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APOSTILA DE FILOSOFIA GERAL E DO DIREITO Prof. Will Goya Apresentação Aqui estão apresentadas algumas sínteses, bem como interpretações, sobre algumas das principais abordagens de nossa disciplina Filosofia Geral e do Direito. Para tanto, alguns conceitos necessitam de maior explicitação, tais como o que melhor se pode entender por conceitos como Filosofia Jurídica, Positivismo Jurídico, Jusnaturalismo, Direito Alternativo, questões éticas, entre outros. Saliento que todos os temas aqui abordados foram resultado de todas as leituras apontadas na bibliografia que se encontra na parte final desta apostila. Este trabalho de síntese e organização diz respeito a recortes e fragmentos de algumas das obras citadas, bem como de sua interpretação a partir de uma leitura crítica das mesmas. Objetivou-se, com isso, simplificar o trabalho do alunado, para o qual ainda é indispensável a leitura destas obras originais, resumindo e apontando o que há de essencial e melhor nos pensamentos dos autores. 1. A Filosofia A Filosofia pode ser resumidamente definida como método de reflexão pelo qual o homem se empenha em interpretar a universalidade das coisas. Contrariamente aos demais saberes, nos quais cada qual tem o seu objeto de investigação, a filosofia tem por objeto o todo. Tal condição representa o seu diferencial no campo do saber humano. A Filosofia caracteriza-se como indagação ou busca permanente do conhecimento. O conhecimento filosófico tem por fim descobrir as causas mais universais, i.é., as causas primeiras de todas as coisas. Busca, com todo o rigor, a origem dos problemas, relacionando-os a outros aspectos da vida humana, numa abordagem globalizante. A Filosofia não faz juízos da realidade, como a ciência, mas juízos de valor. Não só vê como é, mas como deveria ser; julga o valor da ação, sai em busca do significado dela. A filosofia quer superar a fragmentação do real, própria das especializações das ciências, para que o homem seja resgatado na sua integridade e não sucumba à alienação do saber parcelado. Dizemos que uma reflexão é filosófica quando é radical, rigorosa e de conjunto. Radical porque é preciso que se vá até as raízes da questão refletida, até seus fundamentos, reflexão em profundidade; rigorosa, pois se deve proceder criticamente, segundo métodos determinados; e de conjunto, pois o problema não pode ser examinado de modo parcial, é preciso relacionar o aspecto em questão com os demais aspectos do contexto em que está inserido. Neste sentido, a grande utilidade da Filosofia, está no fato de que ela permite o distanciamento para a avaliação dos atos humanos e dos fins a que eles se destinam. É ela que reúne o pensamento fragmentado da ciência e o reconstrói na sua unidade - Ela é a possibilidade da transcendência humana, ou seja, a capacidade que só o homem tem de superar a sua imanência (que significa a situação dada e não escolhida). Pela transcendência, o homem surge como um ser de projeto, capaz de construir o seu destino, capaz de liberdade. 1.1 A Filosofia Jurídica A Filosofia Jurídica é espécie do gênero Filosofia Geral. É ramo das chamadas filosofias aplicadas, uma ferramenta para os juristas elaborarem as leis pelo livre pensar do filósofo. Jurisfilósofo é o jurista que exercita, como hábito, a atitude filosófica. O acervo de conhecimentos que a Filosofia Jurídica proporciona provém de três classes de pensadores: Filósofos, Juristas e Jurisfilósofos. Estes últimos associam o conhecimento das correntes filosóficas à noção das 2 categorias lógicas do Direito, objetivando o rigor lógico dos conceitos jurídicos e a adequação do Direito positivo aos valores humanos fundamentais. Na Jurisprudência o conhecimento filosófico tem por objeto de reflexão o conceito do Direito, os elementos constitutivos deste, seus postulados básicos, métodos de cognição teleologia e o estudo crítico-valorativo de suas leis e institutos fundamentais. Ao criar modelos de comportamento social, à luz dos valores de conservação e desenvolvimento do homem, o Direito torna possível a convivência e participa, por sua importância e como área definida do saber, na ordem geral das coisas. Como objeto do conhecimento, o direito não pode ser considerado parte destacada da realidade e cultivado isoladamente. Como ciência o Direito pode adotar diferentes ideologias e assumir variados modelos de interpretação da realidade. Como objeto cultural dotado de complexidade, o Direito comporta diferentes planos de estudo: legal (Ciência do Direito), factual (sociologia jurídica), evolutivo (história do Direito), axiológico (filosofia Jurídica), entre outros. Quando a atitude filosófica se projeta nos domínios da Jurisprudência, tomando o fenômeno jurídico por objeto de indagação, a análise se processa em um riquíssimo plano, onde se questiona problemas da maior relevância para a organização social. O estudo ontológico do Direito, a pesquisa de seus elementos universais e necessários, o exame axiológico das formas de expressão constitui matéria de reflexão da filosofia jurídica. Lembrando a teoria tridimensional de Reale, enquanto a Sociologia Jurídica irá analisar o Direito enquanto Fato e a Ciência Jurídica o Direito enquanto norma, à Filosofia Jurídica cabe estudá-lo como um Valor, isto é, se perguntar pelos seus fundamentos e fins a que se destina. Em suma a Filosofia Jurídica consiste na pesquisa conceitual do Direito e implicações lógicas, por seus princípios e razões mais elevados, e na reflexão crítico-valorativa das instituições jurídicas. Tem como objetos de estudo um epistemológico, onde se pesquisa o conceito do Direito e assuntos afins e um de caráter axiológico, no qual se submetem as instituições jurídicas a um exame crítico-valorativo. Segundo Kant, enquanto a ciência jurídica questiona “o que é de direito?”, a filosofia Jurídica pergunta “o que é o Direito?”. Dessa postura emergem questões fundamentais, como a relativa aos elementos constitutivos do Direito; a indagação se este se compõe de norma e é a expressão da vontade do Estado, se a coação faz parte da essência do Direito; se a lei injusta pode constituir Direito e, como tal, obrigatória; se a efetividade é essencial à validade do Direito, etc. De natureza axiológica e de alcance mais prático, a filosofia jurídica consiste na apreciação valorativa das leis, institutos ou do sistema jurídico. Está mais ligada aos imperativos da vida social e visa ao enriquecimento da ciência do Direito, pois julga os critérios da lei em função dos valores humanos e sociais. Neste sentido ela busca iluminar o universo jurídico na perspectiva de uma elaboração de uma sociedade mais consensual, compromissada com a verdade dos fenômenos sociais e fundamentada na racionalidade do direito e das leis, em consonância direta com as transformações históricas e as novas aspirações da cultura em que se inserem. 1.2 O conceito de Direito sob a ótica filosófica Ligado à figura do Estado e da política, o direito se manifesta como ordenamento normativo. Um conjunto de normas de conduta e de organização. É um aparato que se destina a regular as relações fundamentais da existência social humana, em todos os seus sentidos. Em conformidade com a tendência principal da teoria geral do direito, especifico do ordenamento do direito e dos demais ordenamentos normativos é o poder de coerção. Isto coloca o direito em relações estreitas com a política. Por muitas vezes, o direito se apresenta a serviço do poder político estabelecido. Das conexões com o direito participam a filosofia jurídica e a filosofia política. Na reflexão da filosofia jurídica fica caracterizado, uma vez que, direito eEstado são, nas concepções mais comuns, como que duas faces de uma mesma moeda. Nesta relação de ordem íntima encontra-se o direito sendo considerado sob ponto de vista do Estado ou do soberano, os quais caracteriza e 3 legitima. Nesse sentido direito se apresenta como conjunto de regras postas e impostas por aquele ou aqueles que detêm o poder. Por outro lado o Estado é definido como uma complexa rede de normas constitucionais escritas ou não. As leis, os regulamentos as providências administrativas e as sentenças judiciais em seus vários planos. Aceitos e legitimados o processo de convergência une as estruturas jurídicas e o poder político. Consequência de tal realidade é a limitação do direito à figura do Estado. Desse modo o Estado moderno aparece como força manipuladora e centralizadora da produção jurídica. Nessa relação se caracteriza que: não há Estado sem direito e vice-versa. Em sentido geral e fundamental é a técnica voltada a tornar possível a coexistência humana. Como técnica, se concretiza em um conjunto de regras (leis ou normas), que têm por objeto o comportamento recíproco dos homens entre si. SUGESTÕES DE FILMES • Testemunha de acusação (Inglaterra, 1982). Direção: Alan Gibron. Jovem é acusado de assassinar uma senhora rica. O julgamento revelará mais segredos do que o esperado, em especial quando a esposa do acusado entra em cena. Julgamentos são processos para trazer a verdade à tona, e se eles são necessários é porque a verdade dos fatos ou as ações das pessoas podem facilmente ser ocultados ou manipulados. 110 min. • 12 homens, uma sentença. • A Justiça. 2. Questões éticas e morais no direito "Por que eu sempre nado contra a corrente? Porque só assim se chega às nascentes.” José Lutzemberger Objetivando-se um simples resumo esquemático, com fins meramente pedagógicos, apresento aqui alguns conceitos clássicos da filosofia moral, como instrumentos teóricos para debate em sala de aula e auxílio em leituras complementares. Para começo, as idéias agora explanadas e interpretadas foram reproduzidas literal e ou indiretamente de Adolfo Sánchez Vázquez, Ética (16a ed. – Rio de Janeiro, RJ: Editora Civilização Brasileira, 1996) e de Marilena Chauí, Convite à Filosofia (1a ed. – São Paulo, SP: Ática, 2004). • O que é moral? São normas práticas, aceitas livre e conscientemente, que regulam os comportamentos concernentes às noções de bem e mal, certo e errado nas relações entre os indivíduos. Os atos que não têm consequência alguma para os outros, portanto não tem qualificação moral. Objetivam transformar os valores dos grupos sociais daquilo que atualmente são – ineficientes ou inadequados – naquilo que devem ser, segundo a evolução das expectativas e necessidades históricas próprias da sociedade como um todo ou em seus organismos constituintes. Sua função é 1. desenvolver e ou garantir uma determinada ordem e coesão social, 2. preservando a integridade de um grupo no seio da sociedade e 3. com o objetivo de se alcançar algo que se poderia definir subjetivamente como “felicidade” ou bem-estar. • O que é Deontologia? É uma ramificação da ética adaptada ou restrita ao exercício de uma profissão, enquanto um conjunto de princípios e regras que trata dos deveres morais a serem cumpridos para garantir respeitabilidade nas relações entre os profissionais. Para além disso, estes códigos propõem sanções, segundo procedimentos explícitos, para os infratores do mesmo. Nesse sentido, fala-se em deontologia médica, jornalística, jurídica etc. Regra geral, os códigos deontológicos têm por base as grandes declarações universais e esforçam-se por traduzir o sentimento ético expresso nelas, adaptando-o, no entanto, às particularidades de cada país e de cada grupo profissional. Importante 4 destacar que nenhum código moral, por mais aceito e acordado pelos membros de sua categoria, garante valor ético. Porque nem toda norma atende às necessidades a que se destinam, seja por ingenuidade, abstrações ideológicas, corporativismo superprotetor, desuso anacrônico etc. • O que é ética? É uma análise filosófica entre os determinados comportamentos morais e os interesses sociais, histórica e culturalmente determinados. Estabelece os fundamentos e a validade das normas morais e dos juízos de valor – apreciados consuetudinariamente como sendo bons ou qualificados como maus. O papel da ética é reagir contra todo tipo de violência (mal, crime, vício etc), segundo como cada cultura assim o entende. Nossa cultura ocidental contemporânea define violência como tudo o que reduz a pessoa à condição de objeto ou coisa. Isto é, toda reificação ou perda de autonomia individual, coletiva. De outra forma, antiético é toda forma de desumanidade, que faz do humano um meio para a conquista de coisas e não o fim da ação humana. “Fins éticos exigem meios éticos”. Vale refletir com o paradigma ecológico que o ser humano, em absoluto, não é isoladamente o mais importante dos seres que a moral deva privilegiar, posto que este também está inserido no contexto ecossistêmico do planeta, cuja destruição causaria naturalmente violência à própria humanidade. Logo, uma ética profunda investiga os perigos à toda e qualquer expressão interconectada de vida, situando-nos em uma posição mais humilde diante da complexidade da realidade. Baseado no pensamento de Edgar Morin, a ética deve superar o grande equívoco da concepção mecanicista das ciências – prevalecentes no séc XX –, considerando que os fenômenos não são lineares e, sim, constituídos por microeventos que, interagindo entre si, formam o que tem sido denominado de sistemas abertos. Posto que a ação moral se constitui e se manifesta pelas consequências, e que não se pode conhecer todas as circunstâncias, a responsabilidade ética implica na abertura ao conhecimento transdisciplinar, com o qual se alcança dialeticamente, a natureza universal do fato particular. É o que se evidencia no quadro abaixo, a propósito da bioética: Aspectos Morais Aspectos Assistenciais Aspectos Políticos Aspectos Científicos Aspectos Sociais Aspectos Econômicos Aspectos Psicológicos Aspectos Biológicos Aspectos Espirituais Aspectos Legais Bioética Adequação ou Inadequação da Ação Aspectos Educacionais Aspectos Profissionais Modelo baseado na Complexidade Aspectos Culturais ©Goldim/2004 Referenciais Teóricos Casos Relacionáveis Fatos + Circunstâncias Alternativas Problema ou Dilema Ético Modelo baseado na Complexidade Conseqüências ©Goldim/2004 Http://www.bioetica.ufrgs.br - 26/07/2005 5 Assim definida, a ética estuda e não formula valores ou normas morais, conforme as reais necessidades e interesses da sociedade, já que estes são relativos, diferentes e variáveis geográfica e historicamente. Enquanto filosofia, é uma investigação transversal de todos os conceitos morais envolvidos no conflito prático. Inevitavelmente, isso exige uma análise multidisciplinar de todas as ciências cabíveis ao conhecimento de tais necessidades e interesses. Mas, para Vázquez, a ética é uma ciência ocupada em pesquisas sistemáticas, metódicas e, no limite do possível, comprováveis. Opõe-se ele, portanto, à sua classificação como parte da filosofia. Erro do autor, em minha opinião, em considerar que a filosofia moral é um saber puramente especulativo ou dedutivo, “divorciada da ciência e da própria realidade humana moral”1. Seja como for, há também aqueles, como Desidério Murcho2 que desconsideram inclusive as distinções teóricas entre os conceitos “moral” e “ética”. Nas palavras de Vázquez, na obra citada:Assim como os problemas teóricos morais não se identificam com os problemas práticos, embora estejam estritamente relacionados, também não se podem confundir a ética e a moral. A ética não cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética se depara com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, com uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas, procura determinar a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais. A ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano. (p. 12) • Por que a ética/moral não formula juízos de valor absolutos e atemporais? Sendo a ética um estudo do comportamento moral em relação às reais necessidades e interesses sociais, todo valor absoluto seria uma agressão cultural e histórica. Essa tentativa teórica, ainda que seja feita, não seria efetiva, seria algo inútil ou falsa, porque se afastaria da realidade concreta que deve explicar. • De que forma os pressupostos morais definem a “normalidade” dos valores sociais? Um certo valor social é considerado como um comportamento normal (isto é, que segue as normas) ao confirmar os valores e comportamentos morais pré-estabelecidos e assegurados culturalmente. • O que são valores? Os valores são qualidades que indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica. Como tal, marcam aquilo que dever ser em contraposição àquilo que é. Para efeito de esclarecimento sobre duas ações morais distintas, defino pelo termo “valorar” a competência genial ou o esforço de criar, inventar uma nova concepção de valor, revelando enorme grandeza ética capaz da crítica e superação da cultura vigente. Diferentemente, “valorizar” é a atitude de acrescentar importância ou interesse ao valor já preexistente no juízo, alterando-se a intensidade sem inovação do conceito de valor. • Quais as diferenças e semelhanças entre a moral e o direito? 1 Op. Cit. p 16. 2 "Ética" e "moral" outra vez. In: http://www.criticanarede.com/eticaemoral.html, de 25 de julho de 2005 – 20:00h. Veja também: Moral e Ética segundo Desidério, in: http://www.criseecritica.oi.com.br/critico_moral_e_etica.htm, de 25 de julho de 2005 – 20:00h. 6 MORAL DIREITO - Acontece por adesão íntima; - Não exigem adesão íntima; - Não é codificada oficialmente; - É formalmente publicada por leis e códigos; - Regula relações vitais para a sociedade; - Regula relações vitais para a sociedade; - Várias normas morais numa complexa, mas única sociedade; - Um único sistema jurídico para toda a mesma complexa sociedade; - A ampliação da força da esfera moral reduz proporcionalmente a necessidade da esfera do direito. • Quais os critérios constituintes do agente ou do sujeito moral com os quais poderíamos julgar eticamente o indivíduo? Resumidamente, podem ser apresentados em três aspectos, quais sejam: 1. Ser consciente de si e dos outros – isto é, reconhecer no outro o mesmo direito da experiência moral. Exige-se, deste modo, reflexão no autoconhecimento e alteridade3. A respeito, vale citar Luiz Signates, inspirado no pensamento de Emmanuel Lévinas, esclarecendo as quatro condições éticas para uma efetiva alteridade: 1. Não indiferença. O outro jamais é anulado ou cai no vazio da indiferença social. Ao contrário, sua presença constitui acontecimento relevante, diante do qual o eu se coloca de pé, pronto para a relação solidária. 2. Aceitação da diferença. O outro é reconhecido enquanto tal, e não submetido aos conceitos aprioristicamente construídos pelo eu. O elemento definidor da alteridade é, justamente, a estranheza, o desconhecimento e a infinitude do outro. Tal estranheza, em um contexto de solidariedade, poderá sempre ser manifesta, sem implicar em guerra entre os sujeitos em interação. 3. Doação/concessão/espera. O eu se faz sempre disponível a entregar-se, exercendo autonomamente uma heteronomia empática que, no entanto, não o torna escravo do outro nem elimina a identidade que lhe assegura essa autonomia. A empatia significa um deixar-se levar por exercício da própria vontade, em relação ao outro e às suas necessidades e carências. 4. Aprendizado/mudança. Ciente de que ninguém sai ileso de uma interação solidária, o eu se distingue pela disponibilidade para o aprendizado com o outro, na medida em que identifica no reconhecimento da diferença, enquanto lugar do desconhecido, o espaço do aprendizado possível e, portanto, da mudança. Observe-se que a solidariedade, enquanto comunicação plena, se inicia não no eu, mas no outro. Isso não implica, entretanto, uma heteronomia, no sentido de perda da identidade do eu, diante do império avassalador da diferença alheia. De forma alguma. O gesto solidário é sobretudo um ato de autonomia, mas trata-se uma autonomia típica, que se faz responsável pelo outro, que escolhe o respeito infinito pela diferença que o torna outro e se interessa sobretudo pela interação que lhe proporcione felicidade e paz. O gesto solidário é o ato de amor, cuja capacidade altruísta modifica as relações sociais de forma a fundar a convivência não violenta e pacífica. 2. Ter vontade própria, livre e autônoma – o que significa dizer que nossas vontades são plurais e não poucas vezes contraditórias entre si, exigindo-nos controle das paixões. Razão disso, respeitar nossa própria vontade é não atender qualquer vontade que possuímos, mas apenas aquelas que, por consequência, nos tornaria autônomos. Isso implica separar os conceitos de “livre-arbítrio” e “liberdade”. O primeiro trata sobre a ausência de impedimentos para escolhas a serem feitas (livre de), enquanto no segundo caso afirma-se uma escolha tal que garantiria o exercício do livre-arbítrio e aumentaria ainda mais a inteligência e a força de decisão (livre para), ante a ação desejada. A exemplo, uma pessoa sem vícios químicos que, por livre-arbítrio, escolhesse usar cocaína, perderia 3, Luiz Signates é Jornalista. Prof. Doutor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás. In: http://www.irc-espiritismo.org.br/arquivos/pv070100.doc, em 26/07/2005, às 23:00h. 7 total ou parcialmente a liberdade, por haver tornado dependente de algo que não sua própria vontade. Ao contrário, uma pessoa que tenha conquistado certa autonomia – a capacidade de sobrepor os impulsos irracionais contrários à independência de pensamento e ação – não apenas escolhe entre alternativas como também, antes de se decidir, avalia criticamente as opções que se lhe oferecem. Uma vontade livre e autônoma seleciona e formula suas alternativas. 3. Ser responsável – quaisquer pessoas adultas, em condições normais é capaz de avaliar, nalgum alcance, os efeitos ou consequências das ações que pratica, em relação a si mesmo e aos outros, e responder por eles. Etimológica e moralmente, ser responsável difere do sentido de ser culpado. O primeiro implica em dar resposta a um problema ocorrido na busca de uma resolução, voltando-se a consciência e esforços para o conhecimento da(s) causa(s) originária(s) com fins de tratamento, o quanto possível também dos efeitos. Na impossibilidade de modificá-los ou evitá-los, resta ao ético pelo menos a exigência de uma nova ação decorrente,acrescida de humildade e aprendizagem. Reconhecer nossa finitude é ser devidamente humano. Se não podemos voltar atrás e fazer um novo começo, devemos, entretanto, seguir adiante e fazer um novo fim. Na culpa não há essa intenção pedagógica ou reparadora do mal cometido. Ao contrário, é uma falta voluntária a um princípio moral consciente, com fixação no passado, no erro. No autoculpado fica o ódio a si mesmo e na culpabilidade alheia resta não mais que o desejo da vingança. Sobre os três critérios apresentados é importantíssimo dizer que não podem ser adequadamente compreendidos por uma condenação reducionista que afirmaria sermos totalmente éticos ou totalmente antiéticos. Há sobre toda ação moral uma graduação relativa e proporcional em aspectos de passividade e atividade daqueles três aspectos àcima, para que se melhor julgue a consciência ética, assim exemplificada: 1. uma criança que, brincando maldosamente, envenene com medicamentos quaisquer encontrados em casa, mate um colega seu, sem saber que o veneno era mortal, mas sabendo que seria nocivo, é menos anti-ético que outra criança que, fazendo o mesmo, no entanto tenha sabido do poder real do veneno. Ambos assumiram perversamente o risco da morte, mas o primeiro foi menos passivo que o segundo, por ter menor consciência e vontade correspondente; logo, menor responsabilidade. Se, no entanto, a primeira criança citada foi instruída a ler bulas de remédios, a fim de se evitar males menores ou mesmo a morte, mas negligenciou a prudência, então, neste caso é tão irresponsável quanto a segunda criança que já sabia antecipadamente da letalidade do medicamento. 2. Uma simples ação moralmente ética feita por um leigo de bom coração é – em tese – menos ativa que a mesma ação feita por um professor de ética, “igualmente” de bom coração, já que no segundo caso o grau de consciência intencional daqueles três critérios é – hipoteticamente – muito maior. Acrescentando ao que foi dito no parágrafo anterior, a fim de se ajuizar nas devidas dimensões, com uma reflexão ao alcance da problemática moral investigada, há um campo ético de julgamento que se divide em duas instâncias, quais sejam: I. No pólo subjetivo da consciência, quando se trata de uma avaliação individual de pessoas, com as opções: a) vontade passiva e b) vontade ativa. Este se aplica aos três critérios acima. II. No pólo sociológico da cultura, no que se refere à análise dos valores, enquanto abstrações conceituais despersonalizadas, instituições, civilizações etc. Aqui se pesquisam as exigências históricas de valores à maneira como cada sociedade e ou grupos nela inseridos definem para si mesmas o que é bem e o mal. • Quais os critérios éticos de justificação moral com os quais poderíamos julgar as estruturas, abstrações teóricas, as instituições despersonalizadas, os valores culturais etc? Para Adolfo Sánchez Vázquez há cinco critérios fundamentais que não consideram a norma moral absoluta, sobre-humana ou intemporal, e sim como um produto humano que somente existe e se justifica como nexo mútuo de relações sociais, práticas, lógicas, científicas e dialéticas. Equivale 8 a dizer, que um valor moral sustentável, isto é, para ser válido eticamente, reivindica possuir as seguintes qualidades: 1. Justificação social e dialética – é necessário que toda e qualquer norma corresponda de fato às autênticas necessidades sociais em vigor. Na falta de uma exigência imediata ou potencial de realização, nascida dos interesses da comunidade, será nula, porque sem forças. As regras morais só regulam os comportamentos efetivos do contexto humano concreto. Qualquer noção de progresso moral se justifica apenas quando está inserido num processo histórico da humanidade muito bem contextualizado. Logo, uma norma moral se justifica dialeticamente quando contém aspectos que, no processo ascensional moral, se integram em num novo nível numa moral superior. Um convívio cada vez mais complexo e paradoxal, imbricando-se indivíduos, grupos, sociedades e civilizações, reclama a necessidade democrática de diálogo e, senão entendimento, aceitação das diferenças. 2. Justificação prática e lógica – todo ato concreto exige condições reais para o seu cumprimento. Havendo estes, conseqüentemente justifica-se uma norma para tais condições. A inexistência das condições práticas pode legitimar uma certa norma que, se existissem aquelas condições seria imoral. Porque as normas não existem isoladamente, mas fazendo parte de um conjunto sistematizado, constituindo um certo código moral comunitário, é claro que não pode haver contradições impeditivas que invalidem seu exercício prático. Não é ético um código cujas normas secundárias são anuladas com uma outra regra fundamental ou com o valor implícito em torno dos quais se articulam todo o código. 3. Justificação científica – as normas que regulam as relações humanas se não forem amparadas pelos vários conhecimentos científicos existentes, pelo menos não devem entrar em contradição com os conhecimentos científicos já muito bem comprovados; salvo por futura invalidação, também fundamentada, destes. Do contrário, forças sociais dominantes poderiam validar injustiças bizarras (como o racismo, o machismo, o misticismo mágico e violento etc) em flagrante retrocesso histórico. Leitura Complementar I O DANO MORAL E SUA REPARAÇÃO Valdir Francisco de Oliveira Advogado e Professor da UNIC http://www.consulex.com.br/consulexnet_read.asp?id=1&idd=1845 Categoria: Doutrina, Data: 1/8/2005 1 – INTRODUÇÃO O dano moral ao longo do tempo sempre foi acompanhado de acirradas discussões, em razão do tema revestir-se de extrema complexidade, dado tratar-se de bens não visíveis, palpáveis, avançando no campo dos sentimentos da pessoa humana. O vocábulo dano deriva do latim damnum, significando genericamente todo mal ou ofensa que tenha sofrido uma pessoa, do qual resulta uma diminuição na sua esfera patrimonial. Já a moral possui raízes mais antigas, tendo em vista ter recebido influência da filosofia grega. Para os gregos, a moral era concebida como ciência geral das ações humanas, e prevalecia sobre o direito, que era visto apenas como parte das atividades humanas.1 Essa noção pouco clara da moral influenciou a idéia de ético no Direito Romano e perdurou no tempo, dificultando uma melhor definição do instituto, que, na concepção de De Plácido e silva, 9 se diz da ofensa ou violação que não vem ferir os bens patrimoniais, propriamente ditos, de uma pessoa, mas os seus bens de ordem moral, tais sejam os que se referem à sua liberdade, à sua honra, à sua pessoa ou à sua família.2 São bens inerentes à pessoa, motivo pelo qual também se os denominam bens da personalidade, implicando que uma lesão que os atinge, na verdade atinge o próprio indivíduo, acarretando desconforto íntimo, como a angústia, a tristeza, a perda da alegria de viver. Assim, o dano moral é, na verdade, a repercussão negativa provocada no indivíduo, em razão de violação aos seus bens ideais, conforme doutrina mais atualizada. Valdir Florindo, após salientar as dificuldades quanto à definição do instituto e a variedade de conceitos existentes, o define como: ...aquele decorrente de lesão à honra, à dor-sentimento ou física, aquele que afeta a paz interior do ser humano, enfim, ofensa que cause um mal, com fortes abalos na personalidade do indivíduo.3 Para Gabriel Saad, o dano moral é: ...uma lesão ao patrimônio de valores e idéias de uma pessoa, tendo como pressuposto a dor, o sofrimento moral causado por ato ilícito ou pelo não cumprimento do ajustado contratualmente.4 Segundo Wilson de Melo da Silva,a característica fundamental do dano moral é a dor, tomado o vocábulo em sua lata expressão, abrangendo tanto a dor-física ou de sensações, como a dor-sentimento ou de emoções. A primeira resulta de uma lesão material, ofendendo a integridade dos tecidos do indivíduo, ao passo que a dor-sentimento decorre de uma causa não-material, puramente de idéias. Salienta ainda que a fisiologia e a psicologia não estabelecem diferenciações para elas, salvo no tocante às suas causas, concluindo que: Nas dores-sensações o agente físico externo, agindo diretamente sobre os tecidos, provocaria de formas diversas e em diversos graus, sensações dolorosas. nas dores-sentimento são as idéias que, desencadeando, notadamente, fenômenos de vasoconstrição, determinam, no indivíduo, a dolorosa sensação dos sofrimentos íntimos, da depressão moral, da angústia.5 Temos assim uma clara noção do dano moral, que muitas vezes se confunde com a própria lesão, mas que na verdade é o resultado provocado que reclama reparação. A lesão é causada ao patrimônio ideal do ser humano, aos bens ligados à sua personalidade, sem repercussão de cunho material, mas provoca-lhe dor ou emoções negativas. Este desconforto pessoal, que leva à morbidez, à apatia, à desilusão da vida é que requer reprovação da ordem jurídica e reclama reparação. 2 – A RESPONSABILIDADE CIVIL A responsabilidade civil, especialmente no âmbito dos direitos morais, constitui um fenômeno jurídico de extrema relevância e atualidade, que vem despertando a cada dia maiores debates e preocupações nos estudiosos do direito: primeiro, em razão da importância que se vem conferindo aos bens ditos da personalidade ou extrapatrimoniais; de outra parte, em virtude dos riscos quanto ao desvirtuamento do instituto, de ser transformado na chamada indústria das indenizações. Para melhor compreensão, necessário se faz uma análise da questão nos seus diversos aspectos, antes de chegar ao ponto da discussão a que se propõe o presente estudo, relacionado ao dano moral. Carlos Alberto Bittar afirma que uma ordem jurídica justa se assenta no princípio de que a ninguém se deve lesar. Mas uma vez assumida determinada atitude pelo indivíduo, vindo a causar, de forma injusta, dano a outrem, deve o autor arcar com o ônus relativo, tendo por fim recompor o direito lesado, ou pelo menos compensar os efeitos do dano, fazendo-se, por outro lado, pesar sobre o lesante a resposta prevista na ordem jurídica.6 E essa resposta dada pela ordem jurídica deve ter por fim não somente recompor ou compensar o patrimônio do lesado, aplacando-lhe o sentimento de vingança, mas também servir de 10 lição e de desestímulo ao ofensor, coibindo novas práticas ilícitas e buscando, assim, o objetivo maior do direito, que é manter a paz e a harmonia no grupo social. Observa-se que um dos pressupostos ao direito à reparação é a ilicitude do ato, ou seja, a necessidade de que o ato praticado seja lesivo ao patrimônio juridicamente protegido de outrem, como defende Américo Luís Martins da Silva ao afirmar que “ato ilícito é aquele que, praticado sem direito, causa dano a outrem, seja uma omissão ou uma comissão.”7 Portanto, o ato aqui considerado é não só aquele praticado pelo agente, mas também o que tinha por dever jurídico praticar, mas que, omitindo-se, causou prejuízo a outrem. Assim, a responsabilidade civil pode ser entendida como a obrigação de alguém assumir as consequências jurídicas de seus atos, quando estes se verificarem não-somente contrários à lei, mas também ilícitos, repercutindo de forma negativa no patrimônio material ou moral de alguém. Essa noção possui origens no Direito Romano, tendo em vista que foi através da Lei Aquilia que se cristalizou a idéia de reparação pecuniária do dano, retirando-se o ônus da pessoa do ofensor e fazendo-o recair sobre o seu patrimônio, além de trazer a noção de culpa como fundamento da responsabilidade, isentando o agente que não contribuiu com culpa à ocorrência do fato.8 Pela responsabilidade civil, portanto, em cometendo o ilícito, o agente fica obrigado a reparar o dano, repondo as coisas ao seu status quo ante, ou, em se verificando a impossibilidade, indenizando o lesado no equivalente. É de observar que a responsabilidade civil, fundamentada no elemento culpa, impõe como pressuposto à sua ocorrência a conjugação de três fatos ou circunstâncias indispensáveis, consubstanciados na ação ou omissão do agente, na ocorrência do dano e no elo de causalidade entre essa ação ou omissão e o dano. Chama a atenção José de Aguiar Dias para a correta noção do termo responsabilidade, assinalando ser ela: ...termo complementar de noção prévia mais profunda, qual seja, o de dever, de obrigação. ... é, portanto, resultado da ação pela qual o homem expressa o seu comportamento, em face desse dever ou obrigação.9 A preocupação doutrinária é no sentido de aclarar a exata noção do termo responsabilidade, o qual somente se materializa se antecedido de um dever ou uma obrigação não cumprida, o que plenamente se justifica ante a confusão que normalmente paira em torno da questão, ensejando interpretações equivocadas e pretensões infundadas. Nesse sentido também Américo Luís Martins, para o qual: ...a responsabilidade civil reserva sua atenção para o dano causado; tem, pois, a finalidade de satisfazer a necessidade de ressarcimento dos prejuízos sofridos e de equilíbrio patrimonial e espiritual.10 É importante recordar que a responsabilidade civil teve como fonte a teoria do ato ilícito, sendo acrescida posteriormente por outros fatos geradores detectados na sua evolução, o que deu origem a duas vertentes distintas, sendo estas a subjetiva e a objetiva.11 A teoria subjetiva funda-se no elemento culpa como pressuposto para a obrigação de reparação de dano e foi adotada pelo direito pátrio, encontrando previsibilidade no novo Código Civil, em seu artigo 186, que corresponde ao artigo 159 do antigo Código Civil de 1916, há pouco revogado. Segundo Lúcio Rodrigues de Almeida, a palavra culpa encontra-se inserida no seu sentido lato, indicando não só a culpa stricto sensu como também o dolo.12 Traduz-se a culpa na desobediência, pelo agente, de um dever jurídico anteriormente existente. O autor do dano, embora sem a intenção deliberada de causar prejuízo a outrem, age com imprudência, negligência ou imperícia, e acaba por provocar um resultado danoso. No dolo já se verifica a intenção deliberada e consciente, por parte do agente, de causar o dano a outrem. Já a teoria objetiva encontra seu fundamento no risco criado em razão do exercício de alguma atividade perigosa, como a utilização de máquinas, veículos, objetos e utensílios outros, ou seja, quando a atividade desenvolvida, por sua natureza, implicar em risco para os direitos de outrem.13 11 A culpa foi por um longo período o único fundamento da responsabilidade civil, com base na corrente teórica subjetivista, que reconhecia responsabilidade ao autor do dano somente se restasse provado que este agiu com culpa ou dolo. Obedecia às regras de que inexiste responsabilidade sem culpa provada ou presumida do agente; o autor do dano somente era responsabilizado se comprovado ter o mesmo agido de forma negligente, imprudente, com imperícia ou dolo; o dano havia que se revestir de ilicitude e apenas o sujeito culpado podia ser responsabilizado. Esse sistema prevaleceu durante a época em que se consagrava ao indivíduo a máxima liberdade para contratar e plena liberdade de agir, baseada na concepção econômica do laissez-faire, que predominou nos séculos XVIII e XIX. A Revolução Industrial, com a introdução das máquinas no sistema de produção, agravandoos riscos para a integridade física da pessoa, trouxe profundas modificações sociais, passando a ser questionados os fundamentos teóricos e práticos da concepção individualista e subjetivista, tendo em vista que impossibilitava a reparação quando o dano decorria de uma atividade lícita ou fato produzido por coisa. A indústria inseriu no contexto do trabalho forças motrizes que, a par de ter contribuído decisivamente para a produção em grande escala, elevou de forma assustadora o risco da atividade laboral, passando a produzir vítimas diárias, aumentando o perigo à saúde e à vida no trabalhador, fenômeno que teve importante influência sobre a evolução do fundamento da responsabilidade civil.14 Significou, em realidade, uma evolução social que levou à modificação do conceito teórico da responsabilidade civil de origem romana, baseada na culpa, nascendo a teoria da responsabilidade objetiva, fundada no risco, “que no campo da indústria recebe o nome de teoria do risco profissional”.15 A culpa, no que diz respeito à evolução do fundamento da responsabilidade civil, permanece não mais como único e exclusivo pressuposto para a obrigação de se reparar o dano, convivendo ao seu lado o risco, no qual a responsabilidade deixa de ser sanção a uma regra de comportamento, para ter parâmetro no fato material causador do dano. Assim, num primeiro momento, para um melhor entendimento do presente estudo, os elementos caracterizadores da responsabilidade civil podem ser resumidos em: responsabilidade civil subjetiva, caracterizada pela conduta dolosa ou culposo do agente, onde há que se constatar o dano real ou concreto e o nexo de causalidade ligando a conduta do agente e o dano verificado; e responsabilidade civil objetiva, em que se verifica apenas o dano real ou concreto, e o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano ocorrido. Feitas essas considerações iniciais, importa passar à análise do instituto que compõe o tema abordado, ou seja, dos diversos aspectos de que se reveste o dano, para então chegar ao ponto quanto à sua repercussão no âmbito moral. 3 – O DANO O dano constitui o principal elemento no âmbito da responsabilidade civil, em vista da importância que reveste a sua configuração para a conseqüente obrigação de reparação, como também ganha importância a identificação do seu dimensionamento, objetivando a justa compensação. O vocábulo dano possui sentido abrangente, significando estrago, deterioração ou danificação, comportando ou não reparação, conforme definição trazida pelo Dicionário Aurélio.16 Adverte Carlos Alberto Bittar, ao discorrer sobre os danos reparáveis, que há necessidade de se afastar do contexto destes os danos justos, ou seja, aqueles definidos no direito objetivo, “e aqueles provenientes de força da natureza ou do acaso”, tais como os decorrentes de força maior ou de caso fortuito, desde que não venham acompanhados de ações humanas lesivas.17 E mesmo com relação aos danos dito justos, ou aqueles decorrentes de fenômenos naturais ou do acaso, a distinção dos demais danos passíveis de reparação torna-se bastante tormentosa, em 12 razão da tênue barreira que os separa, dificultando sobremaneira, em determinados casos, a comprovação da licitude do ato e a não culpabilidade do agente. Para Augusto Zenum, o dano, tanto o decorrente de um contrato não cumprido como aquele fundado na culpa, em resultando de ato ilícito, para ser reparado há necessidade de uma efetiva correspondência de diminuição do patrimônio ou ofensa do bem juridicamente protegido do indivíduo, por culpa ou dolo do agente.18 O patrimônio aqui assinalado abrange não só os bens materiais, mas também aqueles pertinentes à esfera íntima do indivíduo, não importando a autoria do dano. Nesse sentido, Américo Luís Martins ao afirmar que “quando se fala em dano, o que se quer significar é o resultado da lesão ou da injúria sobre o patrimônio moral ou material.”19 José de Aguiar Dias traz definição de Fischer, para dar uma noção da amplitude em que pode ocorrer o dano, considerando-o não só na sua acepção jurídica, como também na vulgar. Salienta que a vulgar, embora produza dano, não interessa do direito pela simples razão de se impossibilitar qualquer punição. Assim, somente o dano que implica obrigação de indenizar interessa ao estudo da responsabilidade civil.20 Afirma Cleyton Reis que: ...o dano deve ser considerado como uma lesão a um direito, que produza imediato reflexo no patrimônio material ou imaterial do ofendido, de forma a acarretar-lhe a sensação de perda.21 Observamos aqui um maior delineamento do dano reparável, acentuando como pressuposto à sua ocorrência, além da violação de uma norma jurídica, a caracterização do prejuízo, mesmo aos bens extrapatrimoniais. Esclarece ainda o mesmo autor que: ...o dano é uma lesão ao nosso interesse legítimo. Por sua vez, a preservação do nosso patrimônio, seja ele de natureza material seja imaterial, é um dever do Estado. Para isto, a norma assegura à vítima o direito à reparação ou compensação dos prejuízos verificados. E todo esse arcabouço jurídico-institucional decorre do vetusto princípio romano, sedimentado na regra do neminem leadere – não causar prejuízo a ninguém.22 O princípio jurídico originário do Direito Romano, de que a ninguém se deve lesar, incorporado às normas do moderno direito, impõe reparação a lesões a qualquer dos bens juridicamente protegidos, inadmitindo, inclusive, argumentação acerca da impossibilidade de mensuração pecuniária, como no caso dos danos extrapatrimoniais. Nesse sentido posiciona-se Lúcio Rodrigues de Almeida, ao examinar a matéria à luz do revogado Código Civil de 1916, através dos critérios que vinha fixado no artigo 1.553, a que remetia o artigo 159: Em todos os casos não contemplados nos dispositivos que regulam a liquidação do dano, cabe a liquidação por arbitramento. Isso quer dizer que o Código não admite que se deixe de reparar o dano sob pretexto de que não ficou provado o seu quantum.23 O atual Código Civil, em vigor a partir de 11 de janeiro de 2003, modificou o critério para a fixação do valor da reparação, já que, através do que preceitua o artigo 946, afastou o simples arbitramento do valor da indenização para determinar que esta seja apurada por meio dos critérios delineados na lei processual, ou seja, na forma prevista nos artigos 603 a 611 do CPC, que trata da liquidação da sentença.24 Não obstante, com relação à responsabilidade civil, o artigo 186 do novo Código Civil praticamente reproduziu o artigo 159 do antigo Código, ao dispor que: Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Segundo Américo Luís Martins, violar direito é atentar injusta e ilicitamente contra qualquer bem juridicamente protegido, enquanto causar prejuízo é prejudicar, lesar, danificar, diminuir de valor, estragar. Dessa concepção, salienta, extrai-se o princípio segundo o qual o dano só tem relevância jurídica como fato consumado, isto é, como resultado final de um processo cujas circunstâncias benéficas (atenuantes) ou prejudiciais (agravantes) foram levadas em consideração.25 13 Mas dano, em princípio, é entendido no seu amplo sentido, sendo, portanto mais acertada a corrente doutrinária que considera o dano não só na sua acepção jurídica, como também na vulgar, não obstante, como salienta José de Aguiar Dias, a vulgar, embora produza dano, não interessa ao direito pela simples razão de se impossibilitar qualquer punição. Portanto, dano corresponde a toda e qualquer lesão a bem material ou imaterial do indivíduo, ou seja, prejuízoque se verifica na dimensão física ou espiritual do ser humano e também nos seus bens materiais. 4 – DANOS REPARÁVEIS E NÃO-REPARÁVEIS Mas nem todo dano enseja reparação, havendo necessidade, para uma melhor acepção do instituto, distinguir os danos reparáveis dos não-reparáveis que, por tais motivos, desinteressam ao direito. Com efeito, os danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, ou ainda os que constituem dano justo na forma do direito normatizado, não são passíveis de reparação, já que, de um lado, a danificação é proveniente da ação autorizada pelo direito, como se verifica nos casos de legítima defesa, destruição de coisa para remoção de perigo e outras situações previstas pelo ordenamento jurídico e, de outro lado, os danos decorrentes da atuação exclusiva do acaso ou do próprio lesado, como na hipótese de terremoto, tempestades, enchentes, raios, tentativa de suicídio etc.26 Já os danos reparáveis verificam-se naqueles que provocam lesão no patrimônio juridicamente protegido da pessoa, seja por ação ou omissão direta de alguém, ou ainda de terceiro responsável pela coisa, sendo que o patrimônio aqui considerado abrange os bens de ordem material e imaterial ou moral. No entanto, cumpre assinalar, nesta parte, que os danos reparáveis sofrem desdobramento ante a sua repercussão no âmbito patrimonial ou moral, ou seja, afastando-se os danos não- reparáveis, os danos reparáveis avançam em duas vertentes distintas, na medida em que atingem bens pessoais juridicamente protegidos, podendo dar-se, na esfera patrimonial, o chamado dano patrimonial, e, na esfera psíquica ou imaterial do indivíduo, o que se denomina dano moral. 4.1 – DANO PATRIMONIAL No seu sentido jurídico, patrimônio envolve o conjunto de bens, direitos ou obrigações de natureza econômica, ou seja, aqueles que podem ser reduzidos a valor pecuniário. Para Clayton Reis, que prefere a denominação de “material”, o dano nessa esfera afeta exclusivamente os bens concretos que compõem o patrimônio do lesado.27 Assim, podemos entender como dano patrimonial ou material aquele que produz repercussão negativa nos bens como unidade de valor, podendo ser verificado e mensurado mediante o confronto entre o patrimônio realmente existente após o dano e aquele que possivelmente existiria se o dano não houvesse ocorrido. Essa concepção pressupõe idéia de prejuízo. Dano e prejuízo são termos muitas vezes tratados com sinônimos, mas que, na verdade, correspondem a coisas distintas, dificultando a exata noção de reparação. Como alerta Augusto F. M. Ferraz de Arruda, para a caracterização da responsabilidade civil subjetiva não basta apenas o dano, sendo necessário acrescentar mais um elemento, consubstanciado no prejuízo econômico, já que nem sempre o dano significa prejuízo. Dano e prejuízo são coisas distintas.28 Essa distinção pode ser facilmente percebida em razão da possibilidade de ser perfeitamente possível ocorrer um dano material, mesmo decorrente de culpa de outrem, sem que gere consequências econômicas negativas para aquele que o experimentou, ou seja, prejuízo. Ora, se a reparação pressupõe violação de direito e a ocorrência de dano em razão de ação ou omissão voluntária, negligente ou imprudente de outrem, evidentemente constituem estes 14 elementos que se inserem em um contexto mais amplo, abrangendo outras hipóteses não passíveis de reparação, em que se deixou de materializar os elementos oriundos da vontade humana. Portanto, para a caracterização da responsabilidade civil de âmbito patrimonial, no caso da ocorrência de dano material, há que ser este efetivamente demonstrado, comprovando-se a redução patrimonial do sujeito em razão do fato lesivo apontado. 4.2 – DANO MORAL OU IMATERIAL O dano moral ou imaterial é conceituado geralmente por exclusão ao dano material, ou seja, como a lesão de interesse não-patrimonial ou lesão ao conjunto de tudo que é insuscetível de valor econômico. É a definição de dano moral na sua forma negativa. Assim Wilson Melo da Silva, ao afirmar que: Danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição ao patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico.29 Também Augusto Zenum afirma que: “Dano moral, também denominado imaterial, é o que se dá em bem jurídico não material integrante do bem patrimonial”.30 O patrimônio é aqui considerado no seu sentido amplo, ou seja, não abrange apenas as coisas de utilidades passíveis de serem reduzidas a valores pecuniários, mas alcança também os bens morais, que igualmente se constituem um patrimônio, inclusive mais valioso do que o simplesmente material. Por exclusão ou negativa quanto ao patrimônio material, é, portanto, moral todo dano que neste não tiver repercussão e, por consequência, não puder ser avaliado pecuniariamente, tendo em vista que atinge bens que refletem no direito imaterial, provocando perturbações anímicas na pessoa. Mas a doutrina procura conceituar o dano moral também de forma positiva, como sendo a ofensa aos direitos da personalidade, conforme conceito trazido por Brebbia, ao asseverar que ontologicamente dano moral é a ofensa aos direitos da personalidade.31 Assim também o entendimento trazido por Carlos Alberto Bittar, ao afirmar que: Qualificam-se como morais os danos em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana (o da intimidade e da consideração pessoal), ou da própria valoração da pessoa no meio em que vive a tua (o da reputação u da consideração social).32 Observa-se que o objeto do direito nos danos morais é o valor da pessoa. São os direitos ditos da personalidade, inerentes ao próprio ser, que, uma vez atingidos, refletem-se no seu titular na forma de sensações físicas ou psíquicas que a doutrina denomina, de modo genérico, de dor. O dano é traduzido no desequilíbrio do titular do direito, em razão da lesão que se verificou nos seus bens personalíssimos. Nesse sentido, alerta Wilson Melo da Silva: E para que facilmente os reconheçamos, basta que se atente, não para o bem sobre que incidiram, mas, sobretudo, para a natureza do prejuízo final. Seu elemento característico é a dor, tomado o termo em seu sentido amplo, abrangendo tanto os sofrimentos meramente físicos quanto os morais propriamente ditos.33 Mais acertada, no entanto, a definição trazida por augusto Zenun: ...o dano moral não corresponde à dor, em si e por si, mas ressalva os efeitos maléficos marcados pela dor, pelo sofrimento, que invade e domina a alma, provocando apatia, morbidez mental, deixando marcas indeléveis no ofendido.34 A personalidade aqui é considerada na sua forma abrangente, no ser como um todo, alcançando a pessoa quanto aos seus direitos relativos à integridade física, psíquica e moral. Lesões em qualquer destas dimensões provocam desequilíbrios na pessoa, que se traduzem em sentimentos ou sensações negativas. Na integridade física, as lesões vulneram o corpo físico 15 como um todo ou o seu regular funcionamento, danificando a aparência e desvalorizando a imagem da pessoa, ou ainda, incapacitando-a para as atividades laborais e para os prazeres da vida. No plano psíquico, a consequência é a alienação mental, afetando o relacionamento da pessoa com o mundo. E, dependendo da gravidade, pode leva-la à incapacidade total, tornando-a um ser humano inútil. No âmbito moral, a danificação observa-se no caráter, nas virtudes, nas forçaspositivas e tudo o que dignifica e fortalece a existência da pessoa.35 O dano aqui tratado atinge a pessoa como unidade, em qualquer das suas dimensões, inclusive no conceito que a partir desta projeta-se no meio social. E como o dano moral não é, em si, lesão aos bens imateriais, mas o prejuízo final, o que importa em realidade é a alteração do estado de consciência da pessoa, decorrente das emoções negativas experimentadas. Bem esclarece nesta parte Wilson Melo da Silva, ao discorrer sobre a dor, que, segundo a escola fisiológica, esta se diferencia dos prazeres apenas por uma inversão de fenômeno fisiológico. A partir da representação mental do fato lesivo, desencadeiam-se descargas nervosas no indivíduo, que “incidem sobre os centros e nervos vasoconstritores e, por consequência, a circulação afrouxa, o vigor físico deprime-se, a contração muscular fica débil ou se paralisa. O estado de consciência provocado por todas estas modificações fisiológicas é, então, desagradável: o tom da emoção é, neste caso, a dor.”36 Marcius Geraldo Porto esclarece quanto à importância da consciência com relação ao fenômeno jurídico do dano moral, afirmando que: A idéia central é deslocar o foco de atenção, em vez de estabelecer certos danos morais em virtude de centenas de valores sempre controvertidos na sociedade e entre os indivíduos, fixa-los com base no exame de como se processa a ofensa no cérebro e na consciência.37 A importância de se inserir a consciência como objeto de proteção reside na idéia de melhor dimensionar a extensão dos danos morais, visando sua identificação e quantificação reparatória, inclusive a partir de avaliação pericial técnica especializada. É importante assinalar, ainda, posição doutrinária parcialmente contrária à tese, que observa divisão no dano moral de forma não só subjetiva como também objetiva, conforme Arnaldo Marmitt, ao alinhar que: O dano moral objetivo atinge a dimensão imaterial do cidadão no meio social em que vive e trabalha, maculando-lhe a figura perante o público. O dano moral subjetivo relaciona-se ao mal sofrido pela pessoa na sua subjetividade, na sua intimidade pessoal. Fere valores internos da personalidade, provocando sofrimentos intransferíveis, mas reparáveis de forma mais integral possível.38 Entendemos, no entanto, com o devido respeito às posições divergentes que a definição distancia-se da real natureza do dano moral, que não se perfaz na lesão em si, mas no seu resultado final, como bem alerta Wilson Melo quando afirma que, mesmo o menoscabo, por exemplo, pelo bom nome da pessoa perante a sociedade, terá como resultado final sentimentos negativos provocados naquele indivíduo cujo nome restou lesionado. A reparação ou a compensação do dano há que ser no sentido de restaurar o conceito da pessoa ou indeniza-la no que baste para recompor-lhe a paz interior, proporcionando-lhe outros benefícios ou prazeres da vida, no sentido de atenuar os sofrimentos, no entendimento da melhor doutrina. 5 – CONCLUSÃO Concluindo, podemos entender o dano moral como aquele que lesiona direitos da personalidade – aqui considerada como abrangente da esfera física, psíquica e moral do ser humano – cuja ocorrência provoca dores-sensações ou dores-sentimentos, levando os indivíduos a incorrer em desequilíbrios íntimos. O dano moral, portanto, deve ser reparado na forma prevista na lei processual, conforme prevê o novo Código Civil, no seu artigo 946. 16 BIBLIOGRAFIA Almeida, Lúcio Rodrigues de. O Dano Moral e a Reparação Trabalhista, Rio de Janeiro, Aide, 1999. Arruda, Augusto F. M. Ferraz de. Dano Moral Puro ou Psíquico, São Paulo, Juarez de Oliveira, 1999. Bittar, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999. Cretella Júnior, José. Curso de Filosofia do Direito, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997. Dias, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, 3. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1954. Fiúza, Ricardo. Novo Código Civil Comentado, São Paulo, Saraiva, 2002. Florindo, Valdir. Dano Moral e o Direito do Trabalho, 3. ed., São Paulo, LTr., 1999. Marmitt, Arnaldo. Dano Moral, Rio de Janeiro, Aide, 1999. Oliveira, Marcius Geraldo Porto de. Dano Moral: Proteção Jurídica da Consciência, São Paulo, Editora de Direito, 1999. Reis, Cleyton. Dano Moral, 4. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998. Saad, Teresinha Lorena Pohlmann. Responsabilidade Civil da Empresa nos Acidentes do Trabalho, São Paulo, LTr., 1999. Saad, Eduardo Gabriel. Dano Moral, suplemento trabalhista, São Paulo, LTr., nº 138, 1995, p. 853- 855. Silva, Américo Luís da. O Dano Moral e a sua Reparação, 1. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1999. Silva, Wilson Melo da. O Dano Moral e sua Reparação, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999. Zenun, Augusto. Dano Moral e sua Reparação, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997. NOTAS 1 José Cretella Júnior. Curso de Direito Romano, p. 24. 2 Silva, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, 9. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986. 3 Valdir Florindo. Dano Moral e o Direito do Trabalho, p. 41. 4 Eduardo Gabriel Saad. Dano Moral e o Acidente de Trabalho, Suplemento Trabalhista, LTr., 138/95, p. 853-855. 5 Wilson Melo da Silva. O Dano Moral e sua Reparação, p. 332. 6 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais, p. 21. 7 Américo Luís Martins da Silva. O Dano Moral e a sua Reparação Civil, p. 14. 8 Teresinha L. Pohlmann Saad. Responsabilidade Civil da Empresa nos Acidentes de Trabalho, p. 25. 9 José de Aguiar Dias. Da Responsabilidade Civil, p. 7. 10 Luís Martins da Silva. O Dano Moral e a sua Reparação, p. 21. 11 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais, p. 16. 12 Lúcio Rodrigues de Almeida. O Dano Moral e a Reparação Trabalhista, p. 38. 13 Arnaldo Marmitt. Dano Moral, p. 31. 14 Teresinha L. Pohlmann Saad. Responsabilidade Civil da Empresa nos Acidentes de Trabalho, p. 29. 15 Teresinha L. Pohlmann Saad. op. cit., p. 31. 16 Aurélio Buarque de Olanda Ferreira. Novo Dicionário Aurélio, p. 519. 17 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais, p. 30. 18 Augusto Zenum. Dano Moral e sua Reparação, p. 68. 19 Américo Luís Martins da Silva. O Dano Moral e sua Reparação Civil, p. 25. 20 José de Aguiar Dias. Da Responsabilidade Civil, p. 703-706. 21 Cleyton Reis. Avaliação do Dano Moral, p. 4. 17 22 Cleyton Reis, op. cit., p. 8. 23 Lúcio Rodrigues de Almeida. O Dano Moral e a Reparação Trabalhista, p. 47 e ss. 24 Ricardo Fiúza. Novo Código Civil Comentado, São Paulo, Saraiva, p. 844. 25 Américo Luís Martins. O Dano Moral e a sua Reparação Civil, p. 47-48. 26 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais, p. 31. 27 Cleyton Reis, Dano Moral, op. cit., p. 8. 28 Augusto F. M. Ferraz de Arruda. Dano Moral puro ou Psíquico, p. 11. 29 Wilson Melo da Silva. O Dano Moral e sua Reparação, p. 1. 30 Augusto Zenum. Dano Moral e sua Reparação, p. 101. 31 Roberto H. Brebbia apud Ronaldo Alves de Andrade. Dano Moral à Pessoa e sua Valoração, p. 9. 32 Carlos Alberto Bittar. Reparação Civil por Danos Morais, p. 45. 33 Wilson Melo da Silva. O Dano MOral e sua Reparação, p. 1 e 2. 34 Augusto Zenum. Dano Moral e sua Reparação, p. 1. 35 Arnaldo Marmitt. Dano Moral, p. 22. 36 Wilson Melo da Silva. O Dano Moral e sua Reparação, p. 334. 37 Marcius Geraldo Porto de Oliveira. Dano Moral, Proteção Jurídica da Consciência, p. 22. 38 Arnaldo Maermitt. Dano Moral, p. 23. ___________________________________________________________ Leitura Complementar II ANEXO I – Ver o artigo: A Indústria do dano moral. In: Revista Jurídica Consulex, ano VIII,no. 189, 30 de novembro de 2004. __________________________________________________ 3. IDEOLOGIA Há vários sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias, concepções e opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. Em sentido restrito, pejorativo, ideologia é o conjunto de idéias e concepções sem fundamento, mera análise ou discussão oca de idéias abstratas que não correspondem a fatos reais. Segundo Marilena Chauí, filósofa paulista, “A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem faze. Portanto, ela é um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes, a partir das divisões na esfera da produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças como de classes e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e”. Para todos, como, por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado”. Marilena Chauí, O que é ideologia?, p. 113. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A ideologia tem como função assegurar uma determinada relação dos homens entre si e com suas condições de existência, adaptando os indivíduos às tarefas prefixadas pela sociedade. 18 Portanto, a ideologia assegura a coesão dos homens e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome de “vontade de Deus” ou do “dever moral” ou simplesmente como decorrente da “ordem natural das coisas”. A Ideologia é um mascaramento da realidade social que permite a legitimação da exploração e da dominação. Por intermédio dela, tomamos o falso por verdadeiro, o injusto por justo. É interessante observar que não se trata de uma “mentira” que os indivíduos da classe dominante “inventam” para subjugar a classe dominada. Também eles sofrem a influência da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominação, aceitando como universais os valores específicos de sua classe. Essa universalidade das idéias e dos valores é abstrata porque na realidade concreta o que há são classes particulares com interesses divergentes, e a ideologia de uma “sociedade harmoniosa e una” oculta a divisão de classes. Portanto, a universalização e a abstração supõem uma lacuna ou o ocultamento de alguma coisa que não pode ser explicitada sob pena de desmascaramento da ideologia. Isto é, sob o aparecer da ideologia existe uma realidade concreta que precisa ser descoberta pela análise da gênese (origem) do processo, ou seja, pela verificação de como a realidade foi produzida. Universais são entidades genéricas que abrigam relações sociais específicas. Exemplos: Pátria, Família, Estado, Igreja, Nação. Por exemplo, quando se diz que “o trabalho dignifica o homem”, estamos diante de um conceito ideológico, na medida em que se trata: • De uma abstração, já que o trabalho se apresenta como uma “idéia de trabalho”, e a análise da situação concreta e particular da realidade histórico-social em que os operários realizam seu trabalho mostra exatamente o contrário: o embrutecimento e a coisificação do homem, e não de sua dignidade. • De uma lacuna, pois, analisando a gênese do trabalho assalariado, descobrimos a mais-valia e, portanto, o componente que leva à alienação do homem e à diferença de condição de vida das pessoas na “comunidade”. Outro exemplo: “A educação é um direito de todos” (e até um dever, já que há obrigatoriedade legal de se completar o curso primário). Essa afirmação é abstrata e lacunar, pois apresenta como universal um valor que beneficia apenas uma classe. Quando observamos as estatísticas que mostram a evasão e o baixo índice de freqüência escolar por parte das classes desfavorecidas, são comuns as “explicações” em função das dificuldades de adaptação, do mercado de trabalho e até do desinteresse ou preguiça. O que está oculto aí é que na sociedade de classes há uma contradição entre os que produzem a riqueza material e cultural com seu trabalho e os que usufruem essas riquezas, excluindo delas os produtores. Assim sendo, a educação é um dos bens a serem usufruídos pelos componentes da classe dominante. A educação aparece como um direito de todos, mas, analisando a gênese da produção e usufruto dos bens, descobre-se que de fato a educação está restrita a uma classe. Além disso, a ideologia mostra uma realidade invertida, ou seja, o que seria a origem da realidade é posto como produto e vice-versa. Por exemplo, a ideologia burguesa afirma que existem nos homens diferenças individuais e que estas determinam a desigualdade social: a desigualdade natural seria a causa da desigualdade social. Ora, a sociedade (na visão de Marx) é na verdade resultado da práxis, e as desigualdades sociais estabelecidas pela divisão do trabalho e pelas relações de produção é que determinam (são causas) as desigualdades individuais. Não estamos querendo desconsiderar as diferenças que de fato existem entre os indivíduos, como interesses, aptidões, inteligência. Mas, grosso modo, a atividade a que cada um se submete aparece como decorrente da competência e não como resultado da divisão de classes (lembremos ainda que a própria divisão de classes não deve ser vista como um “dado” inicial, mas como o resultado da práxis). Mais um exemplo: se um filho de operário não melhora o padrão de vida, isto é explicado como resultado da sua incompetência, falta de força de vontade ou disciplina de trabalho, quando na 19 realidade ele joga um “jogo de cartas marcadas”, e suas chances de melhorar não dependem dele, mas da classe que detém os meios de produção. A realidade ainda nos aparece invertida pela ótica da Ideologia, quando ouvimos dizer: “fulano não aprende porque não é inteligente”, quando a verdadeira causa é a desnutrição e o próprio sistema escolar, inadequado às crianças das classes desprivilegiadas. Outra inversão própria da ideologia é a maneira pela qual se estabelecem as relações entre teoria e prática, colocando a teoria como superior à prática, porque a antecede e “ilumina”. As idéias tornam-se autônomas e causa da ação humana (e não o contrário). Essa divisão hierárquica entre o pensar e o agir se encontra também na dicotomia da sociedade em um segmento que se dedica ao trabalho intelectual e outro, ao trabalho manual. Uma classe “sabe pensar”; a outra “não sabe pensar” e só executa. Portanto, uma decide, porque sabe, e a outra obedece. Idéias advindas do Taylorismo, quando necessitavam de majorar a exploração do proletariado. A ideologia de Taylor procura destruir a consciência de classe social. Alienando cada vez mais seu modo de ser, pensar e agir, para que estes homens não mais se organizassem para reivindicar seus direitos. Com a alienação, a fetichização da mercadoria e a reificação do homem, estes não se reconhecem como parte da natureza, nem como produtores dos objetos, nem como seres humanos. Assimilam-se como engrenagens de uma grande máquina social em funcionamento e, por isso, torna-se difícil identificar a origem dos males que afligem o mundo, na atualidade: a fome, a deterioraçãoambiental, a competitividade excessiva, o individualismo, a miséria, a falta de ética, entre outros. Vivemos a época do domínio material sobre o humano. É o reinado das coisas “humanizadas”; damos vida a entidades sociais e dizemos: “A nação está mobilizada”; “O povo foi enganado”; “O Brasil ganhou a copa do Mundo”; “A pátria foi ultrajada”. Como já se disse anteriormente, segundo Marx e Engels, em suas análises sobre a evolução das sociedades, observaram que o que existe, desde os primórdios da humanidade, fundamentalmente, é um antagonismo de classes, entre ricos e pobres. De um lado, O poder Econômico, os ricos, se servem de outros poderes, para manter sua dominação e sua riqueza, como o poder Ideológico e o poder Político, que não deixa de ser um mero aparato ideológico, do qual se serve a classe dominante, para manter seus privilégios. Sem falarmos no poder religioso, o longo período de dominação da Igreja Católica na Idade Média retrata bem isto, aos pobres resignação e a espera de uma vida melhor no céu, e os próprios confessionários que surgiram para evitar revoltas populares, sendo apresentados como o caminho único para o perdão divino aos nossos pecados. Com todas essas Ideologias dominantes os pobres jamais perceberiam as verdadeiras razões de suas condições e jamais se rebelariam contra a ordem vigente, permitindo assim a perpetuação do domínio de uma classe sobre outra. A peculiaridade da ideologia e que a transforma numa força quase impossível de remover decorre dos seguintes aspectos: 1) O que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as idéias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores. Portanto, enquanto esses dois trabalhos estiverem separados, enquanto o trabalhador for aquele que “não pensa” ou que “não sabe pensar”, e o pensador for aquele que não trabalha, a ideologia não perderá sua existência nem sua função; 2) O que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, Natureza, Razão, Estado, destino, etc.) 3) A ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades (a Natureza, os deuses ou Deus, a Razão ou a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. Por exemplo, quando se diz que o trabalho dignifica o homem e não se analisam as condições reais de trabalho, que brutalizam, entorpecem, exploram certos homens em benefícios de 20 uns poucos. Estamos diante da Idéia de trabalho e não diante da realidade histórico-social do trabalho. Ou, então, na ideologia capitalista burguesa, quando se diz que os homens são livres por natureza e que exprimem essa liberdade pela capacidade de escolher entre coisas ou entre situações dadas, sem que se analise que coisas e em quais situações são dadas para que os homens escolham. Quem dá as condições para a escolha? Todos podem realmente escolher o que desejarem? O trabalhador, que não possui nada além de sua força de trabalho para vender, tem família e filhos para alimentar, escolhe onde vai trabalhar, quanto vai ganhar e em que condições? O nordestino, vítima da seca e do proprietário das terras, realmente “escolhe” vir para o sul do país? Escolhe viver na favela? O peão metalúrgico “escolheu” livremente fazer horas-extras depois de 12 horas de trabalho? A menina grávida que teme as sanções da família e da sociedade “escolhe” fazer um aborto? A definição da liberdade como igual direito à escolha é a idéia burguesa da liberdade e não a realidade histórico-social da liberdade. Ao separar os homens em proprietários e não proprietários, a divisão social do trabalho, dão aos primeiros poder sobre os segundos. Estes são explorados economicamente e dominados politicamente. Estamos diante de classes sociais e da dominação de uma classe por outra. Ora, a classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente e, portanto, se dispuser de instrumentos para essa dominação. Esses instrumentos são dois: o Estado e a Ideologia. Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de direito”. O papel do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei significa direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade, isto é, como instrumentos para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. A ideologia é o processo pelo qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as classes sociais, se tornam idéias dominantes, de modo que a classe que domina no plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das idéias). Isto significa que: 1) Embora a sociedade esteja divida em classes e cada qual devesse ter suas próprias idéias, a dominação de uma classe sobre as outras faz com que só sejam consideradas válidas, verdadeiras e racionais as idéias da classe dominante; 2) Para que isto ocorra, é preciso que os membros da sociedade não se percebam como estando divididos em classes, mas se vejam como tendo certas características humanas comuns a todos e que tornam as diferenças sociais algo derivado ou de menor importância; 3) Para que todos os membros da sociedade se identifiquem com essas características supostamente comuns a todos, é preciso que elas sejam convertidas em idéias comuns a todos. Para que isto ocorra é preciso que a classe dominante, além de produzir suas próprias idéias, também possa distribuí-las, o que é feito, por exemplo, através da educação, da religião, dos costumes, dos meios de comunicação disponíveis. Todos esses procedimentos consistem naquilo que é a operação intelectual por excelência da ideologia: a criação de universais abstratos, isto é, a transformação das idéias particulares da classe 21 dominante em idéias universais de todos e para todos os membros da sociedade. Essa universalidade das idéias é abstrata porque não corresponde o nada real e concreto. Visto que no real existem concretamente classes particulares e não a universalidade humana. As idéias da ideologia são, pois, universais abstratos. 4. O conceito de legalidade Segundo Norberto Bobbio em seu Dicionáriode Política, entende-se por legalidade um atributo e um requisito do poder, exercido no âmbito próprio ou em conformidade com a lei. O contrário de um poder legítimo é um poder de fato, assim como o contrário de um poder legal é um poder arbitrário. Fala-se em legitimidade quando se trata do que é legal, ou também, quando diz respeito à ação justa (no entanto, é importante salientar que nem tudo que é legal é justo e legítimo). O princípio de Legalidade tolera o exercício discricionário do poder, mas exclui o exercício arbitrário, entendendo-se por exercício arbitrário todo ato emitido com base numa análise e num juízo estritamente pessoal da situação. O princípio de legalidade é considerado como um dos pilares do Estado moderno constitucional, também chamado de Estado de Direito. Esse procedimento advém da tradição jurídica segundo a qual se especulava sobre os princípios da política e das formas de governo. O pensamento que faz o pano de fundo dessa tradição está ligado ao ideal da isonomia legal, a igualdade de todos perante a lei – Dogma do bom governo próprio da concepção de estado liberal moderno. O lema dessa tese é: “igualdade para todos perante a lei”. Um dos temas mais correntes nesse pensamento é a contraposição entre governo das leis e governo dos homens: contraposição sempre acompanhada por um juízo de valor permanente pelo qual se considera bom governo o submisso às leis e mau governo o ilegal, o tirano que se coloca acima das leis. No âmbito jurídico, a produção do direito através de leis, isto é, de normas gerais e abstratas, possibilita prever as consequências das próprias ações, liberta, pois, da insegurança proveniente de uma ordem arbitrária; a aplicação do direito de acordo com leis á a garantia de um tratamento igual para todos os que pertencem à categoria definida na lei, liberta, pois, do perigo de existir um tratamento preferencial ou prejudicial para este ou aquele indivíduo, este ou aquele grupo, o que aconteceria num julgamento casuístico. No entanto fica a pergunta: A simples legalidade é garantia efetiva da isonomia? 5. O conceito de legitimidade Norberto Bobbio compreende como sendo legitimidade, em sentido genérico, aquilo que se aproxima do sentido de racionalidade e de justiça (fala-se em legitimidade de uma decisão, de uma atitude). Na linguagem política aparece o sentido específico que consiste na idéia de que a legitimidade é um atributo do Estado, que consiste na presença, em uma parcela significativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força, a não ser em casos esporádicos. É por esta razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. Interessa-nos primeiramente o sentido específico. A crença na legitimidade é o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado. Quando o fundamento e os fins do poder são percebidos como compatíveis ou de acordo com o próprio sistema de crenças e quando o agir é orientado para a manutenção dos aspectos básicos da vida política, o comportamento de indivíduos e grupos pode ser definido como legitimação. 22 A comunidade política é o grupo social, com base territorial congregando pessoas unidas pela divisão do trabalho político. No Estado nacional, a crença na legitimidade é caracterizada, de modo evidente por atitudes de fidelidade à comunidade política e de lealdade nacional. O regime é o conjunto de instituições que regulam a luta pelo poder e o exercício do poder e o conjunto de valores que animam a vida destas instituições. Os princípios das formas de governos caracterizaram alguns tipos de instituições e de valores correspondentes, que se caracterizam como alicerce da legitimidade. O traço fundamental da legitimidade é o da crença na legalidade. A legitimidade se funda na crença de que as normas do regime são legais. No que toca ao governo, este representa um conjunto de papéis pelos quais se realiza o poder político. Na definição institucional do poder, para que esse possa ser considerado legítimo basta que este se estruture, em conformidade com as normas. E, principalmente, que se submeta às normas no exercício do poder. Dessa forma os governos se colocam nos limites dos valores fundamentais da vida política. A legitimidade se assenta também na idéia de que as instituições tradicionais, consagradas pela vontade popular são verdadeiramente necessárias pelo poder que desempenham. Os diferentes níveis do processo de legitimação determinam os elementos que se caracterizam como ponto de referência obrigatório para orientação de indivíduos e grupos, no contexto político. Quando o fundamento e os fins do poder são percebidos como compatíveis ou de acordo com o próprio sistema de crenças e quando o agir é orientado para a manutenção dos aspectos básicos da vida política, o comportamento de indivíduos e grupos pode ser definido como legítimo. 5.1 Legitimidade e Ideologia A influência exercida pelo consenso dos membros de uma comunidade política na legitimação do Estado seja ele qual for, mesmo o mais democrático, não tem sempre o mesmo peso. O povo não é um somatório abstrato de indivíduos, cada qual participando diretamente com igual fatia de poder no controle do Governo e no processo de elaboração das decisões políticas, como aparenta a ficção jurídica da ideologia democrática. As relações sociais não subsistem entre indivíduos totalmente autônomos, mas entre indivíduos inseridos num contexto, que desempenham um papel definido pela divisão social do trabalho. Ora, a divisão do trabalho e a luta social e política dela decorrente fazem com que a sociedade nunca seja pensada através de representações que correspondem à realidade, mas através de uma imagem deformada pelos interesses dos protagonistas desta luta (a ideologia), cuja função é a de legitimar o poder constituído. Quando o poder é firme e em condição de desempenhar, de maneira progressista ou conservadora, suas funções essenciais (defesa, desenvolvimento econômico, etc.), faz com que seja aceita a justificação de seu existir, apelando para determinadas exigências latentes nas massas, e com a força de sua própria presença acaba se criando o consenso necessário. Quando, ao contrário, o poder está em crise, por sua estrutura ter entrado em contradição com a evolução da sociedade, entra em crise também o princípio da legitimidade que o justifica. Nas fases revolucionárias caem os véus ideológicos que camuflavam ao povo a realidade do poder, e se manifesta às claras sua inadequação para resolver os problemas que amadurecem na sociedade. Fenômenos desta ordem acontecem até a hora em que surge um outro poder e, conseqüentemente, um outro princípio de legitimidade. A cada tipo de Estado corresponde um diferente tipo de legitimidade. 5.2 O valor da legitimidade O consenso em relação ao Estado nunca foi livre, ao contrário, sempre foi, ao menos em parte, forçado e manipulado. Nesse contexto a legitimidade se mostra como necessária. O termo legitimidade (termo comum à liberdade, democracia, justiça, etc.) designa, ao mesmo tempo, uma situação e um valor de convivência social. A situação a que o termo se refere é a aceitação do Estado por um segmento relevante da população; o valor é o consenso livremente 23 manifestado por uma comunidade de homens autônomos e conscientes. O sentido da palavra legitimidade não é estático, e sim dinâmico; é uma unidade aberta cuja concretização é considerada possível num futuro indefinido e a realidade concreta nada mais seria do que um esboço deste futuro. Emcada manifestação histórica da Legitimidade vislumbra-se a promessa, até agora sempre incompleta na sua manifestação, de uma sociedade justa, onde o consenso, que dela é a essência, possa se manifestar livremente sem a interferência do poder ou da manipulação e sem mistificações ideológicas. 6. O Iluminismo e a Filosofia Jurídica de Kant O desenvolvimento do capitalismo nos séculos XVII e XVIII foi acompanhado pela crescente ascensão social da burguesia e sua tomada de consciência como classe social. Paralelamente, o racionalismo imperava na Europa, transmitindo a confiança de que a razão era o principal instrumento do homem para enfrentar os desafios da vida e equacionar os problemas que o rodeavam. O Iluminismo ou século das luzes, foi um movimento que se estendeu dos últimos decênios do século XVII aos últimos decênios do século XVIII. Este movimento foi fator determinante para a ascensão da burguesia e o processo de “transformação” da sociedade, onde, com o comércio, modificaram-se as relações econômicas entre os homens que, de rural, passa a ser mercantil e promove a ascensão de uma nova classe social, a burguesia comercial. Este movimento intelectual também traduzido como Ilustração, ou ainda Esclarecimento, esteve na base dos ideais revolucionários preconizados pela burguesia e retrata a busca por se fazer uso da própria razão sem a tutela do dogma religioso, ou de qualquer outro tipo. Os princípios iluministas apoiaram a derrubada do antigo regime que tinha no sistema feudal de produção, na monarquia absolutista, na autoridade da Igreja e no dogma religioso seu ponto de apoio. Liberdade, Igualdade, Justiça para todos, enfim, os ideais democráticos e de pesquisas científicas passaram a ser lemas dos dias. Trata- se de uma linha filosófica caracterizada pelo empenho de estender a crítica e o guia da razão em todos os campos da experiência humana. O Iluminismo promove a defesa da ciência e da racionalidade crítica contra a fé, a superstição e o dogma religioso; defesa das liberdades individuais e dos direitos do cidadão contra o autoritarismo e o abuso do poder, e tem Kant como seu principal representante. Neste sentido, Kant escreveu: “O Iluminismo é a evasão dos homens do estado de minoridade atribuível a eles próprios. Minoridade é a incapacidade de servir-se do [próprio intelecto sem o guia de um outro. A eles mesmos é atribuível esta minoridade, se sua causa não é um defeito do intelecto, mas a falta de decisão e coragem para servir-se dela como guia. ‘Sapere aude! Tem a coragem de servir-te do teu intelecto’ é o mote do Iluminismo” (O que é Esclarecimento?)]. O Iluminismo compreende três aspectos diferentes e conexos: 1) A extensão da crítica a toda e qualquer crença e conhecimento sem exceção; o que se atribui à fé cartesiana na razão e, do outro lado, julga muito mais limitado o poder da razão, pois o empirismo inglês dá uma lição de modéstia às pretensões cognoscitivas do homem, ao que Kant virá acrescentar que os poderes cognoscitivos humanos, tanto sensíveis, quanto racionais, estendem-se até onde se estende o fenômeno, mas não além deste. De outra parte, para este movimento, não existem campos privilegiados dos quais a crítica racional deva ser excluída, estendendo-a ao campo da religião, da moral e da política. 2) A realização de um conhecimento que, para ser aberta à crítica, inclua e organize os instrumentos para a própria correção; A partir do empirismo admitiu-se que toda verdade pode e deve ser colocada à prova, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada. O que há de mais importante aqui é que tudo aquilo que estes resultados têm de dogmático, de incompleto, de provisório, encontra uma revisão possível no próprio compromisso fundamental do Iluminismo de não bloquear em nenhum campo e nível a obra da razão. 3) O uso efetivo, em todos os campos, do conhecimento assim atingidos com a finalidade de melhorar a vida una e associativa dos homens. O Iluminismo não é somente compromisso 24 crítico da razão: é ainda o compromisso de servir-se da razão e dos resultados que ela pode conseguir nos vários campos de pesquisa para melhorar a vida particular e associativa de cada homem. Este pensamento constitui a personalidade de muitos pensadores iluministas e também de empreendimentos como a Enciclopédia que tomaram para si a tarefa da luta contra o preconceito e a ignorância. Esta luta, como a luta contra os privilégios, que a Revolução francesa empreendeu na base do compromisso iluminístico, tem como seu escopo expresso a felicidade ou o bem-estar do gênero humano, atingindo neste aspecto a concepção de tolerância e a do progresso. Por um lado exigindo a convivência pacífica de várias confissões religiosas e que esta se torne um instrumento do governo, e, por outro, levando à concepção de história como progresso, isto é, como possibilidade de melhoria do ponto de vista do saber e dos modos e viver humanos. Voltaire, Condorcet, Turgot contribuem mais que os outros para formular a noção de um porvir histórico aberto à obra do homem, suscetível de receber o cunho que o homem quer lhe dar, o que serviu para subtrair os homens daquele sentido da fatalidade histórica que impedia tomar qualquer iniciativa de transformação. Isto confirma que se a filosofia quiser e quando quiser tomar para si a tarefa (que já Platão lhe reconhecia) de transformar o mundo humano, a atitude iluminista e seus pressupostos fundamentais são as primeiras condições desta tarefa. O significado do Iluminismo consiste no fato de haver aberto à crítica domínios que até aquele momento lhe eram fechados e por haver iniciado em tais domínios um trabalho eficaz que não tem sido desde então interrompido. A atitude crítica própria do Iluminismo está em sua hostilidade para com a Tradição. Na tradição, o Iluminismo vê uma força hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir. Para os Iluministas ‘Tradição’ e ‘Erro’ coincidiam. Esse comportamento permitiu-lhes livrar-se dos potentes impedimentos que a tradição impunha à livre pesquisa e de alcançar novos conceitos, a partir da independência de crenças e preconceitos no reconhecimento e na avaliação dos fatos. Segundo análise de Lucien Goldman, os valores fundamentais defendidos pelo Iluminismo podem ser relacionados com a principal atividade econômica da burguesia, representada pelo comércio. São eles: 1) Igualdade Jurídica – No ato de comércio, como, por exemplo, a compra e venda, todas as eventuais desigualdades sociais entre compradores e vendedores não são essenciais. Na compra e venda, o que efetivamente importa é a igualdade jurídica dos participantes do ato comercial. Assim, o Iluminismo defendia a igualdade jurídica de todos perante a lei. Todos seriam cidadãos com direitos básicos, embora com diferentes situações socioeconômicas. 2) Tolerância religiosa ou filosófica – Para a realização do ato comercial, não tem a menor importância às convicções religiosas ou filosóficas das pessoas. Do ponto de vista econômico, seria irracional, absurdo, o processo de compra e venda somente entre pessoas da mesma religião ou filosofia. Seja muçulmano, judeu, cristão ou ateu, a capacidade econômica de um indivíduo não depende de suas crenças religiosas ou filosóficas. Por isso, a burguesia assumiu a defesa da tolerância. 3) Liberdade pessoal e social – O comércio só pode se desenvolver numa sociedade onde as pessoas estejam livres para realizar seus negócios. A burguesia, então, posicionou-se contra a escravidão da pessoa humana. Pois sem homens livres, recebendo salários, não pode haver mercado comercial. 4) Propriedade privada – O comércio também só é possível entre pessoas que detenhama propriedade de bens ou de capitais, pois a propriedade privada confere ao proprietário o direito de usar e dispor livremente do que lhe pertence. Assim, a burguesia passou a defender o direito à propriedade privada, que se tornou essencial à sociedade capitalista. Lucien Goldmann, La Ilustración y la sociedad actual (Cotrim, 1996: 171). 25 Os pensadores iluministas foram, sem dúvida, “ideólogos da burguesia”. Vejamos alguns dos principais expoentes desse período: 5) Montesquieu (1689-1755) – Jurista francês que escreveu O espírito das leis. Nessa obra, defende a separação dos poderes do Estado em Legislativo, Executivo e Judiciário como forma de evitar abusos dos governantes e de proteger as liberdades individuais. Dizia que a “lei é uma relação necessária que decorre da natureza das coisas”. 6) Voltaire (1694-1778) – Um dos mais famosos pensadores do Iluminismo, com seu estilo literário irônico e vibrante destacou-se pelas críticas que fazia ao clero católico, à intolerância religiosa e à prepotência dos poderosos. / Em termos políticos, não era propriamente um democrata, mas defensor de uma monarquia respeitadora das liberdades individuais, governada por um soberano esclarecido. / Tornou-se marcante sua posição em defesa da liberdade de pensamento, através de sua célebre frase: Posso não concordar com nenhuma das palavras que você diz, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las. 7) Diderot (1713-1784) e D’Alembert (1717-1783) – Foram os principais organizadores de uma enciclopédia de 33 volumes, que pretendia resumir os principais conhecimentos da época nos campos científico e filosófico. Essa obra contou com a colaboração de numerosos autores, entre os quais destacam-se Buffon, Montesquieu, Turgot, Condorcet, Voltaire, Holbach e Rousseau. / A Enciclopédia exerceu grande influência sobre o pensamento político burguês, defendendo, em linhas gerais, o racionalismo, a independência do Estado em relação à Igreja e a confiança no progresso humano através das realizações científicas e tecnológicas. 8) Rousseau (1712-1778) – Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra, na Suíça, transferindo-se para a França em 1742, onde escreveu suas grandes obras. Entre elas podemos destacar Do contrato social, na qual expõe a tese de que o soberano deve conduzir o Estado segundo a vontade geral de seu povo, sempre tendo em vista o atendimento do bem comum. Somente esse Estado, de bases democráticas, teria condições de oferecer a todos os cidadãos um regime de igualdade jurídica. / Em outra de suas importantes obras, o Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau glorifica os valores da vida natural e ataca a corrupção, a avareza e os vícios da sociedade civilizada. Faz inúmeros elogios à liberdade de que desfrutava o selvagem, na pureza do seu estado natural, contrapondo-o à falsidade e ao artificialismo do homem civilizado. Foi dessas idéias que nasceu o mito do “bom selvagem”. / Rousseau tornou-se célebre como defensor da pequena burguesia e inspirador dos ideais que estariam presentes na Revolução Francesa. 9) Adam Smith (1723-1790) – Foi o principal representante do liberalismo econômico e autor do Ensaio sobre a riqueza das nações. Criticou a política mercantilista, baseada na intervenção do Estado na vida econômica. Para ele, a economia deveria ser dirigida pelo jogo livre da oferta e da procura de mercado (laissez-faire). / Segundo Adam Smith, o trabalho em geral representa a verdadeira fonte de riqueza para as nações, devendo ser conduzido pela livre iniciativa dos particulares. E, por fim, 10) Kant – Para abordarmos a questão do Iluminismo, optamos por um texto de Immanuel Kant. Kant nasceu em Königsberg (na Prússia oriental – cidade da qual jamais se ausentara) em 22 de abril de 1724, de família pobre, pertencente à seita protestante dos pietistas, da qual recebeu profunda educação religiosa. Cursou a universidade de sua cidade natal, dedicando-se especialmente à filosofia e às ciências naturais. Criou um edifício filosófico no qual encontram lugar, como componentes essenciais, elementos comuns derivados do clima espiritual da época: o racionalismo, o empirismo e o iluminismo. Morreu em 12 de fevereiro de 1804. Kant foi um dos maiores pensadores de todos os tempos. A genialidade e a novidade de seu pensamento consistem, dentre outros fatores, no reconhecimento da importância da razão prática e das faculdades instintivas, revalorizadas assim depois do iluminismo, e ainda na tentativa de constituir uma doutrina moral, baseando-a não em fatores extrínsecos, mas exclusivamente no valor 26 absoluto da lei interior. Seu texto: Resposta à Pergunta: Que é “Esclarecimento”? (Aufklärung), escrito em 1783 nos proporcionará uma ampla visão das principais questões da época, bem como permitirá dar seqüência a uma análise de seu pensamento na seguinte ordem: 1) A idéia de autonomia da razão, a partir da questão “O que é Aufklärung?” 2) Definição do juízo moral, a partir do “Imperativo Categórico” 3) Definição de Direito e sua relação com a moral. ______________________________________________________ Leitura Complementar III Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento (Aufklärung)? Immanuel KANT Esclarecimento [<Aufklärung>] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [<Aufklärung>]. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto de bom grado menores durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas. Basta um exemplo deste tipo para tornar tímido o indivíduo e atemorizá-lo em geral para não fazer outras tentativas no futuro. É difícil, portanto para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. Chegou mesmo a criar amor a ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade. Quem deles se livrasse só seria capaz de dar um salto inseguro mesmo sobreo mais estreito fosso, porque não está habituado a este movimento livre. Por isso são muitos poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade e empreender então uma marcha segura. Que, porém um público se esclareça [<aufkläre>] a si mesmo é perfeitamente possível; mais que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável. Pois se encontrarão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos da grande massa, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão em redor de si o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus 27 tutores que, eles mesmos, são incapazes de qualquer esclarecimento [<Aufklärung>]. Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores ou predecessores destes. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento [<Aufklärung>]. Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento. Para este esclarecimento [<Aufklärung>], porém nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer um uso público de sua razão em todas as questões. Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocinei, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade. Que limitação, porém, impede o esclarecimento [<Aufklärung>]? Qual não o impede, e até mesmo favorece? Respondo: o uso público de sua razão deve ser sempre livre e só ele pode realizar o esclarecimento [<Aufklärung>] entre os homens. O uso privado da razão pode, porém muitas vezes ser muito estreitamente limitado, sem, contudo por isso impedir notavelmente o progresso do esclarecimento [<Aufklärung>]. Entendo, contudo sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto SÁBIO, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou função a ele confiado. Ora, para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comportar-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo, mediante uma unanimidade artificial, para finalidades públicas, ou pelo menos devem ser contidos para não destruir essa finalidade. Em casos tais, não é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da máquina se considera ao mesmo tempo membro de uma comunidade total, chegando até a sociedade constituída pelos cidadãos de todo o mundo, portanto na qualidade de sábio que se dirige a um público, por meio de obras escritas de acordo com seu próprio entendimento, pode certamente raciocinar, sem que por isso sofram os negócios a que ele está sujeito em parte como membro passivo. Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a que seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas, razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obrigações, se devem ser pagas por ele, pode ser castigada como um escândalo (que poderia causar uma desobediência geral). Exatamente, apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas idéias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições. Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com esta condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja. Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Pois aquilo que ensina em decorrência de seu cargo como funcionário da Igreja, expõe-no como algo em relação ao qual não tem o livre poder de ensinar como melhor lhe pareça, mas está obrigado a expor segundo a prescrição de um outro e em nome deste. Poderá dizer: nossa igreja ensina isto ou aquilo; estes são os fundamentos comprobatórios de que ela se serve. Tira então toda utilidade prática para sua comunidade de preceitos que ele mesmo não subscreveria com inteira convicção, em cuja apresentação pode, contudo se comprometer, porque não é de todo impossível que em seus enunciados a verdade esteja escondida. Em todo caso, porém, pelo menos nada deve ser encontrado aí que seja contraditório com a religião interior. Pois se 28 acreditasse encontrar esta contradição não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor empregado faz de sua razão diante de sua comunidade é unicamente um uso privado, porque é sempre um uso doméstico, por grande que seja a assembléia. Com relação a esse uso ele, enquanto padre, não é livre nem tem o direito de sê-lo, porque executa uma incumbência estranha. Já como sábio, ao contrário, que por meio de suas obras fala para o verdadeiro público, isto é, o mundo, o sacerdote, no uso público de sua razão, goza de ilimitada liberdade de fazer uso de sua própria razão e de falar em seu próprio nome. Pois o fato de os tutores do povo (nas coisas espirituais) deverem ser eles próprios menores constitui um absurdo que dá em resultado a perpetuação dos absurdos. Mas não deveria uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia de clérigos, ou uma respeitável classe (como a si mesma se denomina entre os holandeses) estar autorizada, sob juramento, a comprometer-se com certo credo invariável, a fim de por este modo de exercer uma incessante supertutela sobre cada um de seus membros e por meio dela sobre o povo, e até mesmo a perpetuar essa tutela? Isto é inteiramente impossível, digo eu. Tal contrato, que decidiria afastar para sempre todo ulterior esclarecimento [<Aufklärung>] do gênero humano, é simplesmente nulo e sem validade, mesmo que fosse confirmado pelo poder supremo, pelos parlamentos e pelos mais solenes tratados de paz. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos) purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento [<Aufklärung>]. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está, portantoplenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso. Quanto ao que se possa estabelecer como lei para um povo, a pedra de toque está na questão de saber se um povo se poderia ter ele próprio submetido a tal lei. Seria certamente possível, como se à espera de lei melhor, por determinado e curto prazo, e para introduzir certa ordem. Ao mesmo tempo, se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes. Estas últimas permaneceriam intactas, até que a compreensão da natureza de tais coisas se tivesse estendido e aprofundado, publicamente, a ponto de tornar-se possível levar à consideração do trono, com base em votação, ainda que não unânime, uma proposta no sentido de proteger comunidades inclinadas, por sincera convicção, a normas religiosas modificadas, embora sem detrimento dos que preferissem manterem-se fiéis às antigas. Mas é absolutamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar, mesmo durante o tempo de vida de um homem, e com isso por assim dizer aniquilar um período de tempo na marcha da humanidade no caminho do aperfeiçoamento, e torná-lo infecundo e prejudicial para a posteridade. Um homem sem dúvida pode no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe adiar o esclarecimento [<Aufklärung>]. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. O que, porém, não é lícito a um povo decidir com relação a si mesmo, menos ainda um monarca poderia decidir sobre ele, pois sua autoridade legislativa repousa justamente no fato de reunir a vontade de todo o povo na sua. Quando cuida de toda melhoria, verdadeira ou presumida, coincida com a ordem civil, pode deixar em tudo o mais que seus súditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação de suas almas. Isto não lhe importa, mas deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si. Causa mesmo dano Sua Majestade quando se imiscui nesses assuntos, quando submete à vigilância do seu governo os escritos nos quais seus súditos procuram deixar claras suas concepções. O mesmo acontece quando procede assim não só por sua própria concepção superior, com o que se expõe à censura: Ceaser non est supra grammaticos, mas também e ainda em muito maior extensão, quando rebaixa tanto seu poder supremo que chega a apoiar o despotismo espiritual de alguns tiranos em seu Estado contra os demais súditos. 29 Se for feita então a pergunta: "vivemos agora uma época esclarecida [<aufgeklärten>]"?, a resposta será: "não, vivemos em uma época de esclarecimento [<Aufklärung>]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento [<Aufklärung>] geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento [<Aufklärung>] ou o século de Frederico. Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que, portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente esclarecido [<aufgeklärt>] e merece ser louvado pelo mundo agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. Sob seu governo os sacerdotes dignos de respeito podem sem prejuízo de seu dever funcional expor livre e publicamente, na qualidade de súditos, ao mundo, para que os examinasse, seus juízos e opiniões num ou noutro ponto discordantes do credo admitido. Com mais forte razão isso se dá com os outros, que não são limitados por nenhum dever oficial. Este espírito de liberdade espalha-se também no exterior, mesmo nos lugares em que tem de lutar contra obstáculos externos estabelecidos por um governo que não se compreende a si mesmo. Serve de exemplo para isto o fato de num regime de liberdade a tranqüilidade pública e a unidade da comunidade não constituírem em nada motivo de inquietação. Os homens se desprendem por si mesmos progressivamente do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá- los nesse estado. Acentuei preferentemente em matéria religiosa o ponto principal do esclarecimento [<Aufklärung>], a saída do homem de sua menoridade, da qual tem a culpa. Porque no que se refere às artes e ciências nossos senhores não têm nenhum interesse em exercer a tutela sobre seus súditos, além de que também aquela menoridade é de todas a mais prejudicial e a mais desonrosa. Mas o modo de pensar de um chefe de Estado que favorece a primeira vai ainda além e compreende que, mesmo no que se refere à sua legislação, não há perigo em permitir a seus súditos fazer uso público de sua própria razão e expor publicamente ao mundo suas idéias sobre uma melhor compreensão dela, mesmo por meio de uma corajosa crítica do estado de coisas existentes. Um brilhante exemplo disso é que nenhum monarca superou aquele que reverenciamos. Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido [<aufgeklärt>], não tem medo de sombras e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a tranqüilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; como, aliás, quando se considera esta marcha em conjunto, quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, no entanto estabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa. Se, portanto a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o germe de que cuida delicadamente, a saber, a tendência e a vocação ao pensamento livre, este atua em retorno progressivamente sobre o modo de sentir do povo (com o que este se torna capaz cada vez mais de agir de acordo com a liberdade), e finalmente até mesmo sobre os princípios do governo, que acha conveniente para si próprio tratar o homem, que agora é mais do que simples máquina, de acordo com a sua dignidade. Königsberg na Prússia, 30 de setembro de 1784 30 Conclusão Concluindo, a tarefa iniciada por Kant, de superação da incapacidade humana de se servir do seu próprio entendimento e ousar servir-se da própria razão, não poderá jamais ser completada. É tarefa que precisa ser repetida a cada momento. Neste sentido, o Iluminismo apresenta-se como processo que coloca a razão sempre a serviço da crítica do presente, de suas estruturas e realizações históricas. SUGESTÕES DE FILMES • Giordano Bruno (Itália, 1973). Direção: Giuliano Montaldo. História da vida do filósofo, astrônomo e matemáticoitaliano Giordano Bruno, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, e sua vivência dos conflitos científicos, morais, filosóficos e religiosos da época. 123 min. • O nome da rosa (Itália, 1986). Direção: Jean-Jacques Annaud. Baseado no romance com o mesmo nome, o filme apresenta uma investigação detetivesca sobre uma série de assassinatos que ocorrem num mosteiro, na Idade Média. Vale a pena conferir a trama religiosa, política, filosófica e lógica que sustenta a história. O romance homônimo é do pensador e escritor italiano Umberto Eco. Discussões sempre polêmicas no universo da Filosofia Jurídica dizem respeito a intermináveis controvérsias entre duas linhas de raciocínio que por vezes, por excesso de radicalismo, podem dificultar, portanto, uma visão crítica, realista, compromissada com a justiça social e transformadora da sociedade, muitas vezes redundando em meras ideologias: o jusnaturalismo e o juspositivismo. Para evitarmos possíveis erros futuros no exercício da profissão, bem como presentes na análise teórica que possamos fazer em torno destes temas, faz-se necessário aprofundarmo-nos neles e nas críticas que tais questões suscitam, para que, posteriormente se amplie nosso leque de compreensão sobre a proposta alternativa de resolução destes e outros impasses jurídicos. 7. Jusnaturalismo Historicamente o jusnaturalismo é um pensamento jurídico que antecede à própria ciência do direito. No pensamento grego antigo encontramos o jusnaturalismo presente nos escritos de Platão e Aristóteles. Contudo, a forma mais apurada de jusnaturalismo foi elaborada pelos estóicos, escola do período da decadência helênica. Para os estóicos o jusnaturalismo é uma doutrina que afirma a existência de uma lei natural, universal, imutável e imanente. Na concepção helênica, soberana é a natureza, ela é a existência funcional independente, isto é, funciona por si mesma. Para o grego a natureza possui leis perfeitas, por isso mesmo imutáveis, a estas o homem eticamente bom deve submeter. Na idade média, a idéia estóica foi praticamente assumida. Contudo, Cícero acrescentou uma importante contribuição. Para Cícero quase tudo que os estóicos disseram era verdadeiro, exceto a idéia de que o direito natural fosse imanente, ele entendia que a lei natural era universal e imutável, porém ditada pela razão humana. Este último pensamento representa sua contribuição para o pensamento jusnaturalista. Santo Agostinho e Lactâncio seguiram o pensamento expresso por Cícero e pelos estóicos, apenas acrescentaram a figura divina com criadora da natureza. O conceito de Deus criador é próprio do pensamento teológico judeu e dos pensamentos teológico e filosófico católico cristão. Ulpiano aparece na história do jusnaturalismo medieval e estende a idéia de que o jusnaturalismo é guiado pelo instinto e abrange todo ser animado. Estava criada a idéia de que o homem não é livre e que o saber o direito não é racional. Enfim estava criadas todas as ferramentas para que, mais tarde, o jusnaturalismo fosse combatido pelo positivismo que o acusa de falta de lógica e de cientificidade. 31 Finalmente Santo Tomás de Aquino, que conserva o cerne do pensamento de Cícero e afirma que embora o direito natural abranja todas as criaturas e represente a vontade de Deus, ele só pode ser conquistado pelo trabalho intelectivo do homem. A inteligência humana é a realização maior da graça de Deus exercita pelo Homem. Para Santo Tomás a natureza humana não se relaciona com a natureza de Deus. O homem só pode conhecer Deus naquilo que ele se revelar, na medida da natureza humana. A escola jusnaturalista baseia-se na hipotética concepção da existência de um Direito natural, que seria anterior e superior a todo e qualquer Direito Positivo. Essa idéia tem seu papel histórico mais relevante com o surgimento do Estado de Direito e os pressupostos filosóficos do Estado Liberal, diferente do Estado absoluto, e a doutrina dos direitos do homem elaborada a princípio pelos jusnaturalistas: direitos fundamentais à vida, à liberdade, à segurança, à felicidade. Esta doutrina tem como defensores vários escritores políticos. Ela serviu de fundamento para reivindicar as duas conquistas fundamentais do mundo moderno no campo político: o princípio da tolerância religiosa e o da limitação dos poderes do Estado. Desses princípios surgiu o Estado Liberal. O Jusnaturalismo considera o direito natural como a regulamentação necessária nas relações humanas fiando-se à autonomia da razão no campo moral e político. Para compreender melhor esta questão é válido salientar que historicamente o Estado Liberal nasce de uma contínua corrosão do poder do rei, reivindicando mais liberdade para os burgueses ou de uma ruptura revolucionária como na Inglaterra em 1688 e na França em 1789. A Renascença representa, como fato considerável, a destruição definitiva da majestosa construção medieval, fundada sobre a dupla autoridade do Papa no domínio espiritual e do Imperador no temporal. No plano temporal se afirmam os grandes Estados monárquicos unificados; Portugal, França, Inglaterra e Espanha disputavam a posse de vários de seus territórios. No plano espiritual, muitas guerras religiosas aconteceram. Tais guerras geraram, entre as minorias que se sentiam ameaçadas pelo absolutismo dos governantes nas suas práticas e crenças religiosas, a idéia da resistência ao tirano. As idéias da soberania popular e da origem contratual do poder fornecem os instrumentos normativos. O poder passaria a ser concebido como expressão de uma soberania auto- suficiente, ao mesmo tempo em que se delineiam as primeiras formulações de uma concepção contratualista de sociedade. O mundo moderno caracteriza-se também pela supremacia da evidência racional na procura da verdade (Descartes) e pela consciência do valor absoluto da pessoa humana e afirmação de seu poder soberano no mundo. A idéia do direito natural é o sustentáculo da teoria do Contrato Social e, no espírito de quem a formulou, era destinada a combater e a substituir a doutrina do “direito divino dos reis” ou teoria divina do poder civil. Esta teoria definia a posição da Igreja Católica com relação ao problema político. Tal teoria foi sustentada na Idade Média pelos discípulos de Santo Agostinho e é o desenvolvimento da palavra do apóstolo São Paulo: não há nenhum poder que não venha de Deus. Isto significa que uma vez designados os governantes por acordos puramente humanos, estes recebem de Deus mesmo suas autoridades. É aos homens que cabe fixar a forma de governo e de nomear os que serão investidos do direito de governar, mas este direito ele mesmo é de origem divina. A obediência que devemos ao poder civil tem seu fundamento na que devemos a Deus. A consequência imediata de tal teoria é que significa se rebelar contra Deus resistir ao poder estabelecido: o bom cristão deve tudo suportar, os abusos de poder como os piores sofrimentos, e mesmo fazer o sacrifício de sua vida antes de opor a força à força. É contra esta submissão sem reservas que jurisconsultos do séc. XVII como Grotius e Pufendorf se oporão. Eles vão buscar na teoria Contrato Social e na idéia de uma “lei natural” ou “direito natural” seus argumentos. Eles admitem todos, sob certas condições, o direito de resistência, mesmo sendo pensadores de tendência absolutistas. Seus esforços eram para separar o direito natural da teologia. Neste sentido eles provocaram uma verdadeira revolução no domínio da Ciência Política, combatendo a teoria do direito divino eles livraram a ciência política de sua ligação com a teologia e ao mesmo tempo tiraram o Estado da tutela da Igreja. A teoria do Contrato Social, a princípio, foi32 dirigida contra o poder temporal do papado e tendia a restituir ao poder real sua autonomia, com bases laicas. Só posteriormente abriria brechas para teorias mais democráticas, sobretudo com a intenção de estender o poder da burguesia. Teremos em Locke o principal teórico da ideologia liberal burguesa, sendo por isso o grande teórico do capitalismo. Nos séculos XVII e XVIII jurisconsultos, filósofos, escritores políticos como Grotius, Pufendorf, Hobbes, Locke e Rousseau vêem todos a teoria do Contrato Social como o artefatus necessário à instituição das sociedades civis. Para todos estes pensadores, é o Contrato Social que dá nascimento à sociedade civil e, ao mesmo tempo torna legítima a autoridade política, diferentemente da tradicional concepção aristotélica da natural sociabilidade entre os homens. Para os pensadores da escola do direito natural o poder civil, a autoridade política é um estabelecimento humano, não é preciso remontar a Deus, mas às convenções. Para provar eles imaginam um hipotético estado de natureza onde os homens só obedecem à lei natural e são entre si independentes e iguais. O antinaturalismo e o voluntarismo são as principais características das doutrinas do Contrato Social, segundo seus pressupostos é preciso primeiro conhecer o indivíduo para depois conhecer a sociedade que melhor lhe cabe. Seus princípios são eminentemente individualistas, pois se propõem de encontrar no indivíduo, na natureza humana, o fundamento do Estado e da autoridade política. Esta teoria possui ainda dois aspectos, o direito de mudar o homem que exerce o poder e o direito de mudar o sistema, segundo o objetivo político dos que teorizaram a respeito. Segundo esta teoria o poder é uma delegação dos poderes do povo ao governante, que deve exercê- lo dentro de certas condições às quais está ele obrigado, sob pena de perder sua legitimidade. A obrigação de respeitar o pacto tem seu fundamento na lei natural, sem ela o Contrato Social não tem outra garantia que não a força. Mas o que significa esta lei natural tão citada? A idéia de que existe independentemente das leis civis, anterior a qualquer convenção, uma ordem moral universal, uma regra de justiça imutável – a lei natural – onde os homens se conformam com seus iguais. Esta lei é obrigatória e superior às leis positivas, que são condicionais. Neste sentido abordam-se os direitos naturais dos indivíduos, como o direito à vida, à igualdade, à liberdade, donde o Estado não pode dispor de mais poderes que os necessários para seus fins, e as leis naturais constituem um limite à soberania do Estado. Tais leis e direitos naturais originam-se de um hipotético estado de natureza onde os homens, indivíduos, seriam independentes e iguais, não estando sob alguma autoridade e obedecendo somente às leis naturais, o que engendraria um inevitável estado de guerra, do qual os homens resolvem sair através de um pacto social. O Contrato Social possui então várias funções ideológicas. Para alguns se tratava de fundar a monarquia absoluta sobre o direito natural, como foi o caso de Hobbes, para outros estabelecer que só a democracia é conforme a natureza, como Rousseau e, para outros, garantir pelas leis a defesa da propriedade e da exploração capitalista, como Locke. Através de uma descrição livre de uma situação original, apareceria todo um sistema de organização social. Assim se dá o surgimento do Estado de Direito, ou seja, o governo pelas leis. Até o surgimento da teoria do Contrato Social o homem uma vez nascido vassalo, assim o permaneceria para sempre. Nesta sociedade estamentária era latente a divisão entre ricos e pobres. Com o surgimento do Contrato Social os indivíduos passam a ter iguais direitos, ainda que perante a lei. Esta foi uma conquista da burguesia. O traço mais comum da visão de mundo burguesa era o de rebaterem a concepção básica da visão de mundo feudal, o direito pelo nascimento, contrapondo a este o estado natural, em que todos os homens nascem livres, iguais e com direitos. 8. Positivismo Jurídico Em primeiro lugar, em uma acepção científica e filosófica oriunda do pensamento comteano, o termo tem suas raízes na escola empirista e foi cunhado a partir e contra os ideais iluministas tais como liberdade, igualdade, que promoveram a tomada do poder estatal pela burguesia na Revolução Francesa. Após suas conquistas, não interessava mais à burguesia promover a luta pela preservação 33 desses valores e sim, conter as insurreições das massas e louvar o desenvolvimento científico e tecnológico que então se obteve. É na contestação ao racionalismo abstrato dos adeptos do liberalismo que surgem os defensores do positivismo, seduzidos pelo progresso contínuo, propondo que os fatos só são conhecidos pela experiência. Para estes somos simples espectadores dos fenômenos exteriores, independentes de nós, e não podemos modificar a ação destes sobre nós, senão submetendo-nos às leis que os regem. Esta visão está em oposição direta às concepções do direito natural e do pacto social. Visa o estabelecimento da autoridade e da ordem pública contra os abusos do individualismo da Escola Liberal. Parte da perspectiva que as leis naturais e sociais são invariáveis. Positivo, então, significa o real frente ao quimérico, o útil frente ao inútil, a segurança frente à insegurança, o preciso frente ao vago, o relativo frente ao absoluto. O Positivismo científico volta-se para o mundo real, eliminando as eternas investigações sobre o incognoscível. Para os positivistas é possível conhecer só os fenômenos e as suas relações, não a sua essência, as suas causas íntimas. Estas permanecem impenetráveis, desconhecidas, pois é impossível alcançar-se noções absolutas, por isso o positivista procura as leis das relações constantes entre os fenômenos. Em suma, o positivismo foi um movimento que surgiu a partir das conquistas da burguesia, com as Revoluções Francesa e Industrial, para enaltecer os ideais capitalistas, o processo de industrialização e os avanços científicos. Surge para consolidar os interesses da nova classe agora dominante, a burguesia. Enquanto movimento social surge para contrapor-se ao racionalismo iluminista e seus ideais igualitários. O que havia sido útil somente em um primeiro momento, para a conquista de sua hegemonia. Agora no poder, tudo o que a burguesia quer, é manter a ordem e propiciar o progresso. Reflexo do positivismo científico do século XIX, o positivismo jurídico é movimento de pensamento antagônico a quaisquer teorias naturalistas, metafísicas, sociológicas, históricas, antropológicas do Direito. Segundo sua metodologia, o que não pode ser provado racionalmente não pode ser conhecido, seu critério de verdade é a observação e a experimentação. Retira, assim, os fundamentos e as finalidades da norma jurídica, restringindo-a ao posto (ao dado, ao instituído). No âmbito jurídico, falar em Direito Positivo é o mesmo que falar em Direito escrito, aprovado, legalizado e sancionado pelo poder dirigente (mesmo que pressupondo o interesse geral) com vias a fazer prevalecer à ordem e a Justiça (ainda que para poucos) dentro de uma unidade política e social particular. Tal acepção é amplamente defendida por Hans Kelsen, que, na Teoria Pura do Direito, procurou delinear uma Ciência do Direito desprovida de qualquer influência que lhe fosse externa, acreditando conferir-lhe maior cientificidade, expurgando de seu interior justiça, sociologia, origens históricas, ordens sociais determinadas etc. O positivismo jurídico é baseado no princípio da prevalência de uma determinada fonte do direito, no caso a lei, sobre todas as demais fontes. Tal concepção considera o Estado como única fontedo direito e determina a lei como a única expressão do poder normativo do Estado, dentro de uma perspectiva legalista-estatal. A atitude do Jurista, segundo Kelsen, deve consistir num partir da norma jurídica dada, para chegar à própria norma jurídica dada, postura contrária à que procura questionar os valores que antecederam à elaboração da norma jurídica ou após esta elaboração. Para Kelsen a ciência jurídica não tem espaço para os juízos de justiça e axiológicos em geral, o que é tarefa da Ética, mas somente para os juízos de Direito. O que a Teoria Pura procura identificar como relevante para a pesquisa jurídica é o estudo da validade, a vigência e a eficácia da norma jurídica. O Direito positivo tem por base o ordenamento jurídico, e determina o direito como um fato e não como um valor. Ele nasce de um esforço onde se procura transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência com as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. O Positivismo jurídico exclui da análise do Direito todo juízo de valor porque suscitaria dúvidas e divergências sobre a validade, justiça e legitimidade do ordenamento jurídico, enquanto juízos de fato têm apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro uma 34 constatação. O positivista, segundo Norberto Bobbio, vê o Direito tal como ele é, e não como deveria ser. O positivismo jurídico é a redução do Direito à ordem estabelecida, já vertido em normas (da classe dominante), não reconhecendo como elemento jurídico outras normas (de classe ou grupos dominados). Trata-se de uma certa coerção social, na linguagem de Dürkheim, para ajustar os indivíduos à ordem estabelecida. Segundo Kelsen o Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordenação coercitiva que é o Direito. Para o positivismo jurídico o importante é a aplicação da lei formal, não levando em conta os motivos pessoais do indivíduo. Para Kelsen, o Direito é a técnica social específica de uma ordenação específica e, nesse sentido, o sistema do positivismo jurídico exclui a tentativa de deduzir da natureza ou da razão normas substanciais, que, estando para além do Direito positivo, possam servir-lhe de modelo. Críticas que suscita * Essa atitude contrapõe o positivismo jurídico ao jusnaturalismo, que sustenta que deve fazer parte do estudo do direito real também a sua valoração com base no direito ideal, tal como este deveria ser. * O Direito positivo geralmente é apontado como o Direito Estatal, que, em última instância, é o Direito da e para a classe economicamente dominante (os ricos, que na visão marxista estão no comando não só do Estado, mas também das idéias que veiculam e justificam sua dominação, as ideologias)4, Direito que serviria apenas para legitimar os interesses e a manutenção do statu quo. Diferenças entre Direito natural e positivo A observação da disparidade e do contraste dos Direitos vigentes nas sociedades humanas e do caráter imperfeito de tais Direitos conduziu à noção de um Direito natural como fundamento ou princípio de todo Direito positivo possível, isto é, como condição de sua validade. O Direito natural é a norma constante e invariável que garante infalivelmente a realização da melhor ordenação da sociedade humana: o Direito positivo ajusta-se mais ou menos, mas nunca completamente, ao Direito natural porque contém elementos variáveis e acidentais que não são redutíveis a este. O Direito natural é a perfeita racionalidade da norma, isto é, a perfeita adequação da norma ao seu fim de garantir a possibilidade da vida associada. Os Direitos positivos são realizações imperfeitas ou aproximativas dessa normatividade perfeita. 9. Ideologias Jurídicas As ideologias jurídicas dizem respeito a toda norma jurídica que não tem correspondência na realidade. Situam-se também entre o direito natural e o positivo, correspondendo às concepções jusnaturalista e positivista do direito. De um lado o direito como ordem estabelecida (positivismo), de outro como ordem natural (jusnaturalismo). As ideologias jurídicas refletem os posicionamentos da classe dominante no poder. Quando a burguesia chegou ao poder com a bandeira ideológica do “direito natural”, como fundamento acima das leis, e tendo conquistado o que pretendia, logo deixando de ser “revolucionário” e trocou de doutrina, passando a defender o positivismo jurídico. Na primeira fase contestou o poder aristocrático-feudal, para dominar o Estado, invocando Direitos supralegais. Na Segunda fase fez a digestão da vitória, pois já não precisava mais desafiar um poder de que se apossara (não admitindo a existência de direitos senão em suas leis). O positivismo jurídico é ideológico quando exercido através de um poder que se dispensa de provar sua própria legitimidade. Ele se presume legítimo a partir do fato de que está em exercício e chegou à posição desempenhada, segundo os processos que ele próprio estabelece, altera e controla 4 Ver breve síntese do pensamento marxista, bem como o conceito de ideologia ao final desta apostila. 35 a seu bel-prazer. Um círculo de legalidade não é prova de coisa alguma. Por outro lado, a idéia de um direito natural é também ideológica, pois se assenta em pressuposições metafísicas, separadas da prática social. O Direito de resistência à tirania, o direito à guerra de libertação nacional, a preocupação também com a legitimidade da norma e do poder, não somente com sua legalidade, são válidas. O mal é que, no jusnaturalismo, as questões vêem tratadas no plano ideal, da abstração, no sentido de que não conseguem ligar a elaboração teórica aos grupos, classes, dominações e impulsos libertários, ficando presa à noção de princípios imortais (da natureza, de Deus, ou da razão humana), e quando eles descem à particularização tendem a confundir-se com o direito positivo do Estado ou dos grupos e classes prevalecentes. Somente uma teoria dialética do direito evita a queda numa das pontas da antítese entre direito positivo e direito natural. O que implica em conservar os aspectos válidos de ambas as posições, rejeitando os demais e re-enquadrando o primeiro numa visão superior. Assim, veremos que a positividade do direito não conduz totalmente ao positivismo e que o direito justo integra a dialética jurídica sem voar para nuvens metafísicas, isto é, sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histórico. 10. O Direito Alternativo “Os juristas, duma forma geral, estão atrasados de um século, na teoria e prática da interpretação e ainda pensam que um texto a interpretar é um documento unívoco, dentro de um sistema autônomo (o ordenamento) jurídico dito pleno e hermético e que só cabe determinar-lhe o sentido exato, seja pelo desentranhamento dos conceitos, seja pela busca da finalidade, isto é, acertando o que diz ou para que diz a norma abordada”. Roberto Lyra Filho “Vivemos uma conjuntura de lutas sociais e de crítica teórica. O que ela nos sugere é uma contribuição voltada para a construção de um saber crítico que esclareça a nossa práxis, enquanto comprometida com a análise da estrutura social, tendo por objeto a sua transformação racional. A etapa corrente pede contexto alternativo”. José Geraldo de Sousa Júnior O Direito Alternativo é um dos mais polêmicos temas no âmbito das reflexões jurídicas atuais. Trata-se de uma forma atualizada de tentar de fato vincular a ética à prática do Direito. Está também presente como preocupação na análise do tema o interesse em trazer à reflexão a possibilidade de enfrentar o direito numa perspectiva diferente daquela normalmente aprendida nasfaculdades de direito. Sobre a formação do advogado, diz o eminente sociólogo do direito José Eduardo de Faria: Ao tentar forjar uma mentalidade estritamente legalista em flagrante contradição com uma realidade não-legalista, os cursos jurídicos condenam os estudantes a uma (in)formação burocrática e subserviente, incapaz de perceber e captar as razões dos conflitos e das tensões sociais (Direito e Justiça: a função social do judiciário. São Paulo, Ática, 1994, p. 104). Para superar esta visão estreita do direito, é necessário desenvolver uma consciência crítica que vislumbre e discuta todas as possibilidades de abordagem do mesmo. O Direito alternativo tem caráter dialético e o debate lhe é indispensável. Por volta da década de 70 constituiu-se, na Itália, um movimento teórico-prático, formado por professores universitários, advogados e principalmente magistrados progressistas. No Brasil, ganhou vulto a partir do início da década de 90, com a participação inicial de destaque do assim chamado Grupo de Magistrados do Rio Grande do Sul, espalhando-se rapidamente por outros 36 lugares e ganhando a simpatia de grande número de profissionais. O objetivo dessa importante tendência político-jurídico foi propor, diante da dominação e da conservação do Direito burguês capitalista, a utilização do ordenamento jurídico vigente e de suas instituições na direção de uma prática judicial emancipadora, voltada aos setores sociais ou às classes menos favorecidas. Na realidade, essa concepção não chega a ser um paradigma alternativo ou substitutivo da ciência jurídica positivista, mas tão-somente a aplicação diferente da dogmática predominante, explorando as contradições e as crises do próprio sistema e buscando formas mais democráticas superadoras da ordem burguesa. Trata-se de uma proposta, tanto de caráter prático, quanto teórico, de utilizar e consolidar o Direito e os instrumentos jurídicos em uma direção emancipadora, alternativa à cultura e prática dominante, a fim de, sem romper a legalidade estabelecida, privilegiar no plano jurídico os interesses dos que se encontram submetidos pelas relações sociais de dominação. Cabe ressaltar que pela proposta do direito alternativo, a legalidade não é refutada, a preocupação principal é com a legitimidade conquistada pelo comprometimento com o bem estar social. Apoiando-se em pressupostos do pensamento neomarxista contemporâneo, que explora as fissuras, as antinomias e as contradições da ordem jurídica burguesa, os adeptos do modelo alternativo do Direito consideraram a relevância de dois aspectos: a) A estreita relação entre a função política do Direito enquanto instrumento de dominação e as determinações socioeconômicas do modo de produção capitalista; b) O poder Judiciário, que assegura o statu quo estabelecido, agindo não só como aparelho ideológico do Estado, mas também como instrumento de repressão e controle institucionalizado. A tradição liberal-individualista tem demonstrado que o poder judicial não é uma instância neutra e independente na esfera da máquina estatal, a serviço das liberdades e acima dos antagonismos de classe. Nesse sentido é preciso desmascarar certos postulados ideológicos da cultura jurídica burguesa, como a apoliticidade, a imparcialidade e a independência dos juízes. A contradição está no fato de que o Poder Judiciário, não obstante sua aparência de neutralidade, nada mais é do que uma instituição de natureza política, reflexo da própria dinâmica de poder do Estado capitalista. O Direito Alternativo propõe definir a inserção da magistratura e do poder judicial na ampliação dos possíveis espaços democráticos, o alargamento do processo hermenêutico nas instâncias menores, ocupadas por juízes mais jovens e mais sensíveis às reivindicações dos setores populares. Objetivo do Direito Alternativo Por vezes o Direito pode ser injusto, mesmo que sua existência se deva à necessidade de pôr em prática e proteger o interesse da coletividade. O ser humano é um ser falho, de desejos ilimitados e os próprios legisladores não são “perfeitos”, podem se equivocar, deixar o interesse coletivo de lado e visar o seu próprio propósito. Muitas vezes a expressão do Direito não condiz com a realidade social, não atende mais ao anseio, à necessidade coletiva. É comum verificarmos no Direito a desatualização de algumas leis. Quando isso ocorre, dizemos que ela é inadequada para conferir o equilíbrio de determinada relação jurídica, tendo, como consequência, problemas na sua eficácia. Mediante este fato de discordância, desequilíbrio, faz-se necessário que a lei ceda lugar, espaço ao Direito. Neste momento, o juiz procurará uma solução “alternativa” para o caso concreto. O Direito Alternativo surge justamente com o propósito de levar a justiça onde esta se faz ausente. Ele não irá excluir o preceito legal que se pretende justo, mas irá intervir, através do magistrado, quando houver descompasso entre o Direito e a Justiça. O Juiz de Direito vai ajustar, através do Direito Alternativo, a lei aos princípios axiológicos de sua existência, isto é, aos valores. Pode-se afirmar, então, que o Direito Alternativo busca uma sociedade mais justa, equilibrada e igualitária, que trate o igual como igual e o desigual como desigual. O Juiz é o grande crítico da lei, ele tem compromisso com o Direito (Justiça), não pode submeter-se tão somente ao 37 positivismo ortodoxo. O magistrado tem por ofício o direito de recusar a aplicação de uma norma injusta. Teses centrais do Direito Alternativo O Direito Alternativo nutre uma séria desconfiança em relação ao positivismo. Na verdade, acusa-o de ser o culpado pela lastimável realidade de nossas instituições jurídicas. Os defensores do Direito Alternativo são “alternativos” porque reagem criticamente diante do statu quo do nosso Direito e propõem caminhos alternativos àqueles ligados à tradição positivista. A exposição das principais teses do Direito Alternativo será feita em contraposição àquelas defendidas pela tradição positivista. O quadro das antíteses será seguido dos argumentos em defesa de cada um dos lados. TRADIÇÃO POSITIVISTA DIREITO ALTERNATIVO 1. A lei é fruto da racionalidade. Sendo racional é necessariamente justa. 1. A lei é um instrumento perigoso, pois pode refletir os interesses da classe politicamente dominante. Por isso, nem sempre é justa. 2. A não aplicação da lei, mesmo sendo injusta, gera instabilidade. O direito positivo é o único fator de segurança. 2. A aplicação da lei injusta gera instabilidade social. 3. A lei jamais deve ser desobedecida. 3. Para a efetivação da justiça são cabíveis decisões contrárias à lei. O Direito deve estar sempre acima da Lei. 4. Nenhuma decisão no âmbito jurídico pode refletir preferências pessoais de qualquer espécie. A decisão deve ser imparcial e técnica. O profissional do direito, particularmente o magistrado, deve ser “escravo da lei”. Há uma interpretação mecanicista das normas efetuadas através de um método hermenêutico formal / lógico / técnico / dedutivo. 4. O direito não é totalmente neutro, tanto no momento de sua produção quanto no momento de sua aplicação. O direito é fruto da atividade humana e ninguém é totalmente neutro. O intérprete deve buscar o significado do fenômeno jurídico e não simplesmente “descobri-lo”, já que o Direito, antes mesmo de ser jurídico, é um fato social. Argumentos em defesa da Tradição Positivista Tese 1 – Herdeira do Iluminismo francês, a tradição positivista considera que o código de leis vigente representa a expressão máxima da racionalidade de determinada sociedade.O grau de avanço desta está refletido nas leis que possui. Sendo a expressão da racionalidade conquistada pela sociedade em que vigora, a lei é, ipso facto, o indicador daquilo que aquela sociedade considera justo. Cada sociedade tem as leis que merece. Tese 2 – Para subsistir, qualquer sociedade pressupõe uma normatização jurídica mínima. Caso as normas sejam desobedecidas, principalmente por parte daqueles que vigiam pela sua aplicação, fica aberta a possibilidade para o caos social. Tese 3 – Sendo a expressão máxima da racionalidade e a garantia de estabilidade social, a lei deve ser cumprida rigorosamente. Tal cumprimento não decorre de qualquer tipo de sentimentalismo, mas de um comando fundado na racionalidade. Assim, em qualquer circunstância, mesmo sendo injusta, a lei deve ser o indicador de atuação do profissional do direito, para que se evite a instabilidade social. 38 Tese 4 – A total isenção deve estar sempre presente no âmbito do direito. Uma sólida formação jurídica, acompanhada de uma profunda consciência do papel que desempenha, habilita a uma neutralidade máxima. Todo achismo deve ser eliminado em prol da racionalidade jurídica. Em suma, a lei é racional e neutra e está acima de tudo. Mesmo sendo injusta, deve ser rigorosamente observada. A contestação não tem lugar. Quem atua no âmbito do direito deve ater- se a ela da forma como está redigida, se quiser contestá-la que procure outros caminhos: a lei não deve ser contestada. Por causa desta veneração à lei muitos vinculam o positivismo ao legalismo. Argumentos em defesa do Direito Alternativo Tese 1 – A lei não é a expressão da máxima racionalidade conquistada por uma determinada sociedade. Ela é simplesmente a expressão dos interesses daqueles que ocupam os postos de comando da sociedade: é a expressão do poder. Este fato não é novidade. Na verdade, desde tempos remotos, houve quem apontasse os desvios das leis. Platão (428-348 a.C.), no Primeiro Livro da República, dedicado ao tema da justiça, criticava os códigos de leis gregos porque estes eram construídos em defesa dos interesses dos mais fortes. Críticas deste tipo podem ser encontradas em toda a história do pensamento filosófico e jurídico ocidental. Tese 2 – O Estado existe em função do povo e não em função dos interesses dos mais poderosos. Ora, se o Estado, através do Poder Judiciário, acoberta ou incentiva a prática da injustiça, concorre para a insatisfação popular e provoca a instabilidade. Por outro lado, se a estabilidade do Estado significa a estabilidade da sociedade, que respeito merecem ditaduras como a do Irã, Afeganistão e outras mais? Tese 3 – Qualquer estudioso do Direito sabe que o comando da lei preceitua genericamente. Não prevê a especificidade de situações particulares. Por isso, por mais elaborada que seja, a lei pode levar à injustiça. Ao Poder Judiciário não cabe simplesmente o papel de cego aplicador da lei. Caso assim o fosse, a sua existência não passaria de mera formalidade. Considerando que a lei é elaborada em função dos interesses do mais poderosos e que o comando da lei não prevê situações muito específicas, é perfeitamente aceitável o fato de um juiz tomar decisão contrária à lei vigente ou aplicar penas alternativas às previstas nos códigos para, assim, tornar possível a efetivação da justiça. Tese 4 – A neutralidade não passa de uma quimera. Desde as origens da filosofia e da ciência ela tem sido procurada, mas jamais foi efetivamente conquistada. A partir de Hilton Japiassu no Mito da neutralidade científica (RJ: Imago, 1975), se as ciências consideradas mais exatas, como a física ou a biologia, em seu conjunto, não atingem a total neutralidade, esta é muito mais difícil de ser atingida no âmbito das ciências que tratam das relações humanas. No campo do direito, se considerarmos um processo, podemos notar que nele estão envolvidos vários tipos de subjetivismos: das partes, das testemunhas, dos peritos, dos advogados e, necessariamente também do julgador. Igualmente não podemos esquecer do subjetivismo prévio do legislador. A tese segundo a qual o julgador é alguém que realmente se despe de todos os elementos pessoais é facciosa porque o julgador é um ser humano e, enquanto tal, está fadado a subjetivismos. Também a tese de alguns positivistas de que, em sendo o juiz um ser humano falível, deve aplicar a lei para evitar a sua falibilidade não se justifica, pois, também a lei que aplica foi produzida por um ser humano falível: o legislador. Entre a possibilidade de erro do legislador e aquela do juiz, é melhor correr o risco do erro do juiz, porque este acompanha de perto o caso que julga. Concluindo O Direito Alternativo desperta grande polêmica enquanto provoca um estimulante debate sobre aspectos teóricos e pragmáticos incorporados ao establishment jurídico. Teses consagradas e tidas como indiscutíveis, tanto por leigos como por profissionais, passaram a ser questionadas. E nada mais salutar que a livre circulação de idéias no seio de uma sociedade que se pretende 39 democrática. Certamente muitas das posições do Direito Alternativo, tanto as acima citadas como muitas outras mais, e que são bastante arrojadas, carece de maior amadurecimento. O marasmo em que se imergiu a nossa Justiça está clamando por algo que lhe desse um novo alento. Seguindo as regras da racionalidade sadia, tão aclamada pelo positivismo, as teses do Direito Alternativo não devem ser simplesmente anatemizadas ou deixadas de lado, mas entre os discordantes, devem ser elaboradas argumentações merecedoras de consideração. Só assim surgirão sínteses concretizadoras da verdadeira ratio iuris: o estabelecimento do valor Justiça. Quanto à essência do Direito parece não haver discordância entre positivistas e alternativos. ________________________________________________________ Leitura Complementar IV Partamos agora para uma reflexão preliminar de sentenças de juízes alternativos compromissados com o interesse dos menos favorecidos. A importância da reflexão está em percebermos que é possível ao Direito ser um instrumento de transformação social democrático e emancipatório. Os agentes são operadores jurídicos que, despertando a consciência crítica, podem nos mostrar a práxis de um saber teórico comprometido com a construção de um novo modelo social. A jurisprudência alternativa então, como parte da cultura jurídica, contribui neste processo de mudança, apontando para uma homogeneização de ações sociais transformadoras. Para tanto foram escolhidas duas sentenças modelares, em que podemos perceber a aplicação do direito alternativo. A ciência jurídica adquire maior força e sentido quando se torna um conhecimento popularizado nas práticas da sociedade. O que se busca neste movimento de direito alternativo não é mais do que a dignidade de vida para todas as pessoas, a defesa popular contra a dominação econômico-burguesa imposta. Dois casos de sentenças modelares 1) Primeiro caso: Reintegração de Posse “Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados. Não tinham sexo, nem idade, nem condição humana. Eram os retirantes. Nada mais”. O Departamento Nacional de Estradas de Rodagem pediu a reintegração liminar na posse de uma faixa de domínio ao lado da Rodovia BR 116 porque várias famílias “indigentes” a ocuparam, construindo barracos de plástico preto como moradia. Irônica foi à alegação do autor da demanda: O Estado desejava desalojar os invasores de suas terras argumentando a proteção às suas próprias vidas, que correriam o risco de atropelamento. Ou seja,pondera o magistrado, “quer livrá-los da morte sob as rodas de uma carreta e arrojá-los para a morte sob o relento e as forças da natureza. Não seria pelo menos mais digno – e menos falaz – deixar que eles mesmos escolhessem a maneira de morrer, já que não lhes foi dado optar pela forma de vida?”. Com muita propriedade, o juiz indeferiu o pedido de reintegração de posse contido na inicial, e extinguiu o processo, contextualizando o problema a nível social, político e econômico. Tendo visão crítica da questão, esclareceu que não desalojará as pessoas: “ora, é muita inocência do DNER se pensa que eu vou desalojar este pessoal, com a ajuda da polícia, de seus moquiços, em nome de uma mal arrevesada segurança nas vias públicas”. Segundo ele, os ocupantes, chamados de “invasores”, “são hoje os excluídos e ontem foram os descamisados, resultados do perverso modelo econômico adotado no país”. Para o magistrado, as pessoas envolvidas na “invasão” são personagens que existem de fato: “os réus são ‘indigentes’, reconhece a autarquia, que pede a reintegração liminar na posse do imóvel. E aqui estou eu, com o destino de centenas de miseráveis nas mãos. São os excluídos, de que nos fala a Campanha da Fraternidade 40 deste ano”. Continua logo em seguida: “isto não é ficção. É um processo. Não estou lendo Graciliano Ramos. Os personagens existem de fato. E incomodam muita gente, embora deles nem se saiba direito o nome. É Valdico, José Maria, Gilmar, (...). Só isso para identificá-los. Mais nada. Profissão, estado civil (CPC, art. 282, II) para quê, se indigentes já é qualificação bastante?”. Em suas palavras, no presente processo, não estamos diante de pessoas que tivessem recebido do Poder Público “razoáveis oportunidades de trabalho e de sobrevivência digna”, o que explica que a lei reguladora das ações possessórias, mandando expulsar invasores (arts. 920 e seguintes do CPC), “tem em mira o homem comum (...) que no caso, tendo outras opções de moradia, prefere assenhorear-se do que não é dele, por esperteza, conveniência ou qualquer outro motivo que mereça censura da lei e, sobretudo, repugne a consciência e o sentido do justo que os seres da mesma espécie possuem”. E este não é o caso dos excluídos tratados neste processo. Também fundamenta a decisão lembrando que o compromisso do Estado para com o cidadão baseia-se em princípios, que têm origem na Constituição da República e são basilares da eficácia das leis menores. Por isso, argumenta o magistrado, “contra este exército de excluídos, o Estado (aqui através do DNER) não pode exigir a rigorosa aplicação da lei (no caso, reintegração de posse), enquanto ele próprio não se incumbir da tarefa que lhe reservou a Lei Maior”. Quer dizer, “enquanto não construir – ou pelo menos esboçar – ‘uma sociedade livre, justa e solidária’ (CF, art. 3o, I), erradicando ‘a pobreza e a marginalização’ (no. III), promovendo a ‘dignidade da pessoa humana’ (art. 1o, III), assegurando ‘a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social’ (art. 170), emprestando à propriedade sua ‘função social’ (art. 5o, XXIII, e 170, III), dando à família, base da sociedade, ‘especial proteção’ (art. 226), e colocando a criança e o adolescente ‘a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e opressão’ (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os marginalizados à condição de cidadãos comuns (...), aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para deles exigir –diretamente ou pelo braço da Justiça – o reto cumprimento da lei”. Cita ainda Rudolf Von Ihering, no sentido de que “num dos braços a Justiça empunha a espada, é verdade, o que serviu de estímulo a que o Estado viesse hoje pedir a reintegração. Só que, no outro, ela sustenta a balança, em que pesa o Direito. E as duas (...) hão de trabalhar em harmonia”. Assim, o magistrado atenta também para o disposto no artigo 5o da Lei de Introdução ao Código Civil e para o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que proclama que “todo ser humano tem direito a um nível de vida adequado, que lhe assegure, assim como à sua família, a saúde e o bem-estar e, em especial, a alimentação, o vestuário e a moradia”, para, com fundamento nos artigos 267, I e VI, 295, I e parágrafo único, III do Código de Processo Civil, indeferir a inicial e extinguir o processo. Seria “deslealdade” e “pretensão moral e juridicamente impossível” o deferimento do pedido de reintegração de posse neste caso. Quanto à problemática de que o Estado pretenderia proteger a vida dos invasores sujeitos a atropelamento na área ocupada, o magistrado sugeriu, concluindo a sentença, que o DNER sinalizasse convenientemente a rodovia nas imediações, para que não houvesse risco de acidentes na área. Noutra decisão, reconhecidamente alternativa, cujo assunto era também o de reintegração de posse, um dos magistrados argumenta que “ao Juiz não é dado decidir apenas com o sentimento, desde que sua função essencial é fazer cumprir as normas legais vigentes, que se presumem justas e adequadas à solução dos conflitos. Mas também não é ele um frio aplicador do texto, cabendo-lhe interpretá-lo, não raro, à luz da justiça social”, pois muitas normas estão distantes da realidade e “empoeiradas em códigos”, e então “ocorre o conflito do direito escrito com a justiça ideal, obrigando o julgador a fazer uma consciente opção”. Assim explica o outro juiz, nesta mesma decisão: “Ora, colocado na balança da justiça, de um lado os interesses de três casais, para os quais a área em litígio representa muito, mas não é fundamental, e de outro, os de noventa ou mais famílias, para as quais essa mesma área é condição de vida digna, parece não ser difícil determinar para que lado pende a balança”. Para ele, o Judiciário deve colaborar com o Legislativo e o Executivo na solução dos problemas sociais, especialmente porque, caso a caso, são resolvidos em concreto. Então, o Judiciário não pode ser injusto, “aguardando que sobrevenha lei justa, máxime quando o legislador se omite, temeroso das consequências que possam advir da emissão de norma geral”. Encerra seu voto da seguinte forma: “afirmou-se, no início, não se encontrar na lei solução expressa para o caso dos 41 autos, o que não é verdade, porque a Constituição, que é a Lei Maior e prepondera sobre qualquer outra, consagra a função social da propriedade”. Desta forma, podemos perceber em ambas sentenças a ética e o compromisso com a justiça social. 2) Segundo Caso: Constrangimento Ilegal – Violência à Integridade Física e Moral No caso, o diretor-presidente da fábrica da De Millus, valendo-se da sua posição, sujeitava funcionárias à revista pessoal vexatória e humilhante, com despimento de roupas íntimas (sutiãs e calcinhas), para revista sob ameaça de despedimento por justa causa. O ato configurou-se como constrangedor porque ficaram evidentes todos os requisitos que o configuram, havendo violação à dignidade humana. Assim, o Ministério Público pediu a condenação em alegações finais, tendo entendido comprovados o crime e a autoria. A defesa, por sua vez, pedindo a absolvição, sustentou inexistente o crime porque as operárias compareciam à revista voluntariamente e a prática da revista era realizada em defesa do patrimônio empresarial. O magistrado, entendendo diferente, explanou que “em nome da defesa do patrimônio do lucro não se pode, porém, violar a dignidade humana”, e condenou o réu à penalidade própria. Na sentença dispõe que não há igualdade das partes nesta relação contratual, ou seja, as mulheres-operárias da empresa não se encontram em igualdade de condições na elaboração do contrato laboral. As primeiras são proprietárias apenas do seu corpo e da sua força de trabalho, a Segunda, é proprietária dos meiosde produção, e compra daquele trabalho. Quer dizer, para o magistrado, “o papel da teoria contratual é exatamente dissimular e ocultar essa desigualdade, fingindo que todos são iguais perante a lei, mascarando a existência de uma vida social diferenciada e anterior ao contrato, com suas dependências e limitações”. E bastaria, no seu entendimento, a leitura das regras da De Millus para visualizar-se a radical desigualdade entre as partes e o grave constrangimento ilegal a que são submetidas às operárias. O magistrado explanou que as mulheres não opunham resistência à coação em virtude da ameaça de demissão: “iam para a revista coagidas pela possibilidade real e certa da demissão, intimidadas e humilhadas. E não existe maior exemplo de grave ameaça do que a ameaça de demissão, num país sem emprego, de povo cada vez mais empobrecido, num país que nega aos seus cidadãos o exercício da cidadania”. Não se pode confundir o exercício do direito com o evidente abuso fruto das normas regulamentares da empresa coatora. Neste caso, as normas são disciplinares que visam o controle e o domínio absolutos sobre a mulher operária, invadindo seu próprio corpo. Neste raciocínio, o magistrado fundamenta sua decisão lembrando Foucault, que analisa “como as normas disciplinares – a partir das instituições fechadas e de focos de controle disseminados na sociedade – se tornaram, a partir do século XVII, fórmulas gerais de dominação, através de uma política de coerção individual e coletiva sobre os corpos, os gestos, os comportamentos, modelando ‘corpos submissos e exercitados, corpos dóceis’. Corpos domesticados e adestrados”. Assim, para este objetivo, são desenvolvidos “minuciosos regulamentos da escola, do quartel, do hospital, da oficina, do convento”. E “na Segunda metade do século XVIII, as indústrias passam a ocupar grandes espaços, e ‘a fábrica parece (...) uma cidade fechada’. Fica então evidente, pondera o magistrado, que “Todos esses sistemas disciplinares trazem, (...) um pequeno mecanismo penal, representado pela sanção normalizadora. Na De Millus, essa sanção é a demissão, imposta a quem ouse discutir a ordem do patrão”. Na mesma sentença, o magistrado explica que na fábrica, “fica bem visível a existência dessa ‘sujeição mortífera sobre o corpo’, com a prática da humilhante revista íntima”. Cita Alessandro Baratta, que menciona o “nexo histórico entre o cárcere e a fábrica”, que são modelos de disciplina e controle inerentes ao modo de produção capitalista. Faz belíssima defesa de seu posicionamento: “desta forma, a organização opressiva da relação de poder existente na fábrica reduz a capacidade de resistência do empregado a uma ordem constrangedora. Principalmente numa fábrica onde trabalham mulheres, já historicamente submetidas e oprimidas”. E esse controle disciplinar é ainda mais grave nos países de Terceiro Mundo, em que “não basta a mais-valia, roubo legitimado da força de trabalho. É preciso roubar, também, a dignidade e o sentimento, espoliar da pessoa a sua própria humanidade. Em nome dessa ordem militarizada, que fragmente o ser humano, em defesa do lucro e dos valores produzidos por esse modelo de vida, tudo se permite”. A revista 42 íntima na empresa foi reestruturada, no final da década de sessenta, como informou o empregador, que entende ser “constrangedora mas necessária para desencorajar as funcionárias à prática do roubo”. O gerente, por sua vez, justifica a prática porque “na empresa há mais de três mil funcionárias e para o seu funcionamento é preciso manter a disciplina”, e se houvesse recusa para a revista, a funcionária seria despedida. Estes são, para o juiz, “efeitos da ditadura militar na desorganização humana da sociedade brasileira”, sendo muito mais graves do que se imagina porque os métodos da organização militarizada passaram a constituir o modelo das técnicas disciplinares. E cita Foucault novamente: “o crescimento de uma economia capitalista fez apelo à modalidade específica do poder disciplinar, (...) cujos processos de submissão das forças e dos corpos, cuja anatomia política em uma palavra podem ser postos em funcionamento através de regimes políticos, de aparelhos ou de instituições muito diversas”. Sendo assim, as operárias da fábrica não puderam suportar mais que o seu sentimento de dignidade fosse tratado como mercadoria, “e disseram não ao medo e à humilhação – ao mesmo tempo dizendo sim à sua cidadania, dizendo sim à liberdade, dizendo sim à vida”. Na sentença o juiz conclui que “o Direito Penal será mais democrático e eficaz quanto mais puder garantir os direitos fundamentais do cidadão”. Ou seja, o magistrado coaduna com a justiça e a ética: “um Direito Penal que respeite a condição humana e sirva ao homem, e não ao poder que oprime, será um Direito Penal que reprove a conduta do acusado, reconhecendo o constrangimento ilegal, e assegure às mulheres-operárias da fábrica De Millus o direito de dizer não à violação de sua intimidade física e moral”. E, porque o acusado tem situação econômica privilegiada e “o crime produz consequências danosas à liberdade individual e coletiva, atingindo um número imprevisível de operárias, de maneira permanente e contínua”, o magistrado aplicou a pena de multa, fixada bem acima do mínimo, tendo julgado procedente a ação penal com a condenação do réu. A sentença em exposição pôde evidenciar a conjugação da paixão do magistrado pela causa das operárias, com a sua responsabilidade ética em “prever” que as consequências de tal constrangimento são desastrosas não somente para aquelas mulheres como também para toda a coletividade. Muito bem fundamentada, trouxe fortes elementos jurídicos e argumentos filosóficos, deixando claro também que o Direito deve ser interdisciplinar na resolução de seus conflitos. SUGESTÃO DE FILME • Leis da Corrupção – Diretor: G. Sax. Com: Tom Selleck, E. McGovern, M. Mason e W. Antherton. Duração: 95 m. Sinopse: Juiz honesto é convencido pela Promotoria Federal a participar de operação cuja missão é descobrir juízes corruptos. Usando o disfarce da cumplicidade, consegue desvendar uma rede de corrupção em que estão envolvidos inclusive seu pai e sua melhor amiga (também juízes). • O advogado dos cinco crimes • Daens: Um grito de justiça. Diretor: Stijn Coninx. Com: Jan Declair, Antje de Boeck e Gerard Desarthe – Duração: 132 min. SINOPSE: No final do século passado, um padre (Jan Declair) movido pelas idéias da Encíclica “Rerum Novarum” (Papa Leão XIII, 1891), envolve-se na luta por melhores condições para os operários das fábricas da cidade de Aalst (Bélgica). Inicialmente apoiado por setores da Igreja, aos poucos vai sendo por ela abandonado até ser obrigado a deixar o sacerdócio. Com o apoio dos trabalhadores católicos, dos socialistas e dos liberais é eleito por dois mandatos como representante no Parlamento. Dedica o resto de sua vida à missão de melhorar as condições deploráveis das classes trabalhadoras, enfrentando a oposição de todos os tipos. Filme baseado em história real. __________________________________________________________ 11. Filósofos contemporâneos: 11. 1 Karl Marx (em síntese) Karl Marx, ao pensar as questões sociais, concebe as relações econômicas e sociais que os homens produzem numa luta de classes e oriundas da divisão da propriedade privada, onde os ricos 43 esforçar-se-iam por se manter no poder e os pobres almejariam alcançá-los. Para Karl Marx, não existe, como pretendia fazer crer a ideologia burguesa, o Estado como árbitro dos conflitos e interesses humanos, um direito de interesses humanos ou como defensor desses interesses, existem apenas duas classes sociais antagônicas: ricos e pobres. O poder econômico seria o único supremo do qual derivam os demais: o poder político(o Direito e as Leis) e o poder ideológico. Para romper com o privilégio da classe economicamente dominante seria preciso abolir todos os arsenais dos quais esta se serve tais como o Estado, o Direito e as Leis, o que permitiria, em última instância, destruir a causa dos problemas sociais, a existência da propriedade privada. Para Karl Marx, onde existe propriedade privada só pode existir interesse privado, jamais coletivo ou de bem comum. Antes, porém seria necessário desmascarar as ideologias dominantes e extirpar o estado de alienação no qual os homens se encontram, para que estes percebam, dentre outras coisas, que o princípio da representatividade, base do liberalismo, criou a idéia de Estado como órgão político imparcial, capaz de representar toda a sociedade, mas no fundo, numa sociedade dividida em classes, este só representa a classe dominante e age em conformidade com os interesses desta. Em Marx as idéias liberais (do Contrato Social) não passam de ideologias, pois consideram os homens, por natureza, iguais política e juridicamente. Consideram Liberdade e justiça como direitos inalienáveis de todo cidadão. Marx proclama a inexistência de tal igualdade natural e percebe que as desigualdades sociais eram provocadas pelas “relações de produção” do sistema capitalista, que divide os homens entre proprietários e não proprietários dos “meios de produção”. Os trabalhadores, a fim de assegurar a sobrevivência, vendem sua força de trabalho e, nesse aspecto, não são nem um pouco “livres”, uma vez que não escolhem onde irão trabalhar, em que condições, e muito menos quanto vão ganhar pelo trabalho realizado. Produzem riqueza e só acumulam miséria. 11.1.1. Dialética A dialética surge a partir do processo de racionalização humana, que buscou desvencilhar-se de conteúdos puramente míticos (até então hegemônicos na apreensão da realidade e do conhecimento desta), no contexto da Pólis na Grécia Antiga, como método que visava a formação educacional e política do cidadão grego, preparando-os para os “torneios de pensamento” que se davam nos ginásios e que compunham a nova realidade e o novo discurso do mundo ocidental que se servia agora do logos, da razão, para a compreensão e explicação dos fenômenos humanos ou da própria natureza. Tinha como pressuposto fundamental o fato de que o conhecimento não era algo dado, através de revelações de cunho mítico, mas deveria ser procurado, a partir de abstrações do pensamento. Neste sentido ela surge com o próprio surgimento do que se conhece por Filosofia, como busca amorosa pela verdade das coisas, não acatando nada como verdadeiro sem antes examinar pela própria razão. Na Grécia Antiga dialética significava a arte do diálogo (dia = por meio, logos = razão) e, através dele, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão. Um de seus primeiros representantes foi Heráclito, de Éfeso, que via na contradição da realidade e na realidade dos contrários o próprio ser das coisas, isto é, um ser dinâmico, um eterno fluir da realidade que constitui a própria realidade mesma; tal idéia foi amplamente criticada por Parmênides, que dizia que a essência profunda do ser era imutável e o movimento, a mudança, apenas um fenômeno de superfície. Entretanto, atribui-se a Zenon, de Eléia e a Sócrates como seus fundadores. Ela encontra em Sócrates o ápice de sua representação que se servia dela para ir depurando as argumentações de forma tal que o resultado da discussão pudesse aproximar-se o máximo possível do que se poderia chamar de verdade, sem, contudo, jamais vir a fechar uma discussão dizendo o que esta era. É neste sentido que os diálogos de Platão, o grande apresentador de Sócrates (porque este nada escrevera e tudo o que conhecemos a seu respeito devemos a Platão e Xenofonte, seus discípulos) são 44 inconclusos deixando-nos sempre vias abertas para novas discussões acerca do problema apresentado. Na acepção moderna dialética significa o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendermos a realidade como essencialmente contraditória e em permanente transformação. Neste sentido seus maiores representantes foram: Pascal, na fase renascentista, passando por Hegel e seu idealismo histórico-dialético até Marx, com o materialismo histórico- dialético. Para Hegel a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a conservação de algo essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível superior. No entanto Hegel acreditava que eram as idéias que moviam o mundo, até que Marx surgiu para avaliar que não eram as idéias, mas sim as condições materiais as verdadeiras responsáveis por toda e qualquer transformação humana. Os pensadores dialéticos vieram resgatar ao caráter instável, dinâmico e contraditório da condição humana. Para eles a realidade é obra humana, é criada por nós, por isso o método para compreendê-la só pode ser o dialético. 11.1.2 Pressupostos do método dialético A dialética pressupõe uma visão da totalidade. Qualquer objeto que um homem percebe ou cria é parte de um todo; por isso, para encaminhar uma solução para os problemas, é preciso ter uma visão de conjunto. A visão de conjunto é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que se refere. Segundo Leonardo Konder “a realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que se tem dela” (O que é dialética, p. 37), é neste sentido que nenhuma teoria pode esgotar a possibilidade do real. O método dialético faz a antítese de uma tese, para, a partir desta negação, buscar uma síntese. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada; isto é totalidade. Para Konder, a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização (que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada), pois “a dialética – maneira de pensar elaborada em função da necessidade de reconhecermos a constante emergência do novo na realidade humana – negar-se- ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em face de situações modificadas” (O que é dialética, p. 39). Marx já havia remarcado que o conhecimento não é um ato intuitivo, e sim um processo. É preciso ir além da aparência dos fenômenos, em busca da essência destes. Para Lukács, citado por Konder, somente a visão da totalidade “permite à dialética enxergar, por trás da aparência das coisas, os processos e inter-relações de que se compõe a realidade. Somente o ponto de vista da totalidade permite que se veja no real um “jorrar ininterrupto de novidade qualitativa” (O que é dialética, p. 68). Na concepção do konderiana, o pensamento dialético “é obrigado a identificar, com esforço gradualmente, as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o “tecido” de cada totalidade, que dão ‘vida’ a cada totalidade. (...) A dialética não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes como a união entre elas” (O que é dialética, p.46), buscando uma compreensão clara das conexões e conflitos internos. Para que o conhecimento da realidade avance e se aprofunde, para ir além das aparências e penetrar na essência dos fenômenos, é preciso realizar operações de síntese e de análise que esclareçam não só a dimensão imediata (que percebemos imediatamente), como também e, sobretudo, a dimensão mediata delas (que se vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos poucos). As mediações obrigam a se refletir sobre as contradições, princípio básico do movimentopelo qual os seres existem. Mudança e permanência são categorias reflexivas, contraposições tais como absoluto/relativo, finito/infinito, singular/universal são apenas faces de uma mesma moeda. A dialética pressupõe ainda a passagem da quantidade à qualidade (ou vice-versa); a interpenetração dos contrários (como herdamos da física quântica, a idéia de que tudo tem a ver com tudo, os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns 45 dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes, dentro do contexto em que estão. Os dois lados da realidade contraditória se opõem e constituem uma unidade); e a negação da negação, isto é, a própria síntese. 11.2 Vigilância e Punição na História das Prisões – Michel Foucault Michel Foucault (1926-1984), filósofo francês contemporâneo, concentrou suas reflexões nos graves problemas do ser humano e da sociedade. Nesta mediação, a obra Vigiar e Punir traz como tema central à questão do poder que, para o autor, não é atributo, mas exercício, cúmplice do saber e difuso no conjunto da sociedade (ver A Microfísica do Poder), é onipresente e não concentrado em órgãos ou instituições sociais, como o Estado. Para Foucault a soberania do Estado, o quadro jurídico repressivo ou a dominação de uma minoria (de classes) não são os dados iniciais, mas as formas terminais do exercício do poder. Vigiar e Punir tem por objeto demonstrar como as tecnologias sociais se configuram enquanto tecnologias de poder, principalmente em relação ao corpo, como algo analisável e manipulável pelo poder. Para que esse poder possa ser exercido se constituem vários mecanismos, como o de punição e o olhar panóptico - vigilância que dispensa a presença, o poder faz com que você faça coisas sem sentir, que você se controle. É partindo da caracterização do poder como situação complexa numa dada sociedade, que Foucault chega ao conceito de panoptismo, herdado diretamente do panóptico de Jeremy Benthan. O panoptismo é técnica moderna de dominação, na qual o sujeito introjeta a repressão e o esquema geral da norma se impõe, tanto subjetivamente, quanto no conjunto da sociedade. As diversas formas de introjeção das normas repressivas são caracterizadas pelo que Foucault chamou de “micro-penalidades”, presentes no cotidiano concreto dos indivíduos, seja no controle do tempo e das atividades em geral ou dos discursos do próprio corpo. O resultado é a “docilidade”, através da qual dá-se o uso dos corpos. Esta análise privilegia o exercício do poder tal como este se afirma nas instituições sociais, como o Estado, o Parlamento, a prisão, o manicômio, a educação e todas as instituições voltadas para o controle social. A análise das instituições articula-se com o processo de produção dos diversos discursos, não apenas voltados para o controle direto, bem como para a produção de noções legitimadoras dessas práticas coercitivas, como o conceito de verdade. Assim, ao invés de se indagar sobre “o” poder, deve se pesquisar as práticas de poder, que são em última análise, o controle do corpo, do doente, do delinqüente, etc... O exercício do poder, da vigilância e do controle, tem como objetivo tornar o homem útil e dócil. Em sua obra Vigiar e Punir, que retrata a história da violência nas prisões, o autor aborda o secular problema da resposta social ao crime, mostrando a evolução humana na forma de tratar o criminoso e o crime. Na obra o autor divide o sistema punitivo em 4 etapas evolutivas: 1- Suplício: As punições tinham caráter imediatista, totalmente vinculadas ao corpo. Na tentativa de transformar as punições em exemplos, os suplícios foram transformados em verdadeiros espetáculos de horror. 2- Punição: Após um período de barbárie, houve a “humanização” das penas, uma atenuação dos suplícios, uma forma menos agressiva de punir as infrações através da dor física. 3- Disciplina: No século XVIII, o corpo é descoberto como fonte inesgotável de poder, não somente o seu suplício e agonia. A disciplina como meio de tornar o indivíduo um ser dócil e útil. 4- Prisão: É a instituição penal legalizada, dentre todas as formas de punir, a prisão surge como única capaz de agrupar todos os elementos punitivos: vigilância, privação de liberdade, disciplina, isolamento, trabalho e duração do castigo. Nesta obra o autor relata algumas espécies de suplícios comuns, de tempos não muito distantes, fomentando discussões inquietantes: Se, há duzentos anos atrás alguns países ditos “civilizados” 46 admitiam como válida a tortura como meio de obter-se a confissão, e como procedimento usual infringir terríveis sofrimentos físicos e morais ao condenado, como a sociedade do séc. XXI reagirá diante das nossas atuais prisões? – Embora muito mais humanas do que as do período pré-revolução francesa, não se pode negar que ainda se apresentam como depósitos insalubres e cruéis de presos, com escassa potencialidade para a pretendida reabilitação social do condenado. Em Vigiar e Punir Foucault analisa o poder disciplinador como uma das principais tecnologias do poder das modernas sociedades: o poder das normas. Mostra a multiplicação de prisões ao lado da proliferação de medidas que visam cada vez mais manter unificada a sociedade. Foucault descreve todo um conjunto de controles judiciais e policiais que se articularam e se dispersaram como controle social d e um determinado tipo de ilegalidade, a delinqüência. O século XIX viu surgir essa espécie de ilegalidade subordinada, dominada, que funciona como anteparo para uma outra forma de ilegalidade, aquela dos grupos dominantes da sociedade. A delinqüência, forma específica e popular de ilegalidade, constituiu-se como meio ou instrumento para gerir as ilegalidades. Esse observatório político permite um tipo específico de controle e de vigilância social muito eficaz. Assim não seria adequado falar de fracasso da prisão. A prisão conseguiu muito bem servir para o que desde o início se propôs. Ela não fracassou em sua tarefa de reprimir a ilegalidade, mas contribuiu para a criação e a classificação das ilegalidades, elegendo uma – a delinqüência – como representante geral de todas as outras, constituindo a ilegalidade popular como a ilegalidade a ser punida. Para o autor a prisão é o grande fracasso da justiça penal, pois não diminui a taxa dos crimes, mas transforma e produz delinqüentes e é responsável pela grande maioria das reincidências. Em resumo, se a oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal, a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinqüência, tipo específico, forma política ou economicamente menos perigosa – talvez até utilizável – de ilegalidade; produzir os delinqüentes, meio aparentemente marginalizados, mas centralmente controlado; produzir o delinqüente como sujeito patologizado (Foucault, 1987: 244). Para o autor a prisão, de modo geral, não se destina a suprimir as infrações, mas, antes, a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las. Visa não só tornar dóceis os que estão prontos a transgredir as leis, mas tendem a organizar a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A delinqüência solidificada por sistema penal centrado sobre a prisão representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos da classe dominante. Na verdade, a lei é feita para alguns, a classe mais numerosa e menos esclarecida que, por falta de recursos e educação não permaneceram nos limites de caráter “íntegro” – a lei e a justiça proclamam sua dissimetria de classe: Cadeia para os pobres e para os ricos as brechas da lei ou suanão aplicação. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, ou fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra. Faz parte dos mecanismos de dominação – A penalidade não reprime simplesmente as ilegalidades, ela as diferencia, faz sua “economia geral”. Ao mesmo tempo em que há uma “delinqüência de baixo” há a de cima, que é a “amplificação” da primeira. Toda uma confrontação da ilegalidade de baixo com o sistema de penalidade, ou melhor, de disciplina, fez com que se chegasse à idéia de que não há “natureza criminosa, mas jogos de força que segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão” (Foucault, 1987: 254). Michel Foucault, mais de um século depois, analisando o surgimento da prisão refere-se a uma aceitação e tolerância de determinadas infrações até o século XVII. Antes da reforma penal no fim do século XVIII, as ilegalidades das diversas camadas sociais conviviam lado a lado. Todavia, na Segunda metade do século XVIII, o processo tende a se inverter, pois aumenta o número de infrações que objetivam a subtração de patrimônio alheio. Com o passar dos séculos XVIII e XIX surgem lutas ditas ilegais dos movimentos populares contra a industrialização, regimes políticos - efeitos de crises econômicas. Como a propriedade privada é inerente à classe dominante, nada mais natural que esta buscasse meios e instrumentos mais eficazes de controlar e proteger seus interesses. A partir dos ideais Iluministas, o crime passa a ser visto como uma violação de um direito, passível 47 de reparação. Troca-se os suplícios pelas prisões. Assim, a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista. De maneira mais direta é a posição de Roberto Aguiar: O que é o crime senão o conjunto de atos que o poder exorciza por ofender a ideologia e costumes dominantes, o equilíbrio social imposto, a segurança da dominação, a desigualdade social ou a própria sobrevivência (Direito, poder e opressão, São Paulo: Alfa-omega, 1990, p. 131-132). Foucault recorre à história para mostrar que ocorrem transformações, mas na micro-função continua o mesmo, modifica-se pouco. Ainda hoje a política de segurança é a de vigiar e punir, prevenir possibilitaria vigiar pouco e punir menos ainda, mas o verbo “prevenir” parece não constar no dicionário político. _______________________________________________________ Leituras complementares V ANEXO I – A Esfera Pública: o comum; A Esfera privada: a propriedade. In: Arendt, Hannah. A Condição Humana. Capítulo II, 07 e 08. • ANEXO II – Genealogias da Amizade. Ortega, Francisco. São Paulo: Iluminuras, 2002, páginas: 103 a 109, 138 a 150 e 157 a 162. • ANEXO III – Big Brother - In: Revista Jurídica Consulex, ano VIII, no. 169, 31 de janeiro de 2004. _______________________________________________________ Bibliografia ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 2002. ARANHA, Maria Lúcia & MARTINS, Maria Helena P. Filosofando: Introdução à Filosofia. Editora Moderna. 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