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SOL DO MEIO-DIA, A HUMANIZAÇÃO FRENTE AS ADVERSIDADES SOCIAIS À LUZ DAS PERSONAGENS FEMININAS NO ROMANCE PAINIANO Luciana Novais Maciel (Faculdade Pio Décimo)1 Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar o perfil das personagens femininas presentes no romance Sol do meio-dia (1961), da escritora sergipana Alina Paim, buscando traçar o percurso de Ester e dona Beatriz. Ambas com diferentes formas de visão sobre a vida, mas prevalecendo o interesse pela realização dos anseios das mulheres. Ester traz a marca da humanização, presente em todo o romance, trabalhada diante de cada personagem que convive com a protagonista. Para esta discussão serão tomados como embasamento teórico desta pesquisa de cunho bibliográfico, Bauman (2001), Butler (2003), Gomes (2010). Na perspectiva de dialogar com o tema relevante nas obras de Paim, ora enraizada nas questões do discurso da crítica feminista, apresentando os enfrentamentos da mulher em meio à sociedade. Palavras-chave: Crítica feminista. Humanização. Mulheres. APRESENTAÇÃO As reflexões que pautam esta discussão pautam-se a partir da protagonista do romance Sol do meio-dia (1961), da escritora sergipana Alina Paim. O olhar que percorre o romance não está, simplesmente, direcionado a uma denúncia das situações sociais, num contexto em que as mulheres não podiam opinar, nem discutir as problemáticas do estado, no contexto da política do país, por exemplo. Em meio as condições estabelecidas para as mulheres da década de 1960 tem-se a construção de duas personagens, femininas, com posicionamentos diferenciados, posturas e comportamentos distintos, embora ambas estivessem em busca da mesma realização, o espaço de direito na sociedade. São diferentes visões estabelecidas pela protagonista Ester e a antagonista D. Beatriz. Essa, dona da pensão, casada, com inúmeros conflitos familiares, entre os pensionistas e principalmente o conflito com a sua feminilidade. Aquela, pensionista, 1 Professora e Coordenadora do Curso de Letras Português e Espanhol da Faculdade Pio Décimo, Mestre em Literatura Brasileira (UFAL), Orientadora da linha de pesquisa: Literatura de escritores sergipanos e metodologias do ensino de Literatura que compõe o NELL (Núcleo de Estudos Literários do curso de Letras). luciana.m@piodecimo.edu.br que vinha do Nordeste, da cidade de Paripiranga (cidade que fica entre os estados da Bahia e de Sergipe), leitora assídua, tradutora, solteira. Traça-se aqui uma sinopse da base discursiva das personagens a serem trabalhadas neste artigo. Verifica-se a construção de identidades culturais a partir das diversas formas de ver e interpretar as alteridades culturais, a partir de fatores como o econômico, político, familiar, social. Em se tratando do sujeito do entrelugar, que se mobiliza através das fronteiras móveis e escorregadias da cultura, Bhabha o considera um sujeito condicionado à fronteira, móvel, um ser duplo, que se encontra no intercâmbio entre o eu e o outro. Esse é o espaço, o lugar do fronteiriço que relativiza as comunidades culturais e que permite manter a diferença de cada um enquanto alteridade. Mesmo frente a uma sociedade individualista a autora quebra este padrão apresentando protagonistas que não estão isoladas em si mesmas, pelo contrário, há uma necessidade de mudança em meio as demais personagens, sejam eles femininas ou masculinas. Busca-se uma mudança de pensamento, de identidade, de sociedade, pois nos romances as fronteiras são ultrapassadas, as barreiras entre os indivíduos são quebradas, ao contrário de uma identidade líquida, segundo o entendimento de Bauman (2001), há a preocupação por uma identidade sólida, construída com a colaboração do outro. A personagem realmente diferente na perspectiva de Derrida em que Butler (1990, p. 24) retoma considerando que: “Não é nenhuma diferença particular ou qualquer tipo privilegiado de diferença, mas sim uma diferencialidade primeira em função da qual tudo o que se dá só se dá, necessariamente, em um regime de diferenças, e, portanto, de relação com a alteridade”. Dessa forma, a identidade não é algo pronto, mas é efeito que se manifesta em um regime de diferenças, de referências. Para Butler a identidade não está por trás de expressões de gênero, mas é performativamente constituída. Seguindo a discussão conforme o que afirma Butler (1990, p. 24) “O ‘eu’ é o ponto de transferência daquela repetição, mas simplesmente não é uma asserção forte o suficiente para dizer que o ‘eu’ é situado; o ‘eu’, esse ‘eu’, é constituído por posições [...]. Concebe-se então que o “eu” é um ponto de partida da transferência de si nas diversas posições, portanto o “eu” torna-se um sujeito do discurso como instrumento de reflexão e até mesmo de sua capacidade de agir diante da possibilidade de se trabalhar o poder, de um sujeito, da sua significação. Esses questionamentos possibilitam a reflexão sobre a função do texto literário, principalmente quando então é questionado, colocado à prova. Ao contrário do que se pode pensar, o texto literário não é apenas lugar de verdades questionadas, valores, subversão de identidades, representação e reprodução de discursos, normas. Subversão principalmente através dos textos escritos por mulheres, pois devido à repressão, ao silêncio, aos anos de distanciamento do discurso, do poder político, que se encontram os maiores índices de valorização/uso do corpo num processo de emancipação dos aprisionamentos sociais, patriarcais e convencionais. ESTER E BEATRIZ, A REPRESENTAÇÃO DO SER HUMANO Ao conhecer o romance painiano ora em estudo, logo desperta no leitor uma consciência de humanidade, não deixando dúvidas de que o ser humano é a base, o alicerce, a tese defendida pela escritora, que já no prefácio anuncia “[...] jamais fez vida literária, sem pertencer a grupinhos. Para ela existe a literatura, não a vida literária. Jamais separou sua literatura da vida”. (Paim, 1961, p. 7) Traz uma obra marcada pela compreensão e pela solidariedade humanas, sendo possível penetrar na alma feminina e no coração do ser humano. O romance é construído no espaço de uma pensão, descrita pela protagonista como uma casa amarela de dois andares. A dona da pensão era D. Beatriz, uma mulher de olhar acusador e carente, queria controlara vida de todos que ali moravam, principalmente das hóspedes. Ela era casada, tinha uma irmã e um filho, o qual todos desconfiavam que o menino seria de Helena, sua irmã. Ester, que há dez anos vivia no Rio de Janeiro, sem família, moça do Norte, morava há dezoito meses na pensão e costumava fazer diversas observações a respeito da postura dos demais pensionistas, mas as suas ponderações eram sempre no sentido de poder dialogar , conhecer, colaborar. Enquanto Ester fica a observar o silêncio que vai permeando a pensão após o momento do jantar, como se cada um voltasse a se isolar em cada quarto, com seus problemas individuais, d. Beatriz vai tecendo ao vento comentários sobre a gravidez, as dificuldades de amamentar Jorginho, ou seja, ao longo da narrativa, essa postura de d. Beatriz vai deixando evidências de que a sua única preocupação é com as conveniências sociais, com os deveres de uma mulher perante a sociedade; ao contrário de Ester que buscava não estar isolada, tentava encontrar na militância a alegria de não estar só, muito menos triste. Ester tinha sempre na lembrança a presença do prof. Virgílio, o seu vizinho de Paripiranga, que a ajudou a ler, a ensinou a traduzir, a datilografia. Ele se orgulhava de ter preparado a doce menina para a vida sem sombras,sem incertezas. Refletindo sobre o slogan da luta da militância “Pão, terra e liberdade” (Paim, 1961, p.33) ela diz que acrescentaria o Amor, “o amor no seu coração trazia o deslumbramento do sol do meio-dia, sol que não faz sombras” (p.34). Em uma análise, Ester conclui Pão, terra, e liberdade! Tudo de que precisavam, livrar-se do pão da piedade, pela conquista de uma profissão e de um mundo em que a condição da mulher não signifique trabalho mais explorado. Como gostaria de poder, no silêncio de uma noite estrelada de Paripiranga, cobrir todos os muros com essas três palavras e mais uma outra. Pintaria – Pão, terra, amor e liberdade (PAIM, 1961, p. 33). Neste excerto fica muito claro o posicionamento de Ester, cujo pensamento é sim acerca da condição da mulher, mas em defesa de uma humanização. A mulher deve buscar o seu lugar na sociedade, entretanto ela não deve esquecer a sua essência, que passa pelo amor. Não um amor simplesmente romantizado, mas um amor humanizado. Essa condição humanizadora da protagonista Ester foi trabalhada anos antes, quando ainda era bem jovem com o sonho de adquirir conhecimento, de dar continuidade aos estudos. Como vivia no interior da Bahia, precisaria ir para Aracaju ou Salvador para completar os estudos, porém a reação do seu pai manifesta o que a crítica feminista chama de machismo, o que estava condizente com o momento vivenciado pela personagem. “Sem ter quinze anos, saia abaixo do joelho e dente de siso, não fica longe de minhas vistas” (Paim, 1961, p. 48). Esta foi a decisão do pai de Ester sobre o desejo de estudar. No entanto, o seu vizinho, o prof. Virgílio, tomando conhecimento da postura do pai da menina e do anseio da mesma por conhecimento, oferece-lhe a possibilidade de estudar na biblioteca que ele tinha em casa e que era contemplada por Ester através das janelas baixas. Ester tinha dois caminhos, estudar com o professor Virgílio até completar idade para poder cursar o Ginásio na cidade grande ou casar-se com o filho do fazendeiro, com o qual não tinha afinidade. Acerca desta situação ela faz memória, Que teria acontecido se não existisse aquela sala de janelas baixas como refúgio, quando depois da morte do pai compreendeu não haver mais ginásio, carreira de professora, nada do que ardentemente desejava? E quando viu diante dos olhos, como destino o casamento absurdo com o filho do fazendeiro ou a sina amarga de solteirona? (PAIM, 1961, p. 51) A protagonista sempre reflete que o professor Virgílio era o seu segundo pai, ele a ensinou a leitura, a tradução e a datilografia, “Ele não imaginava que lhe dava a profissão de que agora vivia: tradução do francês” (Paim, 1961, p.52). Ao contrário de Ester, a saga de Dona Beatriz, diante das condições sociais que a mulher enfrentava na década de 1960, teve que enfrentar, além da pobreza, a responsabilidade pela educação da irmã mais nova, a continuidade da família, buscando sempre apresentar uma aparência de família modesta, em conformidade com as regras ditadas pela sociedade machista. “Você, minha filha, é o homem da família. Depois da morte de Gustavo, além da providência, devemos nossa vida a você. Deus a abençoe Beata” (Paim, 1961, p.46). Somente a partir do narrador onisciente é possível ter acesso aos pensamentos de Dona Beatriz, por meio do fluxo de consciência, nessa situação, a respeito da relação dela com Helena, por exemplo, quando questiona a mudança de comportamento da irmã, deseja que ela pudesse imitá-la, pois para dona Beatriz, mulher tinha que cuidar da casa, não poderia chegar tarde da noite em casa, ir as festas, manifestações, se envolver com política, nem discutir o assunto com os homens. No decorrer da narrativa o leitor vai se deparando com a visão de Alina Paim acerca da condição das mulheres em uma sociedade que renega a ideia de a mulher ser equiparada ao homem, com suas competências e habilidades, mas também reflete sobre o posicionamento delas diante das oportunidades ofertadas pela vida. Muitos casos são citados em que a mulher se permite ser ignorada, tradada como objeto de consumo, não se colocando, por exemplo, no trabalho, com os seus valores diante do que lhe foi confiado desenvolver. Da mesma forma o relato de Maria da Penha, uma manicure que faz uma reflexão sobre as suas próprias condições ao chegar ao Rio de Janeiro: “Atravessava naqueles meses a fase penosa em que era preciso civilizar-se o mais rapidamente possível, uma febre de arrancar a casca provinciana, sair do casulo grosseiro e por uma manobra de feitiço, surgir a borboleta estranha, animalzinho de capital da República” (PAIM, 1961, p. 68) A protagonista relata o depoimento de Maria da Penha com críticas, afinal, não é necessário mudar todo o ser da pessoa por causa da cidade. Durante a narrativa de Paim o leitor depara-se com a perplexidade da protagonista diante da condição degradante dos jovens, que como ela, deveriam estar buscando as realizações pessoais, profissionais, políticas, no entanto, encontravam- se, segundo Ester: “Essa visão da juventude estrangulada no que existe de mais belo – candura e pureza, arroubo e entusiasmo – despertava-lhe um rancor mais profundo, que os argumentos políticos sobre monopólios e guerras” (PAIM, 1961, p. 75). Caracteriza nesse excerto a capacidade da jovem personagem em se gastar sempre em favor do outro. Esse, o outro, não é um simples número estatístico, mas um ser humano, com sentimentos, expressões, necessidades, limitações, sempre em busca de uma tal liberdade, como leva a reflexão o escritor Zygmunt Balman (2001) Há, ainda, no fragmento ora citado, uma reflexão acerca da identidade cultural do país, no momento em que Ester deseja “tocar fogo nas revistas americanas” (PAIM, 1961, p. 75), verifica-se, portanto, uma denúncia às transformações, mudanças, adequações da identidade brasileira, ou seja, ao processo de aculturação capitalista norte-americana. Assim, a escritora sergipana traça, constrói as personagens femininas, com uma percepção bastante ousada acerca das mudanças sociais, culturais que estariam por acontecer na sociedade. A própria protagonista carrega em sua trajetória essa marca da escrita da autora, quando as personagens, em sua maioria, a saber, A sombra do patriarca, Sol do meio-dia, Estrada da liberdade aparecem num processo de diáspora, de saída do território regional para o nacional, carregando a missão de apresentar ao leitor os movimentos próprios do ser humano, de estar em saída, em busca de suas próprias conquistas. Aqui, de modo especial, apresenta às mulheres da sociedade as possibilidades de também saírem, no entanto, a protagonista Ester sai de si em busca do outro, em busca de conhecer, compartilhar a dor do outro, não importa se homem ou mulher, ela deseja compreender a dor do outro, seja emocional, financeira, política, profissional a partir do lugar de sua fala, de um quarto de pensão. São dois lugares de fala, o de Ester, pensionista, fala a partir do pequeno quarto da pensão, porém não está sozinha, busca nos outros moradores a compreensão da vida física, religiosa, espiritual, psíquica, tenta dialogar com palavras, mas também com o olhar, com a presença ao lado do outro. Enquanto dona Beatriz, a proprietária da pensão, trata a todos como simples locatários dos seus quartos, quando busca um diálogo ou é para criticar, ou por curiosidade para poder emitir os seus julgamentos. Um outro fato curioso da escrita de Alina Paim no romance ora em discussão é quando ela lança o olhar de uma mulher, que está em busca de suas conquistas, é consciente da condição feminina na sociedade e apresenta, com pesar, o comportamento,a aceitação de outras mulheres a condições de extrema banalidade, a exemplo do relato da protagonista na ocasião em que fora demitida do jornal, onde trabalhava como datilógrafa: Na sala de espera das companhias, encontrava moças ansiosas a pintar-se, alisar o busto e exibir pernas prontas a avançar com precipitação ao menor gesto do contínuo. Era uma atmosfera deprimente. Parecia-lhe estar num mercado de escravas, onde era preciso agradar e mostrar habilidades, como se o emprego fosse um lugar num serralho e a escolha dependesse de lábios carnudos, busto firme e pernas bem-feitas. Ouviu e aprendeu muita coisa. Ali vinha morrer muita ilusão sobre a situação da mulher, seu direito ao trabalho, sua independência e igualdade perante a lei. Que direito ao trabalho era aquele se lhe procuravam reduzir a dignidade? (PAIM, 1961, p. 92-93) Trata-se aqui do sentimento de imenso desagravo. Como pode as mulheres quererem conquistar o seu espaço com tal postura e comportamento? É uma crítica que a autora apresenta com argumentos aplicáveis aos dias atuais, ao mesmo tempo em que se deseja ocupar o espaço digno e com respeito, há aquelas que buscam este espaço aceitando, por exemplo, músicas, textos, piadas que denigrem a dignidade da mulher, esse é o questionamento que a protagonista de O sol do meio-dia apresenta. Um outro aspecto importante ressaltado a partir da personagem Ester é o fato das possibilidades de visão de mundo a partir da escrita e da leitura, do grande legado deixado pelo prof. Virgílio, que aos olhos de Ester, isso só foi possível porque o seu pai a proibiu de estudar fora de Paripiranga. Acerca da escrita, em um belo momento de encantamento com o beijo de Osvaldo, ela, pensativa na cena: Subindo a escada resolveu que se algum dia escrevesse um romance, nele não faltariam um beijo furtivo e o pensamento do jardim. Escrever! Seria para isso que o professor Virgílio levara anos a prepará-la no estudo, na capacidade de sentir e na arte de compreender o que sentia, no vagar de ouvir confidências e no escrúpulo de julgá-las? (Paim, 1961, p. 130) Sobre a leitura, a lição que o professor Virgílio passa para Ester dialoga com Todorov (2009), quando ele defende que a literatura é a única capaz de humanizar o homem. “- A gente lê com o que tem. Com os olhos, os ouvidos, o tato, com a idéia, o sentimento. Enquanto você não souber misturar sua vida com a vida que está no livro, não sente nem compreende o que o autor quis dizer” (PAIM, 1961, p. 52). Diferentemente de dona Beatriz, o que ela consegue enxergar nos outros são apenas os problemas, as limitações, os erros, as fragilidades, porém tenta durante toda a narrativa esconder-se na cozinha, no quarto da pensão, em Jorginho. É sob o olhar de dona Beatriz que Helena deseja a morte, que Iracema e Silvia se desentendem, que dona Júlia é criticada apenas por conservar um relógio de parede quando está morando em casa alheia. Ou seja, dona Beatriz é como uma espécie de juíza que condena apenas pelo olhar, inibe a todos, não permite que ninguém a questione, por exemplo, sobre as condições de sua irmã Helena, ela julga de acordo com o que lhe for mais conveniente, com o que permitir algo em troca, seja material ou qualquer tipo de participação, de apoio em suas ações. Como é o caso da crítica sobre Iracema e Silvia: “D. Beatriz tem dois pesos e duas medidas. Com Iracema são contemplações e mais contemplações. Porque, qual a diferença entre uma coisa e outra? Tudo não se passa na cama? O dinheiro não está em jogo da mesma forma?” (Paim, 1961, p. 177-178). Iracema, ao invés de cuidar da filha deficiente, passa os fins de semana fora de casa, cada semana com um rapaz diferente, e Silvia foi acusada de adultério. Ao contrário, Ester busca compreender a condição de Iracema, Silvia, Odília, Helena, Geni, Joana, Albertina, D. Áurea, Zélia, Maria da Penha, Júlia, D. Guiomar, Julieta, dentre outras, com atitude de escuta, de questionamentos a fim de levá-las a reflexão, a compreensão das condições de vida da atualidade, tenta contribuir dando- lhes forças para superação da dor, do abandono, das consequências das escolhas de cada uma, mas que nada está no fim. A hóspede havia errado, mas a dona da pensão não era juiz. Não lhe cabia a iniciativa de desfechar castigos, dominada pela febre de moralidade, pressa em afastar Silvia como se a situação suspeita não viesse se arrastando durante meses, com telefonemas misteriosos, saídas precipitadas e cartas em mão própria. Beatriz atingiu o objetivo, o exemplo ia ficar: a mulher culpada punida com o desquite e a perda da criança. (PAIM, 1961, p. 201- 202) Dona Beatriz pode representar no romance o que se chama de falsa moralidade, quando ela julga as hóspedes e emite uma condenação, acaba anulando os seus próprios atos. Esquece-se do fato de punir sua irmã Helena, tomando-lhe o filho, pelo fato de não poder ser mãe solteira, acaba por torturar a criança, a irmã e o suposto pai do menino. Tenta a todo custo, esconder a sua própria história a partir do julgamento das histórias do outro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desta discussão, buscou-se traçar o percurso de Ester e dona Beatriz, ambas com diferentes formas de visão sobre a vida, mas prevalecendo o interesse pela realização dos anseios das mulheres. Ester traz a marca da humanização, presente em todo o romance, trabalhada diante de cada personagem que convive com a protagonista. Dona Beatriz, apesar do olhar inquisidor, julgador reconhece os seus enganos, erros e arrepende-se de muitas das acusações realizadas. Ainda em tom de crítica faz uma afirmação que melhor defini Ester, traz aqui uma sinopse do que foi apresentado durante o desenvolvimento desta análise: “Os problemas do povo estão com Ester – disse D. Beatriz, piscando com malícia – Não compreendo como uma jovem inteligente se mete numa empresa de consertar o mundo. O mundo não tem remendo que lhe assente, nesta altura de sua ruína” (PAIM, 1961, p.233). Ao que sabiamente responde Ester, “o silêncio pode ser produtivo”, demarcando a sua sabedoria, atenção, observação, organização. A protagonista discute o seu lugar e o das demais mulheres que sofreram repressão em não poder realizar o que tanto desejavam. Isso pode ser explicado a partir do texto literário, conforme abordagem de Magalhães (2002, p.70), Nenhuma obra de arte pode ser estudada sem o auxílio da história, pois a verdadeira arte é um fazer história na medida em que é um refletir do ser social sobre sua própria existência. Não é história porque o autor resolveu contar o seu tempo, mas porque ele reflete o seu tempo e as possibilidades de ultrapassá-lo. Através da reprodução da vida na obra literária, é que o ser humano pode encontrar consigo mesmo. É pela forma representada pela autoria que o leitor se deparará com seus destinos, explicitados mediante uma profundidade, uma compreensividade e uma clareza que não podem ocorrer na própria vida. REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001. BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 1998. CARLOS, Magno. Sociologia de gênero na ficção de Alina Paim. In: XIII Seminário Nacional e IV Seminário Internacional Mulher e Literatura: memórias, representações, trajetórias, Natal, Universidade Potiguar, set. 2009. HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. MAGALHÃES, Belmira. História da representação literária: um caminho percorrido. Revista Brasileira de Literatura Comparada. Maceió, n. 6, UFAL, 2002. PAIM, Alina Leite. Sol do meio-dia. Rio de Janeiro: Associação Brasileira do Livro, 1961.