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POLÍCIA MILITAR DE SANTA CATARINA UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA JORGE LUIZ DONATTI ANÁLISE DO PROCEDIMENTO POLICIAL MILITAR ADOTADO NO CASO DO SEQÜESTRO DOS PASSAGEIROS DO ÔNIBUS 174 Florianópolis 2008 1 JORGE LUIZ DONATTI ANÁLISE DO PROCEDIMENTO POLICIAL MILITAR ADOTADO NO CASO DO SEQÜESTRO DOS PASSAGEIROS DO ÔNIBUS 174 Monografia apresentada ao Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais da Polícia Militar de Santa Catarina com especialização lato sensu em Administração de Segurança Pública, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Administração de Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Orientador: Prof. Giovani de Paula, Msc. Florianópolis 2008 2 JORGE LUIZ DONATTI ANÁLISE DO PROCEDIMENTO POLICIAL MILITAR ADOTADO NO CASO DO SEQÜESTRO DOS PASSAGEIROS DO ÔNIBUS 174 Esta Monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Especialista em Administração de Segurança Pública e aprovada em sua forma final pelo Curso de Especialização em Administração de Segurança Pública, da Universidade do Sul de Santa Catarina. Florianópolis, 27 de setembro de 2008. Prof. e orientador Giovani de Paula, Msc. Universidade do Sul de Santa Catarina Major PM Marcelo Cardoso. Universidade do Sul de Santa Catarina Capitão PM Aurélio Pelozato da Rosa Universidade do Sul de Santa Catarina 3 Dedico esta Monografia aos profissionais que doam suas vidas para realizar os sonhos de todos que se propõem a aprender. Sem estes professores não haveria conhecimento e sem o conhecimento os profissionais não chegariam à sabedoria e sem a sabedoria não haveriam as grandes descobertas da humanidade. Dedico ainda à minha esposa e colegas de trabalho. 4 AGRADECIMENTOS Quero agradecer primeiramente a Deus, por me dar forças suficientes para superar os vários obstáculos no qual deparamo-nos todos os dias de nossas vidas. Agradeço também ao Professor Orientador Giovani de Paula, pela paciência e interesse, e principalmente pelo seu conhecimento, fatores que me ajudaram a enriquecer ainda mais esta monografia. Finalizando, agradeço a minha esposa Dra. Teresinha e minha amada filha Lana Priscila Donatti e todas as pessoas que, direta ou indiretamente, tiveram participação comigo na elaboração deste trabalho. 5 “Respeita a ti mesmo e terás um caráter nobre” (Pitágoras). 6 RESUMO Este trabalho analisa o procedimento policial adotado no caso do seqüestro do ônibus linha 174 no Rio de Janeiro, apresentando seu contexto histórico e apontando as falhas por parte das forças de segurança que cuidaram desta operação. Serão desenvolvidos os conceitos referentes à sociedade brasileira, urbanização, desigualdade, ordem, ordem social, sociologia da favela, trabalho, poder de polícia (na atualidade, fundamentação, administrativa e judiciária), conflitos urbanos e o papel de polícia, preservação da ordem pública, situações de gerenciamento de crise, conceitos de crise, negociação, “Ônibus 174” (estudo de caso, contexto histórico, avaliação policial) e reflexões para uma nova práxis policial. Palavras-chave: Ônibus 174. Procedimento Policial. Gerenciamento de Crise. 7 ABSTRACT This work analyzes the procedure policeman adopted in the case of the kidnapping of the bus line 174 in Rio de Janeiro, presenting his historical context and pointing the flaws on the part of safety's forces that took care of this operation. The concepts will be developed regarding Brazilian society, urbanization, inequality, order, social order, sociology of the slum, work, police power (at the present time, recital, administrative and judiciary), urban conflicts, police paper, preservation of the public order, situations of crisis administration, crisis concepts, negotiation, "Bus 174" (I study of case, historical context, evaluation policeman) and reflections for a new práxis policeman. Word-key: Bus 174. Procedure Policeman. Administration of Crisis. 8 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09 2 DESENVOLVIMENTO – SOCIEDADE BRASILEIRA, URBANIZAÇÃO, DESIGUALDADE, ORDEM E CONTROLE SOCIAL. ............................................ 12 2.1 Sociologia da favela: aspectos históricos............................................................ 12 2.2 O trabalho e a ordem social............................................................................... 15 2.3 Poder de polícia ................................................................................................. 18 2.3.1 Contexto histórico ............................................................................................. 18 2.3.2 O poder polícia na atualidade ........................................................................... 19 2.3.3 Fundamentação do poder de polícia ................................................................ 21 2.3.4 Poder de polícia administrativa ........................................................................ 22 2.3.5 Poder de polícia judiciária ................................................................................ 23 3 CONFLITOS URBANOS E O PAPEL DE POLÍCIA . ........................................... 25 3.1 Preservação da ordem pública ............................................................................ 25 3.2 Situações de gerenciamento de crise ................................................................ 26 3.2.1 Crise ................................................................................................................. 27 3.2.2 Gerenciamento de crise ................................................................................... 29 3.2.3 Negociação ...................................................................................................... 30 4 ESTUDO DE CASO “ÔNIBUS 174”...................................................................... 33 4.1 Contexto histórico do Caso do Ônibus 174 ......................................................... 33 4.2 Avaliação da Atuação Policial no Caso do Ônibus 174 ....................................... 37 4.3 Reflexões para uma nova práxis policial..............................................................43 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 52 6 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 55 9 INTRODUÇÃO Temos observado a partir dos anos 80 o constante aumento dos índices de criminalidade em nosso país, em que o respeito ao preceito constitucional em seu artigo 5°, inc. XV, da Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988, que rege sobre o direito de locomoção de todos no território brasileiro em tempo de paz, não está podendo ser exercido pelos cidadãos, pelo medo instalado nos centros urbanos em conseqüência da falta de segurança e das mais variadas formas de violência.Em uma pesquisa realizada pela revista Veja, em 22 de Agosto de 2001, foram analisadas as chances de você ou alguém de sua família serem vítimas de um assalto, um estupro, atentado violento ao pudor ou um seqüestro relâmpago em nosso país, é de aproximadamente 97% no decorrer de toda sua vida. Tal fato é preocupante. Diante desse cenário, optamos por pesquisar o documentário sobre o seqüestro dos passageiros do ônibus 174 na visão da sociedade carioca e a nível nacional durante o seu desenrolar até o término, o que nos leva a buscar respostas para as circunstâncias e as motivações que levaram o jovem Sandro do Nascimento a praticar aquela ação e a forma de resposta do Estado. A atuação policial demonstra, em alguns momentos, que os agentes de segurança pública tiveram como necessidade de resolução da situação o emprego da força tática diante da gravidade do quadro apresentado. Ao longo desse trabalho, iremos analisar os efeitos positivos e negativos da interferência política e de órgãos alheios no transcorrer de uma atividade técnica e de competência da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, de alguém que não fazia parte do teatro de operações, mas influenciava nas decisões a serem tomadas, com a única preocupação da presença da imprensa e a repercussão que o desfecho do caso poderia tomar. Esta monografia também tem por objetivo analisar o procedimento policial- militar adotado no caso do seqüestro do ônibus linha 174 no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 12 de junho de 2000, por meio da observação do documentário sob a ótica da segurança pública, no atendimento a eventos críticos de natureza policial, denotando as falhas ocorridas sob a esfera policial e buscar conteúdos que possam 10 promover maior efetividade e êxito na resolução de situações similares, observando, contudo, a aplicação da lei e a preservação de vidas. Dada a sua repercussão, o caso do “Ônibus 174” tem sido considerado um marco na história da violência no Brasil. O que era para ser um simples assalto, como tantos outros que ocorrem no cotidiano de uma grande metrópole, que mediante o contato com a polícia se transformou em seqüestro que perdurou por horas, e como desfecho final teve a morte de uma das reféns, Geísa Firmo Gonçalves e do seqüestrador Sandro Rosa do Nascimento, preso e possivelmente assassinado no interior da viatura da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Ocorre que o fato obteve uma cobertura ao vivo de diversas emissoras de televisão e posteriormente virou capa de vários jornais e revistas, transformando-se em filme de grande reconhecimento dentro e fora do país, além de um documentário respectivo. Na observação do documentário nos instigam muitas questões sobre a forma de atuação da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e, mormente, a adequação das táticas para o caso em questão, bem como o treinamento dos policiais na gerência de situações de crise e os efeitos da interferência de órgãos externos alheios na busca da solução daquele episódio. Assim, este trabalho procura identificar os procedimentos para o atendimento de eventos críticos de natureza policial que envolva reféns, descrevendo os procedimentos e a importância de um plano de contingência, bem como as estratégias de atuação durante uma situação de crise Procura ainda ressaltar a importância da atuação dos órgãos públicos nestes episódios violentos, por meio da elaboração de planos de ação para emprego operacional utilizando-se um comando unificado e capacitado. Para isso, num primeiro momento, serão explicitados alguns conceitos sobre sociologia, buscando entender como a realidade social colaborou para a ocorrência do caso em estudo, afetando a ordem pública que exigiu o poder da polícia impondo limites, visando a sua preservação. Posteriormente serão abordadas questões específicas sobre a preservação da ordem e definições sobre a segurança pública, além de referências em torno da definição de crise, a qual solicita respostas da segurança pública, enfocando a ação dos policiais que fazem parte das Operações Especiais, discutindo sobre seus equipamentos e capacitação para atuarem em ocorrências de 11 altíssimo risco. Na metodologia a ser utilizada nesta pesquisa, utilizaremos o método dedutivo, com técnicas de análise de conteúdo, estudo de caso, consulta bibliográfica, na qual serão pesquisadas a legislação, normas e diversas doutrinas, livros, monografias, artigos de jornais, revistas e consultas em sites e outros. No presente estudo serão apontadas algumas considerações sobre o gerenciamento de crise, focando os objetivos nessa situação e a importância da capacitação dos envolvidos, principalmente no que se refere à negociação em crise; para finalmente apresentar um contexto histórico do caso do “Ônibus 174” e uma avaliação da atuação policial com base no referencial teórico previamente levantado. Por fim, a Conclusão apresentará as principais inferências do estudo e algumas sugestões sobre a atuação policial em situação de crise. 12 CAPITULO II DESENVOLVIMENTO – SOCIEDADE BRASILEIRA, URBANIZAÇÃO, DESIGUALDADE, ORDEM E CONTROLE SOCIAL. 2.1 Sociologia da favela: aspectos históricos Falar a respeito de favelas significa falar da história do Brasil a partir da virada do século passado. Apesar da favela ser encontrada em diversas partes do país, falar em favela é falar em particular da cidade do Rio de Janeiro na República, com interesses e conflitos regionais profundos (ALVITO e ZALUAR, 1998). Segundo Oliveira e Cunha (2008, p.1): [...] A palavra “favela” foi originada de arbusto com sementes oleaginosas freqüentes no sertão brasileiro do Nordeste. No final do século XIX, soldados que retornavam da Guerra dos Canudos e que não tinham onde morar, passando a ocupar os morros da providência e Santo Antonio no Rio de Janeiro, morros estes situados nos fundos dos quartéis. Os mais críticos diziam que as barracas ou habitações precárias apareciam de uma forma tão rápida como as favelas, arbustos encontrados com tanta intensidade no Nordeste, originando daí o nome. Cita ainda Oliveira e Cunha (2008) que as primeiras favelas foram notadas no final do século XIX no do Rio de Janeiro, capital da recém proclamada República, sendo que tinha no princípio do século XX uma população menor que um milhão de habitantes e a maioria era composta por ex-escravos. Para Alvito e Zaluar (1998) a favela ficou registrada oficialmente como área de habitações irregulares, construídas sem planejamento e traçados definidos, devido a pobreza dos habitantes, mas também devido ao descaso do governo que promoveu uma imagem deste local como um lugar carente e pobre, onde habitavam marginais e como sendo um perigo a ser eliminado, não tendo portanto interesse social pelo problema. Valladares (2000) coloca a favela no debate social, mostrando seu lugar e importância nas discussões entre homens de poder e de ação e confirma sua importância crescente no imaginário social, afirmando que a construção social da favela aconteceu num momento em que as preocupações estavam centradas no futuro, na saúde da sociedade, no embelezamento e saneamento do Rio de Janeiro. 13 Numa sociedade com forte tradição de relações hierárquicas, o princípio de igualdade – seja como igualdade perante a lei, seja como responsabilidade coletiva pela exclusão de classe – não chegou propriamente a se consolidar, nem como ideário, nem como prática do Estado de Bem-estar social (MAIA, 2008, p.10). Assim, nasdiscussões a respeito do Rio de Janeiro no princípio do século XX, o interesse pela favela ocupa um segundo lugar. Fala-se sobre a pobreza, mas o olhar está voltado para o sanitarismo e são priorizadas as questões da raça e da classe trabalhadora, mas reduzida ao trabalho fabril. Fala-se de lutas e diversidades de correntes, mas cabe ao movimento sindical a maior relevância (VALLADARES, 2000). Assim, Agache define: Construídas contra todos os preceitos da higiene, sem canalizações d’água, sem esgotos, sem serviço de limpeza publica, sem ordem, com material heteroclito, as favelas constituem um perigo permanente de incêndio e infecções epidêmicas para todos os bairros através dos quais se infiltram. A sua lepra suja a vizinhança das praias e os bairros mais graciosamente dotados pela natureza, despe os morros do seu enfeite verdejante e corrói até as margens da mata na encosta das serras (AGACHE, 1930, p.190). Desta forma esquece-se por outro lado que a fonte ou os agentes de todos estes processos está focado nas pessoas, que por vezes estabelecem-se nestes grupamentos humanos chamados favelas. As camadas populares, que nas primeiras décadas do século XX são analisadas, sobretudo sob o ângulo dos laços entre cultura e política, quando aparecem, são sob o rótulo de “povo”, no cortiço ou nas ruas do centro do Rio de Janeiro, driblando sua exclusão política por meio de movimentos de revolta dos tipos mais variados (VALLADARES, 2000, p.1). Em face da constatação do autor, considero se não foi também este descaso que a transformou nesta problemática complexa que se impõe nos dias atuais nos grandes centros urbanos. Ressalta-se que o descobrimento da pobreza não se deve aos cientistas sociais, mas, quando se transforma em preocupação das elites, são os profissionais ligados à imprensa, literatura, engenharia, medicina, ao direito e à filantropia que passam a descrever, propondo soluções ao problema e visando conhecer para denunciar e intervir buscando administrar e gerir os moradores (VALLADARES, 2000). 14 Assim, denota-se o abandono e discriminação histórica desta parcela da população e, segundo Valladares (2000), é o morro da Favela que entra para a história, onde em 1900 o Jornal do Brasil denunciava estar o morro infestado de criminosos e desocupados. Esta também é a visão de um Delegado de Polícia, onde segundo Bretãs (1997 apud VALLADARES 2000, p.8), afirma que “Se bem que não haja famílias no local designado, é ali impossível ser feito o policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões e praças do exército, não há ruas, os casebres são construídos de madeira e cobertos de zinco”. Destaca-se que os dois primeiros estudos a respeito das favelas do Rio de Janeiro foram o relatório do médico Victor Tavares de Moura1, publicado em 1943 e o TCC da assistente social Maria Hortência do Nascimento e Silva, publicado em livro em 1942, sendo que ambos sinalizavam os novos tempos, quando já se reconhecia a necessidade de informações concretas visando gerir a pobreza (VALLADARES, 2000) ou seja, as favelas. Também Monet relata: Toda a reflexão sobre problemas policiais atuais deve levar em conta que: fatores como desemprego e a pobreza, engendram conflitos, divisões e violências. As aspirações frustradas, desilusões repetidas e ressentimentos crescentes solapam naqueles que deles são vítima, a confiança que poderiam ter nos mecanismos de regulação política, na legislação e nas instituições policiais, enfraquecendo, igualmente, a legitimidade destas últimas. Eles minam as regras do jogo social, corroem o consenso sobre os valores: os excluídos são levados a rejeitar a autoridade política, seja por se refugiarem na indiferença e na abstenção, seja por se recusarem a submeter-se à lei e ao regulamento, seja ainda, por mergulharem na violência aberta (MONET, 2002, p.11). Diante de tais comentários, como conceituar favelas? Valladares (2002) afirma que foram incluídos no conceito de favelas os aglomerados humanos que tivessem, total ou parcialmente, as características abaixo: - Tipo de habitação: predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico construídos principalmente de chapas zincadas ou tábuas; - Condição jurídica: construções sem licenciamento e fiscalização, em espaços de terceiros ou de propriedade desconhecida; 1 Victor Tavares de Moura foi membro da Comissão para Higienização das Favelas entre 1941 e 1944 e diretor do Departamento de Assistência Social entre 1944 e 1947. Segundo entrevista realizada com sua filha, Maria Coeli Tavares de Moura, o médico pernambucano era concunhado de Agamenon Magalhães, que em 1939 montara em Recife a Liga Social contra o Mocambo, campanha anterior à política dos Parques Proletários do Rio de Janeiro (VALLADARES, 2000). 15 - Melhoramentos públicos: ausência, no todo ou em parte, de rede de saneamento, luz e telefone; - Urbanização: área não urbanizada, faltando arruamento e numeração. Assim, pode-se afirmar que tal situação não poderia deixar de trazer conseqüências para as populações que vivem nos bairros e centros mais abastados, para onde crianças abandonadas e jovens sem perspectiva de vida partem em busca de sobrevivência, que por vezes, em suas mentes moldadas no meio em que vivem, se reflete em pequenos furtos, assaltos e o tráfico de drogas como meio de subsistência, tendo como vítimas os moradores destes centros urbanos. Destaca-se que estas pessoas, quando negras, trazem sobre os ombros uma herança mórbida e pesada para que se aliviem sem ajuda. Vivendo em um ambiente de miséria hoje, não são culpadas se seus ancestrais padeceram na senzala. Assim, para que possam trabalhar, se faz necessário curá-las, educá-las, e, sobretudo, dar-lhes casas com um mínimo de conforto indispensável à sua auto- realização (VALLADARES, 2000) sendo este um papel do Estado. Deste modo, podemos observar na citação abaixo: [...] promover o bem-estar social, isto é, propiciar à população de um Estado a ordem interna e externa, a paz, o respeito às leis, promovendo a justiça; dispor de meios suficientes para atender às necessidades humanas em seus diferentes aspectos: físico, moral, espiritual, psicológico e cultural; manter a ordem social através de leis existentes ou redigindo novas, que reajustem a própria ordem, quando as condições de mudanças o exigirem (LAKATOS e MARCONI, 1999, p. 191). Desta forma é papel do Estado prover os meios necessários para que a população possa atender suas necessidades humanas e isso provém do trabalho. Portanto, cabe ao Estado manter a ordem social com ações que gerem emprego e renda, tema este que será estudado no próximo item do presente trabalho. 2.2 O trabalho e a ordem social Sobre este tema, a Constituição da Republica Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro do ano de 1988, na parte que trata dos Princípios Fundamentais, em seu art. 3º cita que são objetivos fundamentais da Republica Federativa do Brasil, entre outros, construir uma sociedade livre, justa e solidária, 16 erradicar a pobreza e a marginalização, buscando assim reduzir as desigualdades sociais e regionais. Preconiza também nesta mesma lei, em seu art. 193, que a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo a justiça e o bem estar social (Constituição da República do Brasil, 1990). Podemos denotar que foi no século XIX que surge um intervencionismo estatal na esfera social, o que impulsiona a transferência de competências públicas ao setor privado. Tal esfera social limita a abstração entre público e privado,pois o Estado assume funções antes restritas à sociedade civil (HABERMAS, 1984 apud MARTINS, 2008). Assim, a grande massa de trabalhadores assalariados consegue entrar na cena política, o que simboliza a concretização das cobranças perante as promessas da burguesia. Dessa forma, o Estado amplia sua atuação sobre a sociedade civil, confiando tarefas públicas à pessoas privadas, definindo os direitos dos trabalhadores (MARTINS, 2008). Contudo Valladares (2000, p.7) afirma que: No Rio de Janeiro, assim como na Europa, os primeiros interessados em esmiuçar a cena urbana e seus personagens populares voltaram sua atenção para o cortiço, considerado no século XIX como o locus da pobreza, espaço onde residiam alguns trabalhadores e se concentravam, em grande número, vadios e malandros, a chamada “classe perigosa”. Caracterizado como verdadeiro “inferno social”, o cortiço era tido como antro não apenas da vagabundagem e do crime, mas também das epidemias, constituindo uma ameaça às ordens moral e social. Ressalta-se que neste período ocorrem alterações na forma jurídica do Estado e na estrutura da administração pública. Pode-se observar bem tal mudança na aplicação dos Direitos Fundamentais e a inclusão dos Direitos Sociais, que visam, em tese, facultar aos cidadãos a participação nas riquezas e no poder político (MARTINS, 2008). Num contexto histórico pode-se afirmar que o burguês embrionário, sob domínio do absolutismo feudal, conseguiu tornar-se burguês. O operário moderno, ao contrário, ao invés de se elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais, caindo inclusive abaixo das condições de existência de sua própria classe (MARTINS, 2008). Segundo Bobbio (1982) o Estado não mais pode ser visto como a superação 17 de uma sociedade civil, mas como algo que a reflete. Assim, atualmente as empresas privadas apelam para uma estratégia que tenta amenizar as diferenças entre a classe patronal e a classe proletária. Essas organizações assumem a responsabilidade estatal de prover um “bem estar” aos seus empregados e assistir as comunidades (MARTINS, 2008). Assim, pode-se afirmar que as empresas e o Estado estão unidos, visando atingir o controle social. Esta atividade de controle social é exercida num primeiro momento pelas polícias, conforme podemos verificar abaixo. Segundo Alvarenga (2008, p.4): As organizações policiais não se confundem com as demais instâncias da administração pública, pois apresentam particularidades que as distinguem de modo definitivo e visível diante da sociedade. A autoridade demonstrada pelo uso de uniforme, nas organizações militares, e de armamentos, destaca essa diferença de universo no que se refere às relações entre administrados e outras instâncias públicas. Ainda segundo Ross, o ser humano herda alguns instintos: Na concepção de Ross, o ser humano herda quatro instintos: "simpatia, sociabilidade, senso de justiça e ressentimento ao mau trato". Estes instintos permitem o desenvolvimento de relações sociais harmoniosas entre os componentes de grupos e comunidades pequenas e homogêneas. À medida que a sociedade se torna mais complexa, as relações sociais tendem a tornarem-se impessoais e contratuais. Nesse período de transição, com o enfraquecimento dos instintos sociais do homem, o grupo tem de lançar mão de determinados mecanismos sociais a fim de controlar as relações entre seus membros. Esses mecanismos constituem o controle social, que visa regular o comportamento dos indivíduos e propiciar à sociedade ordem e segurança (LAKATOS e MARCONI, 1999, p.237). Desta forma, quando as sociedades artificiais civilizadas ficam distantes das comunidades naturais, os controles instintivos do homem são substituídos pelos recursos artificiais, sendo, entre outros, a opinião pública, a crença, a religião e a lei (LAKATOS e MARCONI, 1999). Não obstante, a lei continua a ser o imperativo do controle social, o qual é manifestado pelo Poder de Polícia que segundo Silva (2006) destina-se a assegurar o bem estar geral, impedindo, através de ordens, proibições e apreensões, o exercício anti-social dos direitos individuais, o uso abusivo da propriedade, ou a prática de atividades que prejudicam a sociedade. 18 2.3 Poder de Polícia 2.3.1 Contexto histórico Quando o homem passou a viver em sociedade, foi necessário criar normas e regulamentos para o bem-estar da coletividade, onde foram criadas as leis, dando aos cidadãos vários direitos, mas com seu exercício compatível com o bem-estar da sociedade, sendo que um dos órgãos criados, responsável pela adequação do direito individual ao interesse da coletividade, é o poder de polícia (SILVA, 2006). Segundo Tácito (2001, p.17): Em seu conceito clássico o poder de polícia é simples processo de contenção de excessos do individualismo. Consiste, em suma, na ação da autoridade pública para fazer cumprir por todos os indivíduos o dever de não perturbar. Um dos mestres do direito administrativo alemão assim definia o papel da administração: “O resultado de cada aplicação do poder de polícia não será mais outro: que este homem não perturbe”. O vocábulo polícia origina-se do latim “politia” e do grego “politea”, ligada como o termo política, ao vocábulo “polis”. O termo Poder de Polícia na Idade Média foi usado nesse sentido amplo e detectou-se o exercício do poder de polícia tal como é hoje considerado (SILVA, 2006), onde objetiva defender os interesses da sociedade. Complementando, Tácito cita a abrangência deste Poder: Praticamente, os interesses em que consiste o bem público, bem geral, ou bem comum, public welfare, cometido à discrição do poder de polícia, abrangem duas grandes classes: os interesses econômicos, menos diretos, menos urgentes, menos imperiosos, mais complexos, e os interesses concernentes à segurança, aos bons costumes, à ordem, interesses mais simples, mais elementares, mais preciosos, mais instantes em qualquer grau (TÁCITO, 2001, p.17). Na legislação brasileira, a Constituição Federal de 1824, em seu artigo 169, atribuiu a uma lei a disciplina das funções municipais das câmaras e a formação de suas posturas policiais. A partir deste instante, firma-se no nosso ordenamento jurídico o uso da locução poder de polícia para definir o poder da Administração de limitar o interesse de particulares (SILVA, 2006). 19 2.3.2 O poder de polícia na atualidade O Estado possui poderes que se efetivam de acordo com as exigências do serviço público e com os interesses da coletividade, não deixando que o interesse particular se sobreponha. Enquanto os poderes só são exercidos pelos respectivos órgãos, os poderes administrativos se difundem. O poder de polícia busca impedir o exercício anti-social dos direitos individuais (SILVA, 2006). Assim conceitua Silva (2006), O Poder de Policia, em seu sentido amplo, compreende um sistema total de regulamentação interna, pelo qual o Estado busca não só preservar a ordem pública senão também estabelecer para a vida de relações do cidadão àquelas regras de boa conduta e de boa vizinhança que se supõem necessárias para evitar conflito de direitos e para garantir a cada um o gozo ininterrupto de seu próprio direito, até onde for razoavelmente compatível com o direito dos demais (SILVA, 2006, p.1). Estudos contemporâneos não esperam mais explicar a violência urbana numa visão linear de causa e efeito, e sim busca entendê-la como um conjunto de fatores que desencadeiam um conjunto de dispositivos, com uma cadeia de efeitos que cruzam entre si (ZALUAR,1996, p.53). Ressalta-se que os fatores sócio-econômicos dãoforça aos processos de exclusão social, negando à maior parte da população os recursos básicos para auto- realização. A impossibilidade da construção de processos de reciprocidade entre os cidadãos faz com que surjam impasses socioculturais e a irrupção da violência entre os grupos que formam a sociedade (VELHO, 1996 apud MAIA, 2008). Situação esta confirmada pela citação abaixo: A trajetória do Mancha no Rio evidencia a violência da exclusão dos direitos mais básicos. Como não ter um “registro civil de nascimento”, que é “gratuito para os reconhecidamente mais pobres”, quando, como criança e adolescente, passou-se por várias instituições estatais, seja como criança em situação de risco ou adolescente infrator (CALDEIRA, 2003, p.283). É no conjunto de órgãos e serviços públicos incumbidos de fiscalizar, controlar e deter as atividades individuais que se revelem contrárias à higiene, à saúde, à moralidade, ao sossego, ao conforto público e até mesmo à ética urbana que se expressa o poder de polícia. Tal poder visa propiciar uma convivência social mais harmoniosa (SILVA, 2006). 20 Assim também conceitua Rosa (2008), Para um melhor entendimento da matéria se faz necessário conceituar o que é ordem pública e segurança pública, que são os campos de atuação dos policiais, que devem, antes de tudo, respeitar o cidadão. A ordem pública é a situação de tranqüilidade e normalidade que o Estado assegura, ou deve assegurar, às instituições e aos membros da sociedade, consoante as normas jurídicas legalmente estabelecidas. A Segurança pública é a garantia relativa da manutenção da ordem pública, mediante a aplicação do poder de polícia, encargo do Estado (ROSA, 2008, p.1). O poder de polícia ainda é imbuído do compromisso de zelar pela boa conduta em face das leis e regulamentos administrativos em relação ao exercício do direito de propriedade e de liberdade. A função do Estado é restringir o direito dos particulares, devendo organizar a convivência em sociedade (SILVA, 2006). Vejamos então a citação de Martins (2008), O Estado, na filosofia marxista, é a preservação dos interesses da classe dominante, que utiliza os mecanismos de repressão e coerção estatais para exercer o poder sobre toda a sociedade – principalmente através das leis. Essa esfera estatal organizou o poder público de forma que ele estivesse subordinado às exigências de uma esfera pública (MARTINS, 2008, p.5). O direito administrativo trata de temas que colocam em confronto a autoridade da administração pública, que tem a incumbência de condicionar o exercício dos direitos individuais ao bem estar coletivo e a liberdade individual, no qual o cidadão quer exercer plenamente seus direitos (SILVA, 2006). Assim também Cadenas (2008) conceitua: São muitos os conceitos do que vem a ser o Direito Administrativo. Em resumo, pode-se dizer que é o conjunto dos princípios jurídicos que tratam da Administração Pública, suas entidades, órgãos, agentes públicos, enfim, tudo o que diz respeito à maneira como se atingir as finalidades do Estado. Ou seja, tudo que se refere à Administração Pública e à relação entre ela e os administrados e seus servidores é regrado e estudado pelo Direito Administrativo (CADENAS, 2008, p.1). Visando administrar tal conflito aplicou-se ao poder de polícia um sentido amplo e um sentido estrito, sendo que o estrito é responsável pelo poder de polícia administrativo. Assim o poder de polícia administrativo tem intervenções genéricas ou especificas do Poder Executivo, destinadas a interferir nas atividades de 21 particulares visando os interesses da sociedade (SILVA, 2006). Cita Martins (2008) o Poder de Polícia no setor público e privado: A esfera pública [...] situa-se entre o setor privado (Sociedade Civil) e o poder público (Estado). Essa esfera pública política defende os anseios da sociedade privada diante dos interesses do Estado: é aí que surge a esfera do social - elaborada sob a proposta de uma legislação baseada na “razão” - em que o poder público está em constante disputa com a opinião pública; uma opinião oriunda dos debates entre intelectuais [...] e herdeiros da aristocracia humanista na esfera pública [...] (MARTINS, 2008, p.6). De um lado, o cidadão tenta expandir-se ao máximo, e, por outro lado, a Administração analisa cada um dos atos do cidadão, verificando até que ponto as atividades desenvolvidas se harmonizam entre si e com o poder do Estado. A utilização destes direitos deve ser compatível com o bem-estar social ou com o próprio interesse do poder público (SILVA, 2006). Segundo Júnior (2000) poder de polícia é a faculdade discricionária do Estado de limitar a liberdade individual, ou coletiva, em prol do interesse da sociedade. Segundo o Código Tributário Nacional: Art. 78. Considera-se poder de policia a Atividade da Administração Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a pratica de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, a disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Publico, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e os direitos individuais ou coletivos. Ressalta-se que o Poder Legislativo edita as leis decorrentes do poder de polícia, condicionando a conduta dos indivíduos no exercício do direito de propriedade e de liberdade e a Administração, em virtude de sua supremacia geral, fiscaliza a conduta dos indivíduos em face das normas vigentes (SILVA, 2006). 2.3.3 Fundamentação do poder de polícia É no princípio da predominância do interesse público sobre o do particular, dando à Administração Pública uma posição de supremacia sobre os particulares, que se fundamenta o poder de polícia na Constituição Federal. A polícia 22 administrativa expressa um poder que é o resultado da sua qualidade de executora das leis administrativas (SILVA, 2006). Vamos verificar abaixo mais um conceito: [...] a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental pressuposta. A norma fundamental [...] nestes termos é, portanto, o fundamento de validade última que constitui a unidade desta interconexão criadora (NETTO, 2008, p.7). É papel da polícia administrativa a manutenção da ordem, vigilância e proteção da sociedade, assegurando os direitos individuais e auxiliando na execução dos atos e decisões da justiça. A polícia administrativa necessita intervir sem restrições no momento oportuno, motivo pelo qual certa flexibilidade ou a livre escolha dos meios é inseparável da polícia administrativa (SILVA, 2006). 2.3.4 Poder de polícia administrativa Define-se polícia administrativa como as ações preventivas para evitar futuros danos que poderiam ser causados pela persistência de um comportamento irregular do indivíduo. Tal polícia visa impedir que o interesse particular se sobreponha ao interesse público. Este poder atinge bens, direitos e atividades, que se difunde por toda a administração de todos os Poderes e entidades públicas (SILVA, 2006). Ressalta-se que a moderna organização da sociedade promoveuuma estrutura de autoridade do tipo legal-racional, através da qual as leis e prerrogativas da autoridade estão completamente separadas da pessoa e da personalidade de quem usa a autoridade (WEBER, 1944). À polícia administrativa cabe fazer tudo quanto torne útil a sua missão, desde que com isso não viole direito de quem quer que seja, direitos esses, que estão declarados na Constituição. Inexiste limitação a direito, mas sua conformação de acordo com os contornos que as normas constitucionais e legislativas, e as administrativas como manifestação do poder de polícia conferem a um determinado 23 direito (SILVA, 2006). Vejamos então a abrangência deste poder: Uma esfera pública, da qual certos grupos fossem [...] excluídos, não é apenas, digamos, incompleta: muito mais, ela nem sequer é uma esfera pública. Aquele público, que pode ser sujeito do Estado de Direito burguês, entende então também a sua esfera como sendo pública neste sentido estrito: antecipa, em suas considerações, a pertença, por princípio, de todos os homens a ela (HABERMAS, 1984, p.105). A polícia administrativa tem a preocupação com o comportamento anti-social e cabe a ela zelar para que cada cidadão viva o mais intensamente possível, sem prejudicar e sem ocasionar lesões a outras pessoas. Tal polícia age preventivamente e repressivamente. Nas duas hipóteses a sua função é impedir que o comportamento do indivíduo cause prejuízos para a sociedade (SILVA, 2006). 2.3.5 A polícia judiciária Em tese, a polícia judiciária é a atividade desenvolvida por organismos - o da polícia de segurança, com a função de reprimir a atividade de delinqüentes através da instrução policial criminal e captura dos infratores da lei penal, tendo como traço característico o cunho repressivo e ostensivo. Incide sobre as pessoas, e é exercido por órgãos especializados como a polícia militar e civil (SILVA, 2006). Segundo Monet (2001) a definição mais geral aplicada ao conceito de polícia diz respeito à forma particular de ação coletiva organizada, acrescentando-se seu caráter organizativo em torno de administrações públicas, para uma maior delimitação conceitual. Tal polícia visa auxiliar o Poder Judiciário no seu cometimento de aplicar a lei ao caso concreto, em cumprimento de sua função jurisdicional. Seu objetivo principal é a investigação de delitos ocorridos, agindo como auxiliar do Poder Judiciário (SILVA, 2006). Vamos a mais um conceito de polícia, segundo Monet: [...] o termo “polícia” remete a um tipo particular de organização burocrática, que se inspira ao mesmo tempo na pirâmide das organizações militares e no recorte funcional das administrações públicas. Hierarquia e disciplina parecem palavras-chave deste universo [...] (MONET, 2001, p.6). 24 A atuação da polícia judiciária, em regra, é repressiva na perseguição de marginais ou efetuando prisões de pessoas que praticam delitos penais. Mas essa não é a função única da polícia judiciária, ela atua também na esfera preventiva, quando faz policiamento de rotina em regiões que apresentam riscos. Até mesmo em caso de prisões, entende-se que se trata de medida preventiva, considerando que ela evita a prática de outros crimes (SILVA, 2006) coibindo assim as ameaças à convivência pacífica em sociedade, ou seja, preservando a ordem pública, a definição de gerenciamento de crise, crise, que serão os temas do próximo item do presente estudo, onde a seguir veremos a abrangência dos Conflitos Urbanos e o papel da Polícia no contexto social. 25 CAPITULO III CONFLITOS URBANOS E PAPEL DA POLÍCIA 3.1 Preservação da ordem pública O Estado deve promover ao cidadão residente no país o respeito a sua integridade física e patrimonial. Para cumprir essa função, o Estado tem a sua disposição os órgãos policiais, que se denominam Forças de Segurança. É na preservação da ordem pública, em seus diversos aspectos, que atuam os agentes policiais, garantindo aos administrados os direitos assegurados pela Constituição (ROSA, 2008). A Constituição Federal de 1988, em seu art. 144, preconiza que: Art. 144 – A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I – polícia federal; II – polícia rodoviária federal; III – polícia ferroviária federal; IV – polícias civis; V – polícias militares e corpos de bombeiros militares. As Forças Policiais têm como missão garantir ao cidadão o exercício dos direitos e garantias fundamentais, previstos na Constituição Federal e nos instrumentos internacionais subscritos pelo Brasil (art. 5º, § 2º, da CF). Para suas atividades, as forças policias precisam de preparo dos integrantes das Corporações Policiais, que devem se afastar do arbítrio, da prepotência, do abuso ou excesso de poder, em respeito à lei, que deve ser observada por todos em respeito ao Estado democrático de Direito (ROSA, 2008). Ressalta-se que o policial, devido a sua autoridade moral que carrega, tem o potencial de ser o mais marcante promotor dos Direitos Humanos, revertendo o quadro de descrédito social e qualificando-se como um agente central da democracia. As Forças Policiais são a efetiva garantia do cumprimento das normas e respeito ao Estado democrático estabelecido com base na Constituição Federal (BALESTRERI, 2000). 26 Pela importância das atividades desenvolvidas pelas Forças Policiais, estas foram delimitadas pela Constituição Federal de 1988, onde sua competência está prevista. O art. 272, ao tratar da atividade policial, preceitua que a polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. As medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do necessário (ROSA, 2008). Assim Monet descreve: [...] um elo imediato associa polícia e soberania do Estado sobre seu território: a existência de uma polícia pública é o sinal indiscutível da presença de um Estado soberano e de sua capacidade de fazer prevalecer sua razão sobre as razões de seus súditos (MONET, 2001, p.16). Nota-se que a criminalidade tem aumentado muito e crimes como furto, roubo, roubo seguido de morte e homicídios assustam a população que sente medo e insegurança. O Estado tem se esforçado para dar uma resposta eficaz a essas questões, mas por motivos de ordem econômica e um melhor relacionamento entre os diversos órgãos policiais, a sociedade não está satisfeita (ROSA, 2008). Alvarenga define atividade fim da polícia: Idéias como gestão participativa, foco em resultado, visão de futuro, agilidade, inovação, valorização das pessoas, aprendizado organizacional, entre outras, que representam necessariamente os conceitos [...] expostos de gestão da Qualidade, e que anteriormente não eram vistos como alternativas possíveis de serem aplicados no serviço público, hoje são diretrizes para um serviço público moderno, e em relação a Policia [...] e sua atividade fim [...] são plenamente aplicáveis, e imperativos para a eficiência de suas ações (ALVARENGA, 2008, p.5). Destaca-se que a não existência de uma norma a nível nacional que possa ser aplicada de forma uniforme aos órgãos policiais tem levado a conflitos de competência entre estas instituições. A luta contra os crimes que assustam a coletividade necessita de uma maior integração das Forças Policiais, que são responsáveis pela preservação dos direitos assegurados pela Constituição Federal (ROSA, 2008). 3.2 Situações e gerenciamento de crise27 3.2.1 Crise Crise refere-se a toda situação atípica, indesejada e imprevista, que exige uma resposta imediata dos órgãos de segurança pública. Segundo Gomes (1996, p. 94): Uma crise pode surgir de uma emergência grave e pode manifestar-se de diferentes formas: incêndios, inundações, terremotos, acidentes comerciais ou industriais (desastres de avião, desabamento de minas e derrames de petróleo), epidemias, violência trabalhista, extorsão criminosa, levantes políticos, insurreições, motins em presídios, ocupação ilegal de terras, etc., bem como terrorismo. Ressalta-se que o Federal Bureau of Investigation (FBI) define crise como um evento ou situação crucial, que exige uma resposta especial da polícia, a fim de assegurar uma solução aceitável (SOUZA, 1995). O vocábulo “evento” ou “situação crucial” no Brasil, refere-se às ocorrências de alto risco ou de alta complexidade como: • Seqüestros; • Rebeliões em presídios com ou sem reféns; • Crimes com tomada de reféns; • Crimes com artefatos explosivos; • Movimentos sociais; • Atos de terrorismo. Bassett (1983) fala que as características essenciais das crises, conforme preconiza a doutrina do FBI, são: a) Imprevisibilidade, onde as crises são imprevisíveis e não se pode prever quando e onde irão acontecer. b) Compressão de tempo, sendo que a crise exige urgência em sua resolução, uma vez que envolve vidas e o risco pode aumentar e toda ação deverá sempre ser analisada visando evitar erros que não possam ser reparados. c) Ameaça de vida e não somente se refere ao refém, mas a terceiros e ao próprio causador da crise. d) Postura organizacional não rotineira, sendo que a importância e necessidade da normatização e treinamento prévio do órgão policial para enfrentar e solucionar as crises é de extrema importância. e) Planejamento analítico especial e capacidade de implementação, visando 28 o êxito da missão, devendo-se proceder a uma análise criteriosa da crise e planejamento de estratégias a empregar, prestando-se a atenção para a coleta de informações e o levantamento dos problemas onde está ocorrendo a crise. f) Considerações legais especiais, pois para aplicar a doutrina de gerenciamento de crises nos atendimentos a eventos críticos de natureza policial, é necessário normatizar procedimentos, disciplinar condutas operacionais, dividir e especificar as tarefas dos órgãos envolvidos, principalmente entre as equipes que irão compor o Teatro de Operações, com a finalidade de gerenciar de acordo com o que estabelece a doutrina e buscar soluções legais às crises, dando sempre ênfase à aplicação da lei e à preservação de vidas. A doutrina de gerenciamento de crises do FBI dita três critérios de ação: a necessidade, a validade do risco e a aceitabilidade (BASSET, 1983) sendo que o FBI divide as crises em quatro graus: 1. 1º grau: Alto risco – eventos críticos sem reféns, como rebeliões em estabelecimentos penais, tráfico de entorpecentes, tumultos. 2. 2º grau: Altíssimo risco – eventos críticos com reféns, como seqüestros, assalto, rebeliões. 3. 3º grau: Ameaça extraordinária – eventos críticos com vários reféns, como terroristas num avião ou escola, mantendo reféns. 4. 4º grau: Ameaça exótica – eventos críticos com ameaça direta a reféns com sangue contaminado ou veneno. Segundo a Diretriz Permanente nº 34/2001 (2006), ocorrências de altíssimo risco são ações criminosas classificadas como crise fora da normalidade do serviço policial, com a presença de refém, onde exija a intervenção imediata da tropa especializada e os infratores estejam com acentuado potencial ofensivo, armados com armas de porte, portátil e de alto poder de fogo. Com relação a ocorrências de alto risco, a Diretriz Permanente nº 34/2001 (2006) cita como exemplo: a) Intervenção e operações de resgate de reféns em áreas urbanas ou rurais; b) Rebeliões em estabelecimentos prisionais com e sem a tomada de reféns; c) Atendimento de ocorrências de roubo com tomada de refém em áreas urbanas e rurais; d) Operação de busca, resgate e salvamento de pessoas em cativeiro, desaparecidas ou em local de difícil acesso; 29 e) Negociações em ocorrências com tomada de reféns. Para Bassett (1983), os níveis correspondem a cada grau de risco, de forma gradativa na escala hierárquica do órgão policial, sendo: - Nível 1: a crise pode ser controlada com recursos locais. - Nível 2: a crise exige recursos locais especializados, como por exemplo, o emprego da equipe tática. - Nível 3: a crise exige recursos locais especializados e do Comando Geral do órgão policial. - Nível 4: a crise exige o emprego de recursos do nível três e de recursos exógenos ou especializados. 3.2.2 Gerenciamento de crise Bassett (1983) fala que o FBI define gerenciamento de crises como o processo de identificar, obter e aplicar os recursos necessários à prevenção, resolução e até mesmo antecipação de uma crise. Monteiro (1990, p.6) afirma que: O gerenciamento de crises pode ser descrito como um processo racional e analítico de resolver problemas baseados em probabilidades. Trata-se de uma ciência que deve lidar, sob uma tremenda compressão de tempo, com os mais complexos problemas sociais, econômicos, políticos, ideológicos e psicológicos da humanidade, nos momentos mais perigosos de sua evolução, isto é, quando eles se manifestam em termos destrutivos. O gerenciamento de crise objetiva preservar a vida e aplicar a lei. Contudo, a preservação de vidas deve estar, para os responsáveis pelo gerenciamento de um evento crítico, acima da aplicação da lei (MONTEIRO, 1990). Segue comentário de Monteiro, com relação ao assunto: A crônica policial tem demonstrado que, em muitos casos, optando por preservar vidas inocentes, mesmo quando isso contribua para uma momentânea fuga ou vitória dos elementos causadores da crise, os responsáveis pelo gerenciamento de crise adotaram a conduta mais adequada, em virtude de uma ulterior captura dos meliantes (MONTEIRO, 1990, p.6). Para Thomé e Salignac (2001) a crise exige um gerenciamento. Por conseguinte, tal gerenciamento será uma resposta que assegure medidas políticas 30 para a atuação dos órgãos responsáveis por sua solução. A idéia de gerenciamento de crise surge pela associação de sentimentos, organizações e opiniões que complicam e causam embaraço para o final desta. Dalle Lucca (2002) afirma que em alternativas táticas na resolução de ocorrências com reféns, pode-se dizer com certeza que a utilização de negociadores não-policiais é uma opção de alto risco. Enfatiza-se que o negociador deverá negociar sempre, pois é o que a sociedade quer, sendo que diversas pessoas são contra a força letal, sendo a favor da negociação a fim de preservar a vida da vítima ou do refém, onde é preferível negociar uma fuga e posteriormente prender o infrator, evitando a perda da vidas de pessoas (MONTEIRO, 1990) tema que será melhor tratado no próximo item do presente trabalho. 3.2.3 Negociação Dolan e Fuselier (1987, p.2) falam sobre a atuação de um negociador junto a um seqüestrador, afirmando que: [...] dependendo da avaliação que você fizer do sujeito, é dizer a ele claramente o que você quer fazer, é fazê-lo concordar em permitir que as pessoas deixem o local. [...] Todo esforço deve ser feito para evacuar estas pessoas e levá-las para uma única área a fim de ser possível cuidar de todos os inocentes e tê-los à mão para depoimentos/entrevistas de vítimas. [...] Tranqüilize-o de que as coisas estão sob controle do lado de fora e que você não querque ninguém, inclusive ele, seja ferido. Evite trazer a tona/despertar exigências. As primeiras frases entre vocês dois pode determinar o tom para as próximas horas. Portanto, a primeira coisa que você deve fazer é dar seu nome e informar que você é um oficial de polícia. Segundo Souza (2000) não se pode prescindir de profissionais, quer sejam policiais civis ou militares para atuarem como negociadores. Costuma-se dizer que gerenciar crises é negociar, negociar e negociar. E quando ocorre o esgotamento de todas as chances de negociação, deve-se tentar negociar mais um pouquinho. Assim, o objetivo de um negociador é a solução de crises, principalmente quando existem reféns envolvidos, sendo que a crise deve ser solucionada com inteligência e com o menor risco aos reféns. Ressalta-se que nos primeiros minutos de uma situação com reféns o seqüestrador se sente ansioso e perde o pensamento racional, agindo por impulso; 31 a primeira ação do negociador é garantir sua própria segurança (DOLAN e FUSELIER, 1987) sendo que posteriormente o negociador deve: [...] ter como meta reduzir a possibilidade de mais violência. Se você puder fazer isso com segurança, sem expor-se ou aos outros a perigo, comece por afastar os pedestres da área. Se eles puderem ser evacuados ao longo das rotas, fora das vistas do sujeito, tente fazer isso, não verbalmente, mas com sinais de mão. Se pessoas inocentes estiverem encurraladas/presas em locais que requeiram que elas cruzem um campo de fogo, demore essa evacuação até que recursos adicionais cheguem (DOLAN e FUSELIER, 1987, p.3). Dolan e Fuselier (1987) listam algumas orientações ao negociador para serem seguidas posteriormente à acomodação inicial da crise, sendo as seguintes: 1. Manter um diário: visa obter informações para repassar à equipe tática, visando desenvolver a estratégia geral, não importando que estas sejam vagas. 2. Permitir que o sujeito fale: a tendência pela ansiedade pode ser falar demais; um bom negociador deve ser um bom ouvinte, deixar o sujeito falar reduz a ansiedade e obtêm-se informações importantes. 3. Evitar dar ordens que piorem o confronto: os esforços devem ser direcionados para diminuir a ansiedade e a tensão. O sujeito não deve dominar a situação, mas deve-se adotar uma postura de reciprocidade. 4. Diminuir a importância de eventos passados: minimizar a seriedade do crime. Se o sujeito perguntar sobre a condição dos outros, não informe nenhuma morte. 5. Não oferecer nada ao sujeito: oferecer algo não solicitado, como comida, será de pouca utilidade e pode causar dificuldade para o time de negociação mais tarde. 6. Evitar atrair atenção para as vítimas: atrair atenção freqüente para as vítimas pode levar o sujeito a acreditar que ele tem mais poder do que ele realmente tem. 7. Ser tão honesto quanto possível: a vasta maioria de situações com reféns é resolvida através de diálogo franco, honesto, entre sujeito e negociador. Uma das primeiras tarefas para você e o time de negociação é estabelecer uma harmonia e ganhar a confiança do sujeito. 8. Nunca despreze nenhum pedido considerando-o sem importância: se o 32 sujeito fizer um pedido é porque é importante para ele. 9. Nunca dizer não: entretanto, isto não significa dizer sim. Geralmente, nos estágios iniciais de uma situação com reféns, simplesmente dê indicações de que entende a exigência do sujeito e que vai passá-la para o time de negociação. 10. Amenizar as exigências: se você tiver que atender uma exigência específica acompanhada por uma ameaça, é melhor amenizar a exigência. 11. Nunca dar um prazo e tentar não aceitar um: nunca diga ao sujeito que alguma coisa vai ser feita dentro de um tempo específico. 12. Não sugerir alternativas: se aquilo que atenderia a um pedido não for obtível, não sugira uma alternativa, a não ser que seja vantagem para você e que você tenha discutido e tenha obtido a concordância de quem estiver no comando no local. 13. Não introduzir estranhos: permitir que uma pessoa que não é agente da lei entre numa situação em progresso com refém é uma decisão que deve ser feita somente após cuidadosa consideração de todos os possíveis resultados. 14. Não permitir nenhuma troca de reféns, e especialmente não ofereça-se em troca de refém: amigos, família, não devem ser autorizados a falar com o sujeito. 15. Nunca se expor a fim de negociar cara a cara: se o sujeito ameaçar sua vida, outros oficiais podem ter que se expor a fim de ajudar você. 16. Planeje cuidadosamente a rendição: pode ser que o sujeito decida render- se antes que um perímetro tenha sido organizado e que um plano definitivo de rendição tenha sido delineado. Com relação à personalidade do seqüestrador do ônibus 174, ressalta-se que em uma pessoa em situação de crise ou desequilibrio emocional, um dos sintomas mais significantes pode ser a ausência de sentimentos de consciência ou culpa em que a pessoa não incorporou à sua vida os princípios da sociedade. Assim, pode ser improvável que se importe com os reféns, da mesma forma com que a sociedade não se importa com o mesmo, que passaremos a estudar no próximo cápitulo. 33 CAPÍTULO IV ESTUDO DE CASO: “ÔNIBUS 174” 4.1 Contexto histórico do Caso do “Ônibus 174” Em 12 de junho de 2000, segunda-feira, Sandro do Nascimento entra no ônibus da linha 174, rota Gávea-Central, no Rio de Janeiro, portando um revólver calibre 38, visando fazer um assalto. Contudo, às 14:20 hs, uma patrulha da Polícia Militar faz a interceptação do ônibus na rua Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, após receber um sinal de um passageiro (ROCHA, 2008). O cobrador e motorista saíram do veículo e diversos passageiros também escaparam pulando pelas janelas e pela porta traseira. Entretanto dez passageiros foram tomados como reféns. O marginal agarrou uma senhora de 63 anos e, mantendo-a a sua frente, disparou um tiro contra os policiais e jornalistas. As negociações só tiveram início com a chegada do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), que apareceu no local uma hora após, com o total de dezoito homens, consistindo em dois atiradores de elite e dezesseis soldados da tropa de assalto (CARNEIRO e FRANÇA, 2000). Os autores Persson, Filippi e Coelho (2007) mencionam que se tratava de 10 passageiros logo após a interceptação, os quais se tornaram reféns. Segundo Rocha (2008), o pedreiro Carlos Leite Faria, que foi libertado por Sandro, acabou sendo preso pela polícia que o qualificou como cúmplice, sendo posteriormente liberado pela polícia. Sentença prolatada pela magistratura carioca com relação à prisão do pedreiro Carlos Leite Faria: A juíza Helena Belc Klausner, da 5ª Vara de Fazenda Pública, condenou o Estado do Rio de Janeiro a pagar 150 salários regionais, cerca de R$ 33 mil, por dano moral, ao pedreiro. Em sua sentença, a juíza entendeu que estaria comprovada a responsabilidade objetiva do Estado pelos fatos que levaram o autor a sofrer o vexame de ser conduzido a uma delegacia e ser apontado como bandido acumpliciado de outro que assaltava um coletivo, “naquele que se tornou o mais notório crime do Brasil nos últimos anos”. O autor teria se identificado e comprovado ser trabalhador honesto, não havendo nos autos qualquer indício de que estivesse envolvido no episódio (CALDEIRA, 2003, p.280). 34 Assim, após a interceptação, não tendo como fugir e com dez reféns, passa a negociar suas vidas. Os policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) são os encarregados de resolver a situação e a televisão exibe o drama para todo o Brasil. Sandro solicitaarmas e um motorista para dirigir o ônibus, ameaçando matar os reféns a partir das 18 horas, caso não atendido, e utiliza a estudante Janaína Lopes Neves, 23 anos, ao longo da tarde como sua porta-voz e escudo, a qual, com um batom, escreve no vidro do veículo “Ele vai matar geral” (ROCHA, 2008). Assim também os autores Hemmann, Branco e Vicente (2007) relatam que um dos momentos mais tensos foi quando Sandro andou de um lado para outro com um lenço na cabeça de um dos reféns, contando de um a cem, denotando contagem para execução da vítima, mas, ao chegar ao número cem, fez a vítima se abaixar e simulou um tiro na cabeça. Esta situação se estende por quase cinco horas, com Sandro desafiando os policiais com discursos de ordem e ditando mensagens de terror escritas nas vidraças, e diz estar possuído pelo demônio simulando matar a estudante. Perto das 18:50 hs, decide descer do ônibus e revela sinais de cansaço tendo a professora Geisa Firmo Gonçalves, 20 anos, como escudo. Porém a atitude precipitada de um policial do BOPE põe em risco a vida da refém (ROCHA, 2008). Relata também Carneiro e França, conforme citação abaixo: Puxando Geisa pelos cabelos e com o revólver apontado contra sua cabeça, o bandido desceu do ônibus e aproximou-se de três policiais. Ele avisou que era a última chance de negociação e que pretendia matar Geisa e depois se suicidar. Agachado perto do ônibus, um dos soldados do Bope avançou contra o bandido e tentou matá-lo com um tiro. Errou o alvo (CARNEIRO e FRANÇA, 2000, p.1). Assim, no momento em que Sandro começa a demonstrar cansaço e menos agitação, saindo do ônibus e empregando a Professora Geisa Firmo Gonçalves como escudo humano, um policial do BOPE, com uma submetralhadora, dispara contra o seqüestrador, o qual cai no chão com a refém. Sandro é levado para a viatura e a professora para uma ambulância (Noceti; Sommer; Santos, 2007) e mais tarde os dois estarão mortos. A primeira versão é a de que Sandro teria sido morto pelos tiros do policial, havendo tempo suficiente para disparar fatalmente contra Geisa. No entanto, fica provado que Sandro foi morto por asfixia mecânica, quando cinco policiais militares 35 tentavam imobilizá-lo no camburão e que os tiros disparados pelo policial tinham acertaram a professora (ROCHA, 2008). Abaixo o relato de Caldeira, com relação a Sandro: Sandro do Nascimento, conforme foi identificado pela polícia, entrou vivo no camburão com cinco policiais. Morreu asfixiado com a ajuda de um objeto (asfixia mecânica) no trajeto até o hospital na segunda-feira, 12 de junho, de acordo com laudo do Instituto Médico Legal (CALDEIRA, 2003, p.273). De acordo com o laudo do Instituto Médico Legal, Geisa foi alvejada quatro vezes. A primeira vez, pela arma do soldado. O que deveria ter sido o tiro letal no marginal feriu de raspão o queixo da moça. A reação do bandido foi se abaixar, usando a jovem como escudo. Ao mesmo tempo, disparava à queima-roupa atingindo seu tronco e o meio das costas. A menina, moradora da favela da Rocinha, saíra cedo de casa com uma amiga. Professora de um projeto de educação de crianças carentes na Rocinha complementava a renda do marido, o cavalariço Alexandre Magno de Oliveira, com a venda de artesanato para uma loja de shopping. Geisa tinha planos de firmar-se como artista plástica e mal iniciara a carreira. Estava no 174 a caminho do banco, para descontar um cheque de 130 reais (CARNEIRO e FRANÇA, 2000, p.1). Ressalta-se que o policial que atirou no seqüestrador foi para a frente do ônibus, pois o comandante determinou que aguardasse ordens. O policial tentou espiar pela janela, se comunicando por gestos, por não haver rádios para comunicação e posteriormente toma uma iniciativa atirando (ELIAS et al., 2007). [...] as imagens mostram [...] a precariedade instrumental dos policiais. Eles não tinham rádios para se comunicarem entre si. [...] Quando o policial que atirou no assaltante foi para a frente do ônibus, o comandante falou com ele. Mandou o cabo aguardar ordens. O policial tentou espiar pela janela. Sem rádio para receber a ordem, se comunicava com os colegas por mímica (ROCHA, 2008, p.68). O caso fez com que o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, pedisse a exoneração do comandante da Polícia Militar, o Coronel Sérgio da Cruz e várias operações são implementadas pela polícia, como blitz em ônibus e ruas, acirrando confrontos com traficantes e é divulgada uma lista com nomes de policiais corruptos (ROCHA, 2008). Coincidência ou não, o Governo Federal elabora o Plano Nacional de Segurança Pública uma semana após o episódio do “ônibus 174”, e a sociedade se mobiliza em duas passeatas, realizadas por associações de moradores e ONGs (ROCHA, 2008). 36 O autor Gorita cita a reação do governo carioca após o fato: O erro de um policial num seqüestro de ônibus é respondido por uma intensificação das atividades policiais em áreas consideradas ‘perigosas’ da cidade, onde as drogas associadas às armas pesadas comporiam uma fórmula ‘perigosa’. O caso de Sandro ajudou a definir uma estratégia de combate ao crime, pois sua figura representava todas as imagens das minorias urbanas marginalizadas: menor de rua, usuário de drogas, morador de favela e armado com armas pesadas (GORITA, 2003, p.97) Sandro do Nascimento é enterrado como indigente mais de um mês depois de sua morte (ROCHA, 2008). Dona Elza reconheceu o seqüestrador como seu filho. Não havia documento para comprovar que Dona Elza era a mãe de Alex. Por isso, o enterro foi sendo adiado pelos funcionários do Instituto Médico Legal. Afinal, ela fez exame de DNA como a prova definitiva da maternidade. Não foi comprovado o vínculo. Nenhum outro parente reclamou o corpo do rapaz de identidade controvertida durante os 32 dias em que ficou numa geladeira do IML (CALDEIRA, 2003, p.237). Três dias depois os cinco policiais que asfixiaram Sandro foram prestar depoimento na 15ª DP para a titular, delegada Martha Rocha. Chegaram numa viatura do BOPE e estavam fardados, sendo eles o capitão Ricardo de Souza Soares e os soldados Luiz Antônio de Lima e Silva, Márcio de Araújo David, Paulo Roberto Monteiro e Flávio do Val Dias, não dando declarações à imprensa, e tendo presente seus advogados (CALDEIRA, 2003) sendo posteriormente absolvidos por júri popular (ROCHA, 2008). Destaca-se que o Ministério Público acusou os policiais militares de homicídio doloso duplamente qualificado, que resultaria em 15 anos de reclusão no mínimo. A acusação foi enérgica e fundamentada nos laudos periciais, que evidenciavam que a morte ocorrera devido aos efeitos letais de um golpe de jiu-jitsu conhecido como mataleão2 pelos integrantes do BOPE (CALDEIRA, 2003). Abaixo, é o relato do policial do BOPE: Em suas declarações no IV Tribunal de Júri, o policial declarou que não tinha intenção de asfixiá-lo e sim de tentar acalmá-lo, “pois o assaltante estava 2 O capitão Soares confirmou em depoimento perante os jurados que deu uma ´gravata‘ no pescoço de Sandro com o braço esquerdo para imobilizá-lo. Negou ter apertado o pescoço e disse que não teve a intenção de matar. Os soldados afirmaram que seguraram braços e pernas de Sandro (CALDEIRA, 2003). 37 muito nervoso”. “Eu estava com o braço esquerdo sobre o pescoço dele e com o direito empurrando seu queixo, para que ele não me mordesse” (CALDEIRA, 2003, p.285). Por fim, nunca se negou que Sandro fosse o marginal que era. Apenas há um outro valor que devemos proteger, que é o de que a vida das pessoas deve ser respeitada pelo poder público,defendeu o promotor Afrânio Jardim após o julgamento (MARTINS, 2002). 4. 2. Avaliação da Atuação Policial no Caso do Ônibus 174 Dewey (1954) afirma que é fundamental que as condições de possibilidade, as limitações de alguns processos e os obstáculos que lhe são impostos sejam identificados e postos em discussão. Saphiro (2000) afirma que se faz necessário haver uma busca cooperativa por soluções certas em circunstâncias de conflito, devendo haver interatividade entre as pessoas. Assim se faz necessário o exame de argumentos, buscando alcançar uma resposta correta entre os que se encontram envolvidos em uma certa discussão (BOHMAN, 2000 apud MAIA, 2008). A obrigatoriedade da prestação de contas sobre as ações ou a obrigação de dar satisfações é fundamental para a democracia moderna, dizendo respeito ao requisito para que representantes da sociedade dêem respostas às críticas a eles dirigidas, e por falta de competência, aceitem estas críticas (MAIA, 2008). O ato de prestar contas objetiva fazer com que os representantes do público tenham ações de acordo com as regras legais, e, também sejam sujeitos a oferecer explicações das suas ações, aceitando sanções (MULGAN, 2000). As cenas do seqüestro do “ônibus 174” desencadeiam vários sistemas de prestação de contas entre as autoridades e os agentes da segurança pública, havendo ainda uma avaliação das instituições e do desempenho dos agentes policiais. Comentando os procedimentos adotados no caso do Ônibus 174, aparecem profissionais em ações de segurança, membros de corporações policiais, bem como autoridades políticas (MAIA, 2008). Desta forma, considerando-se inicialmente a caracterização da ação dos policiais como inadequada e imprudente, são chamados a investigar e a avaliar as 38 ações (GUTMANN & THOMPSON, 1996 apud MAIA, 2008) que resultaram no fracasso da atuação policial no caso do ônibus 174. O cenário inicia com: Um jovem negro, alto, forte, punhal tatuado no braço, entra no ônibus 174 (Gávea-Central do Brasil3) perto do Hospital da Lagoa, no bairro do Jardim Botânico (zona sul do Rio de Janeiro). Vestido de bermuda e camiseta pula a roleta. Vê-se, então, o revólver na cintura. Senta perto de uma janela, atrás do motorista. Um passageiro antecipa que ocorreria um assalto, salta do ônibus e alerta um policial militar (CALDEIRA, 2003, p.268). Assim, com a interceptação do ônibus na Rua Jardim Botânico por uma patrulha da Polícia Militar que atendeu ao sinal de um passageiro (ROCHA, 2008), a primeira atitude deveria ter sido o isolamento da área no momento em que houve a tomada de reféns. Relato da primeira intervenção policial: Nos primeiros poucos minutos de uma situação com reféns não planejada, a ansiedade do sujeito pode dominar os processos de pensamento racional. Os piores temores do sujeito estão agora se tornando realidade - ele está encurralado pela polícia. É mais provável que ele aja por impulso ou em conseqüência de desespero. A sua primeira ação deve ser de garantir a sua própria segurança aproximando-se da área de crise cautelosamente. Depois tente isolar, controlar, avaliar a situação, faça um relatório inicial, e solicite recursos adicionais (DOLAN e FUSELIER, 1987, p.2). Segundo Basset (1983, p.46) ao comentar as características essenciais das crises, conforme preconiza a doutrina do FBI, afirma que para o êxito da missão: [...] deve-se proceder a uma análise criteriosa da crise e planejar as estratégias a serem empregadas, tendo a atenção para a coleta de um maior número de informações possíveis e o levantamento dos problemas no local, tais como: interferência da mídia, populares, se há tumulto ou não, etc. Dolan e Fuselier (1987) afirmam que os primeiros 15 a 45 minutos são os mais perigosos em uma situação de crise que envolve reféns. Embora não seja recomendado que o primeiro oficial a chegar ao local inicie as negociações, pode ser apropriado iniciar o contato com o sujeito, visando fazer uma análise da situação 3 O ônibus 174 liga o alto da Gávea (zona sul), onde se localiza a favela da Rocinha, à Central do Brasil, estação ferroviária localizada no centro da cidade do Rio, e conduz passageiros para a zona norte e subúrbios do Rio. Passa em frente à Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RJ), de onde saíram duas estudantes que se tornaram reféns. Curiosamente, o nome comercial da empresa do ônibus 174 é a Viação Amigos Unidos (CALDEIRA, 2003). 39 para obter informações. Bem, no caso em análise: O trânsito é paralisado na Rua Jardim Botânico, afetando a circulação numa das áreas mais ricas e movimentadas da cidade. O isolamento da área é inadequado: não havia nas primeiras horas nem uma corda separando a platéia do ônibus. Além dos populares que rapidamente se aglomeram no local junto com fotógrafos, repórteres e cinegrafistas, o episódio desperta a atenção de jornalistas estrangeiros que estavam no Rio reunidos em um Congresso internacional4. A segunda-feira que deveria ser celebrada, de acordo com o calendário dos comerciantes, como mais um “Dia dos Namorados”, começava a ser pautada como um “dia de terror”, que mancharia a imagem da cidade (CALDEIRA, 2003, p. 268). Ressalta-se que o isolamento da área que não foi realizado, como pode ser notado na fala do então governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho5: Como é que o isolamento da área não foi feito de forma adequada? Não havia necessidade daquele impulso do policial, que acabou provocando a morte da vítima. O bandido foi asfixiado! Ou seja, ele não levou tiro nenhum! Foi uma total falta de controle na operação. Eu determinei uma série de providências. A primeira delas, o afastamento do comandante da polícia militar. A polícia não tinha o direito de fazer o que fez (ROCHA, 2008, p.71). Ao analisar a fala do Governador do Rio de Janeiro, nota-se que este afirma que “o bandido foi asfixiado”, referindo-se à morte do seqüestrador. Para Maia (2008), foi estabelecida uma polêmica em torno da morte de Sandro já detido no interior da viatura policial e afirma que na linguagem dos policiais “neutralizar” é o mesmo que matar. Desta forma, a suspeita de execução do seqüestrador sem um julgamento adequado é visualizada como um sinal de mau funcionamento das instituições policiais. Contudo o cumprimento de uma certa norma em cada situação é dependente de diferentes pontos de vista. As decisões que orientam a ação policial no cotidiano nem sempre são pautadas na lei, como a visão legalista da ação policial preconiza (MAIA, 2008). 4 Era uma reunião anual de diretores de jornais que pela primeira vez acontecia num país da América Latina, o 53º Congresso Mundial de Jornais. Um dia antes da tragédia do ônibus 174, o governador do Estado, Anthony Garotinho, havia declarado, ao comparecer à reunião, que a imprensa era culpada por fornecer uma idéia exagerada da violência na cidade (CALDEIRA, 2003). 5 Garotinho obteve seu nome político ao apoderar-se do nome artístico de um outro radialista de futebol famoso. Um dos principais trunfos políticos do Governador, então preparando sua candidatura para Presidente da República, é sua capacidade de criar fatos ou acontecimentos que proporcionem exposição na mídia. Ficou famoso por ter demitido, ainda no início de 2000, o Subsecretário de Segurança Pública Luis Eduardo Soares pela televisão (CALDEIRA, 2003). 40 Manifestação de Órgão dos Direitos Humanos: A Organização de Direitos Humanos Projeto Legal entrou com uma interpelação judicial exigindo explicações do Major Ricardo Soares da PM,
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