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Capa Folha de Rosto HISTÓRIA DA FILOSOFIA Organização e texto final: Bernadette Siqueira Abrão Crédito FUNDADOR VICTOR CIVITA (1907-1990) © Copyright desta edição, Editora Nova Cultural Ltda., 2011 ISBN: 978-85-13-01452-3 © 2011 Editora Nova Cultural Ltda. Rua Texas, 111 – sala 20ª – Jd. Rancho Alegre – Santana do Parnaíba – São Paulo – SP — CEP 06515-200 2011 APRESENTAÇÃO HÁ NO MUNDO um mistério que nem mesmo a voracidade do cotidiano consegue tragar. O desenvolvimento técnico e científico, as descobertas e invenções que dia após dia despertam fascínio e polêmica não nos afastam — ao contrário, nos aproximam — desse encantamento. Quem, diante do universo que as sondas espaciais hoje revelam, já não se indagou de onde veio tudo isso? De onde viemos nós? Essas são perguntas que há muito acompanham o ser humano. Muita gente, ao longo dos séculos, tem procurado responder a elas. De tentativa em tentativa, o leque dos interesses humanos foi se ampliando. Matemática, geometria, física, química, biologia, astronomia, ética, política, sociologia, economia, tudo derivou de uma curiosidade inicial, à qual alguns homens da Grécia Antiga procuraram satisfazer usando a razão. Deixaram de lado a explicação de que os deuses eram os responsáveis pela vida e pelos fenômenos que a constituíam para buscar respostas neles mesmos. E criaram aquilo que hoje conhecemos por filosofia, termo oriundo do grego e que significa amor ao conhecimento. É um pouco desse percurso, que tem como ponto de partida o espanto inicial diante do mundo, que este livro procura refazer. De maneira resumida, é evidente, uma vez que os milênios do maravilhamento humano diante da vida, e a necessidade de entendê-la, não cabem em algumas centenas de páginas. Foi preciso selecionar alguns pensadores mais importantes e dar, em linhas gerais, a síntese de suas idéias, colocando-as numa perspectiva histórica. Em uma era como a nossa, voltada para o resultado e a satisfação imediatos, dialogar com esses homens é entrar em contato com um outro lado de nós mesmos — aquele lado, às vezes meio esquecido, que não se contenta com o circunstancial, mas ainda se encanta com o mundo e que procura, ao buscar compreender seu sentido, desvendá-lo. Bernadette Siqueira Abrão PARTE I DAS ORIGENS À IDADE MÉDIA 1. A JORNADA INICIAL O PENSAMENTO ORIENTAL É DIFÍCIL PRECISAR o instante — se é que houve um — em que a história do pensamento começou. Poder-se-ia considerar, talvez, os mitos e as lendas que nos chegaram como primeiras tentativas de explicação do mundo e de seus fenômenos, mas essa seria uma empresa arriscada. Essa fase da aventura humana perdeu-se em milênios de caminhada, e hoje, envolta em mistério, pouco ajuda a elucidar como o homem iniciou a jornada que o acabaria levando à filosofia e à ciência. Para resolver esse impasse, estudiosos e especialistas elegeram como ponto de partida os séculos VI e V antes de Cristo. Nesse período, testemunha do surgimento de homens como Sócrates (Grécia), Buda (Índia) e Lao-tsé (China), toma forma um pensamento mais aberto à nossa compreensão, o qual, herdeiro das tradições culturais de um passado ainda mais remoto, é também marco de uma etapa que levaria o homem a procurar o sentido do mundo e da vida na própria realidade, na própria natureza. É o momento em que os deuses vão perdendo seu papel como origem de todas as coisas, e que o pensamento racional passa a ocupar o espaço antes destinado ao pensamento mitológico. É o que fazem, por exemplo, os pensadores que viviam nas colônias gregas da Jônia, em meados do século VI a.C. E a partir daí nasce o que mais tar-de seria conhecido como filosofia ocidental. No Oriente, o panorama é outro. Lá, filosofia, mito e religião entrecruzam-se por muito tempo. Enquanto os gregos tentavam descobrir o que é o homem, o pensamento oriental avançava no sentido de sistematizar doutrinas. Na Mesopotâmia, em 4000 a.C. assírios e caldeus estruturaram uma visão de mundo que perdurou até Zoroastro propor um deus único e fazer uma reforma religiosa, no atual Irã. Na Índia, os textos dos Vedas (Livros do Saber) já influenciavam as mentes em 1500 a.C., e o hinduísmo, o bramanismo e o budismo vieram à tona até o século VI a.C. A China, onde a dinastia Chang introduziu transformações culturais em 1600 a.C., mais tarde assistiu à expansão do misticismo do Tao e à sistematização religioso-político-familiar de Confúcio, que moldou a sociedade chinesa dos séculos seguintes. A Mesopotâmia, da Deusa-Mãe a Zoroastro A primeira escrita de que se tem notícia — a suméria — apareceu na Mesopotâmia, região da Ásia situada entre os rios Tigre e Eufrates (partes, hoje, do Iraque e do Irã). A roda, a organização da agricultura e a engenharia hidráulica foram outras inovações surgidas ali. Cidades como Nippur, Uruk e Eridu já existiam em 3000 a.C., com um comércio de crescimento regular e uma cultura que se estendeu a povos vizinhos, alcançando terras distantes como a Índia e a China. Nessas primeiras células de vida urbana, numa área que depois viu florescer Nínive e Babilônia, tem origem um pensamento elaborado. A antiga crença na DeusaMãe, que no período Neolítico personificava a fertilidade da terra, desdobra-se em inúmeros cultos a divindades ou entes sobrenaturais que correspondem às forças da natureza. Anu, a abóbada celeste, simboliza a água e sua fertilidade. Ishtar representa o amor e as relações sexuais. Os deuses, que comandam os fenômenos da natureza, aos poucos assumem o papel de causadores dos acontecimentos humanos: a guerra, a paz, o sucesso, a desgraça. Por volta de 2000 a.C., Hamurabi, soberano da Babilônia, estabelece o culto a Marduk (ou Baal), reverenciado como o mais importante dos deuses. O complexo sistema de deuses e crenças é depurado no século VII a.C. por Zoroastro (ou Zaratustra), que numa nação ao sul, a Pérsia (atual Irã), ensina existir um único deus, princípio do Bem: Ahura Mazda. Presente na mente de cada homem, ele luta constantemente contra Arimã, o princípio do Mal. Cabe a cada um agir corretamente para a vitória final do Bem. O pensamento, nessa fase, dispensa a ira dos deuses ou os fenômenos naturais. A busca de explicações já pede mais ordem e clareza e um maior grau de abstração. A Índia antes de Buda Muito da cultura indiana se perdeu no tempo. Os registros que servem como material de estudo iniciam-se com os arianos, que chegaram ali a partir de 1500 a.C. Rudimentar no início, essa cultura amplia-se, aprofunda-se e cristaliza-se numa coleção de obras em sânscrito, os livros dos Vedas. Em hinos épicos como o Rigveda emergem idéias poderosas, como a existência de uma ordem no universo nos níveis físico (rita) e moral (darma) e a necessidade de sacrifícios para conservá-la. Uma complexa liturgia, da qual se encarrega a casta dos sacerdotes (os brâmanes), auxilia nessa tarefa, controlando a energia cósmica (brâman), princípio de todas as coisas e da qual dependem os acontecimentos do mundo. Os Brâmanas, livros importantes da literatura védica, ajudam a entender a evolução doutrinária na Índia antiga, preenchendo um período que vai até 850 a.C. e no qual tudo se faz sob o manto generoso e dominador do deus Varuna. Numa fase posterior, até aproximadamente 700 a.C., o pensamento indiano vai mais fundo nas abstrações e compõe outra grandiosa elaboração filosófico-religiosa, os Upanichades. Esse termo significa “comunicações confidenciais” e sugere que boa parte dos muitos textos ali contidos é de difícil acesso a não-iniciados. Os Upanichadesrompem com as idéias originais de divindade e vêem o brâman como espírito único da Realidade, presente em tudo. Cabe ao homem purificar o seu atmã (“Este Eu”, alma) para se identificar com esse real eterno. Isso se faz por meio de sucessivas reencarnações, que se definem e se dirigem por uma “linha” ou “regra”, o carma. Uma ardente convocação para essa ascensão espiritual está no Bhagavad-Gita (Canto do Bem-Aventurado), o mais famoso livro sagrado do hinduísmo, que por sua vez é apenas um episódio de um grande texto épico de 250 mil versos, o Mahabharata (Grande Índia). Essas idéias, que menosprezam práticas rituais e nas quais a salvação individual consiste em abandonar o ego e mergulhar numa Essência universal, constituem a base do jainismo (fundado por Mahavira) e do budismo, ensinado por um ex-príncipe, Sidarta Gautama, nascido em 556 a.C. num reino ao norte da Índia, junto à atual fronteira com o Nepal. Meditando, Gautama atingiu a Iluminação e tornou-se Buda (Iluminado). Até morrer, com 86 anos, em 470 a.C. (ano em que, na Grécia, nascia Sócrates), Buda propunha o esforço de cada um para livrarse dos desejos, das ilusões e do individualismo a fim de chegar ao Nirvana — cortando desse modo a cadeia de reencarnações que levaria de novo ao enfrentamento de doenças, sofrimento e morte. Os mundos complementares da China A idéia de que o mundo é regido por forças misteriosas e de que cabe ao imperador intermediar entre o homem e Shang-Ti, a divindade celeste, surge na China do século XVI a.C. A felicidade depende da sabedoria desse soberano e das consultas ao I Ching — O Livro das Mutações. No cerne de cada situação, ou de cada ato, atuam duas forças opostas (e, quando bem entendidas, complementares): o yin e o yang. Longe de pólos opostos que representariam bem e mal, luz e trevas, certo e errado, em eterna luta, eles são, na verdade, a ação e a reação inerentes à natureza e ao homem. O universo contém o que é móvel e o que é imóvel. Relativo e absoluto, masculino e feminino, céu e terra, ação e repouso são algumas das infinitas combinações que se devem apreender para captar a realidade. Esse conjunto de idéias está presente em duas correntes que, embora adversárias, têm raízes comuns na tradição chinesa: confucionismo e taoísmo. O primeiro, fun-dado por Confúcio (c. 551-479 a.C.), é uma sistematização ético-filosófica destinada a manter a estabilidade (e, portanto, a felicidade) da nação. O imperador deve ser sábio e dar exemplos edificantes, assim como o pai aos filhos. O homem digno deve trabalhar muito, contentarse com pouco, ter paciência nas desventuras, respeitar sempre os superiores. O taoísmo despreza sumariamente valores sociais, família ou governo. Tudo isso, mais desejos e egoísmo, são artifícios passageiros, como prega Lao-tsé (em português, Velho Mestre), que se supõe ter vivido de 604 a 531 a.C. Em seu Tao Te Ching (Livro do Sentido da Vida), ele fala do “indefinível”, o Tao, ao mesmo tempo meta e caminho, algo que contém o yin e o yang, mas que os transcende numa harmonia superior. De intenso conteúdo místico, o taoísmo propõe renunciar aos atos de vontade, ignorar o sucesso e a desgraça, contemplar o curso natural das coisas e saber quando convém agir ou abster-se. Pode-se, assim, aderir placidamente ao ritmo da vida e identificar-se, em cada pequeno gesto, com o que o taoísmo chama de “realidade impenetrável”. 2. O NASCIMENTO DA FILOSOFIA A REVOLUÇÃO GREGA UMA NOVA maneira de pensar e de conceber o mundo origina-se e se desenvolve na Grécia clássica, um mosaico de pequenas comunidades independentes que se espalhava junto ao Mediterrâneo — da Jônia, na Ásia Me-nor, até o sul da Itália. No centro estava a Grécia propriamente dita. Essa dispersão resultou das muitas invasões de povos em busca de terras cultiváveis. Ali tomam corpo, no século VI a.C., as primeiras idéias sobre as quais vai se erigir o pensamento ocidental. Apesar de geograficamente dispersa, a Grécia Antiga tem uma vida cultural relativamente homogênea, que se expressa na língua comum, em formas de organização política, em crenças religiosas semelhantes. Essa unidade — a civilização helênica — resultou da fusão e da difusão das diversas culturas trazidas por povos variados, que sucessivamente invadiram a Grécia, misturando-se aos habitantes mais antigos. Micênios, dórios e a “idade das trevas” Em 1600 a.C., aproximadamente, a Grécia começou a ser ocupada por povos que o poeta Homero, mais tarde, denominaria de aqueus. Esses povos ergueram grandes fortificações em Micenas, Tirinto, Pilos, fundando comunidades que guerreavam entre si. Micenas, a grande vencedora dessas lutas, irradiou para toda a Grécia seu modo de vida. A sociedade micênica tinha uma organização hierarquizada em torno da família real e da aristocracia — o que se refletia na hierarquia de suas divindades. O povo dedicava-se ao comércio e à pilhagem de guerra. Seu raio de ação compreendia Tróia, Sicília, península Itálica e até mesmo o Oriente. A partir de 1150 a.C. (data aproximada), os dórios, vindos do norte, começaram a invadir a Grécia, estabelecendo-se em Epiro, Etólia, Acarnânia, Peloponeso, Creta e Anatólia. Outros povos, como os beócios, os tessálios e os trácios, também entraram em terras gregas. A civilização micênica foi destruída e a cultura, de certa maneira, retraiu-se: o comércio cedeu à economia agrícola e a escrita desapareceu, para só ser reencontrada no final do século IX a.C. Vivia-se no isolamento das aldeias, com formas de vida tribais. Por isso, esse período, que vai até o início do século VIII a.C., é conhecido como “idade das trevas”. Transformações decisivas dão-se no plano político: a realeza desaparece e o poder político passa a ser controlado por uma aristocracia de ricos proprietários de terras. O resultado é o fim da unidade política que o rei encarnava. Sem essa unidade, a sociedade passa a ser vista como lugar de desordem, de conflitos entre os variados grupos sociais: das famílias aristocráticas entre si e entre a aristocracia e as camadas mais pobres da população. Como recuperar a ordem e a harmonia perdidas? Como preservar a unidade e a coesão da comunidade se não existe rei? A organização da pólis impõe-se, aos poucos, como resposta a essas perguntas. O desenvolvimento da pólis Na origem da pólis, porém, encontram-se outros fatores. A partir do século VIII a.C., o renascimento do comércio — que ganha impulso com a invenção da moeda cunhada — termina com o isolamento das aldeias. Isso leva a uma união que acaba por dissolver as antigas linhagens tribais. A sociedade torna-se mais complexa. Deixa de ser um aglomerado de agricultores e artesãos — o demos — reunidos em torno do palácio central. Também o centro da cidade sofre uma mudança radical. Passa a ser a ágora, a praça pública, onde acontecem as transações comerciais e as discussões sobre a vida da cidade, a começar por sua defesa. O acesso à ágora tor-na-se cada vez maior, estendendo-se, com a instituição da democracia, a todos os que têm direito à cidadania, ou seja, habitantes do sexo masculino, adultos e que não sejam estrangeiros ou escravos. Essa nova forma de organização social e política é a pólis, cujas características, segundo o historiador francês Jean-Pierre Vernant, são a supremacia do logos (que significa “palavra”, “discurso” e “razão”), pois a decisão sobre os assuntos públicos depende apenas da força das palavras dos oradores, cuja condição social e econômica não é mais levada em conta; do caráter público das discussõespolíticas, que deixam de ser privilégio de grupos (as leis são elaboradas em conjunto e depois escritas, para que todos possam conhecê-las); da ampliação do culto, uma vez que a religião já não é um saber secreto de reis e sacerdotes, mas sim algo afeito ao Estado, público, acessível a todos. Essa revolução política foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento humano. Na pólis, com os cidadãos em pé de igualdade, vence quem sabe convencer. É preciso valer-se exclusivamente do raciocínio e da correta exposição de idéias — em suma, do logos. Essa fórmula de raciocinar, de falar e até de polemizar não se limita à política, porém. Passa a ser o critério para pensar qualquer coisa. O mundo do mito e o mundo do logos Esse novo modo de pensar, racional e filosófico, é considerado, por alguns autores, oposto ao pensamento mítico. É como se na Grécia do século VI a.C. o homem tivesse se libertado da mitologia e da religião para se afirmar e se desenvolver racionalmente. Na verdade, porém, a relação entre o mito e o logos é muito mais complexa. Como aponta Jean-Pierre Vernant, os “filósofos não precisaram inventar um sistema de explicação do mundo: acharam-no pronto”. Tome-se como exemplo a descrição da origem do universo feita por Hesíodo, no poema Teogonia. Os primeiros filósofos, assim como Hesíodo, buscam uma explicação para a relação entre o caos e a ordem do mundo. A maneira de entender essa relação é que muda. Enquanto o poeta vê os deuses como os responsáveis por tudo o que há, os antigos pensadores preferem partir das formas da natureza que esses deuses representam (terra, água, ar) para entender a vida. Há, porém, uma diferença fundamental entre o pensamento mítico e o pensamento racional dos primeiros filósofos. A mitologia exprimia na forma divina e celestial todo o conjunto de relações, quer dos homens entre si, quer entre o homem e a natureza. Assim como os deuses são criadores do mundo, o rei é o criador da ordem social, o regulador do ciclo da natureza. O universo divino, as relações sociais e o ritmo da natureza confundem- se, submetidos ao comando do rei. Por isso, a mitologia apenas narra a sucessão de fenômenos divinos, naturais e humanos. Ela não os explica, pois a explicação já está dada pelo poder real. O desaparecimento do “rei divino” altera esse cenário. A pólis surge como criação da vontade humana. Os acontecimentos do mundo antes considerados realizações do rei (e dos deuses) perdem a base de compreensão. Tornam-se problemas. Para resolvê-los, o homem deve servir-se do meio que ele próprio desenvolveu ao criar a pólis: o logos, a razão. O que é o destino? Muito antes do nascimento da pólis, porém, a Grécia já era marcada por uma vida cultural intensa, da qual Homero é representante — embora a existência real desse poeta seja controversa. Os poemas atribuídos a ele narram as últimas guerras troianas, que, supõe-se, ocorreram entre 1260 e 1250 a.C. Ilíada conta a fase final dos combates, em que o guerreiro Aquiles envolve-se em uma série de aventuras contra os troianos. Derrotada Tróia, o herói Ulisses (Odisseu) parte para Ítaca, sua terra natal, onde a esposa Penélope o espera. Odisséia descreve essa longa viagem (de dez anos) através dos mares. Nos dois poemas, história, ficção, lenda e mito se confundem. Os deuses e os mitos presentes nos relatos, por sinal, não são os dos povos em guerra. São os dos dórios, que, vindos do norte séculos depois das guerras troianas, instituíram uma sociedade aristocrática e consolidaram o que seria a civilização grega ou helênica propriamente dita. Assim como Homero narra fatos anteriores a seu tempo, a difusão de sua obra pela Grécia também se faz muito depois da época em que teria vivido. Seus poemas só chegam a Atenas por volta do século V a.C., em tudo diferente do período homérico. O modo de vida e a cultura são outros. A sociedade aristocrática que esbanjava luxo havia cedido à vida comedida do regime democrático. Os deuses já não bastavam para explicar o mundo. Essa época consagra Homero como “pai da cultura helênica”. E se assim o faz é porque herda do poeta uma idéia arraigada nesse novo modo de viver e de pensar: a idéia de fado, ou fatalidade, o destino implacável que comanda a vida não só do homem mas também dos próprios deuses. O que é essa força que está acima dos deuses? Esta pergunta é uma das raízes do pensamento ocidental. Os homens, abandonados à própria sorte Outra idéia também inspira os gregos a não mais recorrer aos deuses para entender o mundo: a sensação de que eles abandonaram os homens. Isso aparece já no final do século VIII a.C., na obra do poeta Hesíodo. Em Teogonia, ele descreve a criação do mundo e dos deuses a partir de Caos, Gaia (Terra) e Eros (Amor). Sucedem-se outras divindades, que com caprichos quase humanos amam, mentem, traem e lutam umas com as outras. Finalmente, com a vitória de Zeus, os deuses ins-talam-se no Olimpo. Nesse relato, Hesíodo ordena vários mitos contraditórios, explicando também os fenômenos da natureza e a história. Mais que isso, mostra que, após a vitória de Zeus, o homem está livre das cruéis maquinações dos deuses que o antecedem. Zeus, que faz reinar a justiça, castiga ou premia os mortais de acordo com os atos pelos quais são responsáveis. Em Os Trabalhos e os Dias, escrito para pedir a punição de um irmão desonesto, Hesíodo defende a necessidade do trabalho árduo como condição humana. O ser humano, segundo narra, teria passado por cinco idades: a de ouro, a de prata, a de bronze, a dos semideuses e a de ferro. Na primeira, convive com os deuses, não conhece nem o trabalho nem a morte. Seguem-se fases intermediárias que terminam com a idade de ferro, a fase atual, em que o homem, após ter recebido o fogo roubado por Prometeu, foi separado dos deuses e condenado a trabalhar, a procriar, por conta própria. A procriação é possibilitada por Pandora, mulher que os deuses enviam aos homens como vingança pela posse do fogo. Dela — ou da caixa que carrega — nascem todos os dons e todos os males da Terra. O homem está abandonado, mas já é livre para fazer valer a sua justiça. E para pensar. Democracia e filosofia Na Grécia, entre os séculos VIII e V a.C., empreendese a busca pela construção de uma sociedade justa e de um pensamento racional, livre de preconceitos. Dessa procura originam-se, de um lado, a democracia e, de outro, a filosofia. A democracia grega, principalmente a de Atenas, é o resultado de lutas sucessivas. Primeiro, entre os ricos comerciantes sem acesso ao poder e a aristocracia hereditária, que o monopoliza; em seguida, entre essas duas camadas, que já compartilham o poder, e as classes mais pobres. A democracia representa um frágil e tenso equilíbrio entre as várias camadas sociais. E, apesar das divergências que as separam, adquirem todas o direito de participação política. Diante da democracia, a filosofia mantém uma postura nem sempre favorável, mesmo porque na Grécia o pensamento alcança um grau maior de elaboração quando esse regime já havia entrado em decadência. A despeito disso, uma e outra têm raízes comuns: as condições históricas do mundo grego. A sociedade grega, ao contrário de outras civilizações de seu tempo, desconhece castas sacerdotais que tenham o monopólio dos livros sagrados e da verdade revelada. Tampouco a escrita é segredo de governantes e escribas. Ao contrário, é de domínio comum, e isso possibilita a ampla difusão e a discussão de idéias. O livre desenvolvimento do pensamento também é facilitado pela ausência, quer na religião olímpica quer nas crenças mais místicas, deuma teologia elaborada que forneça explicações coerentes do mundo. Os deuses gregos, ao contrário, têm características humanas e pouco servem de inspiração para um pensamento mais elaborado. De uma perspectiva política, uma “religião” tão frágil em fundamentos é ineficiente como instrumento de poder. Dessa maneira, já no período homérico, a idéia de rei divino desaparece, cedendo espaço para que a política e o governo se tornem cada vez mais um assunto e uma atividade essencialmente humanos. (O homem seria definido mais tarde, por Aristóteles, como zoón politikón, isto é, animal político.) A reduzida dimensão das unidades políticas do mundo grego contribuiu para o surgimento dessa concepção dessacralizada de política. A Grécia Antiga não é um império cujo domínio se estende a vastas regiões e a diversas comunidades. Ao contrário, cada comunidade é uma cidade-Estado autônoma, com dimensões de um pequeno município. É bem provável, porém, que cada pólis tivesse sua organização própria, embora oficialmente todas seguissem o modelo de Atenas. É lá que o zoón politikón de Aristóteles aparece em sua plenitude, e disso o ateniense se orgulha, como característica que o distingue de outros povos. Ele, ao contrário dos bárbaros, que despreza, não está submetido ao mando de um rei. Tem consciência de viver em sociedade; sabe que é ateniense porque é cidadão, e que é cidadão porque participa da vida pública da cidade. Os destinos da pólis são de responsabilidade de todos os cidadãos, acima dos quais não há nada a não ser as leis que eles mesmos elaboraram. Até mesmo os espartanos, em vários aspectos tão diferentes dos atenienses, imitaram-nos quando enviaram embaixadores aos persas, sob o argumento de que não tinham outro senhor a não ser a lei. A idéia de que a soberania é da lei — não dos deuses ou de algum rei — constitui o fundamento da democracia grega. Até chegar a ela, os atenienses passaram por vários sistemas de governo. Diante de sérios conflitos entre grupos sociais que disputavam o poder, chegaram a escolher tiranos (que então significavam “árbitros”) para servir de mediadores dos diversos interesses, encarnando a autoridade da lei. Por fim, na democracia, a lei tornouse impessoal, obra coletiva, resultado da decisão tomada por todos, reunidos em assembléia pública. Mas bem entendido: todos, menos mulheres, crianças, estrangeiros e escravos — aos quais era negado o direito à cidadania. Essa organização política, até então inédita, possibilitou o desenvolvimento, em um modo sistemático de pensamento, de concepções difusas, presentes na cultura helênica desde os tempos de Homero e de Hesíodo. O governo da cidade como esforço coletivo e exclusivo dos cidadãos é a tradução política da idéia de que os deuses abandonaram os homens. E a fatalidade, superior aos deuses, tem seu equivalente na visão democrática de que a lei está acima dos indivíduos. Nesse ambiente iria desenvolver-se a filosofia, um modo de pensar que busca uma lei universal, acima de todas as coisas, e que as explique sem recorrer a forças místicas e divinas. OS PRIMEIROS FILÓSOFOS A noite segue o dia. As estações do ano sucedem-se uma à outra. As plantas e os animais nascem, crescem e morrem. Diante desse espetáculo cotidiano da natureza, o homem manifesta sentimentos variados — medo, resignação, incompreensão, admiração e perplexidade. E são precisamente esses sentimentos que acabam por leválo à filosofia. O espanto inicial traduz-se em perguntas intrigantes: o que é essa natureza, que apresenta tantas variações? Ela possui uma ordem ou é um caos sem nexo? Em suma: o que é a physis? A palavra grega physis pode ser traduzida por natureza. Mas seu significado é mais amplo. Refere-se também à realidade, não aquela pronta e acabada, mas a que se encontra em movimento e transformação, a que nasce e se desenvolve. Nesse sentido, a palavra significa gênese, origem, manifestação. Saber o que é a physis, assim, levanta a questão da origem de todas as coisas que constituem a realidade, que se manifesta no movimento. Procura saber se há um princípio único (arkhé, que também quer dizer “comando”) que dirija e ordene todas as coisas do mundo, em seus diversos e contraditórios aspectos. É desses temas que vão se ocupar os primeiros filósofos. Pouco se sabe a respeito dos pioneiros do pensamento ocidental. De seus textos restaram apenas fragmentos. Suas idéias chegaram a nós por intermédio das versões apresentadas pelos pensadores que vieram depois, e que os apresentam como “primeiros filósofos”. Não fosse isso, eles talvez ficassem conhecidos como escritores com pretensões vagamente científicas, com suas investigações peculiares sobre a natureza. Esses pioneiros surgiram na Jônia, colônia fundada na costa asiática da Grécia por antigos micênios, que ali se refugiaram das invasões dóricas. Enquanto a maior parte dos gregos mergulhava na “idade das trevas”, os jônios desenvolveram intensas atividades artesanais e comerciais, que favoreceriam o surgimento de novos valores sociais, baseados menos na tradição, mais na iniciativa dos indivíduos. A vida cultural floresceu, e disso a obra de Homero é testemunha. A astronomia e a matemática desenvolveram-se, sob a influência de contatos com os povos do Oriente. Em meio a esse fervilhar, a cidade de Mileto foi se impondo como principal centro da Jônia. Tales, Anaximandro e Anaxímenes — que receberam o nome de pré-socráticos por ter surgido antes de Sócrates, o grande marco da filosofia ocidental —, os primeiros filósofos, formam a chamada Escola de Mileto. Apesar das diferentes idéias que elaboraram, une-os o fato de ter inaugurado a filosofia com a mesma pergunta: o que é a physis? Por esse motivo, Aristóteles, mais tarde, iria denominá-los physiologoi, “fisiólogos”, isto é, estudiosos da physis. Tales: tudo começa na água Tales, nascido em Mileto, é considerado, pela tradição clássica, o primeiro filósofo. Viveu provavelmente entre 640-562 a.C. Matemático e astrônomo, previu o eclipse do Sol de 585 a.C. Diz-se que, distraído, teria caído num poço quando contemplava os astros. Mas comenta-se, também, que foi um hábil negociante, e que prosperou muito por causa da astúcia. De seu pensamento só ficaram interpretações formuladas por outros filósofos, que lhe atribuíram uma idéia básica: a de que tudo se origina da água. A physis, então, teria como único princípio esse elemento natural, presente em tudo. Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando novamente esfriados. Desse ciclo (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas formas de vida, vegetal e animal. Não há dúvida de que esse pensamento logo esbarra em dificuldades. O que são, por exemplo, o calor e o frio de que depende o movimento da água, se é esta a origem única de todas as coisas? A busca da arkhé, um princípio único, conflita com outras forças que, por sua vez, precisam ser enquadradas em um princípio diferente. Essa dificuldade não é exclusiva de Tales; é da própria filosofia, que se desenvolve tentando resolvê-la. Se Tales aparece como o iniciador da filosofia, é porque seu esforço em buscar o princípio único da explicação do mundo não só constituiu o ideal mesmo da filosofia como também forneceu-lhe o impulso para desenvolver-se. Anaximandro: indeterminado e eterno Contemporâneo de Tales, Anaximandro procura um caminho diferente. Para ele, o princípioda physis é o ápeiron, que pode ser traduzido como indeterminado ou ilimitado. Eterno, o ápeiron está em constante movimento, e dis-so resulta uma série de pares opostos — água e fogo, frio e calor — que constituem o mundo. O ápeiron é, desse modo, algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma linha de Tales, porém dando um passo a mais na direção da independência do “princípio” em relação às coisas particulares. Anaxímenes: o ar comanda a vida O meio-termo entre Tales e Anaximandro é representado por Anaxímenes, que viveu em meados do século VI a.C. Segundo ele, a arkhé que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais condensadas de ar. Tudo o que existe, mesmo apresentando qualidades diferentes, reduz-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. NOS NÚMEROS, A HARMONIA UNIVERSAL A intensa vida cultural de Mileto acaba em 494 a.C., quando a cidade é destruída pelos persas. O eixo da cultura helênica, então, desloca-se para a Magna Grécia, no sul da Itália. Ali, na cidade de Crotona, floresceu o pensamento de Pitágoras e de seus seguidores. Pitágoras: tudo é matemática Pitágoras, se é que realmente existiu, teria nascido na Jônia, na segunda metade do século VI a.C. Instalandose em Crotona, fundou uma seita religiosa e mística, que tinha como base o orfismo — um culto popular que pregava a transmigração da alma e a necessidade da purificação do homem para salvá-lo do ciclo das sucessivas reencarnações. Assim como o orfismo, a seita pitagórica tinha um caráter esotérico, secreto: suas idéias só eram acessíveis aos iniciados, que deviam praticar uma série de obrigações. O pitagorismo representaria um marco decisivo no desenvolvimento do pensamento racional e científico, por ter elevado à condição divina uma das realizações mais racionais do homem: a matemática. Com os pitagóricos a matemática deixou de ser uma técnica capaz de atender necessidades práticas como as da agrimensura para tornar-se uma ciência pura. Para os pitagóricos o homem precisa identificar-se com o divino para eliminar conflitos e se salvar. Chega-se a isso pela contemplação teórica, que vislumbra, por trás dos conflitos, a harmonia. A harmonia está presente, por exemplo, na música, um dos elementos-chave da prática ritual do orfismo. Conta-se que Pitágoras teria descoberto que as variações do som dependem do comprimento da corda. É uma relação proporcional simples: se o comprimento da corda for diminuído à metade, o som tornase mais agudo (vai a uma oitava acima); um acorde (ou harmonia) mais simples é produzido quando o comprimento das cordas está na razão 3:4:5. A música, em suma, é uma relação numérica. Quando soa desagradável (sem harmonia), é porque a relação entre os números não se encontra numa proporção justa. Os pitagóricos vão estender para todas as coisas esse entendimento da música. O mundo é número, afirmam, e reduzem tudo o que existe a figuras geométricas simples. Se o mundo é número, cabe então descobrir as “características” de cada um, e suas relações. Dentre os vários “tipos” de números destacam-se dois: os pares (2, 4, 6…) e os ímpares (1, 3, 5…). Dispostos geometricamente, os pares formam sempre um retângulo e representam a alteridade, a diferença, enquanto os ímpares, que formam sempre um quadrado, com lados iguais, constituem a identidade. Dito de outra maneira, os ímpares são o princípio do Mesmo, e os pares do Outro. A justa medida e a harmonia Esses dois princípios, opostos e complementares, desdobram-se em dez pares: limite e ilimitado; ímpar e par; uno e múltiplo, direita e esquerda; masculino e feminino; imobilidade e movimento; reto e curvo; luz e obscuridade; bem e mal; quadrado e retângulo. A harmonia entre ambos ocorre quando há uma medida justa (métron), exata, de cada um. A inexistência dessa harmonia é a responsável pela desordem do mundo, tanto em relação ao aspecto biológico (masculino e feminino) quanto ao âmbito moral e político (bem e mal). De todos os pares, os mais importantes são o limite e o ilimitado. Este último, ápeiron, representa o mundo terreno, com suas mudanças e corrupções infindas. Essa instabilidade somente pode ser detida pelo limite, que lhe oferece ordem e harmonia. Nesse sentido, o limite ligase ao divino, única garantia da proporção justa. O homem consegue a salvação quando em sintonia com esse limite pacificador — o que se dá pela matemática. Outro exemplo de relações constantes entre os números é o famoso teorema de Pitágoras: em qualquer triângulo retângulo verifica-se a relação a2 = b2 + c2, sendo “a” a hipotenusa (que é o lado oposto ao ângulo reto) e “b” e “c” os catetos. Essa propriedade do triângulo era, na realidade, conhecida já pelos egípcios, mas o mérito de Pitágoras foi o de demonstrá-la por meios racionais. O irracional também existe Esse tipo de investigação, porém, levou à descoberta de algo que os pitagóricos não podiam conceber: o número irracional. Num quadrado, por exemplo, a relação entre a extensão da diagonal e a dos lados é sempre a raiz quadrada de 2, cujo valor exato, por mais que se acrescentem os decimais, é impossível de obter. O mesmo acontece com a relação entre a medida da circunferência e do diâmetro: a razão é sempre constante — o número pi —, mas qual o seu valor? O número é par ou ímpar? A dificuldade apresentada pelo número irracional deve-se ao fato de a matemática, na época, ser sobretudo geometria. A aritmética, entre os pitagóricos, era rudimentar, mesmo porque os números eram representados por pontos, que pouco se prestam às operações. O pitagorismo apresentou uma grande flexibilidade de pensamento. Nisso também é uma seita diferente das outras, que tendem a se fechar em seus dogmas e a evitar problemas não previstos. Desenvolvendo constantemente suas investigações, os pitagóricos difundiram suas idéias por toda a Grécia, influenciando o pensamento científico e filosófico posterior, que encontraria na matemática um de seus modelos preferidos de raciocínio. DOIS CAMINHOS PARA A FILOSOFIA No século V a.C., a Grécia propriamente dita (ou seja, Atenas) entra em guerra com a Pérsia. O cenário das investigações filosóficas, então, divide-se em dois. Um deles passa a ser Éfeso, na Grécia asiática, e outro Eléia, no sul da Itália. São duas extremidades opostas do mundo grego, como que simbolizando as duas direções contrárias que a filosofia irá tomar. Essas direções têm em comum o mesmo ponto de partida, a herança dos primeiros filósofos da Jônia: a pergunta sobre se existe um princípio único que explique o mundo em seus diversos aspectos. Em Éfeso, a resposta de Heráclito é a de que os contrários formam uma unidade; a de Parmênides, em Eléia, de que os contrários jamais podem coexistir. Heráclito: “tudo é um” Heráclito (c. 540-480 a.C.) transforma em solução o que aos outros era problema. Para ele, o mundo explica-se não apesar das mudanças de seus aspectos, muitas vezes contraditórios, mas exatamente por causa dessas mudanças e contradições. Por isso, em um de seus fragmentos, diz: “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei”. Em outras palavras, todas as coisas opõem-se umas às outras, e dessa tensão resulta a unidade do mundo. Essa oposição, esse combate, é uma guerra,e não, como pretendia Anaximandro, o equilíbrio de forças iguais. Tampouco é a harmonia dos contrários assegurada, como no entender dos pitagóricos, pela justa medida imposta por um ente supremo. Para Heráclito, a harmonia nasce da própria oposição: “O divergente consigo mesmo concorda; harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”. A divergência e a contradição não só produzem a unidade do mundo mas também a sua transformação. O mundo é um eterno fluir, como um rio; e é impossível banhar-se duas vezes na mesma água. Fluxo contínuo de mudanças, o mundo é como um fogo eterno, sempre vivo, e “nenhum deus, nenhum homem o fez”. Mas só se compreende isso quando, ao deixar de lado a “falsa sabedoria” ditada pelos sentidos e pelas opiniões, chega-se ao logos, isto é, ao pensamento sensato. É o raciocínio adequado que abre as portas para o entendimento do princípio de todas as coisas. “Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um”, diz um de seus aforismos. Parmênides: o ser e as ilusões Parmênides (c. 540-450 a.C.), ao contrário de Heráclito, procura eliminar tudo o que seja variável e contraditório. Se uma coisa existe, ela é esta coisa e não pode ser outra, muito menos o seu contrário. Uma árvore é uma árvore, o Sol é o Sol, o homem é o homem, o que é é o que é. Em outras palavras, o ser é o ser ou, resumidamente, o ser é. Segue-se logicamente que não-ser não é, não pode existir. Se só o ser existe, o ser deve sempre existir. Deve ser único, imóvel, imutável, sem variações, eterno. Mas o que seriam então as constantes mudanças, as contradições e os aspectos diferentes que o mundo apresenta? São ilusões, responde Parmênides, meras aparências produzidas por opiniões enganadoras, não pelo conhecimento do verdadeiro ser. Esse pensamento inaugura a metafísica (por não se contentar com a aparência das coisas e buscar algo que estaria “por trás” da aparência, ou seja, a essência) e a lógica (o princípio da não-contradição existente no ser, que é, e no não-ser, que não é). Para Parmênides, o mundo dos sentidos, por estar condicionado às variações dos fenômenos observados e das sensações, dá origem a incertezas e a opiniões diversas. Por isso, o conhecimento não pode ser alcançado por esse caminho, e sim pela certeza que a razão produz por meios lógicos e dedutivos. Os paradoxos de Zenão O pensamento de Parmênides é levado ao extremo por seu discípulo Zenão (também de Eléia), que formula seus famosos paradoxos. “Paradoxo”, na origem, significa “contrário à opinião”, e é exatamente contra a opinião comum que Zenão pretende demonstrar que a variedade (ou a pluralidade) das coisas e o movimento são impossíveis. Se há várias coisas, afirma Zenão, elas devem ser em determinado número, nem mais nem menos; mas entre elas deve haver sempre outras. Então é preciso admitir que existe um número ao mesmo tempo finito e infinito de coisas, o que é absurdo. Esse argumento supõe que não haja o vazio. De fato, segundo Zenão, se existe algo, esse algo está em algum lugar, mas esse lugar deve também estar num lugar e assim sucessivamente. Um lugar sempre contém um outro, por isso não pode estar vazio; o vazio não existe. Tampouco existe o movimento. Uma flecha, para atingir o alvo, ocupa a cada momento da trajetória um espaço igual a si mesma. Ou seja: a cada momento ela está parada. O movimento da flecha seria a soma de momentos em que está imóvel, o que é absurdo. O movimento é assim uma ilusão, do mesmo modo que a pluralidade das coisas o é. Só há um ser, único, imóvel, indivisível e eterno. O MOVIMENTO E O ÁTOMO O rigor do pensamento de Parmênides e de Zenão levou a filosofia a um impasse: se, pelo raciocínio lógico, é perfeitamente admissível a inexistência da pluralidade das coisas e do movimento, por outro lado, pela experiência cotidiana, torna-se difícil descartá-los sumariamente como meras ilusões dos sentidos e das opiniões. Surgem assim tentativas que buscam conciliar a idéia de um ser único e imóvel com a de pluralidade e de movimento — e isso sem abandonar a precisão da lógica nem violentar o que os sentidos testemunham. Desse esforço participam Empédocles e Anaxágoras de um lado, e, de outro, Leucipo e Demócrito. As quatro raízes de Empédocles Nascido em Agrigento, na Magna Grécia, Empédocles (c. 483-430 a.C.), médico e místico, defensor da democracia, faz essa conciliação ao preservar a idéia de que o ser é eterno e indivisível, mas não a de que é único e imóvel. Para ele, o mundo compõe-se de quatro princípios ou raízes: água, ar, fogo e terra. Tudo resulta da combinação, em proporções maiores ou menores, dessas quatro raízes, todas elas imutáveis e indestrutíveis. Mas, para que se combinem, é preciso algo que as faça mover-se, aproximando-as ou separando-as. Por isso, Empédocles é leva-do a conceber forças opostas: o Amor e o Ódio, o primeiro agindo no sentido de aproximar e misturar as raízes, e o segundo no sentido contrário. Tanto nas quatro raízes como nas duas forças não há hierarquia. Uma não é mais importante do que a outra, nem há entre elas a idéia de anterioridade; todas encontram-se no mesmo plano. Num momento, o Amor une as raízes, formando um todo único. No momento seguinte, o Ódio as separa, produzindo as diversas coisas existentes no mundo. Quando essa separação se completa, o Amor volta a agir. Esse movimento cíclico origina e refaz tudo o que há. Anaxágoras: um pouco de tudo em tudo Em vez de quatro raízes, um sem-número de elementos com qualidades distintas — essa é a concepção de Anaxágoras, que, nascido na Jônia, foi o primeiro filósofo a viver em Atenas, onde se instalou em 487 a.C. Para ele, tudo o que existe é composto de todos esses elementos, uns em maior quantidade, outros em proporções tão ínfimas que nem sequer são perceptíveis. “Em tudo é incluída parte de tudo”, disse ele. A pluralidade das coisas explica-se assim por infinitas combinações de todos os elementos. E o movimento? Segundo Anaxágoras, todas as coisas estavam juntas na origem, formando um todo cujas partes não eram identificáveis, como o caos original da mitologia. Elas, porém, foram se separando pela força do nous (espírito ou inteligência), que, como num turbilhão, pôs em movimento todas as coisas, misturando-as em diversas proporções. O nous é assim a origem do movimento e da pluralidade. Ele, porém, é autônomo, isto é, não se mistura com as coisas, mas as dirige. Leucipo e Demócrito: o átomo como princípio Outra é a concepção de Leucipo, nascido talvez em Mileto, em data desconhecida do século V a.C., e de seu discípulo Demócrito (470-370 a.C.), de Abdera. Para eles, o mundo é composto de átomos — palavra grega que significa “não divisível”. Assim, o átomo é indivisível, mas também imutável, eterno, sempre idêntico a si mesmo. E, nesse sentido, equivale ao ser de Parmênides. Mas não é único. Os átomos existem em número infinito. A conseqüência disso é que entre um átomo e outro existe um algo: um vazio, um nada, um não-ser, repudiado por Parmênides e Zenão. É nesse vazio que os átomos se movem. Em seu entrechoque produzem diversas combinações, e daí resulta a pluralidade das coisas: o mundo em movimento. O nascimento, assim, não passa de um agregado de átomos, enquanto a morte é apenas a destruição desse agrupamento. Nos dois casos, cada átomo permanece intacto e imutável. Eles se diferenciam, porém, numa série de aspectos, como tamanho, forma, posição. Há átomos grandes e pequenos, redondos e angulosos, em pé ou de lado. Suas combinações também variam: os átomos A e N, por exemplo,podem se reunir como AN ou NA. Essas diferenças tornam-se mais claras num dos fragmentos deixados pelos atomistas: “O sabor amargo é produzido por átomos pequenos, lisos e redondos, cuja atual circunferência é sinuosa, e por isso é viscosa e pegajosa. O sabor ácido é causado por átomos grandes, não-redondos e, às vezes, até angulosos”. OS SOFISTAS E A RELATIVIZAÇÃO DA VERDADE A vitória de Atenas sobre os persas, em 479 a.C., marca também a consolidação da democracia na cidade. Uma base importante da democracia é a educação, pela qual os cidadãos se tornam capazes de participar da vida pública. Numa sociedade em que os debates se dão por meio de palavras, é preciso ser um bom orador, saber argumentar. Dessa educação encarregam-se os sofistas. Os sofistas (literalmente, “sábios”) são estrangeiros. Por isso não têm direito à condição de cidadãos e, assim, estão impedidos de participar dos destinos da cidade. Não se preocupam com o que uma argumentação pode ter de justo ou injusto, moral ou imoral — isso é assunto dos cidadãos. Basta-lhes que seus discípulos aprendam a falar — não importa o quê, mas bem, de modo convincente — e que os remunerem pelo ensino. Dizia- se até que um aluno, para se considerar apto, deveria convencer o mestre a não receber o pagamento. Se não conseguisse convencêlo, a lição fora mal ministrada e não mereceria remuneração. Se o conseguisse, não haveria por que pagar. Mas os sofistas não são meros mercenários da arte de bem falar. Se não se preocupam com o conteúdo de um argumento é porque compartilham com os atenienses a experiência da democracia, em que o mundo humano é criação do homem. Não há um único princípio que a tudo comande, mas apenas convenções que os homens estabelecem para depois abandonar. Os valores e as verdades são instáveis e relativos. A própria linguagem, essa capacidade essencialmente humana, também não passa de convenção, sem poderes para expressar a verdade, a não ser as verdades relativas de cada um. Essas idéias abalam os filósofos, que vêem os sofistas como inimigos e não os consideram seus pares. A palavra “sofista” ganhou o sentido de “demagogo”, e “sofisma”, de “argumento falso”. Na Grécia clássica, odiados, os sofistas procuravam acumular conhecimentos e técnicas sobre as mais diversas atividades humanas. De todas elas, porém, detêm-se mais na linguagem. Consideram que na democracia, na qual as diferenças sociais e econômicas não contam, a linguagem é a única força que têm os homens. Por isso é necessário conhecê-la ao máximo, da gramática às figuras. A filosofia passa assim a se afastar das investigações dos pré-socráticos, sobre a natureza e o universo, para ocuparse mais e mais das questões humanas. “O homem é a medida de todas as coisas”… … “das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são.” A afirmação de Protágoras (c. 485-410 a.C.), considerado o primeiro sofista, significa que o mundo é aquilo que o homem faz e desfaz por intermédio dos sentidos. E, caso haja um princípio único, o ser humano não pode conhecê-lo. Essa concepção, que separa a ordem das coisas naturais e a dos homens, abre a possibilidade da formulação de idéias não só sobre o conhecimento como também sobre a política e a moral. Uma vez que a medida de todas as coisas é o homem, seu conhecimento está limitado pelos sentidos, que mudam de um para outro (o que é doce para alguns, por exemplo, pode ser amargo para os demais). Assim, se existe algum acordo entre os homens, não resulta do conhecimento de uma suposta verdade absoluta, mas de simples convenção. De maneira semelhante, os modos de organização social e política não derivam de um único princípio de justiça e sim das convenções criadas pelos homens de acordo com as circunstâncias e as conveniências. No âmbito da moral dá-se o mesmo. Bem e mal são simplesmente valores que o ser humano convencionou chamar por esses nomes. Ao denunciar as certezas, ao duvidar da existência de uma única verdade, os sofistas acabaram por atrair também a ira dos cidadãos comuns. Diz-se que Protágoras teria sido condenado pela pólis. Não era para menos. Se na obra A Verdade ele a questiona, em Sobre os Deuses afirma a impossibilidade de decidir sobre a existência dos seres divinos. Outros sofistas conhecidos são Hípias (nascido na Élida no século V a.C.) e Górgias (c. 487-380 a.C.). O primeiro deixou o Diálogo Troiano, sobre a educação dos jovens; o segundo, depois de interpretar a obra de Parmênides, dedicou-se à linguagem. 3. A FILOSOFIA SE CONSOLIDA SÓCRATES, O HOMEM QUE PERGUNTAVA SÓCRATES (c. 469 ou 470-399 a.C.) é um marco na história da filosofia. A ponto de os que vieram antes dele receberem todos, apesar de suas diferenças, o nome genérico de “pré-socráticos”. Há quem considere que a filosofia propriamente dita só começou — ou, ao menos, só chegou à maturidade — com Sócrates. Que, no entanto, nada escreveu. Falava, e muito, mas nada concluía. Qual é, então, seu pensamento? Sócrates vive o apogeu e a crise da democracia ateniense. Atenas, após a vitória sobre os persas, torna-se uma grande potência, estendendo sua influência por quase toda a Grécia. A vida cultural é intensa, com grandes escultores e artistas, dramaturgos como Ésquilo, historiadores (Heródoto e Tucídides), o médico Hipócrates e homens públicos como Péricles. Este último, com suas realizações políticas e culturais, torna-se um símbolo da época, que, por isso, é conhecida como “século de Péricles”. Mas todo esse esplendor custa um alto preço. A hegemonia de Atenas faz crescer as rivalidades com Esparta, que vão culminar, em 431 a.C., na Guerra do Peloponeso. O conflito estende-se até 404 a.C., quando Atenas capitula definitivamente. Com a derrota, o regime democrático, que já se encontrava enfraquecido por intrigas, conspirações e corrupção, cede lugar ao governo dos Trinta Tiranos. Embora restaurada em 403 a.C., a democracia ateniense jamais será a mesma. A crise de valores políticos e morais é intensa e a condenação de Sócrates, em 399 a.C., é uma triste metáfora da decadência da democracia e da própria Atenas. “Só sei que nada sei” De Sócrates, ficaram várias imagens. Aristófanes (c. 445-386 a.C.), por exemplo, considera-o um sofista. Sem razão, pois, enquanto os sofistas ensinam a argumentar com convicção sobre qualquer assunto, Sócrates, ao contrário, destrói as certezas com bons argumentos. O elogio de Xenofonte (431-355 a.C.), discípulo do filósofo, faz dele um pensador algo convencional. Platão consolidalhe uma imagem definitiva, apresentando toda a originalidade de seu pensamento — que, no entanto, talvez seja mais do próprio Platão do que de seu mestre. Desse entrechoque de imagens, porém, uma sobressai: a do conversador. Mas nisso ele é igual a outros atenienses, que, sob a democracia, fizeram da arte da conversação o principal instrumento de convivência social. Sócrates também não se distingue pelo que fala, pois seu assunto é o que está diariamente na boca de todos. A diferença está no modo como ele conversa, mostrando que no plano das opiniões todos têm razão e, por isso, ninguém a tem. Não lhe interessam palavras belas e sedutoras; ele quer conhecer a essência das coisas. Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates nasce em Atenas. Figura muito conhecida na cidade, talvez já fosse reconhecido como “sábio” quando contava cerca de 40 anos. O próprio Sócrates, na versão apresentada por Platão, situa o inícioda sua atividade intelectual nessa fase já madura, quando teria recebido sua “missão”. Essa missão origina-se numa consulta que seu amigo Querefonte faz aos deuses do santuário de Delfos, para saber se havia um homem mais sábio do que Sócrates. A resposta é negativa. Intrigado, pois não se julgava sábio, Sócrates resolve investigar. Conversa com um político, por todos considerado sábio, e chega à conclusão de que este apenas passava por conhecedor de todas as coisas. Diz o filósofo, nas palavras transcritas por seu discípulo Platão: “Mais sábio do que esse homem eu sou; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio do que ele exatamente por não supor que saiba o que não sei”. Não contente, Sócrates prossegue buscando alguém mais sábio, acreditando estar assim a serviço dos deuses. Mas o resultado é sempre o mesmo. Todos falam como se fossem sábios e, mesmo quando conhecem algo, extrapolam seus conhecimentos para assuntos dos quais não têm nenhuma noção. Em busca da essência Sócrates simplesmente pergunta. Não ensina; quer aprender. Seu pensamento parece desprovido de conteúdo. Mas, se não há ensinamentos, há uma proposta. Destruindo as respostas fáceis dos interlocutores, ele mostra que o pensamento deve ser mais prudente. Se as respostas saem fáceis é porque a pergunta foi mal formulada, e apenas contorna o problema. Quando, por exemplo, se indaga se o exercício militar torna corajoso um homem, as possíveis respostas sempre escorregam em torno das vantagens e das desvantagens que esse treinamento oferece, sem alcançar o verdadeiro problema: o que é a coragem. Discutem-se os meios (o exercício militar) para atingir determinados fins (a coragem), em vez de examinar os próprios fins. O que Sócrates propõe é formular perguntas adequadas, isto é, um método de investigação que encaminhe o pensamento em direção à essência das coisas, sem desvios. Ele, porém, nunca vai diretamente à questão “o que é…?”. Primeiro ouve e apresenta objeções aos argumentos dos outros. É como se o pensamento tivesse de experimentar possibilidades antes de entrar na rota certa. O diálogo cumpre essa função de “experimentação”. O pensamento precisa de um interlocutor, com quem possa sempre discutir. O verdadeiro conhecimento nasce desse diálogo; não é transmissível do mestre ao aluno, mas arrancado do interior de uma discussão — um verdadeiro trabalho de parto. Sócrates, que dizia seguir a profissão da mãe, parteira, auxilia os homens a trazer à tona um conhecimento que já se encontra latente em cada um. A pergunta “o que é…?” não é nova. Remonta aos tempos dos primeiros filósofos da Jônia. Sócrates, no entanto, transpõe essa questão, inicialmente destinada ao mundo da natureza, para o mundo dos homens e de suas ações. Em Atenas, que consolidou a democracia mas que assiste à sua decadência, na qual valores políticos e morais conflitam cada vez mais, ele indaga se existe um valor essencial a todos os homens, algo que seja a essência das virtudes particulares como coragem, sabedoria e justiça. A condenação da Ética A Sócrates interessam o homem e suas ações, exatamente aquelas tidas como virtuosas, numa época em que ser virtuoso é quase sinônimo de ser cidadão e tudo se justifica em nome da virtude — até mesmo as injustiças. Ele pergunta o que é a sabedoria, a beleza, a coragem, a justiça porque procura, a partir desses diversos aspectos da virtude, chegar à questão das questões: o que é a virtude? Conhecê-la torna-se, assim, o principal objetivo do verdadeiro conhecimento — só pratica o mal quem ignora o que seja a virtude. E quem tem o verdadeiro conhecimento só pode agir bem. Desse modo, conhecimento e virtu-de tornam-se sinônimos. Com Sócrates, as questões morais deixam de ser tratadas como convenções baseadas nos costumes, as quais se modificam conforme as circunstâncias e os interesses, para se tornar problemas que exigem do pensamento uma elucidação racional. Nesse sentido, ele é o fundador da Ética. Pensar racionalmente as questões morais implica denunciar tudo aquilo que aparece como virtude, desmascarando-o na sua falsidade. Mas com isso Sócrates põe o dedo na ferida da própria Atenas, que mergulhara em vícios e na corrupção, e fingia ser justa. Os poderosos decidem condená-lo. O pretexto é o de ofender os deuses da cidade e corromper a juventude. Baseia-se, esta última acusação, no fato de Sócrates não esconder seus hábitos homossexuais (um comportamento permitido e comum na época). Procurava cercar-se sempre de rapazes jovens e belos. A defesa que Sócrates faz de si próprio, relatada por Platão, é um libelo contra os que o julgam. Altivo, não pede clemência. Sua morte é decretada a contragosto. Espera-se que ele fuja — as autoridades poderiam fazer vistas grossas — mas Sócrates, cidadão ateniense, acha que a lei é soberana. Despede-se serenamente dos amigos e morre tomando um cálice de cicuta, veneno extraído de uma pequena planta que crescia em pântanos nos arredores da cidade. PLATÃO E O MUNDO DO OUTRO Platão (c. 428-347 a.C.), o mais importante continuador da obra de Sócrates, é quem dá à filosofia a sua primeira grande sistematização. Desde as investigações dos filósofos pioneiros, sobre o princípio do mundo, ou as exigências lógicas de Parmênides e Zenão, e os impasses a respeito do movimento e da pluralidade das coisas, até as questões sobre os valores humanos (formuladas, de um lado, pelos sofistas e, de outro, por Sócrates), passando pelos rigorosos estudos matemáticos dos pitagóricos, todos esses aspectos, que constituíram os temas do pensamento ocidental, encontram-se não apenas sintetizados, mas também colocados em novos termos por Platão. A força dessa síntese é tal que, em pleno século XX, o filósofo inglês Alfred N. Whitehead dirá que a história da filosofia não passa de uma sucessão de notas de rodapé da obra de Platão. Ou, como afirmará o francês François Châtelet, somos todos discípulos de Platão. Exagerados ou não, esses comentários referem-se ao fato de que praticamente tudo o que a filosofia, a partir de Platão, irá tomar como tema tem origem nele, seja para aprofundar o pensamento, seja para refutá-lo. Para Platão, a vida de Atenas é a prova viva do que mostrava Sócrates ao denunciar, com suas perguntas, o falso saber dos homens, sobretudo no que se refere aos valores humanos. Como Platão mesmo afirma numa carta autobiográfica (Carta VII), a política ateniense, que se orgulhava de ter um governo o mais justo, degenerava de injustiça em injustiça. “A legislação e a moralidade estavam a tal ponto corrompidas que eu, antes cheio de ardor para trabalhar para o bem público, considerando essa situação e vendo que tudo rumava à deriva, acabei por ficar aturdido”, escreveu. A condenação e a morte de Sócrates em 399 a.C. resumem esse estado de coisas. Desiludido, Platão abandona o ideal de participação política alimentado desde a juventude: “Fui então irresistivelmente levado a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à sua luz se pode reconhecer onde está a justiça na vida pública e na vida privada”. Compra então uma propriedade (a Academos) nos arredores de Atenas e ali funda, por volta de 387 a.C., uma escola, a Academia, onde desenvolve seus estudos. A Academia não é uma instituição escolar no sentido moderno. É antes uma espécie de irmandade, com certas conotações religiosas, em que se discutelivremente a respeito de temas como matemática, música e astronomia, além de questões propriamente filosóficas. Na entrada, um lema indica a inspiração pitagórica: “Não entre quem não saiba geometria”. Pela dialética, a theoría Platão faz da crise política da cidade um tema de reflexão. Procura um fundamento sólido para a conduta humana, pois, segundo ele, as ações não se justificam por si mesmas, nem as opiniões ligadas a essas ações. É preciso afastar-se da vida prática dos homens, desviando o olhar para um outro lugar onde se possa encontrar a Verdade, para fazer dela matéria de contemplação (theoría): o abandono da política significa essa opção radical pela teoria. Mas, se somente a teoria pode fornecer critérios para as ações humanas, em que basear esses critérios? Na teoria mesma. Ela, e só ela, pode proporcionar, a cada pas-so, sua justificativa. Por isso Platão é levado a desenvolver um pensamento sistemático, coerente, que enfrente todas as dificuldades com seus próprios recursos. Do problema político- moral inicial, sua indagação vai desdobrarse em várias direções, todas interligadas. A possibilidade do conhecimento teórico que se autofundamente e que proclame sua validade unicamente pela força de suas demonstrações é dada pelo método que Platão denomina “dialética”. Na origem, essa palavra designava a técnica da discussão, e nesse sentido é a arte cultivada e ensinada pelos sofistas. Mas, para Platão, dialética é outra coisa. Seu modelo são os Diálogos de Sócrates, cujo encadeamento preciso de raciocínios impossibilitava refutações. Mas Sócrates produzia um saber negativo: levava seus interlocutores a saber que nada sabiam. Platão, ao contrário, quer ir além e produzir um saber positivo. Os Diálogos cumprem esse objetivo. Por meio de afirmações, e de objeções a elas, vai se formando um consenso que, em vez de mero consentimento, é uma autêntica unanimidade de pensamento, pois as conclusões a que se chega são incontestáveis e não admitem nenhuma outra solução. Desse modo, de passo em passo, o pensamento separa o que é aparente do que é essencial. A origem das coisas Em Timeu Platão supõe a existência de um deus, o Demiurgo (“fabricante” ou “artesão”), que, contemplando a beleza das idéias já existentes, tratou de reproduzilas. Tomou então do material disponível, algo como o Caos inicial da mitologia, e foi modelando, à semelhança das idéias, todos os seres do mundo. A obra é perfeita — descontada a imperfeição do material empregado. O conjunto dessa obra é o mundo, que no todo apresenta uma ordem, e que é como o ser de Parmênides: esférico (a figura mais perfeita), único, limitado e, uma vez criado, eterno. No entanto, não se trata do ser parmenideano, que não admitia o não-ser. O nada, antes impensável, muda de significado em Platão: é o Outro, algo que não são as idéias (o Mesmo), isto é, a própria matéria de que é feito o mundo. É esse Outro que faz com que o mundo seja, em seus aspectos particulares, dominado por variações, pluralidades, aparências, opiniões e injustiças. Nesse sentido, Platão, que se retira do mundo instável da política para contemplar as idéias, não o faz por mero amor à teoria. Para ele, essa contemplação, pela qual se conhece o Bem, é condição para retornar ao universo sensível e imperfeito, a fim de moldá-lo, tal qual o Demiurgo, à imagem e semelhança das idéias. Nesse longo percurso, que vai do mundo da injustiça até o Bem e que volta ao mesmo mundo injusto — percurso que ficou conhecido como “dialética ascendente” e “dialética descendente” —, ele teve de abranger praticamente todos os temas que mais tarde alimentariam a história da filosofia. As aparências e as Idéias A “verdadeira filosofia”, proclamada por Platão, recusa a solução dos sofistas, para os quais a justiça e a injustiça não passam de convenções. Sócrates já havia apontado um caminho diferente: uma e outra confundem-se porque os homens não sabem verdadeiramente o que é a justiça, isto é, não conhecem a sua essência. Ao contrário, permanecem no nível das aparências, que são o modo como as coisas aparecem aos homens e o modo como estes as percebem por meio das sensações, dos sentidos. As aparências constituem assim o mundo dos sentidos, o mundo sensível, em que tudo é instável e variável, de acordo com as circunstâncias e os pontos de vista. Nesse mundo sensível, cada um se apega a um aspecto das aparências e o transforma em certeza, em “verdade”. E, como cada um percebe o mundo de maneira diferente, as opiniões que resultam dessa percepção também são variadas e divergentes. Além disso, é comum que as opiniões ocultem interesses pessoais. Desse modo, a opinião (doxa) jamais pode proporcionar o verdadeiro conhecimento, que é a ciência (episteme). É possível obter esse conhecimento, o que implica ultrapassar o nível da opinião? Sim, com uma condição: a de que as essências existam. Para Platão, elas existem, e disso a geometria fornece exemplos. Afinal, essa ciência trabalha com figuras perfeitas (triângulos, círculos etc.), que, embora não se encontrem no mundo sensível, existem no universo intelectual. E, mesmo fora do âmbito da geometria, percebemos, por meio dos sentidos, uma diversidade de cavalos, de diferentes tamanhos e cores, mas jamais nos enganamos sobre eles: são todos cavalos. Assim também é a justiça, em nome da qual se faz tanta controvérsia. Há algo que mesmo intuitivamente se pode reconhecer como justo. É preciso então que haja a essência das figuras geométricas, do cavalo, da justiça. Platão denomina essas essências de eidos, palavra que pode ser traduzida por idéia ou forma. Assim, se no mundo sensível há vários cavalos diferentes, existe, por outro lado, uma única idéia de Cavalo. E, para os diferentes círculos que percebemos, há uma só idéia de Círculo. A pluralidade das coisas e as mudanças são próprias do mundo sensível; cada idéia, ao contrário, é única e imutável, existindo verdadeiramente, e não apenas no senti- do ideal, tal como hoje comumente o entendemos. Assim, o mundo supra-sensível ou inteligível existe de forma anterior e mais efetiva do que o mundo sensível. É ele o verdadeiro mundo real. A Verdade, plena de luz Esses dois mundos, segundo Platão, embora separados, estão relacionados num sentido preciso: as coisas sensíveis imitam as idéias que lhes correspondem, do mesmo modo como um pintor imita em seu quadro a natureza. Como imitação, as coisas sensíveis são sempre imperfeitas, e isso explica por que o mundo sensível é variado e sempre em mutação. Mas é também por essa relação de imitação que os homens, situados no mundo sensível, podem conhecer as idéias, como quem se lembra do modelo de que foi tirada a cópia. Conhecer é assim reconhecer, lembrar-se das idéias que foram contempladas pela alma, mas esquecidas por causa do apego do corpo às coisas sensíveis. A alma possui essa capacidade de reconhecer as idéias porque de certo modo participa do mundo inteligível: como as idéias, ela é imaterial, incorpórea e impalpável, constituindo um elo de ligação que ainda mantemos com o inteligível. Por fim, o despertar da alma para o mundo inteligível faz-se por um sentimento, que é o amor. Inicialmente, o amor é carnal e deseja um corpo belo, mas, aos poucos, passa a desejar a própria Beleza e o conhecimento da sua idéia. E o que pode haver de mais belo para o intelecto senão a Verdade? O amor que deseja a Verdade é a própria filosofia (literalmente, “amor ao saber”). Platão ilustra os passos desse amor quedeseja conhecer por meio da célebre alegoria da caverna, que abre o Livro VII de A República. Segundo essa alegoria, o mundo sensível é como uma caverna em que os homens se encontram acorrentados de tal modo que só podem olhar para as paredes escuras. Atrás deles há uma fogueira cuja luz projeta na parede sombras obscuras — a única realidade, para esses homens. Mas um deles consegue escapar. Fora da caverna, a intensa luz do Sol ofusca-lhe a visão. Os olhos, porém, acostumam-se à claridade e ele vê a verdadeira e bela realidade: o mundo inteligível. Maravilhado, não pode deixar de voltar à caverna, a fim de comunicar aos companheiros a sua descoberta. Mas eles não o compreendem. Riem e, depois, matam-no. O filósofo que chega à verdadeira realidade tem uma missão: a de voltar à caverna, ao mundo sensível dos homens, mesmo que ali seja incompreendido. Afinal, viu a luz do Sol que ilumina toda a realidade; a luz que, ao possibilitar o conhecimento, proporciona também o conhecimento de como os homens devem agir. Conhecer, para Platão, é conhecer o Bem, a Idéia suprema que, como o Sol, ilumina as demais idéias, tornando-as compreensíveis. Conhecer o Bem significa que finalmente é possível organizar a cidade não mais segundo as opiniões, mas ten-do como base o verdadeiro conhecimento. Este mostra que a cidade depende de três funções: a satisfação das necessidades básicas dos habitantes, a defesa do território e, por fim, a administração. A população, por isso, deve ser dividida nessas funções, segundo a aptidão de cada um: uns serão agricultores e artesãos; outros, guerreiros e guardiães da cidade. Aqueles, por fim, que se destacarem nos diversos níveis progressivos de educação pelo verdadeiro conhecimento, devem dirigir a cidade. Por isso, diz Platão, na Carta VII: “Os males não cessarão para os homens antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder”. Uma conclusão talvez drástica mas inevitável para quem foi levado à filosofia pelo desencanto com a política cega dos homens. ARISTÓTELES E A BUSCA DA FELICIDADE Aristóteles tem na história da filosofia uma influência decisiva. No período final da Idade Média, a versão cristã de seu pensamento torna-se praticamente a doutrina oficial da Igreja. A ciência moderna que nasce no Renascimento desenvolve-se em meio a acirrado combate contra o aristotelismo (ou a imagem que se criou a seu respeito). Pensadores como Kant, no século XVIII, Hegel e Marx, no século XIX, fazem de Aristóteles uma fonte de inspiração, e até hoje se discutem as questões lógicas por ele propostas. Tamanha influência presta-se também a equívocos. Muitos, simplificadamente, opõem Aristóteles a seu mestre Platão, e outros, mesmo séculos após assentada a poeira das lutas contra o aristotelismo, continuam a considerá-lo o grande inimigo do desenvolvimento científico, ignorando as marcas que ele deixou na própria ciência. Aristóteles nasce em 384 a.C. na cidade de Estagira (daí ser conhecido também por O Estagirita), na Calcídica, que se encontra sob a dependência da Macedônia. Mas sua relação com este reino — que logo mais seria um grande império, subjugando a Grécia e, depois, a Pérsia — não se limita ao local de nascimento. Nicômaco, seu pai, era médico da corte de Filipe, rei da Macedônia. O filho deste, o célebre Alexandre Magno, teve o próprio Aristóteles como preceptor, entre 343 e 340 a.C. (As relações do filósofo com Alexandre são motivo de suspeitas: em 323 a.C., quando morre este, Aristóteles é levado ao tribunal de Atenas sob pretextos religiosos. Condenado, prefere não seguir o exemplo de Sócrates, para que, segundo suas palavras, os atenienses “não pequem uma vez mais contra a filosofia”. Desterrado, morre no ano seguinte.) Aristóteles revela-se um destacado discípulo da Academia, onde realiza seus estudos de 366 a.C. até a morte de Platão (347 a.C.). Mais tarde, quando Alexandre sucede ao pai e inicia a consolidação do império, o ex-preceptor volta a Atenas para fundar sua própria escola, o Liceu, próximo ao templo dedicado a Apolo Liceano, nos arredores da cidade. Ao contrário da Academia, que se ocupa sobretudo da matemática, o Liceu é antes um centro de estudo de ciências naturais. Ali, Aristóteles mantém dois tipos de cursos: o chamado “exotérico”, destinado a um público amplo, e o “esotérico”, ministrado a um círculo mais restrito de discípulos. Uma obra fragmentada Aristóteles escreveu uma série de trabalhos definitivos, com grande preocupação literária e em forma de diálogos, à maneira de Platão. Mas só se tem notícia disso pelas citações feitas por autores posteriores, como Cícero, Plutarco, Diógenes Laércio, Jâmblico e outros. Isso porque o que resta da vasta obra aristotélica limita-se praticamente a notas que o filósofo preparava para seus ensinamentos no Liceu. Como tais, tinham caráter resumido, apenas indicativo e muitas vezes só compreensíveis para o próprio autor. As obras que sobreviveram ao tempo — precisamente as notas às quais se acrescentam outras, anotadas por seus discípulos — foram primeiramente organizadas por Andronico de Rodes, no século I a.C., e formam um con-junto conhecido pelo nome latino Corpus Aristotelicum. Dele fazem parte tratados lógicos, sobre a física e a concepção do universo, psicológicos e biológicos, metafísicos, ético-políticos, sobre linguagem e estética. Os primeiros textos, de que se conhecem alguns fragmentos, são de forte influência platônica até no título (como O Banquete, O Sofista, O Político), e tratam de temas como a imortalidade da alma (em Eudemo) e a exortação da “verdadeira filosofia” (em Protréptico). A ruptura com o pensamento do mestre ocorre após a saída da Academia: a obra Sobre a Filosofia, desse período, contém a crítica da teoria das idéias. A partir daí Aristóteles desenvolveria seu próprio caminho. Isso, porém, não significa que ele seja radicalmente antiplatônico. Se diverge de Platão, seu pensamento supõe, por isso mesmo, o do mestre. Mais do que isso, com essa divergência Aristóteles procura “salvar” o platonismo, depurando-lhe os aspectos incongruentes e fazendo-o descer ao mundo sensível — o que Platão, apesar das intenções proclamadas, raramente conseguia, por considerá-lo mera aparência. A crítica ao mundo inteligível Por se dedicar ao estudo dos seres vivos e de tudo o que a natureza contém, Aristóteles não despreza, como seu mestre, a observação das coisas que se apresentam aos sentidos. Mais do que isso, procura integrar a percepção do mundo sensível ao conhecimento científico e filosófico. Isso, porém, não significa que ele tenha sucumbido ao mundo sensível e às suas variações e incertezas. Se recusa a solução do mestre é porque, no seu entender, o mundo inteligível concebido por Platão apenas explica a imperfeição do mundo sensível, mas nada além disso; é incapaz de explicar o universo dos sentidos, a diversidade e o movimento que nele ocorrem, a não ser pelo recurso duvidoso de um Demiurgo fabricante do universo. Se o mundo inteligível é uma ficção desnecessária e inútil, só resta ao conhecimento tornar-se o conhecimento do mundo sensível, onde existe não a idéia de Homem ou de Cavalo, como queria Platão, mas homens e cavalos individuais. Os sentidos que captam as coisas individuais constituem assim o ponto de partida. A percepção dessas coisas produz, no intelecto, imagens a elas correspondentes (de diversos cavalos, por exemplo). A atividade do intelecto consiste em separar dessas imagens os aspectos acidentais, como o tamanho e a cor, para ficar com
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