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MARÍLIA GOES GUERINI RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO PATERNAL Bacharelado em Direito Centro Universitário Padre Anchieta Jundiaí – 2017 2 MARÍLIA GOES GUERINI “RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO PATERNAL” Monografia apresentada à banca examinadora do Centro Universitário “Padre Anchieta”, como exigência parcial para a obtenção do grau de Bacharelado em Direito, sob a orientação do Professor Des. Cláudio Antônio Soares Levada. Jundiaí – 2017 3 Banca Examinadora: ___________________________________________ Professor Des. Cláudio Antônio Soares Levada ___________________________________________ Jundiaí, ___ de ________________de 2017. 4 TERMO DE APROVAÇÃO MARÍLIA GOES GUERINI RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO PATERNAL Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, no curso de Direito do Centro Universitário “Padre Anchieta” pela seguinte banca examinadora: ____________________________________________ Orientador: Professor Des. Cláudio Antônio Soares Levada ____________________________________________ Prof. Dr. ____________________________________________ Prof. Dr. Jundiaí, ___de _____________de 2017. 5 Dedico este trabalho a meus avós Milton e Aparecida, que me ensinam todos os dias o real significado das palavras fé e persistência. 6 Agradeço a Deus, em primeiro lugar, por me conceder a oportunidade de chegar até aqui, me dando força e conservando minha fé nos momentos mais difíceis. Agradeço meus pais, toda minha família e meus amigos, pelo apoio e incentivo Agradeço meu namorado e grande encorajador, Vitor, que sempre acreditou em minha capacidade, me deu forças e condições para concluir a graduação, sem nunca me deixar desistir. Agradeço, também, meu orientador Dr. Cláudio Antônio Soares Levada, por acreditar no tema escolhido para o presente estudo. 7 “Matar não quer dizer a gente pegar o revolver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata pelo coração. A gente vai deixando de se importar, de querer bem... E um dia a pessoa morreu. ” José Mauro de Vasconcelos. 8 RESUMO O presente trabalho objetiva demonstrar a importância de se estudar e analisar a responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo paternal, examinando pelo aspecto jurídico os pontos importantes que permeiam o tema, expondo o conceito de responsabilidade civil, suas especificidades e pressupostos, bem como sua aplicação e finalidade no âmbito do Direito de Família. No que tange o abandono afetivo, pretende-se esclarecer o conceito de afeto enquanto bem jurídico tutelado, a caracterização de ato ilícito quando da inobservância do pai no desempenho dos deveres a ele impostos pelo ordenamento, a eficácia das sanções previstas atualmente e a posição jurisprudencial a respeito do assunto. Por fim, o presente trabalho tem por objetivo chamar a atenção de todos aqueles que compõe o universo jurídico para a importância de se estudar e debater com cautela e demasiada atenção o tema aqui apresentado, pois o resguardo dos direitos inerentes à criança e ao adolescente, principalmente no que diz respeito á sua criação, desenvolvimento e amparo, é primordial na espera jurisdicional. Palavras-chave: Responsabilidade civil. Abandono afetivo. Dano moral. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11 RESPONSABILIDADE CIVIL .................................................................................... 14 1.1 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA ............................. 17 2.1 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL .................................. 18 1.3.1 AÇÃO ........................................................................................................... 19 2.3.1 CULPA ......................................................................................................... 21 3.3.1 DANO MATERIAL E DANO MORAL ............................................................ 22 4.3.1 NEXO DE CAUSALIDADE ........................................................................... 26 2. IMPORTÂNCIA DA PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES......................................................................................... 28 3. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO ............... 31 4. O PODER FAMILIAR E OS DEVERES DO HOMEM ENQUANTO PAI ............. 34 5. A CARACTERIZAÇÃO DO ABANDONO AFETIVO COMO ATO ILÍCITO ......... 41 6. A EFICÁCIA DA PENA PREVISTA EM NOSSO ORDENAMENTO NOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO ........................................................................................ 47 7. A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NOS PLEITOS DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DECORRENTE DE ABANDONO AFETIVO. ................................ 51 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 57 11 INTRODUÇÃO São cada vez mais comuns em nosso cotidiano disputas judiciais que envolvem relações jurídicas estabelecidas através da manifestação de vontade das partes que a compõe. Credores cobrando seus devedores, consumidores exigindo o cumprimento do prometido pelo fornecedor no contrato, herdeiros discutindo a partilha de bens deixados pelo parente falecido, entre outras inúmeras demandas que abarrotam o Poder Judiciário. Também são habituais os pleitos daqueles que se veem lesados por outros indivíduos, buscando pela via judicial a recomposição de seu patrimônio, se utilizando das demandas processuais para satisfazer aquilo que extrajudicialmente não foi possível, ainda que defeso em lei. Cada vez mais as pessoas buscam a Justiça como forma infalível para a solução de seus problemas, independente da natureza destes. Outra situação frequente na sociedade moderna é o pleito por indenização decorrente de danos morais. Cumulados com pedidos de indenização por danos materiais, ações declaratórias, ou sendo o dano moral o pedido principal da demanda, é cada vez mais comum encontrar indivíduos buscando junto ao Judiciário o ressarcimento de um dano extrapatrimonial. No ramo do direito que regula as relações familiares não é diferente. Cada vez mais pessoas tem se utilizado das vias processuais para resolver conflitos oriundos de relações familiares. Seja um divórcio consensual ou litigioso, um pedido de guarda, fixação de alimentos para os filhos resultantes da relação que se findou, ou ainda, o pedido de indenização por danos morais suportados pelo filho que se viu afetivamente abandonado pelo pai. O presente estudo tem como propósito a compreensãoe análise do instituto da responsabilidade civil no tocante aos deveres do pai com relação ao filho, quando da inobservância do primeiro para com suas obrigações, bem como as consequências jurídicas previstas e aceitas em nosso ordenamento. Do conceito positivado de responsabilidade civil, sua função na esfera do Direito de Família, as particularidades da estrutura familiar, bem como o estudo do que, de 12 fato, vem a ser o abandono afetivo, suas especificidades, até a ausência de previsão legal específica e o posicionamento doutrinário e jurisprudencial acerca do tema. Ainda que não caiba o questionamento acerca das razões que motivam a prática do abandono afetivo pelos pais, é indispensável tratar das consequências que tal conduta pode acarretar aos filhos que a suportam, tendo em vista que os danos resultantes de tal ato podem se dar de diversas formas, podendo, inclusive, ser psicologicamente irreparáveis. A relevância do estudo do abandono afetivo à luz do direito é substancial ao entendimento de que os deveres inerentes aos pais com relação a seus filhos são indispensáveis, indisponíveis, irrenunciáveis e obrigacionais. Assim, não deve existir no ordenamento jurídico punição que resulte, simplesmente, na dispensa do transgressor de sua função, como ocorre no cenário atual, ocorre que isso apenas regulamenta uma conduta que deveria ser inaceitável. O primeiro elemento a ser levado em conta quando da análise do instituto do abandono afetivo, é a situação de vulnerabilidade e dependência que se encontra o filho com relação ao pai, considerando serem os genitores responsáveis por tudo que diz respeito à sua prole, como os cuidados, a proteção, a manutenção, a criação, etc. Todo e qualquer ato praticado por um indivíduo pode gerar consequências jurídicas, conduto, existem aqueles, denominados atos jurídicos stricto sensu, que geram efeitos jurídicos independente da intenção do agente, basta que esse pratique a conduta, para que se produza o efeito jurídico de forma espontânea. É o caso da paternidade, pois quando se gera ou adota um filho, tal ato resulta na constituição de diversas obrigações inerentes a nova função. Dentre essas obrigações está a de garantir à prole a convivência familiar, amparando-a no seio da família, que independe da existência de relação conjugal dos pais. Dessa forma, ainda que a criança esteja sob a guarda unilateral da mãe, deve o pai participar ativamente da vida do menor, garantindo-lhe todos os direitos previstos em nossos dispositivos legais, sob pena de violação dos direitos deste, bem como o não cumprimento dos deveres inerentes ao transgressor, enquanto pai e responsável pelo menor. Por fim, este trabalho objetiva ressaltar a importância de se abordar o assunto aqui retratado, a fim de resguardar em absoluto os direitos inerentes à criança e ao adolescente, considerando sua posição de fragilidade e dependência no tocante aos 13 pais, bem como alertar quanto gravidade de se impor a pena adequada ao descumprimento dos deveres daquele que deve assistir de todas as formas o menor que veio a gerar ou adotar. 14 RESPONSABILIDADE CIVIL Na era primitiva, anteriormente à ideia de direito como o conjunto de leis que regulamentam a vida em sociedade, era comum que o homem resolvesse suas divergências de forma pessoal e autônoma, sem qualquer intermédio. Aquele sofresse qualquer prejuízo ocasionado por outro indivíduo, exigiria pessoal e diretamente sua reparação ou compensação, o que originaria, mais tarde, a Lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Então, com o desenvolvimento das sociedades, momento em que a criação de normas que regulassem o convívio interpessoal dos indivíduos que compunham uma comunidade se fez necessária, o limite que permeia os direitos dos indivíduos fez crescer um entendimento comum e básico a todos os membros de nossa sociedade atual: “a liberdade de um indivíduo termina onde começa a do outro”. A partir dessa ideia, a compreensão do instituto da responsabilidade civil se torna muito mais simples, tendo em vista que, desde os primórdios da vida em sociedade, o homem tem como princípio básico o respeito e o resguardo dos bens e direitos de cada indivíduo singularmente e enquanto sociedade. A responsabilidade civil é um dos temas mais frequentes no mundo jurídico, gerador de intensas discussões e divergências por abranger diversas áreas do direito. Embora se fundamente no direito obrigacional, sua aplicação se dá em diversas áreas, o que agrava os debates acerca do assunto, tendo em vista que nem todas as situações são expressas em lei, contando apenas com a ausência de impedimento. 15 Essa área do direito, cuja natureza compensatória1 objetiva precipuamente proteger aquele que, eventualmente, venha a ter um direito violado em razão da inobservância de outrem, garantindo-lhe a compensação ou reparação do dano sofrido por aquele que o causou, visa assegurar a liberdade de cada indivíduo, sem que esta venha a atingir os direitos de outrem. Contudo, apesar da obviedade com que se apresenta tal instituto, que tem como origem o direito obrigacional, é muito grande a discussão acerca de seus elementos constitutivos, como veremos adiante. Inicialmente, deve-se conceituar a responsabilidade civil, observando, assim, sua função no ordenamento jurídico, bem como as razões pelas quais se faz necessário o estudo do presente tema. De forma lacônica, podemos conceituar responsabilidade civil como o instituto do direito que visa responsabilizar aquele que, por um ato voluntário, comissivo ou omissivo, próprio ou de algo (coisa ou animal) por quem seja responsável, venha a causar dano à terceiro, seja este de natureza material ou simplesmente moral, imputando ao agente a obrigação de reparar o dano causado, ou compensa-lo, quando a primeira hipótese não for possível. Nas palavras de Rogério Marrone de Castro Sampaio, responsabilidade civil “consiste na obrigação que tem o autor de um ato ilícito de indenizar a vítima pelos prejuízos a ela causados”2. 1 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 7. Responsabilidade Civil, 26ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p. 44. 2 SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. Direito Civil Responsabilidade Civil, 2ª Edição, 2002. Editora Atlas S.A. p. 17. 16 Na visão de Savatier, citado por Sílvio Rodrigues, responsabilidade é a “obrigação que pode incumbir uma pessoa a reparar o prejuízo causado a outra, por fato próprio, ou por fato de pessoas ou coisas que dela dependam”3. De forma brilhante ilustra Maria Helena Diniz: “A aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal”4 Ainda que a responsabilidade civil se funde no direito obrigacional, coerentemente, Carlos Roberto Gonçalves ressalta a importância de não se confundir responsabilidade com obrigação, haja vista que a primeira é a consequência jurídica patrimonial do descumprimento da segunda5. O doutrinador explica que a relação obrigacional nasce por meio da manifestação livre e espontânea das partes que a compõe, enquanto a responsabilidade é o resultado da inobservância da obrigação de uma das partes para com a outra, a inadimplência. Para alguns doutrinadores a reparação do dano causado objetiva, não somente a compensaçãodaquele que o sofreu, mas, também, visa alertar o agente, ou seu responsável, para a ilicitude de tal ato, ainda que óbvia e evidente. Nesse sentido, Venosa, que entende que a indenização não apenas repara o dano, repondo o patrimônio abalado, mas também atua como forma educativa para o ofensor e a sociedade e intimidativa para evitar perdas e danos futuros6. 3 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 20ª Edição, 2008. Editora Saraiva. p.6. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 7. Responsabilidade Civil, 26ª Edição, 2012. Editora Saraiva. P.50 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.21. 6 VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito Civil Responsabilidade Civil, 2002. Editora Atlas, p. 23. 17 Assim, a reparação passa a ter uma função social, além da de “consertar” uma situação onde houve prejuízo de um terceiro, a saber, a função de educar, não só aquele que praticou o ato que teve por resultado o prejuízo de outra pessoa, como, também, a sociedade como um todo, para quem a sanção aplicada terá a função de instruir. 1.1 RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA E OBJETIVA A princípio, o que hoje entendemos por responsabilidade civil, possuia um caráter mais privativo, cuja busca pela reparação se dava de forma imediata e pessoal, sem intermédios. Nesta época, não se falava em comprovação de culpa, visto que aquele que era vítima do dano causado por outrem, buscava reparação direta e imediata junto daquele que praticou o ato lesivo e, por se tratar de uma relação pessoal, não havia que se falar em comprovação de culpa. Atualmente, essa espécie de responsabilidade civil é denominada responsabilidade civil objetiva, onde cabe aquele que sofreu o dano comprovar este foi resultado da prática de um ato de outrem, não havendo que se falar em culpa. Dessa forma, os pressupostos constituintes da responsabilidade civil objetiva são: a ação, o dano e o nexo causal, sendo este tipo de responsabilidade civil independente de culpa7 Cabe ressaltar que a culpa a que se refere essa modalidade de responsabilidade civil, não deve ser confundida com culpa presumida. Ou seja, a responsabilização do 7 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.46. 18 agente independe da culpa, basta que este tenha praticado o ato que teve por resultado o dano de terceiro, para nascer o dever de compensar a vítima. No que tange a responsabilidade civil subjetiva, é indispensável à caracterização da culpa, aliada à ação, ao dano e a relação de causalidade entre eles. Como esclarece Carlos Roberto Gonçalves8 a prova da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Nessa concepção a responsabilidade do causador do dano somente se configura se agiu com dolo ou culpa O Código Civil Brasileiro adota como regra a responsabilidade civil subjetiva (artigos 186 e 187), e a objetiva como exceção, pois raros são os casos em que a comprovação da culpa do autor se faz indiferente à caracterização do dever de indenizar aquele que sofreu um dano em decorrência da prática de seu um ato. 2.1 PRESSUPOSTOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL É notório que aquele que causar dano a outrem por meio de um ato próprio deverá repará-lo. No entanto, é necessário perante nosso ordenamento jurídico que se façam presentes alguns elementos, a fim de se apurar de maneira correta e irrefutável a responsabilidade do agente e o efetivo direito de reparação da vítima. Os elementos constitutivos da responsabilidade civil são simples em seus conceitos básicos, mas extremamente complexos em sua aplicação. São eles: a ação, a culpa, o dano e o nexo de causalidade. 8 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.46. 19 O artigo 186 do Código Civil vigente dispõe que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Por sua vez, o artigo 927 do Diploma Civil prevê o dever de reparação daquele que venha a lesar outra pessoa, por meio da prática de ato ilícito. Assim sendo, é necessário que os elementos relacionados acima sejam analisados previamente para a caracterização da responsabilidade civil, sob pena de imputar a alguém um dever de reparar um dano cuja ação ou omissão que o tenha originado não tenha sido por este praticada, ou ainda, indenizar alguém por um dano que tenha sido suportado por terceiro que não ele. Por fim, após a análise cautelosa, restando comprovada a presença de todos os pressupostos para a caracterização da responsabilidade civil no caso concreto, deverá então, o agente da conduta danosa ser compelido a reparar o prejuízo causado. 1.3.1 AÇÃO O primeiro passo para iniciar a caminhada em busca da caracterização da responsabilidade civil é o estudo individual de cada um de seus pressupostos, a começar pela ação do agente, ou seja, a prática da conduta que da origem à situação. Pois bem, de forma bem sucinta, entende-se por ação o ato praticado por alguém, que como resultado teve um dano que veio a ser suportado por terceiro. Tal ato deve ser voluntário, ou seja, independentemente do resultado que venha a obter, a simples prática do ato deve se dar por vontade do agente. Também poderá ser o ato omissivo ou comissivo, isto é, o agente deverá agir ou se omitir de forma que a 20 prática de sua conduta origine um prejuízo a outrem. Deve-se levar em conta que, se a conduta for praticada por algo ou alguém que não puder responder civilmente por isso, como, por exemplo, um animal que ataque uma pessoa, uma telha que venha a se desprender do telhado de uma casa e caia sobre um veículo automotor de terceiro, que não o dono do imóvel que originou o acidente, caberá, então, o dever de reparar o dano, àquele que responder por quem ou o que o tiver ocasionado. O Código Civil Brasileiro dispõe que a violação de um direito de outrem, que tenha por resultado um dano, seja por uma conduta voluntária, por imprudência ou negligência do agente, caracteriza a prática de um ato ilícito. Nas palavras de Venosa “os atos ilícitos são os que promanam direta ou indiretamente da vontade e ocasionam efeitos jurídicos, mas contrários ao ordenamento. O ato voluntário é, portanto, o primeiro pressuposto da responsabilidade civil” 9. Quando da caracterização do ato ilícito, é necessário ressaltar que, a ação ou omissão do agente não necessariamente se trata de um ato ilícito, podendo esta ser lícita, porém, sua prática que resulte em prejuízo a outrem, configura um ato ilícito. Isto posto, podemos concluir que tal elemento é composto de vontade, ou seja, da intensão do agente na prática do ato, independentemente se objetivava ou não seus resultados, mas que desse ato, se origine algum efeito jurídico que viole disposição legal e que, por conseguinte, venha a ferir o bem jurídico de outrem. Cabe salientar que, visando essencialmente às necessidades do presente estudo, as explanações acerca das especificidades da responsabilidade civil 9 VENOSA, Sílvio de Salvo, Direito Civil Responsabilidade Civil, 2002. Editora Atlas, p. 21. 21 ocorrerão de fora abreviada, visando à compreensão daquilo que se mostra imprescindível à total compreensão deste trabalho. 2.3.1 CULPAComo pressuposto da responsabilidade civil, a culpa abrange a intenção do agente que praticou o ato danoso, e pode ser estudada em duas situações distintas, conforme estabelece o Código Civil. São estas: a violação de um dever jurídico pela prática de uma ação ou omissão consciente, ou decorrente da ausência de cautela, atenção ou mesmo perícia. Basicamente, nosso ordenamento jurídico compreende que o dever ressarcitório pela prática de atos ilícitos decorre da reprovabilidade ou censurabilidade da conduta do agente10. Portanto, o estudo da culpa deve observar se o agente, independentemente de desejar o resultado, praticou o ato intencionalmente, se havia previsão ou previsibilidade de tal resultado, ou seja, quando da prática da conduta, o agente poderia prever o resultado ou, ao menos, ter uma ideia de qual seria. Ou ainda, tê-lo praticado de forma descuidada, ignorante ou com desatenção. Assim, se o agente puder antever o resultado, ou tiver a mínima ideia do fim resultante de seu ato, sendo-lhe, então, conferida a faculdade de agir de outra forma que não tenha por consequência o prejuízo de outrem, mas ainda assim o fizer, este terá agido com dolo, ou, como preferem alguns doutrinadores, com culpa consciente. 10 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 7. Responsabilidade Civil, 26ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p. 57. 22 No entanto, se o agente vier a praticar o ato danoso de forma perigosa, imprudente, deixar de observar as devidas cautela e atenção, agindo com negligência, ou, ainda, agir com ignorância, sem o devido conhecimento, sendo imperito, terá sua conduta considerada culposa. Destarte, como enuncia Maria Helena Diniz “o dolo é a vontade consciente de violar o direito, dirigida à consecução do fim ilícito, e a culpa abrange a imperícia, a negligência e a imprudência”11. Conclui-se, então, que a violação de um direito alheio, decorrente da prática de um ato voluntário, negligente ou imprudente, portanto, ilícito, suscita o dever de indenizar do agente. 3.3.1 DANO MATERIAL E DANO MORAL Tendo em vista que a responsabilidade civil visa à reparação de um dano causado pela prática de um ato ilícito, é primordial a existência deste dano, seja na esfera patrimonial ou extrapatrimonial, pois, como afirma Carlos Roberto Gonçalves, ainda que haja violação de um dever jurídico e que tenha havido culpa e até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida, uma vez que não se tenha verificado prejuízo12. Partindo do pressuposto de que não pode haver responsabilidade civil sem dano que a preceda, dano este que deve ser certo, a um bem ou interesse jurídico, sendo necessária a prova real e concreta dessa lesão13, é estritamente necessária a 11 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 7. Responsabilidade Civil, 26ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.58. 12 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p. 51. 13 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 7. Responsabilidade Civil, 26ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p. 54. 23 compreensão do que vem a ser esse dano e quais os bens e/ou interesses que ele pode atingir para que seja passível de reparação. Assim, o dano é o prejuízo sofrido por alguém aleatório à prática da conduta que o originou. Ou seja, um sujeito sofre uma perda, uma avaria, uma diminuição em seu patrimônio, ou teve algum dano causado, seja de ordem moral, psicológica ou intelectual, em razão da prática de um ato por terceiro. Rogério Sampaio é mais abrangente ao conceituar o dano, levanto em conta às palavras de Agostinho Alvim, que defini tal pressuposto da responsabilidade civil como sendo uma “lesão a qualquer bem jurídico”14. No entanto, como prevê o Diploma Civil o dano sofrido pode ser tanto de ordem material como, exclusivamente, de ordem moral, e, também, podendo as duas modalidades ser cumulativas, nos termos da Súmula 37, do Superior Tribunal de Justiça. Diferentemente do dano de cunho patrimonial, que afeta diretamente o conjunto de bens e direitos de um indivíduo, o dano moral afeta o íntimo daquele que o suporta, atingindo direitos inerentes à personalidade. São muitas discussões acerca do dano moral que dividem opiniões de doutrinadores e magistrados desde seu conceito até a aplicação em casos concretos. Isso se da em razão de sua subjetividade e constante alternância, visando adequação no cotidiano daqueles que enfrentam na justiça uma batalha para ter, de alguma forma, uma compensação pelo dano sofrido. Pois bem, de forma a facilitar a compreensão do que, de fato, vem a ser o dano moral, utilizo-me das palavras de Carlos Roberto Gonçalves, que conceitua o dano 14 SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro. Direito Civil Responsabilidade Civil, 2.ª Edição, 2002. Editora Atlas S.A. p.90. 24 moral como aquilo que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. “É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, a intimidade, a imagem, o bom nome, etc.” 15. Yussef Said Cahali, brilhantemente citado por Cícero Camargo Silva, descreve o dano moral como “tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado”16. O dano de caráter moral caracteriza-se pela ofensa a direitos inerentes ao ser humano enquanto pessoa, não enquanto proprietário de um bem. Trata-se de uma lesão capaz de afetar a dignidade da vítima, sua reputação, sua moral, ou até mesmo seu desenvolvimento psíquico e intelectual. Daí a complexidade que permeia o referido instituto do Direito Civil, considerando a impossibilidade de se relacionar os direitos da personalidade, como ressalta a Ilustre Ministra aposentada Eliana Calmon Alves: Não se sabe, em extensão, quantitativa ou qualitativa, quais são os direitos da personalidade, porque a tipicidade aberta, como uma das características do Direito Constitucional e da legislação civil, permite que haja um desdobramento infindável desses direitos17. Os bens atingidos pelo dano moral são de valor imensurável e a dor causada, muitas vezes, impossível de ser observada sem o auxílio de profissionais 15 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.352. 16 SILVA, Cícero Camargo. Aspectos Relevantes do Dano Moral. Migalhas. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI2283,61044-Aspectos+relevantes+do+dano+moral>. Acesso em 15 jun. 2017. 17 ALVES, Eliana Calmon. Responsabilidade civil no direito de família. Brasília, DF, 2004. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/353>. Acesso em 20 Jun. 2017. 25 competentes para apura-la, como psicólogos, psiquiatras e profissionais especialistas nessa área. Destarte, podemos concluir que o dano moral é um dano subjetivo, causado a pessoas que, singularmente, tendem a reagir de formas distintas diante das mesmas situações, razão pela qual é indispensável o máximo de cautela, para que a indenização por esse tipo de dano não seja banalizada. Contudo, quando a compreensão sobre o conceito do dano moral se torna mais transparente, surge à problemática da caracterização do dano, a efetiva demonstração de sua existência. Com relação a tal problemática, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são unânimes, é fundamental que se tenha excepcionalcautela no momento da apreciação da efetiva existência do dano moral, sob pena de considerar como tal meros incômodos e desprazeres que todos devem suportar18. Vale lembrar que o propósito da responsabilidade civil é compelir aquele que, através de um ato voluntário, causou dano a outrem e, por esta razão, deverá repará- lo, visando o regresso da vítima ao status quo ante, situação que nem sempre é possível em se tratando de dano moral mediante mera indenização pecuniária, tendo em vista ser impossível apreçar um sofrimento, uma dor, uma humilhação, etc. Assim, é importante ressaltar no que diz respeito à indenização decorrente de prejuízos de cunho extrapatrimonial, sua finalidade não se traduz na mera reparação do dano, mas “talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos”19. 18 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.353. 19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4.ª Turma). Recurso Especial 757411/MG. Recorrente: V de P F de O F. Recorrido: A B F (menor). Assistido por: V B F. 26 Contudo, ainda que por um lado alguns entendam que a reparação do dano exclusivamente moral seja por demais venturoso, pois se trata de um campo onde subjetividade predomina e a demonstração factual se mostre demasiadamente complexa, há quem defenda a relevância de se reconhecer tal reparação, levando-se em conta que, cada vez mais pessoas são acometidas por males da alma, em decorrência de condutas alheias. Resta, por fim, mais um tópico que gera desentendimento tanto na doutrina quanto na jurisprudência, o valor da compensação. É possível estipular preço para um sofrimento? Como pagar pela reabilitação psicológica de outra pessoa? Nesse momento, o princípio da razoabilidade ligado ao bom senso são ingredientes indispensáveis ao sucesso da resolução dos conflitos que envolvem a indenização por danos morais. O instituto do dano moral comporta, portanto, subjetividade excessiva à sua caracterização, ainda mais no âmbito do direito de família, onde, basicamente, abriga relações pessoais e afetivas, mas essa subjetividade não é suficiente para afastar o ensejo de compensação pecuniária. 4.3.1 NEXO DE CAUSALIDADE O último dos pressupostos da responsabilidade civil é o nexo de causalidade. Embora se mostre pleonástico, é necessário restar comprovado o vínculo entre a ação ou omissão danosa e o dano em si. Ou, como bem elucida Rogério Marrone de Castro Sampaio “faz-se necessária a existência de uma relação de causa e efeito entre a conduta praticada pelo agente e o dano suportado pela vítima”20. 20 SAMPAIO, Rogério Marrone de Castro Sampaio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 2ª Edição, 2002. Editora Atlas S.A. p.80. 27 Tal vínculo se faz necessário, uma vez que Inexiste a possibilidade de se imputar a alguém o dever de reparação de um dano sem que reste comprovada relação entre a conduta praticada e o dano sofrido. Ou seja, sem essa relação de causalidade não se pode conceber a obrigação de indenizar21. A imprescindibilidade da existência da relação de causalidade entre a conduta praticada e o dano ocasionado a outrem aleatório a prática, se da em razão da caracterização da culpa, em sentido estrito, daquele que agiu de forma a prejudicar outra pessoa, ainda que não houvesse intenção de o fazer. Neste momento, deve-se observar que a prática do ato, comissivo ou omissivo, foi à única razão da ocorrência do dano. De modo que, se da inexistência da prática daquela conduta, o dano, também, não existiria. Por fim, conclui-se que, é imprescindível a presença de todos os pressupostos acima relacionados, a saber, a ação do agente, que deve agir com culpa ou dolo, a existência de um dano de ordem material o simplesmente moral, e a relação de causalidade entre eles, para que seja possível a caracterização da responsabilidade civil do agente e, por conseguinte, seja este compelido a reparar o dano causado, mediante indenização pecuniária. Cabe ressaltar que a ausência de qualquer dos pressupostos necessários à caracterização da responsabilidade civil implica diretamente na impossibilidade de se pleitear a indenização, haja vista que é imprescindível a existência de um agente, que será imputado a reparar o dano decorrente da prática de um ato seu, fundado na culpa ou no dolo, a demonstração de um dano real, razão do pleito, e, por fim, da efetiva ligação entre eles, considerando a impossibilidade de se imputar a alguém a reparação de um prejuízo resultado do ato de outrem. 21 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 20ª Edição, 2008. Editora Saraiva. p.163. 28 2. IMPORTÂNCIA DA PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES É sabido que a responsabilidade civil nasceu à luz do direito privado, objetivando o resguardo dos direitos individuais de cada parte integrante de uma relação obrigacional. Fato, também, que as relações familiares não têm natureza contratual22. O Direito de Família abriga complexidade superior às relações obrigacionais, cuja extinção destas últimas se dá pelo simples cumprimento da prestação obrigacional, enquanto as relações advindas de vínculos familiares somente podem ser extintas quando se tratar de relações conjugais, uma vez que não se pode “terminar” uma relação constituída por mãe e filho, pois nesse caso o vínculo é perpétuo. Porém, ainda que mais complexas, as relações existentes na esfera familiar também são compostas de direitos e deveres atribuídos às suas partes. Por essa razão, o estudo da responsabilidade civil se faz necessário no âmbito do Direito de Família, pois tal instituto “tem como substrato a ideia de dano que atente contra o estado de família, o qual se sobrepõe como atributo da personalidade”23. Assim como nas relações obrigacionais oriundas da manifestação da vontade humana, cujas obrigações e são estipuladas pelas partes que compõe a relação, obviamente em consonância com o ordenamento, mas sem que haja interferência de terceiros aleatórios à esta vinculação, as relações provenientes de relações 22 MANJINSKI, Everson. A responsabilidade civil no direito de família. Âmbito Jurídico. Rio Grande, RS, 2013. Disponível: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12647>. Acesso em 20 Jun. 2017. 23 ALVES, Eliana Calmon. Responsabilidade civil no direito de família. Brasília, DF, 2004. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/353>. Acesso em 20 Jun. 2017. 29 familiares, seja pelo casamento, por filiação, por ascendência, etc., visam proteger a instituição familiar daquele que deixe de observar os direitos de outro, causando-lhe um dano. Observa-se, contudo, que inexiste em nosso ordenamento previsão legal que verse sobre a responsabilidade civil entre os membros de um mesmo núcleo familiar24. Isto é, a Justiça resta omissa no que tange o dever de resguardar individualmente os direitos dos integrantes de uma mesma instituição familiar dos outros que desta também fazem parte. Exemplificando a situação exposta, em casos de danos suportados por um filho, ocasionados pela prática do ato ilícito do pai, não existe dispositivo legal que impute expressamente o dever de indenizar/compensar do pai. Nesse sentido, alguns juristas entendem as relações familiares como complexas de se observar pela ótica obrigacional, como sustenta ElianaCalmon, que afirma: “o campo do Direito de Família é recheado de conceitos e preconceitos firmados nos laços de afeto, difíceis de serem trabalhados sob um aspecto econômico”25. Em decorrência dessa complexidade que grande resistência em relação a positivação da responsabilidade civil no que tange as relações familiares tem se formado. Assim, essa lacuna existente em nossos dispositivos legais tem estimulando interpretações variáveis acerca do tema, deixando a cargo de nossos ilustres Magistrados, a análise e resolução dos casos concretos, fundadas no bom senso e na razoabilidade. 24 MANJINSKI, Everson. A responsabilidade civil no direito de família. Âmbito Jurídico. Rio Grande, RS, 2013. Disponível: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12647>. Acesso em 20 Jun. 2017. 25 ALVES, Eliana Calmon. Responsabilidade civil no direito de família. Brasília, DF, 2004. Disponível em: < https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/353>. Acesso em: 20 Jun. 2017. 30 Tal questionamento acerca do “apreçamento” de eventuais danos decorrentes de relações familiares se faz genuíno, pois, de que forma haveria de se apreçar um dano suportado no seio familiar, lugar imaculado, cuja proteção pressupõe-se indubitável. Como calcular o valor do abandono praticado por aquele que tem por obrigação colocar a salvo sua prole de todo e quaisquer males, mas ao invés disso, o desampara? Ou a situação inversa. Como se daria a avaliação do prejuízo sofrido por um idoso, abandonado pela razão do trabalho de todo uma vida, a sua prole, que na velhice se viu impossibilitado de amparar o genitor, por não pensar ser esse um dever que lhe coubesse? Exatamente pela dificuldade de se apurar e estimar o gravame moral sofrido na esfera familiar, é que se faz necessário o debate do tema por aqueles a quem cabe a deliberação dos casos que o envolvem. Ora, de que outra forma haveria de se estabelecer a compreensão e aceitação do assunto? É imprescindível que exista, não apenas um norte, mas um caminho todo a se percorrer nas situações que, cada vez mais, se fazem frequentes em nosso cotidiano. Não basta que tenhamos uma posição jurisprudencial pacificada a respeito da responsabilização daquele que deixe de desempenhar, nos termos da lei, seu papel dentro do núcleo familiar, amparando de forma correta o seu dependente. 31 3. A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA NO DIREITO BRASILEIRO Traduz-se por família o conjunto de pessoas que possuem grau de parentesco entre si e vivem na mesma casa formando um lar26. Contudo, a interpretação da palavra já teve maior restrição, pois, antigamente, o único modelo familiar reconhecido pelo ordenamento era aquele oriundo do casamento, que era denominado família legítima27. Da mesma forma, só eram legalmente reconhecidos os filhos havidos dessas relações, não sendo admitidos como filhos aqueles oriundos de relações extraconjugais, seja pela prática de adultério, ou sem existência de vínculo afetivo. Quando da restrita interpretação da palavra, o núcleo familiar era constituído de hierarquia, na qual o homem, enquanto marido e pai, ocupava o papel mais importante. A ele eram atribuídos todos os direitos e deveres relacionados aos filhos, sendo o responsável por conduzir as decisões inerentes a estes. Nesta época, até mesmo quando dissolvida a relação conjugal, a mãe não tinha nenhuma preferência na guarda dos filhos menores, permanecendo estes, via de regra, com o pai. Assim, esse conjunto de deveres exercidos de modo exclusivo pelo pai era denominado pátrio poder, e encontrava amparo legal no revogado Código Civil (1916). Anos mais tarde, a exclusividade do pai no exercício do pátrio poder deu espaço à singela possibilidade de o Juiz, em observância ao melhor interesse do 26 SIGNIFICADOS. Significado de família. Disponível em: < https://www.significados.com.br/familia/ >. Acesso em 3 Jun. 2017. 27 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 20ª Edição, 2008. Editora Saraiva. p.4. 32 menor, decidir de outra forma, podendo, então, conceder tal poder à genitora, se assim entendesse28. No entanto, apenas com o surgimento do novo Código Civil (2002) é que a mulher/mãe passou a ter mais direitos e dividir com o homem/pai os deveres referentes aos filhos, o que se deu em razão da incontestável transformação social que ocorreu, e ainda ocorre constantemente nos dias atuais. Ainda assim, o ordenamento se adequou paulatinamente a tais modificações. E, passo a passo, foi se transformando no que é hoje, o que não significa que o ordenamento caminha paralelamente com o cenário familiar atual. Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil (1988), muitas mudanças ocorreram, como equiparação dos papeis do pai e da mãe com relação aos deveres inerentes aos filhos, a regulamentação do reconhecimento dos filhos havidos fora das relações matrimoniais, da mesma maneira que a adoção. Também passaram a ser reconhecidos os novos modelos familiares, como aqueles compostos por pessoas que permanecem em união estável, ou mesmo aqueles constituídos por apenas um dos genitores e sua prole, a chamada família monoparental29. Deste modo, alcançou-se a abrangência do conceito de família existente hoje em nosso ordenamento, mas que, ainda sim, é carente de atualidade, considerando o contexto atual da família brasileira, que vive em constante transformação e, em razão disso, necessita da concomitante adequação do ordenamento, sob pena de 28 KÜMPEL, Vitor Frederico. Do pátrio poder ao poder familiar: o fim do instituto? Migalhas, Registralhas, 2015. Disponível em:< http://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI227629,71043- Do+patrio+poder+ao+poder+familiar+o+fim+do+instituto >. Acesso em : 3 Jun. 2017. 29 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 20ª Edição, 2008. Editora Saraiva. p.4. 33 desamparar aqueles que não se enquadram nos modelos expressos nos dispositivos legais. Caminhamos, então, para o que hoje chamamos de poder familiar, cujo centro passou a ser, única e exclusivamente, o interesse do menor, não mais a vontade daquele que detinha o poder de decidir seu futuro. Por fim, é importante destacar que, embora a denominação desse conjunto de deveres e atribuições passe a impressão de exercício de poder sobre o menor, trata- se, na verdade, de obrigações impostas aos genitores, que visam garantir os direitos básicos e fundamentais ao crescimento, desenvolvimento e manutenção da criança e do adolescente em questão. 34 4. O PODER FAMILIAR E OS DEVERES DO HOMEM ENQUANTO PAI Distante daquele modelo familiar eminentemente patriarcal, comum há tempos não muito longínquos, observa-se atualmente uma composição familiar irregular, cuja estrutura se diferencia de família para família, sendo, contudo, amparada pelo nosso ordenamento jurídico, que respeitando as constantes alterações sociais, busca adequação a estas, visando melhorar a vida do homem em sociedade. Essa configuração familiar que, antes tinha como o centro dos direitos e obrigações o homem enquanto pai e marido, contempla atualmente a ausência de tal figura em muitos casos. Com efeito, tornou-se primordial garantir a todas as entidades familiares, independentemente de sua composição, o devido aparo legal, conferindo aos respectivos chefes defamília, não mais representado pela figura paterna, mas sim por ambos os pais, os deveres e direitos que lhes cabem. No que concerne aos filhos, é conferido aos pais o chamado poder familiar, que consiste no conjunto de normas que tem por finalidade auxiliar os pais na criação e proteção de seus filhos. Nas palavras de Sílvio Rodrigues “o poder familiar é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a proteção destes”30. Anteriormente denominado pátrio poder, fazendo alusão ao poder que antes era atribuído, exclusivamente, ao homem, que era quem ocupava o lugar mais alto na hierarquia familiar, sendo ele o responsável por tomar todas as decisões inerentes à 30 RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil Responsabilidade Civil, 20ª Edição, 2008. Editora Saraiva. p356. 35 família, e a quem eram atribuídos os direitos e deveres relativos aos filhos, o poder familiar passou a ser exercido conjuntamente por ambos genitores, na mesma proporção. Isso se deu através da reorganização do modelo familiar, momento em que o ordenamento jurídico se viu obrigado a buscar amoldamento a tais alterações, e quando à mulher foram atribuídos os mesmos direitos e deveres do homem no âmbito familiar, passando a dividir com ele as responsabilidades referentes aos filhos, dando origem ao que hoje chamamos de poder familiar. Como dito anteriormente, o poder familiar consiste no conjunto de normas que regulam as relações entre os pais e seus filhos, garantindo aos primeiros os meios necessários para tomar conta dos interesses do filho menor e, para isso, lhes são atribuídos uma relação de deveres e obrigações que devem ser observados para o correto desempenho do poder que estes detém. Ou, como impecavelmente elucida Maria Helena Diniz, poder familiar é o “conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido, em igualdade de condições, por ambos os pais”31. Tal poder atribui aos pais uma relação de direitos e deveres, que deverão ser desempenhados, objetivando a garantia de condições básicas de sobrevivência aos menores, levando-se em conta o princípio da dignidade humana e o princípio da paternidade responsável, como disposto no parágrafo 7º do artigo 226 da Carta Magna de 1988. Levando-se e conta o Diploma Constitucional, que versa sobre a autonomia do casal para decidir sobre o planejamento familiar, alicerçado nos princípios acima 31 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil 5. Direito de Família, 27ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p.601. 36 mencionados, é possível compreender as características do poder familiar. É imprescindível salientar que o planejamento familiar não envolve apenas o casal que o desempenha, mas também os futuros frutos advindos desta relação, razão pela qual o complexo de direitos e deveres que compreende o poder familiar seja, irrenunciável, inalienável, indisponível e intransferível. Ora, seria um tanto superficial a imposição de um dever a alguém, que pudesse a qualquer momento renunciar a este, pelo simples fato de ter outras prioridades. Da mesma forma, seria inaceitável que alguém alienasse o poder familiar, ainda que de forma gratuita, dispondo inconsequentemente, dos deveres e direitos ele atribuídos, sem que fossem levados em conta os direitos e, até mesmo, as vontades do menor a que se refere que, mais do que qualquer dos pais, necessita ser priorizado, tendo em vista sua inquestionável dependência física e psicológica com relação aos pais. Mister ressaltar que o poder familiar não se altera com a situação afetiva dos pais, podendo estes compor uma sociedade conjugal ou mesmo viverem separadamente, mas deverão, em qualquer circunstância , observar os deveres e obrigações a eles impostos com relação aos filhos, sendo garantido a qualquer dos pais o direito de buscar o judiciário quando da divergência com relação ao desempenho de tal poder, nos termos do parágrafo único do artigo 1.631 do Diploma Civil. A observância da valia inerente ao poder familiar é substancial, devendo sempre ser levado em consideração à situação de vulnerabilidade e dependência do menor com relação aos pais. Pois bem, o Código Civil, em seu artigo 1.634, relaciona os deveres e direitos atribuídos aos pais no tocante aos filhos quando do exercício do poder familiar. São eles: “dirigir-lhes a criação e a educação; exercer a guarda unilateral ou compartilhada 37 nos termos do artigo 1.584; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento de casarem; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência para outro Município; nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; representa-los judicial e extrajudicialmente até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, suprindo-lhes o consentimento; reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”. Entretanto, os direitos acima elencados são apenas alguns dos atribuídos aos pais pelo nosso ordenamento jurídico. Outros dispositivos legais também imputam aos pais outras obrigações que visam garantir aos filhos menores direitos fundamentais à sua criação e desenvolvimento, e aos pais, um norte na difícil tarefa de criar e auxiliar no desenvolvimento de um ser humano completamente dependente nos primeiro anos de vida. O Diploma Maior relaciona outros deveres inerentes aos pais no que diz respeito aos filhos, como garantir ao filho menor o direito à convivência familiar e comunitária, à dignidade, ao respeito, à saúde, à alimentação, à educação, bem como coloca-los a salvo de toda forma de negligência, violência, discriminação, crueldade, entre outros32. Destarte, embora pareçam óbvios os deveres dos pais com relação aos filhos, é importante observar que, em muitos casos, as obrigações parentais não são exercidas proporcionalmente por ambos os pais, existindo um desempenho maior daquele que 32 BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> 38 convive com o menor, contando, muitas vezes, com pequenas participações do outro que, esporadicamente, participa da vida do filho. Tal situação é mais comum nos casos em que os pais não vivem juntos, seja porque não estabeleceram nenhuma relação conjugal, ou porque vieram a se divorciar em algum momento após o nascimento da criança. Analisando a segunda situação acima citada, podemos observar que, na maioria dos casos o menor permanece na guarda da mãe. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas-IBGE no ano de 2014, o índice de divórcios teve um crescimento de 161,4% (cento e sessenta inteiros e quatro décimos por cento) nos últimos dez anos, subindo de pouco mais de cento e trinta mil casos em 2004, para quase trezentos e quarenta e dois mil casos em 2014, data da última pesquisa realizada pelo IBGE33. Nos casos em que o casal divorciado possuía filhos, a guarda unilateral era atribuída à mãe em 85,1% (oitenta e cinco inteiros e um décimo por cento) dos casos, correspondendo a apenas 7,5% (sete inteiros e cinco décimos por cento) os casosde guarda compartilhada34. E é nesse momento que a ausência de observância dos deveres e obrigações inerentes aos pais acontece. Numa situação de comodidade, onde o pai, livre da rotina e dos cuidados diários que uma criança ou adolescente exigem, perde paulatinamente o “hábito” de participar ativamente da vida de seu filho e, em alguns casos, os abandonando física e/ou afetivamente. 33 BRASIL, Portal Brasil. Cidadania e Justiça. Em 10 anos, taxa de divórcios cresce mais de 160% no País. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/11/em-10-anos-taxa-de- divorcios-cresce-mais-de-160-no-pais> Acesso em 8 Jun. 2017. 34 BRASIL, Portal Brasil. Cidadania e Justiça. Em 10 anos, taxa de divórcios cresce mais de 160% no País. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/11/em-10-anos-taxa-de- divorcios-cresce-mais-de-160-no-pais> Acesso em 8 Jun. 2017. 39 Nessa hora, a prestação alimentar se torne um escudo aos pais que deixam de lado as demais obrigações correspondentes aos filhos, se tornando, para eles, o principal dever de um pai separado cujo filho reside com a ex-mulher. No entanto, a prestação de alimentos que é, apenas e tão somente, uma das inúmeras obrigações atribuídas ao pai pelo nosso ordenamento jurídico, snedo equiparada às demais obrigações que este deve cumprir, como os já citados deveres de assistência, criação e educação dos menores, a garantia de efetivação de seus direitos, como a vida, à saúde, à educação, o respeito, a convivência familiar, à dignidade, à educação no seio de sua família. É imprescindível a constante evidenciação da vulnerabilidade e dependência dos filhos na relação familiar. Os pais tem sua própria vida, seu trabalho, seus amigos, enfim, uma vida social aleatória à familiar, enquanto o menor vê no âmbito familiar seu universo exclusivo nos primeiros anos de vida, e, ainda que gradativamente passe a participar de um mundo distinto do vivido no centro familiar, até atingir a maioridade terá na família sua base, seu alicerce, o lugar em que sempre buscará amparo físico e emocional. Nesse sentido, faço minhas as palavras de Roberto João Elias, que afirma que “a família é uma instituição necessária a todos”35. Atualmente, a perda do poder familiar pode ocorrer por abuso de autoridade por parte dos pais, pelo não cumprimento de seus deveres para com o filho menor, por arruinar os bens pertencentes a eles, por castigo imoderado, pela prática de atos contrários à moral e aos bons costumes, pela condenação por sentença irrecorrível em razão da prática de um crime cuja pena exceda dois anos de prisão, ou por abandono do filho. 35 ELAIS, Roberto João. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, 3ª Edição, 2009. p.19. 40 Dessa forma, concluímos que o pai, enquanto membro fundamental na vida e no desenvolvimento do filho menor, não poderá se furtar, de nenhuma forma, de quaisquer de seus deveres enquanto genitor, não apenas sob pena de perda do poder familiar, mas principalmente, sob pena de não participar da criação e desenvolvimento de um ser humano por ele gerado ou escolhido. 41 5. A CARACTERIZAÇÃO DO ABANDONO AFETIVO COMO ATO ILÍCITO Inicialmente, cabe lembrar que o indivíduo menor de idade, semi ou completamente incapaz, só alcançou seus efetivos direitos a partir da promulgação da Lei 8.089, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, não sendo visto, anteriormente, como um sujeito de direitos e deveres36. Como visto anteriormente, em concordância com o Código Civil Brasileiro, aquele que em razão da prática de um ato voluntário, comissivo ou omissivo, negligência ou imprudência, violar direito de outrem e, como consequência, lhe causar dano, cometerá ato ilícito e, por sua vez, fica obrigado a repará-lo. Em primeiro lugar, é necessário compreender que no caso do abandono afetivo paternal, a conduta a ser praticada pelo agente será omissiva, ou seja, o sujeito deve deixar de cumprir com suas obrigações enquanto pai com relação a seu filho. Importante ressaltar que o simples pagamento a título de alimentos, não desobriga o pai com relação aos demais deveres a ele impostos pelo ordenamento. E é nesse primeiro momento que se inicia o grande debate acerca do tema, tendo em vista sua extrema subjetividade em razão da ausência de previsão legal. Por essa razão, devemos nos ater à legislação vigente, visando o estrito cumprimento dos textos legais na hora de caracterizar o abandono afetivo. Relacionando os deveres inerentes a família, cuja obrigação permanece a ambos os genitores, independentemente da existência de uma relação conjugal entre 36 ORIONTE, Ivana e SOUZA, Sônia Margarida Gomes. O significado do abandono para crianças institucionalizadas. Psicol. Belo Horizonte/MG. 2005. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677- 11682005000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10 Jun. 2017. 42 estes, os quais se fundam no princípio da paternidade responsável, observamos nada além do fundamental à criação e desenvolvimento de uma criança. Então, à luz dos deveres imputados aos pais pelas normas vigentes é que o afeto, enquanto bem jurídico tem guarida. Não no sentido de amor, carinho, mas sim na participação ativa do pai na criação, desenvolvimento e manutenção do filho, bem como dispõe a Constituição Federal: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los, a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. [...] Art. 229. Os pais tem o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores tem o dever de ajudar e amaparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. O dever de garantir à criança ou ao adolescente a convivência familiar, neste caso, é a principal causa de pedir nas ações de indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. O pai priva a criança de sua presença e companhia, se abstendo, por conseguinte, dos demais deveres a ele impostos, cujo efetivo desempenho se dá mediante a participação ativa e presencial, na medida do possível, na vida do menor. Por participação ativa, devemos entender a efetiva atuação do pai na vida do filho, observando que os limites de cada relação devem ser respeitados, como, por exemplo, situação em que o pai venha a residir em comarca distinta da que reside o menor, assim, observa-se a atuação do pai na vida do filho, respeitando as condições de tempo de deslocamento, rotinas de ambas as partes, tendo em vista que, assim como o pai, via de regra, cumpra horários de trabalho, não sendo possível o frequente deslocamento para o local de residência do menor, este, por sua 43 vez, presume-se ter de respeitar os horários da escola, de eventuais atividades extracurriculares e, até mesmo, a simples rotina a qual ele está habituado, o que se faz necessário ao desenvolvimento da criança. Pois bem, superada a questão da conduta do pai, devemos observar a efetivação do dano moral causado ao menor, um dano decorrente da omissão do pai no desempenhode suas obrigações. Como já conceituado, o dano moral é aquele que atinge intimamente a vítima, não seu patrimônio, e se estende a todos os bens personalíssimos37, como a honra, a intimidade. Assim, o abandono afetivo paternal deverá ter como resultado um dano de caráter psicológico, moral, que, por seu turno, origina grande dor e sofrimento ao filho. Tal dano, não deve observar exclusivamente a angústia e o padecimento experimentados pelo filho, pois esses estados de espirito constituem o conteúdo, ou melhor, a consequência do dano38. O dano decorrente do abandono afetivo é aquele que acarreta problemas psicológicos e/ou sociais, em decorrência do sofrimento oriundo do abandono, da inexistente participação do pai na vida do filho, o não acompanhamento regular do desenvolvimento do menor, que tem por consequência a falta de incentivo, de atenção e cuidado, que gera problemas de autoestima, a ausência de preocupação por parte do pai, que resulta na carência do filho, entre muitas outras situações que ocasionam, além do sofrimento, um dano mais grave. 37 SANTOS, Pablo de Paula Saul. Dano Moral: Um Estudo Sobre Seus Elementos. Disponível em : < http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11819>. Acesso em 26 jun. 2017. 38 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil 4 Responsabilidade Civil, 7ª Edição, 2012. Editora Saraiva. p. 352. 44 E por se tratar de resultados de complexa caracterização é que tal comprovação se torna profundamente difícil, razão pela qual os Ministros do Superior Tribunal de Justiça atentam para a ausência de legislação que verse especificamente sobre o assunto e, portanto, clamam em seus votos por prudência e demasiado bom senso na hora de julgar casos de abandono afetivo. Contudo, mesmo sem previsão expressa, tal situação se apresente com grande frequência em nosso cotidiano, onde pais omissos e ausentes desencadeiam uma série de fatores que resultam em problemas muito sérios para os que sofrem com suas condutas omissivas. Não é de hoje que se fala na importância da figura paterna nos primeiros anos de vida de uma criança, sendo tal figura, essencial ao seu bom desenvolvimento e formação. Nesse sentido, Edyleine Bellini Peroni Benczick39: As teorias psicológicas e as pesquisas científicas afirmam e fundamentam o papel da figura paterno no desenvolvimento e no psiquismo infantil. É pressuposto da teoria psicanalítico papel estruturante do pai, a partir da instauração do complexo de Édipo. Sendo a figura paterna tão importante para a formação do indivíduo, a ponto de sua ausência ser capaz comprometer seu desenvolvimento psicológico e social, acarretando problemas de autoestima, autoconfiança e, até mesmo sociais, como poderia o pai, deliberadamente, abrir mão de sua função paterna, que legalmente é irrenunciável, sem quaisquer sanções. 39 BENCZIK, Edyleine Bellini Peroni. A importância da figura paterna para o desenvolvimento infantil. Rev. psicopedag. [online]. 2011, vol.28, n.85 [citado 2017-08-01], pp. 67-75 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 84862011000100007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 26 Jun. 2017. 45 Sobre a dor sofrida pelo filho, o Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino cita, brilhantemente, em seu voto o digníssimo doutrinador Rui Stoco: A dor sofrida pelo filho em razão do abandono e desamparo dos pais, privando-o do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral, psíquico e material é não só terrível, como irreversível. A mancha é indelével e o trauma irretirável. Mais grave que um dano material, passível de reparação ou compensação pela simples reparação ou substituição do bem danificado, a formação de um indivíduo é algo inestimável, cuja observância das normas que protegem os meios para que tal desenvolvimento aconteça da melhor forma deve ser segura. Por fim, embora pareça pleonástico, se faz indispensável à comprovação da relação de causalidade entre a conduta omissiva praticada pelo pai e o dano moral experimentado pelo filho, restando comprovado que sem a conduta omissiva do pai o filho não apresentaria quaisquer danos, sejam eles no âmbito psicológico ou social. Vale lembrar que, conquanto pareça simples quando explicado de forma sucinta, como se faz no presente estudo, as ações que visam uma indenização pecuniária em razão de dano moral derivado do abandono afetivo paternal carregam labiríntico desenrolar. Não sendo suficientes apenas as palavras do filho contra o pai e vice versa, mas também conta o Judiciário com uma equipe pericial que visa auxiliar para a melhor resolução do conflito. À vista disso, é imperioso que todos os requisitos relacionados estejam presentes para a verificação do ato ilícito, de outro modo, não se sustentaria a responsabilidade civil do pai, nem mesmo a reparação do dano moral intentado pelo filho. 46 Então, presentes a conduta omissiva do pai, fundada na negligência, o efetivo dano moral suportado pelo filho, bem como a relação de causalidade entre os dois, restando demonstrado que o abandono afetivo foi a única e exclusiva causa do sofrimento, restará caracterizada a ilicitude do ato, originando-se, nos termos no Código Civil, o dever do pai de reparação o dano causado mediante indenização pecuniária. 47 6. A EFICÁCIA DA PENA PREVISTA EM NOSSO ORDENAMENTO NOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO O abandono afetivo, apesar de parecer um tema novo, se faz presente em nosso ordenamento desde o revogado Código Civil de 1.916, mais precisamente no em seu artigo de número 395. O Diploma Civil que veio a substituir aquele vigente desde o ano de 1.916 conservou a sanção prevista para a prática de abandono afetivo do filho menor, a saber, a perda do poder familiar por parte daquele que praticou a conduta omissiva. No entanto, indagação que se faz diz respeito aos resultados produzidos pela imposição de tal penalidade para ambas as partes que integram o conflito, ou seja, para o pai omisso e para o filho desamparado de seu afeto. É compreensível que a perda do poder familiar por parte daquele que pratica abandono não visa apenas castigar o pai/agente, mas, também, resguardar os direitos da criança ou adolescente, garantindo-lhe seus direitos e colocando-o a salvo daquele que, por inobservância de suas obrigações, venha a viola-los. Contudo, ao contemplar a referida sanção por outra ótica, torna-se possível enxergar que nenhum dos objetivos da punição está sendo alcançado, uma vez que o pai, em nada vai sofrer com a perda do poder familiar, pois já não o exercia anteriormente, e o filho, que buscou o afeto e a participação do pai por toda vida, o terá ainda mais distante, do que quando este era omisso. 48 Dessa forma, as funções punitiva e dissuasória40 da sanção se veem ineficazes, haja vista que não observam as necessidades daqueles que visa resguardar, nem atingem de forma significativa aqueles que se pretendem penalizar. Por estas razões a positivação da indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo pratica pelo pai com relação ao filho se faz imprescindível, posto que, dessa forma, o pai, enquanto agente do ato danoso, se veria efetivamente responsabilizado e punido pelo descumprimento de seus deveres, o que, possivelmente, seria uma forma mais incisiva de fazê-lo respeitar o imposto pelo ordenamento, ou seja, desempenhar com dedicaçãoseu papel de pai. Considerando o cenário atual, onde se torna cada vez mais comum à proposição de ações indenizatórias por danos morais, cujos autores são filhos que se viram abandonados pelos pais, foi proposto o Projeto de Lei n.º 700, de 2007, de autoria do, então Senador, Marcelo Crivella, hoje Prefeito do Município da Rio de Janeiro/RJ. O PL propõe alteração da Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, a fim de regulamentar o abandono afetivo, como prática ilícita, passível de reparação de danos. O texto apresentado aborda o tema com muita transparência, não apenas qualificando a assistência afetiva como obrigação inerente aos pais com relação aos filhos, mas, também, esclarece o seu conceito: Art. 4.º.................................................................................................... §1.º........................................................................................................ ............................................................................................................... § 2.º Compete aos pais, além de zelar pelos direitos de que trata o artigo 3.º desta Lei, prestar aos filhos assistência afetiva, seja por convívio, seja por visitação periódica, que permita o acompanhamento 40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (4ª Turma). Recurso Especial nº 757411/MG. Recorrente: Vicente de Paulo Ferro de Oliveira. Recorrido: Alexandre Batista Fortes. Relator: Ministro Fernando Gonçalves. Brasília, 29 de novembro de 2005. 49 da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento. § 3.º Para efeitos desta Lei, compreende-se por assistência afetiva: I- orientação quanto à principais escolhas e oportunidades profissionais, educacionais e culturais; II – solidariedade e apoio nos momentos de intenso sofrimento ou dificuldade; III - presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente e possível de ser atendida41. Assim, considerar-se-á toda ação ou omissão praticada pelo pai, que venha a ofender quaisquer dos direitos inerentes à criança ou ao adolescente, como ilícita, e estará sujeita à reparação de danos. A alteração proposta trás, portanto, a importância de se especificar e positivar a assistência afetiva relacionada aos deveres imputados aos pais na criação, desenvolvimento e manutenção dos filhos menores, cuja abrangência se limita ao campo obrigacional, não se referindo ao campo sentimental, como era o medo de muitos doutrinadores e Magistrados contrários à aceitação do abandono afetivo como sendo passível de indenização pecuniária. Destarte, no que tange a objetividade da proposta encaminhada à Câmara dos Deputados, observa-se que o texto apresentado resguarda de forma clara e consistente o direito do indivíduo, enquanto filho, de obter a devida assistência afetiva de ambos os pais, independentemente da situação conjugal destes, além de prever punição severa e taxativa aos pais que restarem omissos em seus deveres de assistir afetivamente os filhos, incidindo, dessa forma, na prática de ato ilícitos, passível de indenização, sem o prejuízo de outras sanções cabíveis42. 41 BRASIL. Projeto de Lei nº 700, de 2007. Altera a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/83516 >. Acesso em 5 jul. 2017. 42 Idem. 50 Portanto, é de suma importância a análise das questões aqui levantadas, visando a maior efetividade das sanções previstas atualmente em nosso ordenamento, a fim de garantir a todas as partes envolvidas nos conflitos resultantes da prática de abandono afetivo de um pai para com o filho, uma solução eficaz aos que a buscam e uma sanção que, além de penalizar, de fato, tenha o poder de dissuadir o agente e outros pais que incorram no mesmo erro. Assim, conclui-se que a positivação da assistência afetiva resultaria na garantia efetiva do direito da criança e do adolescente, resguardado pela Lei Maior, em seu artigo 227, de gozar da convivência familiar. 51 7. A EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL NOS PLEITOS DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DECORRENTE DE ABANDONO AFETIVO. Assim como todo tema que gera grande divergência de opiniões entre Magistrados, doutrinadores e operadores do direito em geral, o abandono afetivo, também, chegou ao Superior Tribunal de Justiça em busca de resolução e do fim das discussões inerentes à sua aplicação. Então, em 2004, o STJ julgou o primeiro caso que versava sobre abandono afetivo, contudo, o pedido não se tratava de indenização em pecúnia, mas sim, da destituição do pátrio poder da mãe, em razão de abandono afetivo praticado contra o filho menor. Os requerentes, que se tratavam dos avós paternos do menor em questão, postulavam a destituição do pátrio poder da genitora, em razão do disposto no inciso II, artigo 395 do revogado Código Civil de 1916, que previa a perda do pátrio poder por ato judicial, em decorrência de abandono do filho. Por entender que o abandono praticado pela mãe não se deu apenas de forma física, haja vista que o menor foi devidamente amparado pelos avós paternos, mas, principalmente de forma afetiva, a 4.ª Turma do STJ decidiu pela destituição do pátrio poder da mãe, fundamentada nas, então, novas definições de abandono trazidas pelo não mais vigente Código de Menores, bem como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Constituição Federal (1988). Um ano mais tarde, em 2005, alcançou o Superior Tribunal de Justiça, o REsp n.º 757411/MG, que seria o primeiro caso de indenização por danos morais em razão de abandono afetivo paternal. Na ocasião, o pai recorria da decisão que lhe condenara diante da demanda inicialmente proposta pelo filho que visava 52 indenização pecuniária por dano moral sofrido em decorrência de abandono afetivo perpetrado pelo pai, conforme transcrição da ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. Apesar dos argumentos do filho, a Corte Superior entendeu que por existir punição expressa, constante no próprio Código Civil, a saber, a perda do poder familiar, não haveria que se falar em indenização de cunho pecuniário, além do que tal sanção acarretaria o efeito reverso do pretendido, afastando as partes, ao invés de uni-las. A seguir, transcrevo trecho do voto do Ministro Relator Fernando Gonçalves: Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada. Nesse contexto, inexistindo a possibilidade de reparação a que alude o art. 159 do Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização43. Assim, foi dado provimento ao recurso, afastando a possibilidade de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo. Tal orientação foi mantida pelo STJ até o ano de 2012, quando a Terceira Turma deu parcial provimento ao Recurso Especial n.º 1159242/SP, interposto pelo pai que, em primeira instância se viu vitorioso no embate contra a filha, que postulava em juízo
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