo- espacial ou oral-auditiva. O reconhecimento do estatuo de língua atribuído às línguas visuoespaciais é muito importante para o processo de educação dos seres humanos, cuja condição humana é a de ser surdo. Isso porque, durante séculos, as línguas visuoespaciais fo- ram concebidas apenas como linguagem, sendo vistas como um subproduto da razão humana, algo primitivo sem capacidade de expressar o pensamento como as línguas orais-auditivas. Na atu- alidade, podemos afirmar que essa concepção é puro mito. Sobre o processo de desenvolvimento da linguagem e das línguas humanas, diferentes autores de diferentes correntes cien- tíficas observaram, discutiram e analisaram ao longo da história o processo de desdobramento em nível bio-orgânico e social desse fenômeno humano. No decorrer da história, os estudos elaborados por meio dos conceitos do estruturalismo de Saussure (1977), da fenome- nologia de Merleau-Ponty (1990), do gerativismo de Chomsky (2008), da psicogênese de Piaget (1964) e Wallon (1975) e do sócio interacionismo de Vygotsky (2001), embora tenham sido concebidos por diferentes olhares, acabam complementando-se nos dias atuais, possibilitando maior clareza por meio de uma intertextualidade sobre o tema linguagem e línguas humanas. Metaforicamente, cada teórico com suas análises sobre linguagem e línguas humanas se comparam às peças de um inglês, japonês etc.) ou modalidade visuoespacial (língua de sinais portuguesa, língua de sinais francesa, língua de sinais inglesa, língua de sinais americana, lín- gua de sinais brasileira etc.)” (Cf. Quadros, Karnopp, 2006, p. 24). quebra-cabeça, cujo todo permite a compreensão das partes e a ressignificação dos conceitos. Tais estudiosos, ao tratarem do assunto linguagem e lín- guas humanas, independentemente da corrente científica a qual pertencem, acabam por meio de uma intertextualidade, concor- dando e complementando-se entre si em inúmeros aspectos, o que faz desse tema algo universalizado em relação às concepções tecidas sobre ele durante a história da humanidade. Pensemos que essa universalização é justamente o que constrói o caráter dicotômico do fenômeno linguagem, ineren- te a todas as línguas humanas. A dicotomia como característica inerente à linguagem e as línguas humanas faz delas ao mesmo tempo um fenômeno por essência biológico e social, genético e sócio-construído. Por esse motivo, os autores se complementam. Nesse aspecto dicotômico, o biológico influencia o social ao mesmo tempo em que o social influencia o biológico, propi- ciando à linguagem e às línguas humanas uma constante evolu- ção, o que lhes confere sua característica dinâmica. Isso significa que, ao analisarmos e intertextualizarmos os estudos elaborados pelos vários teóricos, juntamos o quebra-cabeça, possibilitando estudar o fenômeno da linguagem e das línguas humanas com maior clareza. Nessa ótica dualista em que olhares opostos se comple- mentam e se intertextualizam, podemos conceber que o estrutu- ralismo de Saussure (op. cit), embora se diferencie do gerativis- mo de Chomsky (op. cit), ambos se completam para um melhor entendimento sobre a linguagem e as línguas humanas na atuali- dade. O mesmo ocorre em relação a Piaget, Wallon, Vygotsky, e 16 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 17 Merleau-Ponty, em que os apontamentos bio-orgânicos se inter- textualizam com os apontamentos sociointeracionistas, possibi- litando uma leitura e compreensão sobre a característica dualista e dicotômica da linguagem e das línguas humanas. Muitas vezes, mesmo que por meio de diferentes óticas científicas, os teóricos acabam explanando o tema linguagem e línguas humanas com similaridades que, em síntese, são im- portantes para a compreensão desse fenômeno singularmente humano. Reafirmamos essa singularidade humana do potencial linguístico porque, embora os animais desenvolvam sistemas de comunicação, estes são fechados, sem desencadeamento de pro- cessos evolutivos com interferência na forma de pensar. Por isso, pensamos que, no campo da linguagem, as análi- ses elaboradas pelos diferentes teóricos complementam-se, dan- do respostas às atuais observações sobre a linguagem humana e suas etapas de desdobramento. Entre as similaridades significativas apontadas pelos teó- ricos, poderemos observar no decorrer do trabalho que muitas das correntes citadas acima consideram a linguagem um fenô- meno natural e a língua humana um fenômeno social. Sendo que dentro do aspecto dicotômico inerente a linguagem e as línguas humanas, devemos conceber que toda língua será uma linguagem, mas nem toda linguagem é uma língua. Isso porque as línguas são a maturação da linguagem, e a linguagem é a ex- pressão do pensamento em sua essência. Desse modo, sendo a língua humana uma linguagem, será ela também expressão do pensamento humano por essência, porém de forma elaborada, complexa, epistêmica. Alguns teóricos e críticos concebem que o fenômeno da linguagem humana está intimamente ligado ao fenômeno do pensamento humano. Para esses autores, os dois fenômenos – pensamento e linguagem –, que possibilitam o desdobramento de uma língua natural nos indivíduos, são intrínsecos. Para La Taille (1992, p. 44), “a linguagem nutri e conduz o pensamento”. Partindo dessa lógica, acreditamos que o pensa- mento, ao se desenvolver em nível exoendógeno e endoexóge- no, nutre e propicia naturalmente o desdobramento das línguas humanas, pois sendo estas a maturação da linguagem de um ser humano, atenderá as necessidades biossociais de cada indivíduo humano para representar suas ideias. A proposta de La Taille nos faz interpretar que a linguagem humana e o pensamento hu- mano existem numa unissonância funcional. Para compreender a linguagem e o pensamento humano como algo indissociável, é preciso entender a posição da neurociência. Para o neurocientista Lent (2005, p. 625), “a primeira ta- refa linguística do cérebro se confunde com os mecanismos do pensamento humano”, logo pensamento e linguagem tornam- se, em nível de indivíduo, uníssono,indissociável, interindepen- dente. Por meio dos apontamentos de La Taille e Lent, nós ava- liamos que pensamento e linguagem humana são sinônimos em nível de potencial linguístico. Complementando essa sinonímia entre as proposições de La Taille e Lent, Quadros e Karnopp (2006, p. 15) consideram que a “linguagem é um componente da mente humana”, o que reforça a ideia de unissonância. Salles (2004, p. 67) sintetiza 18 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 19 nossos apontamentos postulando que a “linguagem está intrin- secamente ligada à natureza humana, no aspecto biológico e no aspecto psicossocial”. Para La Taille (1992, pag. 44), “a linguagem como produ- to da razão humana acaba no curso da história se tornando sua fabricante”, é uma dinâmica, uma relação entre meio e indivíduo, indivíduo e meio, por isso podemos conceber que a linguagem e as línguas humanas se maturam, desdobram-se num constante processo dicotômico; exoendógeno e endoexógeno. Para Piaget (2002, p. 85), “entre a linguagem e o pensa- mento existe um ciclo genético, de tal modo que um dos dois termos se apoia necessariamente sobre o outro, em formação só- lida e em perpétua ação recíproca”. Nesse caso, é obvio que “o ser humano é dotado de um estado cognitivo inicial rico, comple- xo, uma faculdade cognitiva inata de linguagem, uma verdadeira propriedade da espécie, codificada como uma herança genética humana” (Salles et al, 2004, pp. 69-70). Isso significa que somos em potencial seres linguísticos, sendo linguagem e pensamento essência do indivíduo. A linguagem humana vista como herança genética inter- textualiza-se com a concepção naturalista de Platão, que a con- cebe como um fenômeno que “nasce com o homem” (Quadros; Karnopp, 2006, p. 78), mas sendo uma manifestação “interindi- vidual” (Piaget, 2002, p. 78). Observando a proposta de Platão e Piaget, podemos compreender que, embora a linguagem seja potencialmente uma herança genética e que ela sofra interferências sociais em seu processo de maturação, o indivíduo a matura segundo sua subjetividade. Isso significa que o bio, ao observar o sócio, apre- ende-o não de forma passiva, mas ativamente, transformando-o segundo sua visão de mundo. Por essa ótica, cada ser humano é capaz de ler e reler o mundo à sua volta, propondo novas con- cepções e propiciando a evolução da sociedade por meio de seu pensamento. Para Darwin, “(...) o desenvolvimento da linguagem agiu sobre a própria mente, colocando-a em condições de formular longas cadeias de pensamento” (apud Salles et al, Ibid., p.66). É relevante compreendermos que, na medida em que os sujeitos-biológicos externam suas necessidades biomentais, eles socializam seus pensamentos, tornando-se sócios-sujeitos. Esses bio-sócio-sujeitos, ao socializarem seus pensamentos, recebem uma resposta do meio, que se constitui por outros bio-sócio- sujeitos. Nessa troca de pensamentos, há modificações conside- ráveis nas estruturas do pensamento humano, desencadeando longas cadeias de novos pensamentos. Sobre os aspectos apresentados por Darwin e Piaget, é relevante intertextualizá-los com o pensamento de La Tail- le (1992, p. 15), que o exemplifica afirmando que “A partir da aquisição da linguagem, inicia-se uma socialização efetiva da inteligência”. Desse modo, o subjetivo, por meio do desenvol- vimento da linguagem humana, tornou-se social, sendo que o social, ao ser apreendido pelo bio, torna-se subjetivo. Essa socialização da inteligência se dá porque, em nível de existência do homem, “um dos traços essenciais da espécie humana é a aptidão para a linguagem” (Wallon, 1995, p. 102). O homem nasce sendo um ser linguístico, e por ser um ser lin- 20 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 21 guístico será um ser social. Em síntese, a linguagem desenvolveu-se na espécie huma- na como consequência da necessidade do homem de aprimorar seu pensamento e externá-lo, “concluí-lo”,5 estabelecer laços en- tre seus semelhantes, permitindo que este observasse e refletis- se sobre seu percurso de vida individual e social, consolidando e marcando sua existência no decorrer da história. Entretanto, cabe-nos pontuar que, segundo Piaget (2002, p. 80), “o pensa- mento precede a linguagem e esta se limita a transformá-lo pro- fundamente”. O que queremos mostrar com esse apontamento de Pia- get é que a linguagem é um reflexo do pensar e não o contrário; ou seja, a linguagem se manifestará naturalmente segundo as ca- racterísticas com as quais os indivíduos, segundo sua condição humana, pensarem, perceberem o mundo à sua volta; o que po- derá ocorrer de forma auditiva, visual, ou sinestésica. Pensemos que, no homem primata, a faculdade de pensar permitiu que este desenvolvesse, segundo suas necessidades, um sistema de símbolos e signos mentais que fossem capazes de esta- belecer laços sociais mais elaborados por meio do que se chama hoje língua humana. A relevância desse pensamento se dá porque, segundo Morin (2003, p. 55), “todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais” na qual a linguagem se ratifica como característica singular presente no homem. Por isso, a modalidade com a qual 5 Visão de Merleau-Ponty sobre a linguagem. “A língua conclui o pensamento” (Cf. Flynn, 2004). o homem percebe o mundo é fundamental para o desenvolvi- mento natural da modalidade de sua linguagem e o desdobra- mento de sua língua materna. Isso nos deixa claro que a natureza humana é que define o surgimento da modalidade linguística que se desenvolverá no indivíduo, e não a sociedade. Quando a sociedade conceitua e atua sobre o indivíduo forçando-lhe o desenvolvimento linguístico que não é de sua natureza, esse me- canicamente reproduz o que lhe mecanizaram. Por esse motivo, podemos observar que os surdos aprendem a oralizar não de for- ma natural, mas somente por interferência de profissionais, sen- do que os sinais, sim, são para o surdo naturalmente a expressão de seu pensamento. Independentemente do modo como o ser humano per- ceberá o mundo à sua volta, a linguagem propiciará e propiciou na história da humanidade o poder do homem de estabelecer laços por meio da comunicação e da expressão de seu pensamen- to. Logo, é o ser humano capaz de construir mentalmente, por meio da linguagem, a externalização de seu pensamento, sua conclusão, como já dito acima. Em nível corporal e cerebral, numa análise do biossiste- ma da fisiologia da linguagem, sua conclusão tem como canal linguístico o corpo humano e alguns órgãos articulatórios que evoluíram na espécie humana, propiciando que o homem exter- nasse seu pensamento. A espécie humana, por necessidades, de- senvolveu e adaptou órgãos, cuja função primeira é outra, para, ao articular esses órgãos, poderem transformar o pensamento in- dividual em palavra social. Entre esses órgãos que se adaptaram ao longo do desenvolvimento da espécie humana, encontram-se 22 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 23 a língua-músculo-bucal e as mãos. Entendamos que cada povo tem sua língua-idioma, elaborada pela língua-músculo-bucal ou pelas mãos; porém todos os povos utilizam esse órgão e esse membro para efetuar as mesmas funções não lingüísticas: sentir gosto e pegar as coisas. Isso significa que não há de fato no ser homem órgãos ou membros corporais que sejam naturalmente desenvolvidos para a produção das línguas humanas, mas sim uma evolução da es- pécie que adaptou alguns órgãos e membros, possibilitando que a construção externada dos signos mentais se manifestasse por meio de alguma articulação. Entre esses órgãos responsáveis pelo desenvolvimento da externalização dos signos mentais das línguas humanas, estão alíngua (músculo bucal) e as mãos (membros), sendo que am- bos podem construir palavras que representem o pensamento humano. Segundo os conceitos da fenomenologia apontados por Merleau-Ponty (1990, p. 23), “a linguagem é o prolongamento indissolúvel de toda atividade física”. Nesse aspecto, embora pareça complexa a proposta de Merleau-Ponty, entendemos que, independentemente do meca- nismo com a qual a linguagem se manifestar, seja esse por meio da mão ou da língua, ela será sempre fruto da maturação do sis- tema neuromotor do ser humano, acompanhado de sua essência inteligente. Para entendermos essa proposição, é preciso compreen- der que a vocalização se constrói por meio da “articulação6 (...) que ocorre pelo envio de comandos para os núcleos motores do tronco encefálico que, por sua vez, comandam a musculatura facial, a língua, as cordas vocais da laringe, a faringe e os mús- culos respiratórios” (Cf. Lent, 2005, pp. 631-632). Isso com- prova que até mesmo a vocalização é submetida a uma condição motora, não tendo diferença funcional, em nível cerebral, dos sinais elaborados nas línguas de sinais, cujo “canal linguístico e articulatório principal é a mão” (Cf. Silva, 2002, p. 21). Nesse caso, todos os músculos e nervuras envolvidos nas articulações do braço contribuirão para a manifestação do signo mental em palavra sinal. Devemos entender que, no processo do desenvolvimento da linguagem, segundo a articulação motora utilizada, a oralida- de primitiva apresenta-se na forma de frêmitos – sons descone- xos denominados balbucio oral – , e os sinais por meio de gestos denominados balbucio gestual. Esses são os primeiros vestígios do surgimento e da formação de signos mentais de um ser huma- no que, com o passar dos anos, desdobram-se em uma língua por meio da maturação. Sobre a fase primária da linguagem humana e sua matu- ração na construção dos signos mentais, é importante obser- varmos que, segundo Wallon (2007, p. 61), “a expressão é uma atitude” e, a princípio, em todos os indivíduos “o movimento é tudo o que pode dar testemunho da vida psíquica e traduzi- 6 Temos consciência de que as etapas anteriores ao da articulação na produção da oralidade são: “Conceitualização e formulação” (Cf. Lent, 2005, p. 630). “Chomsky observou que o termo articulatório (...) expressava uma forma geral de a linguagem ser representada no nível de interface articulatório-perceptual, incluindo, portanto, as línguas sinalizadas” (Quadros; Karnopp, 2001, p. 214). 24 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 25 la (Sic!) completamente” (1995, p. 75). Para comprovar que o corpo em movimento traduz a vida psíquica, Wallon (1995, p. 120) pontua que, “basta ver uma criancinha no banho e a agita- ção de seus membros causados pela água, em uma idade em que a criança não poderia sustê-los por si mesma, esse fenômeno tem todo aspecto de uma satisfação transbordante”, satisfação essa externada por gestos corporais soltos e sons orais – frêmitos. Sobre os movimentos corporais, podemos observar que eles provocam reações afetivas, iniciando uma comunicação en- tre o indivíduo e seu meio. Por se tratar de uma comunicação efetuada pelos movimentos corporais, chamamos essa manifes- tação de “cinésica”.7 Nesse contexto, Guiraud (2001, p. 20) “diz que o corpo fala na medida em que nos dá informações”. Porém, o corpo de todos os seres humano fala, mas na medida em que esse falar ocorre por meio de um órgão articulatório específi- co de um indivíduo, que ao se articular conclui o pensamento e propicia a externalização dos signos mentais, esse falar trans- cende a linguagem corporal e se consolida como língua natural humana. Isso porque esse falar não é prosódia, um falar incons- ciente, mas um falar que por meio de sinais concluem um pensa- mento manifestando-se como palavra. Piaget (2002, p. 79) propõe que, “no terreno senso motor, já existem sistemas de significações”. Esse apontamento sobre a significação é importante para nós, porque toda língua se cons- truirá por meio de uma linguagem que se matura e, por meio dessa maturação, haverá a construção de signos e símbolos men- tais. 7 (Weil; Tompakow, 1980, p. 5). Em princípio, entendamos que “as descargas, suscitadas pelas necessidades do bebê, refletem sensações. Trata-se de um recurso de comunicação, pois mediante esses movimentos, sus- citará no meio as respostas a suas necessidades” (Cf. Duarte, 2007, p. 24), dando início à troca social de ideias, propiciando a partir de então o surgimento dos signos mentais, pois estes nas- cem e se desenvolvem por meio dos laços afetivos. Desse modo, podemos compreender que a linguagem humana se matura, porque em nível mental o ser humano de- senvolve signos mentais mais complexos, capazes de exprimir o pensamento do indivíduo com maior exatidão, para que, dessa forma, obtenha respostas às suas necessidades. Essas modifica- ções substanciosas da linguagem e da língua humana ocorrem em nível endógeno,8 ativado por ações exógenas.9 Desse modo, entendemos que há uma ação endoexógena operando constan- temente na maturação da linguagem. Metaforicamente, podemos filosofar que, “assim como os pássaros têm asas, os homens têm línguas” (Lewes apud Salles et al, 2004, p. 66), e o homem não chegaria muito longe em relação à evolução do pensamento, se ele tivesse se submetido apenas à linguagem. Se em princípio a linguagem humana se apresenta de for- ma primitiva, com gestos e frêmitos involuntários, na medida em que o ser humano se matura, a linguagem se desdobra em representações sígnicas, complexas e dinâmicas. 8 “Transformações que ocorrem no pensamento; fatores internos.” (Cf. Silva, 2006, pp. 4-7). 9 “Sob a dependência de forças exteriores.” (Wallon, 1975, p.75). 26 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 27 Nesse processo de construção dos signos mentais, en- tendemos que, “no momento em que a inteligência sensório- motora se prolonga em representação conceitual e se converte em representação simbólica, o sistema de signos sociais também aparece” (Piaget, 1964, p. 88). Entendamos que, antes da criança expressar seus senti- mentos por meio de uma palavra, seja esta elaborada (utilizare- mos como exemplo o sentimento de amar) pelo sinal de amor ou pela oralização do vocábulo amor, basta que ela beije, faça o gesto do beijo para que o significado da construção mental, o amor, seja externado. Nesse caso, a criança sente o amor, mas ainda não sabe utilizar em seu discurso a palavra, enquanto sig- no mental, para representar seu sentimento, sua sensação. Por isso, nesse contexto, entendemos que “o gesto precede a palavra” (Costa, 2007, p. 31). Para exemplificar melhor a citação acima, observemos que, na ação do beijo, do gesto de beijar, não houve a externa- lização do signo mental abstrato do significante amor, nem por meio do sinal nem por meio da oralidade, apenas um gesto, mas esse gesto é identificado por meio dos significados sociais atri- buídos a ele em algumas culturas e em alguns contextos como expressão de amor. Desse modo, pela necessidade de representar os estados mentais, as criações, as percepções e as sensações sígnicas de for- ma epistemológica, “no plano filogenético, os órgãos articulató- rios foram se tornando, no desenvolvimento linguístico, canal privilegiado para as atividades da língua10 (...)”, (Silva, 2002, p. 10 Silva refere-se como órgão articulatório os envolvidos na oralidade, acredi- 20) sendo que, pela maturação do pensamento, a linguagem hu- mana se desdobra em uma língua natural humana, denominada língua materna. Materna porque se herda de modo psicossocial, numa espécie de legado genético-cultural. Em nível cerebral humano, numa concepção bio-orgâni- ca, a linguagem é produzida, em relação àarticulação, na “área de broca,11 situada no hemisfério esquerdo do cérebro” (Cf. Herculano-Houzel, pp. 622-623). Já a construção dos sentidos, nas elaborações morfossintáticas, pragmática e na semântica oracional dos discursos, independentemente desses discursos se- rem construídos por meio do sinal ou pela oralidade, “enquanto capacidade de conceber conexão, entre as ideias e as palavras, pertence aos dois hemisférios cerebrais” (Cf. Ibid., p. 623). Des- se modo, segundo Condillac, “tanto a fala como os sinais per- mitem o desenvolvimento do pensamento” (apud Silva, 2002, p. 42) humano. Por meio dessa premissa, podemos compreender que “o cérebro humano está neurologicamente equipado para adquirir língua, não necessariamente fala (oral)” (Salles et al, 2004, p. 67), ou seja, chamamos esse fenômeno de potencial linguístico. O potencial linguístico de um ser humano caracteriza-se pela capacidade que todo indivíduo tem de desenvolver a lin- guagem, o pensamento e a sua língua materna. Embora esse tamos possível relacionar essa concepção aos órgãos articulatórios da língua de sinais, mesmo porque retomaremos aqui a concepção de Chomsky sobre arti- culação. 11 Esse nome foi dado em homenagem ao neurologista francês Paul Broca (1824-1880), pelo fato dele ter localizado a área cerebral responsável pela lingua- gem humana (Cf. Herculano-Houzel, 2005, p. 622). 28 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 29 desenvolvimento seja intrínseco ao homem, segundo Saussure (1995, p. 17), “língua não se confunde com linguagem”, embora sejam insolúveis uma em relação à outra. Para Wallon (1995), o processo de desenvolvimento das línguas humanas tem seu início com a linguagem, por meio dos movimentos corporais elaborados pelo indivíduo ainda crian- ça. Nesse processo de desenvolvimento, há interações de causa e efeito. Há, por necessidade, com o tempo, o desenvolvimento de signos mais complexos que sejam capazes de transformar o pensamento e o conhecimento humano em representações epis- têmicas que se denominam palavras. Desse modo, “nas línguas de sinais, as configurações de mãos juntamente com as localizações em que os sinais são pro- duzidos, os movimentos e as direções são unidades menores que formam as palavras” (Quadros, 2004, p. 20). Nas línguas de sinais, a manifestação das palavras ocorre por um mecanismo cinésico, movimento que se constrói num espaço determinado. Nesse sentido, “as palavras existentes em qualquer língua distribuem-se em várias classes, conforme as formas, as funções que desempenham e o sentido que expressam” (Macambira, 1999, p. 17). Segundo Wallon (2007, p. 105), “a palavra não se desenvolve senão com aptidão de identificar um fato de experi- ência numa imagem ou numa ideia”. Utilizando os apontamentos de Macambira, queremos dizer que não podemos mais atribuir valor semântico ao vocá- bulo “palavra” como se esse fosse sinônimo de oralidade. Isso porque “o sinal é a língua do surdo” (Silva, 2002, p. 28) e, por meio dele, o surdo manifesta seus signos mentais naturalmente. Mesmo porque a língua natural dos surdos, a Libras, é consi- derada pelos linguistas uma língua natural humana, com regras próprias, “dotada de um sistema linguístico legítimo” (Cf. Qua- dros; Karnopp, 2006, p. 30), que propicia a ela autonomia no desdobramento, na elaboração e no surgimento da palavra-sinal. As palavras segundo a neurociência, como um acúmulo da experiência mental de vida, são processadas em um dicioná- rio interno cerebral chamado de “léxicon mental” (Lent, 2005, p. 627). Desse modo, “a língua é coletiva sob a forma de uma soma de sinais em cada cérebro, como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, são repartidos entre os indivíduos” (Saussure, 1977, p. 27). Nesse processo de acúmulo de experiência e seu desdobra- mento, em que a linguagem se matura numa língua e desenvol- ve signos mentais complexos, o que ocorrerá de diferente entre os indivíduos surdos e ouvintes será a atribuição de valores que cada um, em sua condição humana, der à construção dos signos mentais. Nesse sentido, é importante compreendermos que lin- guisticamente “o surdo é o indivíduo que aprende o mundo por meio de experiências visuais” (Quadros, 2004, p. 10), enquanto os ouvintes construirão seus signos mentais por meio da audi- ção, numa coerência silábica sonora. Não importa a forma como os signos mentais são cons- truídos, mas importa se essas particularidades serão respeitadas no processo de ensino e aprendizagem. Mesmo porque “pesqui- sas confirmaram que o sinal é uma língua, sendo até mesmo pro- cessada pelo cérebro como tal” (Silva, 2002, p. 22). Pelos motivos explicitados acima, é importante compre- 30 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 31 endermos que “os homens se comunicam de várias maneiras, utilizando praticamente todos os sistemas sensoriais para perce- ber e interpretar os sinais que o sistema motor (de outra pessoa) produz” (Lent, 2005, p. 623). Nesse caso, teremos uma relação de emissão, pelo sinal ou pela oralização, e de recepção, que ocorrerá pelo sistema sensorial visual ou pelo sistema sensorial auditivo. Entendamos que a linguagem é em sua natureza inerente a todos os seres humanos, já as línguas se desenvolvem por meio dos aspectos culturais dos indivíduos, aspectos esses que nascem com a subjetividade humana, “o que nos torna gêmeos pela lin- guagem e separados pelas línguas” (Morin, 2003, p. 56). Entre esses aspectos culturais, estará o modo como a lín- gua se projeta para o meio e o modo como os sócios a percebem12 e a sentem. Por essas características de emissão e percepção, denomina-se que as línguas são desenvolvidas em modalidades diferentes: visuoespacial (palavra-sinal, construção cinésica e percebida pela visão) ou oral auditiva (palavra-oral, construção silábica e percebida pela audição). Sobre a língua visuoespacial, devemos compreender que “(...) a primeira língua da criança surda transcende às questões do universo da comunicação e mostra as relações sígnicas como fundamentais para concepção dos universos sociocultural e 12 “Sentir é a capacidade que os animais apresentam de codificar certos aspec- tos da energia física e química que os circunda, representando-os como impul- sos nervosos capazes de ser “compreendidos” pelos neurônios. (...) Perceber (...) trata-se da capacidade que alguns animais apresentam – nem todos – de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como comportamento, no caso dos animais, e o pensamento, no caso dos seres humanos” (Lent, 2005, p. 169). cognitivo do surdo” (Correia; Fernandes, 2008, p. 21). Falar de construção sígnica é falar de pensamento, é falar de construções mentais, é falar de representações que se manifestam e se desen- volvem em nível endoexógeno em cada ser humano. Desse modo, “todo surdo tem o direito de ser alfabetiza- do na sua língua” (Skutnabb-Kangas apud Quadros, 2001, p. 223), sendo que aqui nos referimos ao direito humano, e não ao direito em nível legal, pois sendo a Libras uma língua legítima, não há razão para a sociedade negá-la. Por isso, é importante entendermos que em relação à pri- meira língua, “a língua dos surdos está no sinal, é por meio dele que o sujeito surdo compreende e interfere no mundo” (Silva, 2002, p. 28). Este, por sua vez, o sinal, em seu processo de ama- durecimento estará aberto a cinésica que será operada pelo or- ganismo desde criança, ou seja, é por meio do movimento que o sinal se matura, transforma-se, manifesta-se naturalmente, desdobra-se de linguagem para a Língua Brasileira de Sinais. Esse processo de maturação evolui por meio de etapas, tais como as etapas observadas nas línguas orais. Para que possamos compreender o caminho percorrido pela Libras em seu proces-so de maturação, devemos nos alimentar de novos conceitos em relação à velhas palavras. Um desses conceitos a serem renovados estará relaciona- do à palavra balbucio. “O balbucio é um fenômeno que ocorre em todos os bebês, surdos e ouvintes” (Pettito; Marantette apud Quadros; Karnopp, 2001, p. 217), sendo que “nos bebês surdos foram detectados duas formas de balbucio manual, o balbucio manual silábico e a gesticulação” (Ibid.). “O balbucio manual 32 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 33 silábico apresenta combinações que fazem parte do sistema lin- guístico das línguas de sinais.13 Ao contrário, a gesticulação não apresenta organização interna” (Ibid.). Na medida em que o indivíduo surdo se desenvolve, ocor- re o “input”14 linguístico; momento no qual o indivíduo “se apropria, tenta transformar o teu em meu” (Wallon, 1975, p. 157) em nível de língua.15 Entendamos que, no desenvolvimento da Libras, “o input em língua de sinais é, obviamente, importante para que o bebê passe para etapas posteriores” (Karnopp apud Quadros et al 2001, p. 218). Desse modo, “o bebê surdo com a atenção visual voltada para a face do interlocutor capta indícios sutis no rosto que lhe servirão para atribuir significado aos sinais de sua língua” (Ibid.). Isso significa que um bebê ouvinte observará os sons à sua volta, já os bebês surdos se atentarão aos movimentos para ocorrer o input linguístico de sua língua, materna. 13 “O balbucio manual é considerado como período pré-lingüístico que em li- nhas gerais, caracteriza-se pelos gestos sociais (bater palma, dar “tchau” e enviar beijinhos, etc...) e pela utilização do apontar; essas são as primeiras produções manuais” (Cf. Karnopp, 1999 apud. Quadros; Karnopp, 2001, p.218). 14 Input é aquilo que é absorvido, entrada (Quadros; Karnopp, 2001, p. 218). 15 Wallon não se refere aos surdos em seus estudos, mas se tratando de um estu- do elaborado por ele, cujo foco está voltado para o desenvolvimento da lingua- gem humana. E sendo a Libras uma língua que se concebe por meio de todos os princípios linguísticos das línguas oralizadas, é pertinente que Wallon seja re- lacionado ao momento em que ocorre o input linguístico dos surdos na língua de sinais. Wallon não se refere aos surdos em seus estudos, mas tratando-se de um estudo elaborado por ele, cujo foco está voltado para o desenvolvimento da linguagem humana. E sendo a Libras uma língua que se concebe por meio de todos os princípios linguísticos das línguas oralizadas, é pertinente que Wallon seja relacionado ao momento em que ocorre o input linguístico dos surdos na língua de sinais. Por meio dessa observação, acreditamos que para os in- divíduos “a reprodução de um modelo parece implicar um ele- mento de aquisição em função da experiência” (Piaget, 1964, p. 20), e isso ocorrerá, também, em relação à aquisição de uma lín- gua de sinais. O bebê surdo observará seu ambiente e dele filtra- rá, absorverá, apreenderá o que lhe for significativo. Isso ocorre por uma necessidade mental de todos os indivíduos surdos de construir conceitos mentais e elaborar naturalmente sinais que identifique seu pensamento, propiciando avanços na experiên- cia linguística do indivíduo. Essa experiência se amplia se os só- cios já utilizarem os sinais na língua natural dos surdos. Na relação de experiência, a observação da criança fará com que ela apreenda, aproprie-se dos signos de sua língua ma- terna, isso nos remete à reação circular “que consiste em que uma impressão provocada por um gesto tende a reproduzir o gesto, a fazê-lo repetir-se de maneira que ele se ocupe em prolongar a impressão, a reproduzir, a fazê-la passar pelas diversas variações de que é suscetível” (Thong, 2007, p. 17). Entendemos essa reação circular apresentada por Thong16 não como o surdo sendo um observador estático, ou seja, o sur- do enquanto indivíduo não é um observador passivo nesse pro- cesso de absorver os signos à sua volta ao absorver o “gesto” que para o surdo é uma língua (idioma), mas como algo que, ao ser observado, absorvido e apreendido pelo indivíduo surdo, sofre as variações das quais é suscetível, pois a língua como manifes- 16 Thong, assim como Wallon não se refere ao surdo ao elaborar essa observa- ção, mas sendo essa uma premissa aplicada ao processo de ensino e aprendizagem no desenvolvimento humano, consideramos pertinente adapta-la para os estudos sobre o desenvolvimento da linguagem e da língua humana do indivíduo surdo. 34 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 35 tação do pensamento, ao ser absorvida, sofre as modificações às quais é suscetível. Essas modificações ocorrem porque cada indi- víduo a compreende e a interpreta construindo novos conceitos e utilizando-a segundo sua visão de mundo. Isso ocorre porque o signo-palavra é dinâmico, um ver- dadeiro elemento vivo fruto da capacidade humana de elaborar e reelaborar seus conceitos, já que “não existe apropriação rigo- rosa e definitiva entre o ser vivo e o seu meio, as suas relações resumem-se a uma transformação mútua” (Wallon, 1975, p. 164). Desse modo, compreendemos que “a língua é o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional” (Kar- nopp, 2008, p. 75), ela permite que nossos pensares se estrutu- rem sendo “os signos, o alimento da consciência” (Bakhtin apud Silva, 2002, p. 35) e, por isso, dicotômicos, mutáveis e imutáveis. Retomando a questão sobre a dinâmica da linguagem e das línguas, devemos observar que, no período pré-linguístico da língua de sinais, os apontamentos e os gestos sociais – apon- tar, balançar a cabeça, bater palmas etc. – encorpam-se, são aprendidos pelo sujeito surdo, dando origem aos sinais. Nesse período, as crianças começam a adquirir a palavra-sinal. Por esse motivo, em nível de desenvolvimento linguístico, devemos com- preender e respeitar o direito da criança surda de desenvolver o sinal como língua materna, pois “a criança surda não tem o input da língua oral” (Kelman, 2008, p. 87) nem necessita ter. Essa não necessidade do desenvolvimento mecanizado da oralização por parte do surdo ocorre porque a Língua Brasileira de Sinais é “uma língua genuína no léxico, na sintaxe e na capa- cidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças” (Stokoe apud Quadros; Karnopp, 2004, p. 30). Sendo a Libras uma língua legítima, mesmo fonetica- mente a língua de sinais brasileira será estudada pelos linguistas. Segundo Quadros e Karnopp (2006, p. 81), foneticamente “a fonética estuda os aspectos físicos dos sinais em Libras”. Na prática, entendemos que, se a mão estiver em forma- to de C, todos os dedos selecionados estarão juntos e formando uma configuração de mão arredondada com uma fissura entre os demais dedos da mão e o polegar; temos aí a letra C sendo representada pelo alfabeto manual, não há palavra, mas uma representação alfabética. Ao posicionarmos essa configuração de mão, em C, sobre a outra mão, que será a mão denominada mão de base, e elaborando movimento para frente, teremos a construção mental sendo externada por meio do sinal da palavra “cinza”. A mesma configuração manual em C, colocada sobre a cabeça, teremos a palavra-sinal “tio” etc. Essa ocorrência pode ser comparada à emissão sonora das palavras oralizadas “tia” e “dia”. Observamos que, sob aspecto sonoro, ambas são iguais, e o que as difere é a entonação colocada na pronúncia das palavras. Devemos observar que a locação de mão substitui a entonação vocal. Nesse mesmo exemplo, devemos compreender que um estrangeiro não reconhece a diferenciação sonora da pronún- cia dessas duas palavras “tia” e “dia”, assim como para nós possa parecer difícil entender que uma mesma configuração de mão possa ter significados diferentes quando colocada em locações diferentes. Para o surdoisso, é imediatamente percebido, lido, reconhecido, absorvido e interpretado. 36 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 37 Por esses apontamentos descritos acima, acreditamos que a base da Libras é a cinésica, cujo cérebro humano a reconhece como língua, pois, se repararmos nas especulações sobre os es- tudos fonéticos da Libras, concluiremos que o cérebro faz uma análise “das bases fisiológicas relacionadas à produção” (Ibid.) das palavras. Entendemos que, em nível de palavras-sinais, elas perten- cem, assim como as palavras oralizadas, a uma “categoria lexical ou classe de palavras tais como verbo, substantivo etc.” (Ibid.). Isso ocorre porque “as línguas humanas possuem um padrão de organização dos seus elementos” (Ibid., p. 27) aos quais deno- minamos “universais linguísticos” (Salles et al, 2004, p. 85). Por isso, de forma mais explícita, consideramos importante reafir- mar que as línguas de sinais, entre elas a Libras, organizam-se em nível fonológico, fonético, morfológico, sintático, semântico e pragmático, assim como qualquer outra língua. Pelo fato de a Língua de Sinais Brasileira ser linguistica- mente reconhecida como língua legítima, apresentando todos os aspectos inerentes a uma língua natural, devemos compreen- der que, em todos os níveis sociais, “se faz necessário consolidar o argumento de que a aquisição da língua de sinais o mais preco- cemente pelo surdo, é fundamental para o seu desenvolvimento cognitivo e sua integração social” (Silva, 2002, p. 28). Para isso, devemos reconhecer que, nos movimentos elaborados pelos sur- dos, há como essência à manifestação do pensamento humano, que se concebe por meio da palavra viva e articulada, manifesta- da no silêncio que fala, dispensando a oralização. Por meio das observações elaboradas nesse estudo, pode- mos avaliar a importância dos sinais-palavras que se constroem no universo mental dos indivíduos surdos. Essa importância é reconhecida na Lei 10.436 de 2002, Lei de Libras, assunto do qual trataremos no próximo capítulo. 39 Todo pedagogo deve saber que a lei de Libras diz... A Língua Brasileira de Sinais, como abordada no capítulo I, existe e resiste há muito tempo às imposições de uma sociedade construída e alicerçada por meio de uma cultura pensada pelos ouvintes e imposta aos surdos durante séculos. O fato linguístico que nos é significativo em relação a essa imposição da cultura ouvinte ao ser humano surdo transcende os aspectos sociais de imposição cultural e alicerça-se na exis- tência de um indivíduo surdo, de um sujeito surdo, dotado de uma singularidade linguística, que mesmo ao ser suprimido por uma outra corrente de pensamento fez permanecer sua natureza linguística visuoespacial na história da humanidade. Essas imposições ouvintistas não são frutos apenas de um senso comum, mas frutos de documentos oficiais que as regis- 40 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 41 traram como verdadeiras, dando a elas poderes legais de ação e sustentando-as na história. Ao longo do tempo, a ciência clínica visualizou e experi- mentou inúmeras tentativas de cura do que, numa visão socio- antropológica, é incurável: a subjetividade e a condição humana de ser um indivíduo surdo. Surdo, não como adjetivo, mas como meio de representação do seu eu interior que se manifesta lin- guisticamente por meio das línguas de sinais, entre elas a Libras. Tais documentos se pautaram nas concepções clínicas que se construíram em torno do indivíduo surdo, portanto havia um respaldo científico sustentando tais concepções. Embora os surdos tenham sofrido as pressões sociais, por meio de documentos legais, para que o uso da língua de sinais fosse proibido, a Libras venceu o tempo e se mostrou legítima enquanto língua humana, permanecendo viva na sociedade e posicionando-se como elemento fundante do psiquismo do surdo brasileiro. Dessa forma, a resistência e a permanência da Libras sobre o tempo desmistifica as concepções das teorias clí- nicas. Desse modo, podemos compreender que a natureza hu- mana do surdo se sobrepôs à arbitrariedade social ouvinte, e isso se deu porque, sendo a Libras uma língua natural e legítima, su- perou as forças impostas pela cultura ouvinte e suas concepções clínicas. O fato é que, por meio das teorias clínicas que se esten- deram à educação, os surdos foram submetidos a um silêncio mental, que os colocava numa situação de menor valia entre os demais da sociedade-ouvinte. A escola pautada em documentos oficiais, cujas diretrizes se sustentavam “numa concepção clínico-patológica de surdez, dava à educação uma conotação terapêutica, cujo objetivo do currículo era a de dar ao sujeito a audição e a fala” (Cf. SME, 2007, p. 15) numa tentativa de reabilitação. Nessa tentativa de reabilitação, numa busca de classificar o mal do surdo, as teorias clínicas e, em consequência, a escola, adjetivavam o surdo como afásico, surdo-mudo, mudinho, defi- ciente sensorial e, muitas vezes, deficiente mental. A concepção de surdo incapaz, um verdadeiro imaginário em relação ao surdo, foi criada por meio de concepções absurdas e grotescas. Um desses absurdos registrados historicamente em ralação ao surdo data no final do século XIX. Nesse período, o imaginário sobre os surdos consolidava-se da seguinte forma: “Todo mundo sabe que os surdos-mudos são seres inferio- res sob todos os aspectos. Não se trata de estabelecer uma com- paração entre os criminosos e os surdos-mudos, mas, com efeito, a degenerescência hereditária é o fator dominante” (Grémion apud. Lulkin, 2005, pp. 33-34). Essa concepção de inferioridade imposta ao surdo deu aos ouvintes o poder de decisão para falar em nome dos surdos e de- finir em nível oficial o que era relevante na educação dos surdos. Em síntese, em 1872, decidiu-se em Veneza que o meio humano para comunicação do pensamento era a língua oral. Em 1880, em Milão,17 definiu-se que a oralidade deveria imperar so- 17 Lulkin, 2005, pp. 33-49. Skliar, 2005, pp. 16-17. 42 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 43 bre a gestualidade, pois essa era indubitavelmente superior. Sob essa convicção, “na prática escolar, a primeira medida educativa para coibir o uso da língua de sinais foi obrigar os alu- nos surdos a sentarem sobre suas mãos (...). Criaram-se sistemas reabilitadores altamente refinados na regulação e controle do corpo” (Lulkin, 2005, p. 38). Há pessoas que ainda hoje acreditam e “sugerem que o problema da surdez não é o acesso à oralidade, mas que ela afe- ta a faculdade mental dos surdos para a linguagem” (Cf. Skliar, 2005, p. 17). Por esses motivos, acreditamos que o silêncio imposto aos surdos por meio dos documentos não era e não é a ausência da oralidade, mas sim um silêncio mais profundo, o silêncio da alma. Um silêncio que cala o indivíduo no seu íntimo e impõe a ele uma personificação arbitrária, não do que ele é realmente, mas do que o fizeram acreditar ser. Esse tipo de imposição deve “ser entendido como uma das causas fundamentais na produção do holocausto linguístico, cognitivo e cultural que viveram os surdos” (Ibid., p. 16). Em meio a esse crescente holocausto, as famílias ouvintes nas quais surdos nasciam, impulsionadas por uma visão também clínica, acreditavam, e muitas ainda acreditam, numa possível recuperação dos surdos, numa cura. Dessa forma, “as ideias, nos últimos cem anos, são um claro testemunho do sentido comum segundo os surdos se adaptam com naturalidade a um modelo de medicalização da surdez” (Ibid., p. 7). Se, em relação ao ser humano surdo, o que se construiu historicamente foram visões pautadas em concepções clínicas, em relação ao corpo humano e ao espaço ao seu redor, canal de articulaçãoda Libras, os documentos oficiais teceram uma ideia de desconexão entre pensamento linguagem e língua que uti- lizasse o corpo como meio, como canal de desdobramento de uma língua. O corpo sempre foi visto, pela sociedade e pela escola, como meio de diversão, prazer e criatividade, ou de repressão, o que dá a impressão de estar desvinculado de um pensamen- to sistematizado e elaborado, simbolizado. Essa concepção do corpo é uma proposta restritiva que gera, muitas vezes, leituras equivocadas sobre quais disciplinas estão relacionadas à utiliza- ção do corpo. Dessa forma, os educadores na elaboração de seus projetos acreditam que “é necessário considerar outros modos de comu- nicação, como a linguagem do corpo e a linguagem das artes em geral, permitindo transversalizar em particular com educação física e arte” (PCNs/TT, 1998, p. 133). Porém, em muitos pro- jetos, o corpo é o centro do trabalho de duas disciplinas: artes e educação física. Dificilmente professores de geografia, códigos e linguagem, história, matemática ou alfabetizadores sentem- se familiarizados com trabalhos corporais ou não o relacionam com uma possível metodologia de ensino a ser utilizada em seu planejamento. Para os ouvintes, o corpo é, de fato, um complemento de sua língua materna, por ele se constitui a prosódia, sendo o cor- po, quando expandido, fruto da arte; quando explorado em sua potência, fruto do esporte e da atividade física. 44 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 45 Muitas vezes, o corpo na escola é meramente tratado numa relação de poder, em que sua disposição demonstra a ordem e a organização, o domínio dos impulsos sobre o outro indivíduo. Nesses aspectos, nas salas de aulas, nessa concepção de dominação do corpo, “o modelo mais conhecido é a distribui- ção convencional com carteiras dispostas de modo enfileirado, a mesa do professor posicionada à frente da sala, em destaque, para que ele ocupe esse lugar” (Scarpato, 2006, p. 74). Pense- mos, nas carteiras estão seres humanos, “assim fica a ideia de es- tarem propositadamente dispostas desse modo para impedir os alunos em seus movimentos a fim de discipliná-los” (Ibid.). Em pleno século XXI, as escolas, em grande maioria, ainda se orga- nizam desse modo. Talvez por isso, pela concepção de corpo adotada pelas políticas em escolas ouvintistas, a sociedade tenha certa dificul- dade de perceber o corpo e o desenvolvimento espacial sensorial visual como canal de uma língua legítima. Porque reconhecê-la é mais que aceitar uma língua, é quebrar o imaginário histórico sobre o corpo e o espaço. Não só o corpo, mas as construções sobre a língua utili- zada pelos ouvintes brasileiros, como a língua portuguesa, que se apresenta nos PCNs como sendo a “única língua nacional” (PCNs/LP, 1998, p. 29). O que de fato, em termos práticos, já não o era em 1998, se considerarmos as inúmeras línguas, legiti- mamente naturais e nacionais oralizadas e sinalizadas por comu- nidades indígenas18 e pelos surdos brasileiros. 18 “Os índios Urubus-Kapor do Brasil utilizam uma língua de sinais para a co- municação, mesmo sendo em maioria ouvintes” (Cf. Ferreira-Brito, 1994 apud Skliar, 2005, p. 23). Sobre aspectos laborais, pensava-se muitas vezes para o surdo, em relação ao currículo, uma escola de formação técni- ca ou auxiliar formadoras de surdos que exerciam atividades de prestação de serviços. Dentre essas profissões pré-determinadas ao surdo, encontravam-se “afiador de ferramentas, alfaiate, ar- tesão, barbeiro, bibliotecário, cartazista, confeiteiro, costureiro, fotógrafo, maquilador, pedreiro, tipógrafo” (Thoma, 2005, p. 130). Por essas e inúmeras outras razões, podemos pensar “a educação especial como um subproduto da educação” (Skliar, 2005, p. 11). Não só isso, mas a educação especial é o espaço onde o surdo sempre foi colocado, mesmo pelos documentos oficiais “de um modo estático nas políticas e nas práticas peda- gógicas” (Ibid.). O fato é que o imaginário existente sobre o surdo na so- ciedade atual em nível de senso comum é produto de valores documentados e institucionalizados durante anos. Talvez por isso “evita-se toda uma possível denúncia acerca do fracasso da instituição escola, das políticas educacionais e da responsabili- dade do estado. O que fracassou na educação dos surdos foram as representações ouvintistas acerca do sujeito surdo” (Ibid., p. 18). Por isso, não se pode conceber o surdo como um indivíduo fadado ao fracasso escolar. O fracasso do surdo é proveniente do fracasso das políticas públicas que permitiram a institucionali- zação das versões clínicas sobre o surdo. Cabe-nos admitir que “a educação dos surdos não fracassou, ela apenas conseguiu os resultados previstos em função dos me- canismos e das relações de poderes e saberes atuais” (Ibid., p. 19). 46 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 47 O que queremos dizer com as abordagens feitas acima é que a Lei Federal 10.436 de 24 de abril de 2002 representa um marco na educação brasileira, não a reconhecendo apenas por decreto, mas legitimando uma língua de sinais brasileira, reco- nhecendo a importância dela na cultura do surdo, reconhecen- do sua história, sua cultura linguística e social. Por meio da Lei 10.436, a Língua Brasileira de Sinais é reconhecida como a língua oficial dos surdos brasileiros, sendo que, com esse reconhecimento, o surdo tem seus direitos lin- guísticos garantidos, anulando a deficiência sensorial e admitin- do a diferença cultural linguística. Essa lei põe fim à “intenção de que crianças surdas sejam, em um hipotético futuro, adultos ouvintes” (Skliar, 2005, p. 21). Segundo a Lei 10.436, Art. 1º: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados”. No aspecto da lei, o surdo tem o direito legitimado de ser respeitado em sua língua materna, Libras, pois, por meio dela, ele se comunicará e expressará seu pensamento. Cabe a nós en- tendermos que o verbo expressar refere-se ao poder que um in- divíduo tem de “exprimir, declarar, falar” (Bueno, 1980, p. 470). Por isso, a Libras não é só um mero código linguístico pelo qual ouvintes e surdos se comunicam. A Libras é uma língua legítima, pela qual os surdos concluem seu pensamento, tendo nacional- mente seu direito legitimado para garantir a respeitabilidade ao surdo. Ainda no Art. 1º, Parágrafo único: “(...) o sistema linguís- tico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical pró- pria, constitui um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil19”. Em se tratando de língua, “não há uma cultura sobrepon- do-se a outra, mas uma dinâmica fundamental emergente entre os homens, a troca, a diversidade como elemento essencial para constituição da singularidade” (Silva, 2002, p. 27). Nesse sentido, fica óbvio, pela lei, a autonomia e o res- peito à pessoa surda em seus direitos linguísticos, opondo-se às ideias clínicas que imperaram nos séculos XIX e XX, e que infe- lizmente ainda derramam seus resquícios nos dias atuais. A lei também dispõe no artigo 2o que: “Deve ser garanti- do, por parte do poder público em geral e empresas concessio- nárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e a difusão da Língua Brasileira de Sinais – Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das co- munidades surdas do Brasil”. O Art. 3º da Lei 10.436 que dispõe sobre a relação entre saúde e o surdo diz: “As instituições públicas e empresas con- cessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor”.Acreditamos que o tratamento adequado ao qual se refere 19 Acreditamos que a palavra-chave desse parágrafo, ao qual os envolvidos na educação deverão se atentar para uma ampla reflexão, é o uso da palavra “oriun- do”. A significação dessa palavra permite-nos refletir que a transmissão de ideias e fatos, construtores da cultura, deve partir dos surdos, mas que essa não deve se manter somente entre eles, mas romper as barreiras sociais e constituir a diversi- dade cultural brasileira, compondo-a. 48 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 49 o Art. 3º não se remete a uma concepção clínica da surdez na busca de uma cura, como alguns ainda insistem em fazer; mas o de respeitar a Libras como inerente ao indivíduo surdo. Nesse sentido, ao surdo será dada a assistência à saúde segundo suas ne- cessidades médicas, como a qualquer outro ser humano, respei- tando sua “natureza linguística”20, para que possa ser informado sobre suas possíveis doenças ao longo da vida. Nesse aspecto, acreditamos que a lei não fala de tratamen- to ao surdo para a surdez, mas entendemos que se refere à quali- dade do atendimento dos profissionais da saúde em relação aos seres humanos surdos. Nessa relação, estará a troca de informa- ções sobre seu estado clínico. Para exemplificar, podemos observar dois relatos de pa- 20 Essa leitura do Art. 3º se constrói com base nas seguintes referências: “Os deficientes auditivos têm o direito de serem tratados com respeito, dignidade; devendo haver, sobretudo, nesses locais, qualidade no atendimento. Nesse caso, a comunicação deve fluir para que esses sujeitos se façam entender diante de seus problemas e de suas doenças. Com isso, percebemos a necessidade de os profis- sionais da área de saúde adquirirem aptidão para se comunicar com o deficien- te auditivo...” (Cruz, 2007, p. 192) “O bloqueio de comunicação entre surdos e profissionais da saúde instaura-se como um dos grandes obstáculos da comu- nidade surda, quando procura serviços de saúde. O indivíduo surdo precisa ser assistido de forma global, ter respeitadas as suas crenças, seus valores e diferenças (...) Na sociedade atual, preconiza-se a convivência com as diferenças. Várias me- didas são adotadas nas instâncias federal, estaduais e municipais, asseguradas pela Constituição Brasileira, tentando garantir a inclusão das pessoas com surdez no cotidiano familiar, coletivo e institucional. Aos profissionais da saúde, torna-se indispensável buscar novos paradigmas que facilitem promover uma assistência à saúde de qualidade e humanizada. A relação profissional da saúde e cliente surdo precisa ser melhorada, porque para os surdos o atendimento digno é atingido quando são compreendidos em suas necessidades, efetivando assim a inclusão na saúde (...) Responder às dificuldades dos surdos quando procuram atendimento à saúde é dever de todos profissionais comprometidos em colaborar na construção de uma sociedade inclusiva. (Chaveiro; Barbosa, 2005). cientes surdos: “Tive dengue e o médico não explicou. Sei que tive por que aqui na escola a professora falou que dengue dá febre, dor, mas eu não sabia que doença era. (S17)” (Chaveiro; Barbosa, 2005). “Tive apendicite (...). Meu esposo também é surdo (...). No primeiro hospital que fui, deram-me remédio e falaram que podia voltar para casa que não era nada sério. A dor só aumenta- va, procuramos outro hospital, não conseguiram nos entender, aplicaram uma injeção (...). Já não suportava de tanta dor, foi quando chegaram em casa nossos amigos, um casal de surdos, eles tinham carro, fomos buscar uma sobrinha minha, ouvin- te, para ir junto ao hospital, só assim recebi atendimento. Fui operada, o apêndice supurou. Fiquei internada 9 dias, ninguém pôde ficar comigo, estava sozinha, os profissionais do hospital não sabiam conversar comigo, passei mal, chorei, tudo sozinha. (S3)” (Ibid.) Essas informações são relevantes aos profissionais da edu- cação, porque nelas estão explícitas a importância da Libras no atendimento hospitalar. Consideramos que, por meio dessa leitura, ficará claro que o Art. 3º não faz referência ao tratamento da surdez, mas as necessidades humanas básicas do surdo no que se refere a seu atendimento à saúde. Sobre a educação, sãos os educadores res- ponsáveis pela construção de cidadãos conscientes em nível de deveres e direitos. O Art. 4º da Lei 10.436 refere-se diretamente à adequa- 50 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 51 ção do currículo do ensino médio e superior, o que já vem ocor- rendo em inúmeras universidades. Segundo a lei: “O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a in- clusão nos cursos de formação de educação especial, de fono- audiologia e de magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais – Libras, como parte inte- grante dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, confor- me legislação vigente”. Isso significa que qualquer instituição de ensino que ne- gar a importância da Libras como constituinte curricular nos cursos de formação estarão em déficit com a lei, negando aos profissionais das áreas citadas acima de estarem capacitados para atuarem numa sociedade multicultural, bilíngue. Ainda no Art. 4º, Parágrafo único: “A Língua Brasileira de Sinais – Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa”. Trataremos no próximo capítulo esse as- pecto de aquisição da escrita da língua portuguesa pelos surdos. Com essa leitura, analisamos que a lei não modifica ape- nas as características linguísticas do Brasil, que passa a partir de 2002 a ser reconhecidamente um país bilíngue; ela quebra e rompe com paradigmas antigos que atribuíam apenas a oraliza- ção o estatuo de língua. Esse reconhecimento, em nível legal, não é fruto de mera burocracia, mas sim resultado de lutas de seres humanos que buscaram seus direitos linguísticos para firmarem sua identida- de linguística na sociedade. Identidade linguística nos remete a pensar em um direito além do direito enquanto regras sociais, mas em um direito que nasce com o homem, humano, um direito fruto do respeito aos diferentes modos de conceber o mundo e de refletir sobre ele. A Lei 10.436 representa esse direito, o direito de ser surdo. Desse modo, permite que em nossa sociedade existam espelhos-homens21 surdos, cuja língua se construa na mesma modalidade, a visual-gestual. A importância desses espelhos-homens surdos, reconhe- cidamente respeitados pela sua identidade linguística a partir de 2002, se dá porque “as palavras refletem a arena de forças políti- cas presentes nas relações interpessoais” (Silva, 2002, p. 25). Se fizermos uma auto-reflexão, o que muitas vezes preocupa não é de fato a oficialização da Libras enquanto língua nacional, mas a relação de poder que está implícita nos ouvintes, no processo interpessoal de sua cultura. Nessas relações interpessoais, embora todo indivíduo te- nha a capacidade de transformar o ambiente a ponto de cons- truir sua história, o que ocorreu em relação a Libras por meio de seus utentes, é preciso entender que “devemos buscar a análise e a compreensão dos fenômenos de comportamento individual e coletivo, nos mais diversos contextos em que as interações so- ciais e culturais ocorrem” (Kelman, 2008, p. 87). Refletindo sobre o apontamento de Kelman, pensamos que, se não houvesse um reconhecimento político da existên- 21 Tivemos como referência para essa concepção de homem: Glad apud Prioste et al, 2006, p. 60. Que apresenta o homem como um indivíduo que se estabelece por meio de espelhos homens sociais. 52 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 53 cia da Libras; ela continuaria sendodesconsiderada, o que le- varia os indivíduos surdos a serem despojados de sua natureza e submetidos à mecanização do ensinamento, o que desconstrói a subjetividade humana, tendo como consequência a negação da própria cultura. Por esses motivos, o reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais como língua (não como simples linguagem) e como primeira língua dos surdos brasileiros não é somente a aprova- ção do ensino de uma “nova” modalidade de língua, mas o re- conhecimento da cidadania, da identidade, da subjetividade, do realizar-se da pessoa humana surda em manifestar e refletir, se- gundo sua natureza sensório-motora e sua cultura. Como já dissemos, o Brasil é hoje reconhecidamente um país bilíngue, no qual devemos enfatizar que a relação das di- ferenças entre as línguas oficiais se faz inerente às redes sociais, que são dinâmicas justamente por terem um caráter heterogê- neo, e por esse aspecto devemos compreender que “conhecer várias línguas não representa uma ameaça, mas abre um leque de manifestações linguísticas dependentes de diferentes contextos” (Quadros, 2008, p. 28), o que nos enriquecerá pelas múltiplas culturas que se apresentarão. Por meio da heterogeneidade, o indivíduo, seu pensa- mento e sua língua como expressão de sua identidade terá valor porque manifestará a diferença, marca da subjetividade, da cul- tura de um povo. Nesse aspecto, “os símbolos que impregnam a cultura só vão se revestir de significado para as crianças surdas se houver interações sociais e comunicativas significativas” (Kel- man, 2008, p. 92) a elas. Para compreendermos sobre a significação construída pela língua, nós devemos assimilar que a lei reconhece que “a criança surda não tem o input da língua oral”, (Kelman, Ibid, p. 87). Desse modo, a lei reconhece que “os surdos criaram, de- senvolveram e transmitiram, de geração em geração, uma língua cuja modalidade de percepção e produção é viso-gestual” (Idem, Ibid, p. 23). A lei traz em sua essência todas essas concepções ou pro- cura atender essas especificidades e representa uma síntese desses valores do surdo. Nesse aspecto, fazendo uma leitura pautada nas concep- ções pedagógicas atuais, pautada no direito do ser humano de ser o que ele é em sua essência, acreditamos que a Lei 10.436 não é um marco no direito do surdo de aprender por meio da Li- bras, mas sim o reconhecimento das lutas dos indivíduos surdos, pelos seus direitos culturais, inerentes ao indivíduo, ao cidadão brasileiro surdo. A lei é um dizer não à oralização mecânica, e dizer sim ao “silêncio”, essência de sua palavra. Para que a sociedade se reconheça em um novo parâme- tro, os cursos de formação que estão diretamente relacionados à construção dos valores e do pensamento dos sócios, incluirão a Libras em sua grade curricular. Em referência aos aspectos legais, o decreto de número 5.626 que regulamenta a Lei 10.436, no capítulo II, artigo 3º, dispõe sobre a obrigatoriedade da inserção da disciplina de Libras nos cursos de formação de professores, tanto no ensino médio como nos cursos de nível superior. Nos termos do decreto: 54 eduardO de campOs garcia 55 “Art. 3º: A Libras deve ser inserida como disciplina curri- cular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e priva- das, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 1º: Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de pedagogia e o curso de educação especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério. § 2º: A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação su- perior e na educação profissional, a partir de um ano da publica- ção deste Decreto.” Por meio da lei, acreditamos que o respeito à cultura do surdo germinará tanto nos aspectos linguísticos como nos as- pectos científicos, dada a abertura para que se discuta a cultura do surdo e sua língua materna em nível superior, sendo que, por meio dessa obrigatoriedade, abre-se também a universidade a um novo universo de conhecimentos. Esses conhecimentos refe- rentes aos direitos do ser humano surdo é que gerarão, segundo nossa análise, o respeito ao silêncio do surdo, que grita por meio dos movimentos, desenhando no espaço suas ideias e recriando sua própria história. Desse modo, a fala do surdo reconhecida- mente se propagará em nível social e científico por meio de sua construção cinésica. Todo pedagogo deve saber que a educação multifacetada é... Neste capítulo, abordaremos a vivência dos surdos e ouvintes num mesmo espaço de aprendizagem, o da escola. A proposta em primeiro momento é a de não classificar como inclusiva22 a escola em que surdos e ouvintes estiverem vivenciando seu aprendizado. Isso porque acreditamos que toda escola deverá ser um espaço de vivências significativas, onde seus sujeitos deverão se ver como protagonistas e sem rótulos.23 Não há “inclusão” real se não houver concepção de igualdade, e acreditamos que 22 “Concordamos que é necessário romper com a tradição segundo a qual, uma vez reconhecido o fracasso da escola especial, aparece de maneira implacável uma única opção, a escola inclusiva” (Skliar, 2005, p. 13). 23 “Nas práticas discursivas sobre surdez, na busca de uma conceitualização mais complexa, de forma enganosa usam-se os termos “deficiência”, “diversidade” e “di- ferença”. (Ibid.) 56 eduardO de campOs garcia O que tOdO pedagOgO precisa saber sObre Libras 57 a concepção de igualdade nasce na medida em que respeitamos absolutamente a cultura do outro. Pensamos que, com a concepção de igualdade, a proposta pedagógica de uma escola “não deverá ser compreendida como uma mudança metodológica dentro do mesmo paradigma da es- colarização” (Skliar, 2005, p. 1). Ela deverá estar além da prática, deverá pautar-se no reconhecimento de que os surdos são indi- víduos dotados de potencialidades próprias no processo educa- cional, e essas potencialidades deverão ser reconhecidas assim como o são as potencialidades dos ouvintes. Esse reconhecimento das potencialidades de cada ser hu- mano é que concebemos como a igualdade a ser empregada no processo educacional. Isso é relevante porque “a reflexão sobre as potencialidades dos surdos não deve ser interpretada como um modelo para os surdos serem educados, ou como uma proposi- ção metodológica de aprendizagem” (Cf. Ibid., p. 25). É óbvio que todo planejamento educacional terá como item também seus métodos, nesse ponto não queremos parecer contraditórios em concordar que será importante e indispensá- vel propô-los, porém, antes do método24 escolhido ser aplicado, deverá existir a reflexão substanciosa do que de fato é recomen- dável e significativo para o surdo. Nessa significação de valores do que é significativo ao sur- 24 Pensamos que “A rigidez metodológica tem apresentado sérios problemas no campo educacional toda vez que é considerada mais importante do que a criança. Ao contrário do que propõe essa tendência, acredito que toda escolha metodoló- gica deve levar em conta a criança, e não apenas a escola ou o educador. A ênfase do processo educacional deve ser o desenvolvimento cognitivo e a comunicação das crianças” (Silva, 2005, p. 41). do, deveremos estar atentos que as potencialidades dos surdos terão uma relação íntima com a sua condição humana, a de ver o mundo e pensá-lo por meio de experiências visuais como já explicitado no capítulo I. Em algumas escolas, ainda há, em seus projetos pedagó- gicos “a imposição de culturas e perfis narrados como belos,
Compartilhar